DIA II
Já é noite novamente, gastamos quase toda a nossa água já no início da viagem devido ao calor e ainda precisamos cozinhar as batatas que trouxemos para o jantar. Ainda nos resta mais um dia inteiro de caminhada, penso que teremos de reutilizar a água das batatas amanhã. Ao menos, diferente de ontem, uma brisa fria, porém agradável, sopra ao nosso redor, não há nenhum som de passos, nenhum grito cortando o ar, há apenas areia, pra onde quer que se olhe um oceano dourado reluz. Quisera eu que fosse realmente ouro, se assim fosse, encheria meus bolsos dele e iria embora imediatamente.
Embora tenha me perguntado durante todo o dia, se a noite passada realmente aconteceu ou se fora um efeito alucinógeno causado pela insolação que devo ter pegado neste deserto, ainda mais estranho do que os lamentos que ouvimos à noite, foi a manhã: ainda tremendo de espanto, Aura e eu abrimos o zíper da barraca, na verdade, levamos mais de quinze minutos só pra abri-la completamente, depois mais algum tempo se passou antes que tivéssemos coragem de dar uma breve espiada no que poderia haver do lado de fora, e para nossa imensa surpresa, não havia nada!
Apenas demos de cara com Aleguero, que estava dormindo aos roncos com suas roupas meio amassadas e cobertas “com toneladas” de areia, bem do lado de um punhado de gravetos parcialmente queimados, o que nos deixou chocados, afinal de contas, como em nome de Deus aquele homem conseguiu manter o fogo aceso com tamanha tempestade, com tamanha loucura do além a sua volta?
Será que não ouvira o mesmo que nós, será que imaginamos tudo aquilo?
Será que EU imaginei ou sonhei com os acontecimentos?
Assim que pisamos para fora da barraca, o homem acordou com um sobressalto, mas levou ainda uns segundos para se levantar; ao fazê-lo, Aleguero contemplou a cena, em que via Aura e a mim saindo de uma barraca tão pequena e quase agarrados um ao outro e isso, somado aos olhares desconfiados dela, também não ajudaram em nada para contradizer os pensamentos do rapaz que, logo exibiu um rosto simplesmente malicioso. Ele não disse nada a princípio, apenas quando questionei se havia ouvido também os lamentos agourentos da noite, é que começou a rir descontroladamente antes de comentar:
– Lamentos agourentos?
– Achei que a madame gritava por outra coisa!
Em seguida se virou para Aura e falou em alto e bom som:
– Hei senhorita, ele é tão ruim assim de cama a ponto de fazê-la chorar?
– Por que não me deixa cuidar de ti esta noite?
– Garanto que a satisfarei muito melhor do que este doutor almofadinha aqui, olhe pra ele, de terno em pleno Deserto Amazônico!
– Como ousa falar assim de uma dama tão digna – vociferei – ela jamais se sujeitaria a este tipo de coisa!
Indignado, me virei e me afastei imediatamente, fui em direção a senhorita Aura, como que para dizer que não desse ouvidos a aquele homem, mas a vi me olhando com desconfiança pelo canto dos olhos, com o rosto baixo e a mão esquerda sobre a testa. A moça se afastou de mim em seguida. Alguns minutos depois, enquanto recolhíamos as coisas para iniciar a caminhada novamente, a intimei a falar sobre os gritos que ouvimos a noite mas, por um instante, ela pareceu meio que fora do ar, até que caiu em si novamente se pôs a murmurar enquanto corava:
– Foi um erro… foi um erro… um terrível erro!
Depois saiu correndo para longe, carregando apenas seu chapéu e um cantil com água de batatas. Ainda muito confuso com a cena, acompanhei apreensivo Aleguero, recolhendo as coisas, depois seguimos a caminhada.
Observei a bela Aura mais uns instantes, era como se nada de estranho tivesse ocorrido, pelo contrário, parecia que a moça estava terrivelmente envergonhada, como se houvesse feito algo que não devia… diante disto, volto a me questionar: será que tudo aquilo, todos aqueles gritos e “fantasmas”, tudo foi apenas um sonho?
Deixe-me ver: estive por toda a noite numa barraca com a gentil senhorita Aura e, em todas as vezes que falamos, ela mal me olhou nos olhos. Está me parecendo muito envergonhada com algo, isso somado as constantes piadas sujas feitas por nosso carregador, o que posso concluir de tudo isso?
Sou um homem casado e amo minha esposa mas, será que fizemos algo pelo qual me arrependi, em seguida construí toda uma fantasia repleta de temores e maldições ao redor do fato?
Sem dúvida alguma, esta é a explicação, tem que ser!
Me parece mesmo com algo que aquele famoso psiquiatra que as vezes sai nos jornais, o tal Sigmund Freud, concordaria, segundo ele, tudo se resume a sexo e, é claro, que a culpa pelo que fizemos mexeu também com minha sanidade!
Minhas palavras estão fazendo algum sentido?
Nem sei mais por que continuo escrevendo isto, acho que apenas preciso me focar em algo, então, por hora, me concentrarei na busca que há a frente, me esforçarei para chegar até a pirâmide sem nenhuma distração, não mais compartilharei a barraca com a senhorita, para que não venha a cometer o mesmo e terrível engano!
A tarde a seguir, foi tão normal quanto se podia ser, isto é, levando-se em conta que estávamos caminhando para dentro de um infernal deserto. Vez ou outra, precisamos parar para que a delicada Aura descansasse por algum tempo e, foi num destes descansos, em que o rapaz havia se deslocado para o alto de uma das grandes dunas que começavam a aparecer, para buscar uma visão mais ampla do lugar, que perguntei a moça, de maneira absolutamente profissional e educada, sem sequer me aproximar muito:
– O que sabe sobre este homem senhorita?
– Aleguero, acho que este é o nome dele.
Ela riu em voz baixa, e fez menção de se aproximar, mas, vendo meu desconforto – pelo que lamento tê-la feito sentir – apenas colocou sua mão esquerda ao lado da boca, como se tivesse a intenção de amplificar seus sussurros:
– Não sei mais do que sua nacionalidade: ele é florentino, foi indicado pelo meu avô como um guarda-costas para esta expedição e eu aceitei.
– Mas, ao vê-lo, um dos carregadores me contou que se tratava de um homem de fama perturbadora, me contou uma história tão absurda que julguei ser uma mera artimanha para diminuir o número de pessoas nesta viagem, afinal de contas, parte do pagamento que prometemos, seria 0,1% dos lucros da expedição divididos para todos da equipe, com menos integrantes, maior seria sua parcela, foi isso o que pensei.
Então lhe questionei sobre a tal história que havia ouvido sobre nosso companheiro e foi isso o que ela disse:
– O rapaz me falou sobre uma expedição, a um antigo templo asteca, no México, onde um burguês estava interessado numa estátua de uma deusa, ou uma virgem, ou o que quer que fosse, não me lembro ao certo agora mas, este homem era o encarregado da segurança da equipe, já que na região haviam muitos contrabandistas.
– Eles realmente chegaram ao templo, pelo que parece, ao todo eram quinze pessoas, mas ninguém voltou de lá!
– Foram todos mortos de uma maneira tão absurdamente brutal que ninguém soube explicar o fato, este homem, o nosso carregador, foi o único sobrevivente, logo depois foi apelidado de Alighieri, devido aos relatos de demônios e monstros que trouxe a tona, isso ocorreu mais ou menos a sete anos…
Passei o resto do dia ainda mais perdido do que a manhã, estive pensando nesta história até agora, quando escrevo estas palavras. Ainda assim, tão perturbadora quanto possa ter sido a história que a senhorita contou, meus próprios devaneios ainda se sobressaem em minha mente: será mesmo que sonhei com todos aqueles gritos agourentos devido a culpa pelo meu pecado, ou foi o próprio Alighiere que trouxe a tona todas as maldições dos nove círculos do inferno, tal qual os bêbados temem?
Me pergunto se ele planeja fazer o mesmo que fez naquela vez conosco, isto é, com Aura e comigo. Aquela conversa não adiantou de nada, senão para atiçar ainda mais minha loucura. Mas foi então que pus meus olhos firmemente naquele homem, seu olhar, desde o início me pareceu frio, como alguém que passou por muito sofrimento e, mesmo no escuro da noite e a luz de uma fraca fogueira, percebi, com receio, que ele levava as mãos ao cinturão pelo menos uma vez a cada minuto, conferindo se sua arma ainda estava no lugar e se estaria também pronta a ser usada.
É estranho, ainda é madrugada e já não tenho sono, creio ter sido aquele sonho que me despertou: sonhei com uma linda mulher, quase tão linda quanto a senhorita, seus cabelos eram negros como a noite e seus olhos brilhantes como o Sol, sua pele era tão suave como a primavera e tinha um jeito arrebatador de caminhar. No sonho, ela vinha em minha direção vestida toda de cetim branco, desde o alto de uma Pirâmide Dourada, até a relva verde em que estive caminhando sob grandes árvores. Então ela falou comigo, me chamou pelo nome com a mais doce voz que já ouvi, e, ainda agora, enquanto escrevo, a ouço, me contando sobre o lugar de onde vinha, e que também me mostraria coisas incríveis, segredos escondidos além da realidade humana, num lugar chamado Abaddon.
Mas isto não foi o mais estranho, o que realmente me assustou foi o que me disse Alighiere, quase imediatamente ao momento em que saí para respirar, após ter acordado:
– Esqueça isso doutor, você já teve sua chance noite passada, mas o que fez com ela?
– Ficou assustado como um gatinho, você não é homem suficiente, mas eu sim, não me deixo levar por alucinações de um deserto apenas por falar com a mais bela das deusas!
Então seu olhar me pareceu tão absurdamente maligno e, ao mesmo tempo, suplicante, que temi lhe responder, apenas fingi não saber do que falava, o que não adiantou de muito, pois o homem ainda sussurrou:
– Amanhã, não fique entre nós ou o matarei, ela será minha!
Eu soube imediatamente o que ele pretendia fazer com a senhorita, mas naquele momento, nada fiz, pois, percebi sua mão pousada sobre a cintura, tateando a arma novamente. Não posso deixar que sua intenção se concretize, antes de chegarmos a pirâmide terei de fazer alguma coisa, nem que seja matá-lo, preciso cuidar de Aura!