O universo é uma grande câmara em expansão, uma chocadeira da existência do plano tridimensional, ao mesmo tempo em que é uma câmera de extrema resolução que registra todas as coisas, incluindo os mínimos detalhes da breve passagem dos reles mortais.
No momento em que saímos de uma bolha abdominal cheia de líquido amniótico, para interagirmos na bolha atmosférica do plano terrestre, os sons, as luzes e variadas sensações tomam conta dos nossos sentidos que despertam nossos instintos, ainda despidos de qualquer experiência existencial. O mundo festeja com alegria o som do nosso choro, o sinal sonoro da abertura na fenda do espaço-tempo, que vomita ao mundo uma nova consciência envolta em sua carapaça material.
O nascimento é o evento em que surge de um lugar místico um pergaminho em branco que se desenrola numa superfície chamada tempo, qual ninguém saberá o tamanho do seu, nem a quantidade das suas páginas. Não saberemos se o livro que estamos sendo será bem escrito, se na eternidade será publicado ou se será apenas o rascunho de um escritor inconstante esquecido sobre uma escrivaninha empoeirada.
Na redação dos livros que estamos sendo, atuamos como personagens secundários na trama do outro, enquanto somos os protagonistas das nossas próprias histórias. No enredo de todos esses títulos estamos sendo vítimas, defensor, testemunha e acusado, papéis dos quais ninguém foi voluntário — sem falar que nos consideramos juízes habilitados quando se trata em julgar e condenar o que está sendo escrito no livro que o outro está sendo.
Todos estamos sendo livros na realidade da matéria e dos sentidos. Uns sendo escritos, outros sendo terminados — ou talvez sendo arquivados para serem continuados em outras dimensões. Penso que estar sendo um livro nessa existência é uma espécie de livramento de outras possibilidades, inclusive o livramento da possibilidade de não ter experienciado a existência. Talvez, forçando a etimologia da palavra, a palavra "livramento" seja sinônimo de "escrever livros", ou reescrever velhas histórias.
Mas chega um momento em que muitos começam a pensar no prazo de validade do livro que estão sendo e ao notarem a poeira e a capa amassada se perguntam: —Quais acabarão primeiro, as páginas ou a pena? Será o quanto de tinta ainda nos resta no tinteiro?
Há quem, por não gostar do que está sendo escrito, desejaria jamais ter nascido, queria ser livre de estar sendo livro. Diz que odeia o destino, pois pedras e espinhos fazem parte do seu enredo e ao estar desistindo, acrescentam-lhe mais páginas. Inconformado, diz estar sendo escrito com a tinta errada.
Outros, profundamente apegados a esta escrita, confiam no que está sendo escrito e por ter esperança de mais páginas em suas histórias, clamam com a intensidade dos que têm sede de salvação:
— Ó, Autor da vida, nos livre um pouco mais!
— Ó, Autor do pergaminho! Livrai-me de ser livre de não ser livro. Ser livro foi o livramento da possibilidade de não ter sido nada.
—Ó, Arquivista das memórias da vida! Ó Bibliotecário do pergaminho da nossa jornada! Livrai-nos de que nosso nome não esteja escrito no Livro da Vida; livrai-nos de que nosso livro não seja achado na Biblioteca do Velho Escriba; livrai-nos de que no Livro Eterno nossa existência não esteja nas páginas.
Edson Monteiro