Alguns Poemas

a vontade

foi talvez o marulhar d´águas
o som nítido e claro na manhã soalheira
aquele esquecimento de todas as mágoas
uma manhã parecida quem sabe com a primeira

não se ouviam os pássaros no seu chilrear
só uma espécie de grandes corvos 
pairando algo sinistros no céu azul
e por uma vez em muitos meses 
ausentou-se a necessidade de matar
na vontade do homem da Europa do sul

e recordou os seios adivinhados 
das raparigas a quem amou
recordou os mercenários corpos 
onde aliviou os sentidos 
e um pouco da ilusão do amor que então buscou
nesses corpos onde repousam os amores perdidos 

e de novo
todos esses cheiros renasceram-lhe na memória
e a pátria lá ao longe já dele esquecida
vergou-o ao peso de ter que lhe escrever a história 
de ter que levar o impossível de vencida 

sentou-se na margem desse rio
observando-lhe o fluir sem pressa das suas águas de cristal 
e sentiu saudades da sua terra no estio
quando menino
lhe explorava montes e do mundo se ausentava todo o mal

deu-se conta que tudo isso ficou para trás
o seu fado era a infrutífera busca da fortuna no desconhecido
com ferros matava e com ferros iria morrer
mas pelo sonho valeria a pena por ele houvera renascido

o mar não o afugentou com o seu tenebroso rugir
resistiu ao frio à fome e ao escorbuto
sob a sua espada quem andava ao corso teve de fugir
aumentando-lhe o pecúlio com o seu produto

deu ao mundo novas coordenadas novas latitudes
outras vaidades e o sabor inebriante da especiaria
afectadas atitudes 
uma outra dimensão e um outro sentido à poesia 

nunca se fiou nas toscas respostas que lhe impunham
no mundo imenso perduravam-lhe tantos porquês
e era feito de mais coisas do que eles supunham
tivera a sorte que o destino houvera de o nascer português

foi talvez o marulhar d´águas 
sulcando mais uma ruga de expressão ao rosto do mundo
foi talvez a vontade
de realizar o sonho maior e o desejo mais profundo 


leal maria

em mim, a memória do mundo

exigem-me um curriculum vitae...
curiosos,
pedem-me aquilo que sou contado como numa história.
tolos… 
não me vêm encimado num pedestal que não cai? 
não sabem que sou a humanidade em toda a sua memória!?

eu sou o soldado de Roma: o legionário;
para a batalha perfilado, entre a coragem e o medo…
eu sou o romance tirado ao imaginário,
de quem desesperadamente amava em segredo.

sou o inicio de um grito,
que se abafa sob a mão dos torturadores…
eu sou o dia bonito,
agradando à donzela que pinta no jardim as flores.

eu sou o infeliz e valente marinheiro,
que se levantou da morte mais vezes que as que caiu no mar.
eu sou o que se disse: “o primeiro!”
e sob o nome de seu senhor, veio as possessões reclamar.

eu sou o choro da criança ao nascer
e o desconsolado olhar da sua mãe de muitos filhos…
o gemido de lamento do velho ao morrer;
a coordenada que indicou os novos trilhos…

as minhas mãos têm sementes de fome e de pão!
na minha carne há o sabor de milénios de suor!
sou o furtivo vulto na escuridão…
sou feito de tantos e tantos poemas de amor!

sou o suicida que ao desespero se abandonou…
sou o soldado que se sacrificou pelos camaradas.
sou o sonho que uma vida inteira se buscou...
sou o tempo que diz que as coisas são passadas.

sou o actor da peça cheia de ambiguidades;
o dramaturgo de uma vida que não interessa a ninguém. 
sou a lágrima que inadvertidamente revela as saudades;
o cínico sorriso que tenta disfarçar o desdém…

sou o deus que virou a cara ao seu povo!
o sacerdote que perdeu a fé.
sou o pregador anunciando o mundo novo…
o sub-reptício politico prometendo “amanhás” ao sabor da maré

sou o lavrador que rasga a terra,
numa prece aos deuses da boa sorte.
sou a declaração de guerra,
que prenuncia campos cheios de morte.


sou tudo e esse tudo não me cabe na vida...
sou o que foi e o que vai ser!
sobre as brumas da memória já perdida…
sou eu (e tu) que trago às costas,
esta humanidade que se recusa a perecer…




leal maria





leal maria (todos os dereitos reservados)


lealparaquedista@sapo.pt

Eu; o princio do verbo que criastes

…mas eis que no cimo do altar, olhei e não vi 
rio algum do mundo de mim derivar
nenhuma nascente em mim nascer
somente que esse mundo em mim vinha desaguar
e o espírito inquieto do argonauta se recolher

e com todas as perguntas que há a fazer
achei-me sem nenhuma resposta na bagagem
até as mais enraizadas ideias me começaram a morrer
e a verdade adiei-a para um ponto incerto da viagem

mas pediram-me verdades absolutas
quiseram-me saber o nome de ser Deus
e eu mais não fiz que lhes dar fratricidas lutas
ocultando-lhes que correm para o definitivo adeus

e da frágil argamassa com que os disse ter feito
fiz templos onde ordenei que me adorassem
marquei-os com diversos sinais no peito
e acentuei-lhes as diferenças para que se guerreassem

obedientes; assim fizeram como lhes ordenei
tragaram-se numa sanguinária autofagia
numa semântica enviesada que tomaram como lei
sacrificaram-me corpos despedaçados declamando poesia

mas eu nada lhes aceitei
fiquei ali inerte, como sempre o tinha feito
com as suas gorduras nem um grama engordei
e o meu frio mármore manteve-se perfeito

pouco me interessa que definhem iludidos
não me comovo com as suas lágrimas de dor
em nada me perturba esses inocentes perdidos 
quando me imploram misericórdia com todo o ardor

em todo caso de nada lhes poderia valer
neste pedestal onde impassível os observo
outros me fizeram deus para melhor vos conter
nada pode alterar a fria natureza em que me conservo

mas… engano meu
sinto-me… sinto-me um deus que ensandeceu
aborrece-me esta plêiade obtusa de sacerdotes
ogres de barriga inchada com o que é meu
peço-vos que os façais combustível dos vossos archotes

vede a imensa má seara que pela terra semearam
estragada é a semente das suas retóricas arcaica e serôdias
porque foi em vão aquilo que com a fé buscaram
e o banquete prometido é um pão de duras côdeas 

recuso desde já os nomes que me deram
nem Jeová; nem Alá; ou outro que me queiram dar
que nessa imagem em que me fizeram
criaram-vos como rebanho mansamente a pastar

está na hora de emancipar-vos do pastor
é tempo de fazer do tempo uma renovada descoberta
que o que importa no fundo é o amor
de quem em cada manhã vê o divino que desperta

e eu, que nada lhes aceitei
continuarei aqui inerte, como sempre o tenho feito
com as suas gorduras nem um grama engordarei
e o meu frio mármore manter-se-á perfeito…


leal maria (todos os direitos reservados)


lealparaquedista@sapo.pt

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