A palavra e as descobertas do mundo
Severino seguia a pisar em sua própria sombra, circunstância que o projetava em direção ao zênite, palavra que ele acresceu ao seu vocabulário no dia anterior na escola onde estuda, num lugarejo denominado Jericó que segundo sua avó é nome bíblico. Sabia que ninguém acreditaria na coincidência de estar ele no dia seguinte a seguir sua sombra e sua sombra a segui-lo ou ao emparelhar-se a dita com ele, ainda que zênite tenha sido um assunto trabalhado, como já dito, por sua professora que chama também zênite de conteúdo junto com outras palavras que não entraram na cabeça de Severino por conta daquela estranheza vocabular tão distante do seu lugar, aonde se aprende mais com a vida do que com os livros.
Agora mesmo descobriu o zênite propriamente, horizonte bem distante que se desenha à sua frente. Caminha a esmo e ao seu lado uma sombra o segue lado a lado. A depender do horário essa sombra poderia estar em outra posição, entendimento que brotou em si por conta de uma ajuda que lhe deu o seu colega João Sem Medo quando falou das sombras que os acompanhavam na pelada, que não significa mulher nua, significa jogo de futebol sem juiz com regras frouxas, mais que isso diz-se de movimentos produzidos ao sabor da ginga do corpo, com no mínimo duas pessoas a improvisar e a divertir-se com a bola.
Lembrar-se da pelada o fez recordar-se das brincadeiras com a própria sombra quando jogava futebol de improviso com os amigos no tempo próprio do acontecer azimutal, expressão que criou com o uso do dicionário para no dia seguinte causar boa impressão à sua professora, atitude reprovada por terraplanistas, palavra que não tem nada a ver com trabalhadores que manejam máquinas ou instrumentos aplainando a terra para o plantio ou para outros fins práticos, diz respeito a ignorância de quem não estudou noções mínimas de Geografia e Astronomia e odeiam os que sabem situar-se num país imaginário e que em pleno século XXI acreditam que a terra é redonda porque na fotografia de certas paisagens do filme “O Céu de Suely” tem-se a impressão da existência de uma terra redonda e muito clara.
Lembrava agora Severino Silva dos Três Reis Magos que ele nem sabe porque são assim chamados, pois sendo eles reis deviam comer bem, o que não explica de modo algum a magreza de ninguém, mas o que interessa agora é que eles seguiam a Estrela- Guia, no que ele mesmo os imitava, não que siga a Estrela Guia, evento singular que deu origem ao Natal e ao nascimento de Cristo. Fala o adolescente de sua experiência ao seguir a lua, especialmente quando ilumina a terra nas tão famosas noites do sertão, e ao vagar acompanhando-a ou mesmo ao acompanhar o Cruzeiro do Sul, constelação que nos instiga “pelo sul” a indagar sobre a nossa latinidade em sua parca emergência.
E por falar em Cruzeiro do Sul como não citar Tonho Cavalcanti, um doido que residia nas redondezas, parente de Severino e de seus outros parentes que também seguia a lua, mas ninguém achava aquilo normal, todos achavam doidice, por isso ele, Severino, fazia às escondidas as suas caminhadas com a lua para evitar ser confundido com Tonho Cavalcanti. Não sabe ele se caminhar seguindo a lua ou o Cruzeiro do Sul é loucura ou não, de todo modo previne-se das más línguas, só não se previne é da sua consciência
O estranho dessa estória é que a gente de Jericó acha normal um camponês trabalhar o ano todo na terra do patrão e ser obrigado a pagar metade de tudo que colhe. Isso acontece naquele fim de mundo, mas acontecem também coisas semelhantes e até piores em outros lugares distantes, pois se até em Jerusalém há genocídio e conflitos por terra, imagina naquele mundinho onde quem manda até no delegado é o coronel. E isso a professora afirma que nada tem de errado uma vez que o coronel é também médico e o pai é procurador, a prima vice-prefeita e sua mulher é a prefeita e todas as ruas da cidade são nomeadas com três sobrenomes, os sobrenomes de três coronéis cuja trama familiar envolve matrimônios comuns. E por aí vai o elo inquebrantável.
Ao dar essa explicação a professora ficou sem fôlego, a palpitar e a suar assim como ficou quem aqui narrou num fôlego só essa história tão singular e cheia de delicadezas às vésperas do domingo, quando se recomenda fazer orações e não blasfêmias.
Desconfio que do outro lado do mundo, lugar que se amalgamou ao nosso país via navios negreiros, que chamam assim porque vinham repletos de negros e negras, também chamados negroides, mas que são na verdade pretos e pretas, e que essa é somente a cor de uma etnia, cor diferente do branco e do amarelo, cor como qualquer outra visto que não existe uma só cor de pele no mundo, lá também o zênite, assim como a história de reis e de rainhas são marcadas por incompreensões nos conteúdos escolares, mas são explicadas às crianças e aos jovens de outro jeito, como histórias de sombras, de assombração e de opressão que acompanharam certos cristãos-mercadores que ao chegarem naquele continente, levando também o terror, reinventarm a mercância da vida.
Severino seguiu caminhando e pensando... ou achava que estavano mínimo a pensar sobre a vida. Seu olhar mirava o horizonte que o fez lembrar-se de utopia, palavra que merece uma conversa na borda da calçada, olhando o mar ou mesmo seguindo o luar do sertão em noites de lua cheia.
Fátima Rodrigues – Expedicionários, João Pessoa, Paraíba, Brasil.