Procurar Eu sou brasileiro cara
24 resultadosEu queria ter tipo uma vida menos corrida.
Eu queria ter uma vida menos confusa.
Eu queria acordar vendo uma cachoeira, todo dia.
Eu queria poder tomar banho nela quando quisesse.
Eu queria poder parar de procurar o amor.
Eu queria poder dormir abraçadinho com alguém.
Eu queria poder morar dentro daquela musica do John Lennon.
Eu queria poder abrir a janela e olhar grandes montanhas forradas de verde.
Eu queria poder dizer que sou feliz.
Eu queria poder dar aula numa escolinha no interior, pra um monte de criança inocente.
Eu queria ter tipo uma mensagem que fizesse as pessoas desistirem de carrões, de grandes sonhos de consumo.
Eu queria ter tipo o poder de convencer que as pequenas coisas são as mais gostosas.
Eu queria ser tipo mais compreensivo.
Eu queria ser tipo mais amigo.
Eu queria ser tipo um morador de uma casinha dentro de um cenário qualquer.
Eu queria ser tipo um menino brincando de Falcon novamente.
Eu queria acordar só mais um dia vendo meu pai e minha mãe juntos.
Eu queria poder dizer a eles que estou indo bem na escola da vida.
Eu queria ter participado mais da vida familiar.
Eu queria ter podido dar mais condições a eles.
Eu queria poder trocar o que conquistei por um único olhar daquela menina.
Eu queria que minhas poesias a conquistassem.
Eu queria que pessoas como o Renato e o Cazuza tivessem tido o que tanto cantavam, o amor.
Eu queria ter conhecido o Plínio Marcos, o João Antônio, o Raul Seixas e o Chico Science.
Eu queria estar escrevendo o que eu queria ter um dia.
Eu queria ter nascido num cenário do Star Wars.
Eu queria ter conhecido a Emilia e o Visconde.
Eu queria ter um poço de pesca pra mim e pros meus amigos.
Eu queria ter tipo um máquina do tempo, para poupar tanto sofrimento.
Eu queria ter uma cabana, com gelo no teto e arvores em volta.
Eu queria nem saber o que é dinheiro.
Eu queria ser tipo um cara conquistador.
Eu queria ter a certeza que conquistadores são felizes.
Eu queria saber cantar.
Eu queria ser tipo um viajante.
Eu queria acordar com um grande café da manhã na minha cama.
Eu queria registrar aquele sorriso naquele dia para sempre.
Eu queria poder saber o que será do meu povo amanhã.
Eu queria poder saber porque ela não conseguiu ficar ao meu lado.
Eu queria saber a fórmula de um grande sucesso.
Eu queria saber porque a fórmula do fracasso é agradar todo mundo.
Eu queria ter um robozinho daqueles de plástico que minha mãe me dava em datas especiais.
Eu queria ver meu pai chegando e fingir que estava dormindo novamente.
Eu queria saber dizer mais coisas agradáveis.
Eu queria que todos comemorassem o Natal de verdade.
Eu queria um dia poder voar como um pássaro.
Eu queria ser tipo uma frota contra o mal.
Eu queria saber o que é o mal.
Eu queria ser tipo um cara em que as idéias valessem algo.
Eu queria ser tipo um cara que deixou algo pra alguém.
Eu queria poder mostrar aquele momento em que o menino dividiu com todo mundo o pão velho que comia numa viela.
Eu queria poder entender como os engravatados podem comer numa mesa onde o almoço é mais caro que o salário da maioria dos brasileiros e mesmo assim dormem tranqüilos.
Eu queria ser tipo um cara ingênuo, a ponto de acreditar em Papai Noel, duendes e na polícia.
Eu queria ser tipo um cara sem insônia, sem gastrite, sem dores tão fortes na alma.
Eu acho que ainda queria ser só um desenhista.
Eu acho que ainda queria ser só alguém num mundo legal.
Eu acho que ainda queria ser aquele menino que não via as coisas como elas eram.
Eu acho que ainda queria ser aquele chato que sempre levantava a mão primeiro na hora das perguntas.
Eu acho que ainda queria ser mais um da turma.
Eu acho que ainda queria brincar de banca de gibis com minha irmã.
Eu acho que ainda queria ser aquele menino que andava de banca em banca procurando aventuras em quadrinhos.
Eu acho que ainda queria ter a esperança boba de achar que poderia fazer a diferença nessa bagunça de mundo.
Eu acho que vou dormir.
Eu também acho que amanhã bem cedo vou procurar realizar pelo menos algo disso tudo, e você o que acha?
Publicada na revista Caros amigos, São Paulo, n. 58, jan. 2002
Ao som da lira que a saudade empunha;
Verdade, e gratidão guiam meu canto,
Não sórdida cobiça
Debret, digno Francês, Pintor preclaro,
Caro Amigo; Homem firme, sábio Mestre,
Eu te agradeço os bens, que tu fizeste
A mim, e à Pátria minha.
De um bom filho é dever ao pai ser útil;
Mas de homem o dever é ser a todos:
Assaz útil nos fôste, assaz nos deste
De homem, de amigo provas.
Saudosa a tua Pátria ora te chama,
E para receber-te estende os braços;
Chama-te a Pátria, não hesites, cumpre
Os deveres de filho.
Deixa embora o Brasil, que tanto prezas;
Não mais encares suas belas cenas;
Sei que ele é sedutor, que tem encantos
Que os alvedrios prendem.
Sei quanto no meu peito a Pátria impera,
Que mais o meu amor subir não pode;
Como pois poderei aconselhar-te
Que a tua Pátria deixes?
Ah não! não se dirá, que um Brasileiro
A tanto se atreveu; embora, embora
Não honre o teu pincel a nossa história,
Nem as nossas paisagens.
Tu conheces meu peito, assaz tu sabes
Que honra, e virtude assim n'alma me gritam.
Indócil coração eu não possuo,
Indiferente a tudo.
Morno pesar me enluta, e me profliga
Agora que o Brasil, e a mim tu deixas.
Ah não condenes que entrecorte o canto
Com ais, e com suspiros.
Em nossos corações agradecidos
Tu soubeste, oh Debret, gravar teu nome,
E neles viverás, enquanto as Artes
Amadores tiverem.
(...)
Sim, oh Debret, será teu nome eterno;
E quando outro penhor tu nos não desses,
Um Araújo só bastante fôra
Para honra tua, e nossa.
(...)
Mas outros deixas monumentos vivos;
Existem os Carvalhos, e os Arrudas,
Que a muda Natureza em breves quadros
Mimosos representam.
Oxalá que eu também sem desonrar-te
Que teu discíp'lo fui dizer pudesse;
Mas ao menos direi, sou teu amigo,
E basta-me tal glória.
Se este fraco tributo de amizade
For aos olhos do Mundo apresentado,
Conheça o quanto a gratidão domina
No peito Brasileiro.
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Publicado no livro Poesias (1832).
In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Org. rev. e notas Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 194
A natureza nunca mais foi a mesma depois de passar por suas frases. O poeta pantaneiro Manoel de Barros, que está lançando um novo ajuntamento de versos e vida, o Livro sobre nada (Editora Record) , se considera acima de tudo um "fazedor de frases": "A frase para ser boa precisa ser uma coisa ilógica, o ilogismo é muito importante pois a razão diminui a poesia", ensina. Avesso a entrevistas, quanto mais por telefone, Manoel de Barros, considerado por muitos o maior poeta brasileiro vivo, concordou em concedeu conversar com o caderno Idéias, por telefone, de sua casa em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde vive a quatro horas de sua fazenda de criação de gado e costuma sair à tarde para "desenferrujar" e bicar umas pingas com amigos. Com simplicidade, o autor de livros como Compêndio para uso dos pássaros (1960), Arranjos para assobio (1982), Livro de pré-coisas (1985) e O guardador de águas (1989) falou sobre paixões literárias, o gosto pelo ócio e por programas divertidos na televisão, como Os trapalhões e até o mexicano Chaves e lembrou até um insuspeitado passado no Partido Comunista. "Mas nunca fui afeito a grupos, gerações, não podia mesmo durar muito naquele partido. Hoje, conquistei o ócio, o que é muito importante para o poeta", comemora.
ANDRÉ LUÍS BARROS:
- O senhor só ficou famoso como um grande poeta depois dos 70 anos. Isso foi algo planejado, ou aconteceu por acaso?
- Isso é negócio do meu temperamento. Nunca tive projeto, só livro. Também nunca achei que precisasse me isolar no Pantanal para compor melhor. Sou pantaneiro, nasci aqui, só podia viver e escrever mesmo sobre as coisas daqui. Mas nunca tive preocupação em aparecer muito, ser uma pessoa conhecida, isso é sincero mesmo. Eu queria só fazer poesia. A minha vergonhez explica muita coisa. Sou tímido por temperamento, é possível que só seja poeta por causa disso. Sou um ser abúlico, tenho minhas contradições e tento me encontrar através da poesia. É claro que sucesso é bom, ser amado, admirado pela poesia é bom, quem disser que não está mentindo. Fui descoberto de repente, as pessoas começaram a me perceber. Nunca na minha vida fui de participar muito de grupo. Acho que em poesia também não pertenço a nenhuma geração, a tal geração de 1945 não é a minha, e vejo outros poetas, como João Cabral de Melo Neto, que não é de geração nenhuma. Aliás, como classificar o Rimbaud? Em que geração classificamos o Augusto dos Anjos? Eles são simplesmente grandes poetas.
- O senhor conheceu, tem uma grande admiração e até prometeu um livro sobre João Guimarães Rosa. O primeiro livro dele, o inédito Magma, será lançado em breve. Onde está o livro prometido?
- Foi adiado. O Ênio Silveira tinha me sugerido fazer esse livro e eu topei o negócio, fiquei animado. Mas quando fui escrever, em vez de ser minha, a frase que saía era do Rosa. É que eu tinha relido muita coisa dele e fiquei impregnado. Não convém isso, não é bom porque você acaba mergulhado mesmo na obra do autor, acaba afogado. Anos atrás eu tinha tentado fazer um ensaio quase lingüístico sobre o conto Cara-de-Bronze, do Rosa, de que gosto muito. Mas me embananei todo, no meio. Eu não falo mais que três línguas e o Rosa conhecia língua demais, achei que seria possível fazer o ensaio mas ficou muito difícil. Disseram que o Magma não é tão bom quanto os outros livros do Rosa. Realmente ele tinha talento mesmo era para a prosa, e o engraçado é que ele foi poeta no fim da vida. Geralmente o sujeito é poeta aos 18 anos, quando aparecem as espinhas, e depois pode virar prosador. Mas há versos perfeitos no livro Ave, palavra, seu último livro, e Tutaméia e A terceira margem do rio são pura poesia. Eu sou mais de fazer frases, sou bom em criar frases.
- O seu trabalho é mais fragmentado.
- Cada vez mais. O próprio mundo está obrigando a gente a se fragmentar. É uma falta de unidade, o homem moderno não tem mais as grandes unidades, como Deus. A gente não tem crença em mais nada, aliás, toda a arte deste século é fragmentada, ninguém defende mais uma ideologia, hoje. O homem não acredita mais nem em ideologia, as religiões estão se fragmentando, o protestantismo está se dividindo, o cristianismo.
- O senhor é religioso?
- Sim, tenho formação católica, estudei dez anos interno em colégio de padre. Evidente que depois de alguns anos eu era comunista. Foi minha fase libertária, fui filiado ao Partido. Foi ali que conheci o Carlos Lacerda. O Apolônio de Carvalho me botou lá, depois ele foi da dissidência do Partido. Fui companheiro do Lacerda, que na época era muito diferente do que ele se tornaria, era comunista mesmo.
- Até que ponto a despreocupação com o dinheiro é importante para o poeta?
- Levei vários anos até conquistar o ócio, isso é importante para o poeta, ele não pode ter a cabeça virada só para coisas a resolver. Fiquei muitos anos arrumando minha vida, saldando dívidas, atendendo papagaio. Há oito anos, cheguei aqui pra Mato Grosso, tomei pé aqui. Agora estou vagabundo, tenho direito a isso. Herdei uma fazenda, em campo aberto, terra nua, sou fazendeiro de gado, vaca, não sou "o rei do boi, do gado" mas vivo bem. Este é o meu caso: enquanto estava tomando pé da fazenda não escrevi uma linha. Mas sabemos de outros casos, como o Dostoiévski, que escreveu perseguido por dívidas, ou o Graciliano Ramos, que além das dívidas ainda tinha família pra criar.
- Qual é o tema do poeta?
- O tema do poeta é sempre ele mesmo. Ele é um narcisista: expõe o mundo através dele mesmo. Ele quer ser o mundo, e pelas inquietações dele, desejos, esperanças, o mundo aparece. Através de sua essência, a essência do mundo consegue aparecer. O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro. Então, não é que eu descreva o Pantanal, não sou disso, nem de narrar nada. Mas nasci aqui, fiquei até os oito anos e depois fui estudar. Tenho um lastro da infância, tudo o que a gente é mais tarde vem da infância. Nesse último livro meu, Livro sobre nada, tem muitos versos que vieram da infância. Tem um poema que se chama "A arte de infantilizar formigas". Num vídeo que fizeram sobre mim, o rapaz chega uma hora que pergunta: "Escuta aqui, o senhor escreveu que formiga não tem dor nas costas. Mas como é que o senhor sabe?". Outro rapaz me escreveu do Rio, diz que freqüenta as aulas de um professor muito inteligente em energia nuclear, física, poesia e romance, e ele fez a pergunta, que é um verso meu: "Professor, por que a 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso?". O professor, que tinha estudado Einstein e outros autores, disse: "Essa pergunta não vou responder, é absurda". Ou seja, encabulou. Creio que a poesia está de mãos dadas com o ilógico. Não gosto de dar confiança para a razão, ela diminui a poesia.
- Como é seu dia-a-dia?
- Pela estrada, chego a minha fazenda em quatro horas, estou bem perto do Pantanal. Agora o clima é seco, e dá para correr de carro. Mas quando a estrada enche, só de avião. Fico em casa lendo, escutando músico, vejo televisão. De manhã, fico escrevendo, terminando livro, fazendo entrevista.
- Hoje, o senhor lê que autores?
- Já li muita coisa séria, além dos escritores, li filosofia, Nietszche, Kant, Walter Benjamim, Adorno, essas coisas. Mas hoje tô lendo mais porcaria mesmo, quero descansar a cabeça. E estou com a vista meio ruim. Vejo também muitas coisas engraçadas na TV, o Didi e o Dedé (Os trapalhões), o Chaves, sabe quem é?, aquele chato mexicano. E escuto muita música. De tarde, saio pra tomar umas pingas, enquanto meu fígado não arrebentou. Mas às vezes sofro aqui nessa cidade. A poesia faz da gente uma espécie de mito, e as pessoas acabam fazendo da gente uma imagem diferente da realidade. Tem gente aqui que pensa que eu vivo isolado, sozinho, sem amigos, falam que eu sou intratável. Não sou isolado, não.
- Como nasceu seu amor pelo trabalho da linguagem?
-<
só me lembro de vós para pedir,
mas de qualquer modo sempre é uma lembrança.
Desculpai vosso filho, que se veste
de humildade e esperança
e vos suplica: Olhai para o Nordeste,
onde há fome, Senhor, e desespero
rodando nas estradas
entre esqueletos de animais.
Em Iguatu, Parambu, Baturité,
Tauá
(vogais tão fortes não chegam até vós?),
vede as espectrais
procissões de braços estendidos,
assaltos, sobressaltos, armazéns
arrombados e — o que é pior — não tinham nada.
Fazei, Senhor, chover a chuva boa,
aquela que, florindo e reflorindo, soa
qual cantata de Bach em vossa glória
e dá vida ao boi, ao bode, à erva seca,
ao pobre sertanejo destruído
no que tem de mais doce e mais cruel:
a terra estorricada sempre amada.
Fazei chover, Senhor, e já!, numa certeira
ordem às nuvens. Ou desobedecem
a vosso mando, as revoltosas? Tudo
é pois contestação? Fosse eu Vieira
(o padre) e vos diria, malcriado,
muitas e boas… mas sou vosso fã
omisso, pecador, bem brasileiro.
Comigo é na macia, no veludo/lã
e, matreiro, rogo, não
ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre),
mas ao Deus que Bandeira, com carinho,
botou em verso: “meu Jesus Cristinho”.
E mudo até o tratamento: por que vós,
tão gravata-e-colarinho, tão
vossa excelência?
O você comunica muito mais
e, se agora o trato de você,
ficamos perto, vamos papeando
como dois camaradas bem legais,
um, puro; o outro, aquela coisa,
quase que maldito,
mas amizade é isso mesmo: salta
o vale, o muro, o abismo do infinito.
Meu querido Jesus, que é que há?
Faz sentido deixar o Ceará
sofrer em ciclo a mesma eterna pena?
E você me responde suavemente:
Escute, meu cronista e meu cristão:
essa cantiga é antiga
e de tão velha não entoa, não.
Você tem a Sudene abrindo frentes
de trabalho de emergência, antes fechadas.
Tem a ONU, que manda toneladas
de pacotes à espera de haver fome.
Tudo está preparado para a cena
dolorosamente repetida
no mesmo palco. O mesmo drama, toda vida.
No entanto, você sabe,
você lê os jornais, vai ao cinema,
até um livro de vez em quando lê,
se o Buzaid não criar problema:
Em Israel, minha primeira pátria
(a segunda é a Bahia),
desertos se transformam em jardins,
em pomares, em fontes, em riquezas.
E não é por milagre:
obra do homem e da tecnologia.
Você, meu brasileiro,
não acha que já é tempo de aprender
e de atender àquela brava gente
fugindo à caridade de ocasião
e ao vício de esperar tudo da oração?
Jesus disse e sorriu. Fiquei calado.
Fiquei, confesso, muito encabulado,
mas pedir, pedir sempre ao bom amigo
é balda que carrego aqui comigo.
Disfarcei e sorri. Pois é, meu caro.
Vamos mudar de assunto. Eu ia lhe falar
noutro caso, mais sério, mais urgente.
Escute aqui, ó irmãozinho.
Meu coração, agora, tá no México
batendo pelos músculos de Gérson,
a unha de Tostão, a ronha de Pelé,
a cuca de Zagalo, a calma de Leão
e tudo mais que liga o meu país
a uma bola no campo e uma taça de ouro.
Dê um jeito, meu velho, e faça que essa taça
sem milagre ou com ele nos pertença
para sempre, assim seja… Do contrário
ficará a Nação tão malincônica,
tão roubada em seu sonho e seu ardor
que nem sei como feche a minha crônica.
30/05/1970
A minha questão é outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte reis, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feijão, arroz, farinha, sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de frangos. Uma delas, porém, chamada Umbelina, trazia no bolso não menos de quatrocentos e treze mil-réis. Eis o ponto. Peço a atenção das pessoas cultas.
Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o mais vá pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos não falam de feitiçaria, mas de furto. A feitiçaria, por isso mesmo que não está entre o homicídio e a impiedade, é delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam, é preciso examinar a sua afirmação, comparar o ato ao rendimento, e concluir.
Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou indigno de criticar um código, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: "O nariz do povo é a sua imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser". 0 que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que o fim do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns fizeram virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo de papel um palácio de mármore é o mesmo que dar um verdadeiro amor com dous pés de galinha. A feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas bugigangas, talvez a ceroula velha e há facultativo (não digo competente) que faz a mesma cousa, levando a ceroula nova. Que razão há para fazer de um ato malefício e benefício de outro?
O código, como Pão crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao código que a feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras verdades – como se a verdade fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e não falemos da cartomante, em quem se não achou dinheiro, provavelmente porque o tem na caixa econômica. Relativamente às cartomantes, confesso que não as considero como as feiticeiras. A cartomante nasceu com a civilização, isto é, com a corrupção, pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é natural do homem; vede as tribos primitivas. Que também o é da mulher, confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa extremamente grave, já há de ter chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na cadeia uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem mais ainda que cabeças de frangos ou pés de galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria necessário indagar o ponto de semelhança, e não estou de alma inclinada à demonstração. Nem à simples narração, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com grandes desejos de acudir à feitiçaria, é que me dói (sempre o interesse pessoal!) a prisão das duas mulheres. Talvez a moeda de dez réis me desse saúde, não digo uma só moeda, mas um milhão delas.
Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa é sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a viagem de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do que se perde, e tal é o segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já disse, não vou adiante. A pena cai-me. Não trato sequer da política, alias assunto que dá saúde. Há quem creia que ela é uma bela feitiçaria, e não falta quem acrescente que nesta, como na outra, o povo não Pode nem anda desnarigado; é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem muitos. Serme-ia preciso examinar este ponto longamente, profundamente, independentemente, e não há em mim agora profundeza, nem independência, nem me sobra tempo para tais estudos. Eu aprecio esta instituição que exprime a grande idéia do julgamento pelos pares; examina-se o fato sem prevenção de magistrados, nem câmara própria de ofício, sem nenhuma atenção à pena. O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis ainda mais. Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os pés, enquanto que um bom par de sapatos folgados é como os dos próprios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.
ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3 p. 646-648. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
NOTAS: Poe. Egdar Allan Poe (1809-1849), escritor norte-americano, que antecipa, sob muitos aspectos, o modernismo. Desentendeu-se com seu tutor, por seu utilitarismo e falsa severidade.
Rousseau. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e pensador francês. Um dos tópicos de seu pensamento é o que o homem é naturalmente bom e a sociedade o corrompe
foi pintado por Borsetti.
Borsetti, falsário exímio,
condenado por malfeitos,
aceita e avia encomendas
de todos os diplomandos
de academias mineiras.
Pintadas por trás de grades,
alegorias libertam-se,
vai Têmis e vai Hipócrates,
vão Mercúrio e saduceu
e vão sentenças latinas
cantando por toda parte
arte e engenho refinados
de montanhesa sapiência.
Meu Deus, formei-me deveras?
Sou eu, de beca alugada,
uma beca só de frente,
para uso fotográfico,
sou eu, ao lado de mestres
Ladeira, Laje, Roberto,
e do ínclito diretor
doutor Washington Pires?
Eu e meus nove colegas
mais essas três coleguinhas,
é tudo verdade? Vou
manipular as poções
que cortam a dor do próximo
e salvam os brasileiros
do canguari e do gálico?
Não posso crer. Interrogo
o medalhão do Amorim:
Companheiro, tu me salvas
do embrulho em que me meti?
Dou-te plenários poderes:
em tuas farmácias Luz
ou Santa Cecília ou Cláudia,
faze tudo que eu devia
fazer e que não farei
por sabida incompetência:
purgas, cápsulas, xaropes,
linimentos e pomadas,
aplica, meu caro, aplica
trezentas mil injeções,
atende, ajuda, consola
sê enfermeiro, sê médico,
sê padre na hora trevosa
da morte do pobre (a roça
exige de ti bem mais
que o nosso curso te ensina).
Vai, Amorim, sê por mim
o que jurei e não cumpro.
Fico apenas na moldura
do quadro de formatura.
que me convidou a olhar para as favelas
do Rio de Janeiro.
1. Prosopopeia
Quem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de sexta
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a mim, na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.
Decoro teus nomes. Eles
jorram na enxurrada entre detritos
da grande chuva de janeiro de 1966
em noites e dias e pesadelos consecutivos.
Sinto, de lembrar, essas feridas descascadas na perna esquerda
chamadas Portão Vermelho, Tucano, Morro do Nheco,
Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreira do Vasco,
Catacumba catacumbal tonitruante no passado,
e vem logo Urubus e vem logo Esqueleto,
Tabajaras estronda tambores de guerra,
Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,
a suculenta Mangueira escorrendo caldo de samba,
Sacramento... Acorda, Caracol. Atenção, Pretos Forros!
O mundo pode acabar esta noite, não como nas Escrituras se
[estatui.
Vai desabar, grampiola por grampiola,
trapizonga por trapizonga,
tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas drogas todas,
esses tesouros teus, altas alfaias.
Vai desabar, vai desabar
o teto de zinco marchetado de estrelas naturais
e todos, ó ainda inocentes, ó marginais estabelecidos, morrereis
pela ira de Deus, mal governada.
Padecemos este pânico, mas
o que se passa no morro é um passar diferente,
dor própria, código fechado: Não se meta,
paisano dos baixos da Zona Sul.
Tua dignidade é teu isolamento por cima da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e baseado,
tuas perambeiras, templos de Mamallapuram
em suspensão carioca.
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.
Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.
Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
Mas, favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?
2. Morte gaivota
O bloco de pedra ameaça
triturar o presépio de barracos e biroscas.
Se deslizar, estamos conversados.
Toda gente lá em cima sabe disso
e espera o milagre,
ou, se não houver milagre, o aniquilamento instantâneo,
enquanto a Geotécnica vai tecendo o aranhol de defesas.
Quem vence a partida? A erosão caminha
nos pés dos favelados e nas águas.
Engenheiros calculam. Fotógrafos
esperam a catástrofe. Deus medita
qual o melhor desfecho, senão essa
eterna expectativa de desfecho.
O morro vem abaixo esta semana
de dilúvio
ou será salvo por Oxóssi?
Diáfana, a morte paira no esplendor
do sol no zinco.
Morte companheira. Morte,
colar no pescoço da vida.
Morte com paisagem marítima,
gaivota,
estrela,
talagada na manhã de frio
entre porcos, cabritos e galinhas.
Tão presente, tão íntima que ninguém repara
no seu hálito.
Um dia, possivelmente madrugada de trovões,
virá tudo de roldão
sobre nossas ultra, semi ou nada civilizadas cabeças
espectadoras
e as classes se unirão entre os escombros.
3. Urbaniza-se? Remove-se?
São 200, são 300
as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las
é tempo de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de um milhão?
Enquanto se contam, ama-se
em barraco e a céu aberto,
novos seres se encomendam
ou nascem à revelia.
Os que mudam, os que somem,
os que são mortos a tiro
são logo substituídos.
Onde haja terreno vago,
onde ainda não se ergueu
um caixotão de cimento
esguio (mas vai-se erguer)
surgem trapos e tarecos,
sobe fumaça de lenha
em jantar improvisado.
Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
de formigueiro infinito?
Ensinar-lhes paciência,
conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los
para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada,
mirífica, róseo-futura
distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está
para ver como é que fica?
Em seminários, simpósios,
comissões, congressos, cúpulas
de alta vaniloquência
elaborar a perfeita
e divina solução?
Um som de samba interrompe
tão sérias cogitações,
e a cada favela extinta
ou em vila transformada,
com direito a pagamento
de COMLURB, ISS, Renda,
outra aparece, larvar,
rastejante, desafiante,
de gente que nem a gente,
desejante, suspirante,
ofegante, lancinante.
O mandamento da vida
explode em riso e ferida.
4. Feliz
De que morreu Lizélia no Tucano?
Da avalanche de lixo no barraco.
Em seu caixão de lixo e lama ela dormiu
o sono mais perfeito de sua vida.
5. O nome
Me chamam Bonfim. A terra é boa,
não se paga aluguel, pois é do Estado,
que não toma tenência dessas coisas
por enquantemente. Na vala escorre
a merda dos barracos. Tem verme
n’água e n’alma. A gente se acostuma.
A gente não paga nada pra morar,
como ia reclamar?
Meu nome é Bonfim. Bonfim geral.
Que mais eu sonho?
6. Matança dos inocentes
Meu nome é Rato Molhado.
Meus porcos foram todos sacrificados
para acabar com a peste dos porcos.
Fiquei sem saúde e sem eles.
Uma por uma ou todas de uma vez
pereceram minhas riquezas. Em Inhaúma
sobram meus ratos incapturáveis.
7. Faz Depressa
Aqui se chama Faz Depressa
porque depressa se desfaz
a casa feita num relâmpago
em chão incerto, deslizante.
Tudo se faz aqui depressa.
Até o amor. Até o fumo.
Até, mais depressa, a morte.
Ainda mesmo se não se apressa,
a morte é sempre uma promessa
de decisão geral expressa.
8. Guaiamu
Viemos de Minas, sim senhor,
fugindo da seca braba lá do Norte.
Em riba de cinco estacas fincadas no mangue
a gente acha que vive
com a meia graça de Deus Pai Nosso Senhor.
Diz-que isto aqui tem nome Nova Holanda.
Eu não dou fé, nem sei onde é Holanda velha.
Me dirijo à Incelência: Isso é mar?
Mar, essa porcaria que de tarde
a onda vem e limpa mais ou menos,
e volta a ser porcaria, porcamente?
Vossa Senhoria tá pensando
que a gente passa bem de guaiamu
no almoço e na janta repetido?
Guaiamu sumiu faz tempo.
Aqui só vive gente, bicho nenhum
tem essa coragem.
Espia a barriga,
espia a barriga estufada dos meninos,
a barriga cheia de vazio,
de Deus sabe o quê.
Ele não podendo sustentar todo mundo
pelo menos faz inchar a barriga até este tamanho.
9. Olheiros
Pipa empinada ao sol da tarde,
sinal que polícia vem subindo.
Sem pipa, sem vento,
sem tempo de empinar,
o assovio fino vara o morro,
torna o corpo invisível, imbatível.
10. Sabedoria
Deixa cair o barraco, Ernestilde,
deixa rolar encosta abaixo, Ernestilde,
deixa a morte vir voando, Ernestilde,
deixa a sorte brigar com a morte, Ernestilde.
Melhor que obrigar a gente, Ernestilde,
a viver sem competência, Ernestilde,
no áureo, remoto, mítico
— lúgubre
conjunto habitacional.
11. Competição
Os garotos, os cães, os urubus
guerreiam em torno do esplendor do lixo.
Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro
do Interior.
12. Desfavelado
Me tiraram do meu morro
me tiraram do meu cômodo
me tiraram do meu ar
me botaram neste quarto
multiplicado por mil
quartos de casas iguais.
Me fizeram tudo isso
para meu bem. E meu bem
ficou lá no chão queimado
onde eu tinha o sentimento
de viver como queria
no lugar onde queria
não onde querem que eu viva
aporrinhado devendo
prestação mais prestação
da casa que não comprei
mas compraram para mim.
Me firmo, triste e chateado,
Desfavelado.
13. Banquete
Dia sim dia não, o caminhão
despeja 800 quilos de galinha podre,
restos de frigorífico,
no pátio do Matruco,
bem na cara do Morro da Caixa-d’Água
e do Morro do Tuiuti.
O azul das aves é mais sombrio
que o azul do céu, mas sempre azul
conversível em comida.
Baixam favelados deslumbrados,
cevam-se no monturo.
Que morador resiste
à sensualidade de comer galinha azul?
14. Aqui, ali, por toda parte
As favelas do Rio transbordam sobre Niterói
e o Espírito Santo fornece novas pencas de favelados.
O Morro do Estado ostenta sem vexame sua porção de miséria.
Fonseca, Nova Brasília (sem ironia)
estão dizendo: “Um terço da população urbana
selou em nós a fraternidade de não possuir bens terrestres”.
Os verdes suspensos da Serra em Belo Horizonte
envolvem de paisagem os barracos da Cabeça de Porco.
Se não há torneiras, canos de esgoto, luz elétrica,
e o lixo é atirado no ar e a enchente carrega tudo, até os vivos,
resta o orgulho de ter aos pés os orgulhosos edifícios do Centro.
Belo Horizonte, dor minha muito particular.
Entre favelas e alojamentos eternamente provisórios de favelados expulsos
(pois carece mandá-los para “qualquer parte”, pseudônimo do Diabo),
São Paulo cresce imperturbavelmente em esplendor e pobreza,
com 20 mil favelados no ABC.
Em Salvador, os alagados jungidos à última condição humana
colhem, risonhos, a chuva de farinha, macarrão e feijão
que jorra da visita do Presidente.
No Recife...
Quando se aterra o mangue
fogem os miseráveis para as colinas
entre dois rios. E tudo continua
com outro nome.
15. Indagação
Antes que me urbanizem a régua, compasso,
computador, cogito, pergunto, reclamo:
Por que não urbanizam antes
a cidade?
Era tão bom que houvesse uma cidade
na cidade lá embaixo.
16. Dentro de nós
Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,
witch-town, sanky-town,
callampas, cogumelos, corraldas,
hongos, barrio paracaidista, jacale,
cantegril, bairro de lata, gourbville,
champa, court, villa miseria,
favela.
Tudo a mesma coisa, sob o mesmo sol,
por este largo estreito do mundo.
Isto consola?
É inevitável, é prescrito,
lei que não se pode revogar
nem desconhecer?
Não, isto é medonho,
faz adiar nossa esperança
da coisa ainda sem nome
que nem partidos, ideologias, utopias
sabem realizar.
Dentro de nós é que a favela cresce
e, seja discurso, decreto, poema
que contra ela se levante,
não para de crescer.
17. Palafitas
Este nasce no mangue, este vive no mangue.
No mangue não morrerá.
O maravilhoso Projeto X vai aterrar o mangue.
Vai remover famílias que têm raízes no mangue
e fazer do mangue área produtiva.
O homem entristece.
Aquilo é sua pátria,
aquele, seu destino,
seu lodo certo e garantido.
18. Cidade grande
Que beleza, Montes Claros.
Como cresceu Montes Claros.
Quanta indústria em Montes Claros.
Montes Claros cresceu tanto,
ficou urbe tão notória,
prima rica do Rio de Janeiro,
que já tem cinco favelas
por enquanto, e mais promete.
19. Confronto
A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia
contemplam-se. Qual delas falará
primeiro? Que tem a dizer ou a esconder
uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos
prestes a saltar da goela coletiva
e não se exprimem? Por que Ceilândia fere
o majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres
de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro.
20. Gravura baiana
Do alto do Morro de Santa Luzia,
Nossa Senhora de Alagados, em sua igrejinha nova,
abençoa o viver pantanoso dos fiéis.
Por aqui andou o Papa, abençoou também.
A miséria, irmãos, foi dignificada.
Planejar na Terra a solução
fica obsoleto. Sursum corda!
Haverá um céu privativo dos miseráveis.
21. A maior
A maior! A maior!
Qual, enfim, a maior
favela brasileira?
A Rocinha carioca?
Alagados, baiana?
Um analista indaga:
Em área construída
(se construção se chama
o sopro sobre a terra
movediça, volúvel,
ou sobre água viscosa)?
A maior, em viventes,
bichos, homens, mulheres?
Ou maior em oferta
de mão de obra fácil?
Maior em aparelhos
de rádio e de tevê?
Maior em esperança
ou maior em descrença?
A maior em paciência,
a maior em canção,
rainha das favelas,
imperatriz-penúria?
Tantos itens... O júri
declara-se perplexo
e resolve esquivar-se
a qualquer veredicto,
pois que somente Deus
(ou melhor, o Diabo)
é capaz de saber
das mores, a maior.
Felix Delatour é um professor bretão, circunspecto e quase albino que vive escondido em um sobrado de Manaus. Ele sofre de uma trágica doença que praticamente o imobiliza: o gigantismo. Sobrevive, em seu abafado exílio, ministrando aulas de francês. Em sua sala, despida de qualquer lembrança do passado europeu, há apenas uma mesa de madeira e duas cadeiras de vime. Do lado de fora, com suas ondas de calor e nuvens de mosquitos e sempre indiferente aos requintes da língua, está a Amazônia. Diante de um jovem aluno, Delatour certa vez fez uma importante reflexão sobre seu destino de exilado. "A viagem, além de tornar o ser humano mais silencioso, depura o seu olhar", disse. "A voz do verdadeiro viajante ecoa no rio silencioso do tempo."
Felix Delatour, esse profeta da distância e do silêncio como métodos fundamentais para o conhecimento, é um personagem de Reflexão sobre uma Viagem sem Fim, um conto (leia íntegra na página ao lado) do escritor amazonense Milton Hatoum, recentemente publicado pela Revista da USP.
O conto é dedicado ao eminente crítico literário e filósofo paraense Benedito Nunes, que vive na vizinha Belém do Pará. Como nos contos de Adolfo Bioy Casares, em que os primeiros parágrafos servem apenas para driblar a atenção do leitor, prometendo-lhe o que não lhe dará, é Benedito Nunes - e não Delatour - quem nos interessa aqui.
A dedicatória, que Milton Hatoum firmou com orgulho, não é mera formalidade. Aos 65 anos, freqüentador assíduo do meio intelectual francês e norte-americano, o paraense Benedito Nunes poderia dizer, sem medo de errar, que também para ele as viagens servem para purificar a visão. Professor da Universidade do Pará e prestigiado conferencista e ensaísta, Benedito Nunes faz muitas viagens, mas retorna sempre a Belém, onde nasceu e nunca deixou de viver.
Ao contrário de Delatour, o professor jamais permitiu que os prazeres do exílio o imobilizassem. Para ele, as viagens apontam sempre para o momento de retorno ao porto de origem. É na volta - novos olhos diante de velhas paisagens - que a aventura da viagem atinge seu apogeu.
Com o espírito depurado pelas aventuras intelectuais no Exterior, Benedito Nunes defende, no entanto, uma visão não-regionalista da região amazônica, que a livra das fantasias românticas e das ilusões de inocência virginal. "Não sou uma planta nativa", diz.
Nesta entrevista, Benedito Nunes defende a radicalidade de outros escritores e poetas contemporâneos que, exatamente como ele, conseguiram afirmar a grandeza da Amazônia, sem, no entanto, ceder à força inebriante dos mitos. Admira, por isso, o Márcio Souza de Galvez, o Imperador do Acre, mas já não tem o mesmo entusiasmo por seus romances seguintes. Enaltece as qualidades de escritores e poetas nortistas pouco lidos no sul do País, como Dalcídio Jurandir e Age de Carvalho. E se confessa, fechando o círculo, admirador incondicional do amazonense Milton Hatoum, um ficcionista que, como ele, aprendeu a ver a distância como a forma mais eficaz da proximidade.
Caderno 2 - O senhor é um intelectual extremamente fiel à região amazônica. Não paga um caro preço por essa fidelidade?
Benedito Nunes - Não. Se é isso o que você quer saber, mesmo aqui jamais perco contato com o que se passa no resto do mundo. Tenho sempre me afastado da Amazônia, mas são afastamentos por tempo determinado, com volta fixa e garantida. Minha temporada mais longa no Exterior ocorreu na segunda metade dos anos 60, quando fui leitor em Rennes, na França. Depois, nos anos 80, retornei à França por mais um ano, já como professor. Tenho viajado freqüentemente a Paris e aos Estados Unidos, em particular a Austin, no Texas, para aulas, conferências e debates. Mas faço sempre um movimento de saída e retorno, que é importante porque me confere certo afastamento, sem que os vínculos se quebrem. Não tendo uma radicação extrema ao meio, posso pensar com mais independência e vigor. As viagens me fortalecem.
Caderno 2 - O senhor não se sente isolado em relação ao resto do País? Convites para lecionar em grandes capitais brasileiras, certamente, não lhe faltam.
Nunes - Mas prefiro permanecer aqui. Não me sinto isolado em Belém do Pará simplesmente porque sou um homem que gosta do isolamento. No Pará tenho muitas relações, muitos amigos, é bom dizer. Mas conservo também, é verdade, a distância e a calma que, para mim, são condições fundamentais para o trabalho intelectual. Vivo sim em um certo isolamento que não deve ser confundido, no entanto, com insulamento. Não estou incomunicável e não é uma fuga. A distância geográfica, ao contrário, me proporciona um refúgio, para o qual posso sempre retornar em segurança. Mas não sou uma planta nativa, presa definitivamente à floresta. Talvez por isso eu entenda a região amazônica sem precisar do apoio dos localismos. Prefiro falar, por exemplo, em uma literatura "da Amazônia" e não em literatura "amazônica", denominação que inclui uma perspectiva regionalista. Ao falar em literatura "da Amazônia", estou me referindo apenas a uma origem, uma procedência e nada além disso.
Caderno 2 - Quem são, segundo sua avaliação, os grandes prosadores vivos dessa literatura da Amazônia?
Nunes - Temos de falar, primeiro, de Haroldo Maranhão. Ele se mudou há muitos anos para o Rio, mora atualmente em Juiz de Fora, mas tem uma escrita que é muito paraense. Embora com um círculo de leitores bastante restrito, Haroldo é, há algumas décadas, uma figura-chave para a literatura amazônica. Em 1946, ele foi o inventor do suplemento literário da Folha do Norte, de Belém, um importante jornal que não existe mais, com o qual colaboraram não apenas escritores da região, mas também poetas como Bandeira, Cecília e Drummond. O suplemento durou até meados de 1951, mas, antes disso, surgiu um outro, igualmente importante, editado semanalmente pelo jornal A Província do Pará. Foi nesse caderno que Mário Faustino começou sua carreira de escritor, publicando crônicas no estilo de Rubem Braga.
Caderno 2 - Quais são outros nomes injustamente esquecidos?
Nunes - Penso, por exemplo, em Dalcídio Jurandir, que começou ainda nos anos 40 com um romance chamado Chove nos Campos de Cachoeiro e não parou mais de escrever. Cachoeiro é uma cidade da Ilha do Maranhão, onde Dalcídio nasceu. De lá para cá, seus romances formam um imenso ciclo amazônico que guarda, no entanto, considerável distância das experiências regionalistas. São ficções que apresentam uma interiorização muito grande, cada vez mais densa; são, na verdade, as aventuras de uma experiência interior. Chego a pensar que o conjunto desses romances forma uma espécie de À La Recherche... escrita na Amazônica e que Dalcídio é, um pouco, o nosso Proust. Pois veja o paradoxo: ele sempre foi um escritor publicado no Sul, pela Martins, e só agora está sendo republicado lentamente em Belém, pela Cejup,uma pequena editora que se originou do Centro de Estudos Jurídicos da Universidade do Pará.
Caderno 2 - No Sul e no Sudeste falamos em literatura do Amazonas e pensamos imediatamente em Márcio Souza e seu Galvez, o Imperador do Acre. O que o senhor pensa desse livro?
Nunes - Você fala em Márcio Souza e eu penso em Benedito Monteiro, outro escritor paraense bastante esquecido, autor de dois livros, em particular, de que gosto muito: Verde Vago Mundo e O Minossauro. Ambos são escritores que fazem uma elaboração muito importante das experiências lingüísticas da Amazônia, da diversidade de línguas e perspectivas. São exemplos enfáticos de uma literatura não-regionalista, embora feita com matéria-prima da região. Não faz mais sentido pensar, hoje, em literatura regionalista. O regionalismo tem data certa: nasceu romântico, foi batizado pelo naturalismo e foi crismado em 30, pelos modernistas. Depois, se tornou crônico e, por fim, anacrônico. Os dois golpes de morte<
Acabo de ler o livro de Robeto Pontes, e a associação que de pronto me ocorre remete-me ao conceito que a Psicanálise tem formulado sobre o texto literário: "escrever é evitar o assassinato do desejo". E se o homem é este ser desejante, espécie de Prometeu acorrentado, de Sísifo que continuamente se debate com a perda de si e do outro, esta associação me ocorre em relação ao texto de Roberto porque ele, de modo explícito, se realiza em consonância com a perspectiva estético-histórica, o amor cortês, no qual o lirismo é tematizado como manifestação do desejo nas suas múltiplas formas: seja na do desejo de escrever sobre o desejo, seja no de viver o desejo como escrita que o perpetua e resgata. Aliás, estas duas perspectivas se interrelacionam e alternam ao longo do livro, num marcante traço erótico. E não seria excessivo afirmar que a personagem central deste texto "desejante" é Eros, captado em todos os seus poros e latências.
Cada poema de Memória Corporal, livro em que até no título se tematiza a palavra se fazendo carne, reafirma incessantemente o ato de amor, através de expressivas e reiteradas metáforas, nas quais a poesia e o ato de escrever se confundem com o ato de fazer amor, num gesto múltiplo de que participam: a natureza, o amante e o objeto amado.
Surpreende-nos a riqueza e simbiose de elementos que a natureza captada pelo poeta congrega, principalmente marinhos: "Nessas águas de sal marinho/ há cogumelos, enguias, hipocampos/ nenúfares, ventosas e anêmonas" ("Há Solstício Tropical"). A natureza ora se manifesta participante, à maneira das canções de amigo, em que as personagens e o amor aderem ao cenário, chegando a ganhar suas espécies o nome da paisagem em que decorre tanto a espera quanto o encontro ou a realização do amor. Ora se torna confidente, à maneira dos românticos, em que a ambiência tende ao lunar, ao silêncio, ao melancólico; ora, ainda, se mostra contundente, ao remeter, de modo inesperado, a correlações semânticas que instalam uma carga corrosiva, através das quais marca-se uma ruptura com o clima idílico predominante na obra: "Nos teus colares de coral rochoso/ os sátiros fecundam salamandras/ e entre moluscos de anemia e cloro/ ejaculo gasolina incendiária." ("Há Solstício Tropical").
As personagens – tanto o amante como seu objeto amado – são apresentadas com tal capacidade de metamorfose que, a todo momento, a personagem masculina, como "fauno" de inesgotável sensualidade, se transforma em objetos fálicos, através dos quais se desloca o significante ( a "marca" do desejo ) que percorre e constitui o verbo lírico: flechas, girassóis de amianto, dedos de aço e lua, dedos de sol e ferro – são algumas das "máscaras" poéticas desse Eros irrequieto que celebra o amor e tem sabor de sal. E sua "ninfa" metamorfoseia-se em pétala, terra, água e concha, no que o poeta retoma a imagem da flor-mulher, tão cara aos líricos, e os mitos do elemento fecundável, quer seja a terra a salgar, já que o amante é sal; quer seja a da concha do mar, que ao sal também converge: "Tu me dirás que sou forte/ e tenho sabor de sal/ (...) / Eu te direi que és lisa/ e polida como uma concha" ("Este Nosso Encantamento").
E porque o texto se faz porta-voz de Eros, o desejo a todo instante também se metamorfoseia e desloca, transmudado em pássaro, gaivota, corda que vibra, corcel, raio e punhal – ao se referir à amada, numa sugestão de atividade/passividade, penetração/profundidade, na qual se expressa, de modo icônico, um determinado conceito da sexualidade masculina/feminina. Eis, então, que a mulher é apresentada, no texto, como motivo de desejo, impulsionada pela latência e espera, e o homem como o gesto que emite aquele que se apossa: "Passa por mim a sensação da posse/ que me atormenta e dói como um segredo/ e vem com os passos de animal ferido/ nas vísceras, nos nervos e no peito" ("Poema da Posse"); ou ainda: "e agora, ouve, / cantarei assim: / lábios de maçã suave,/ mãos próprias e cabíveis nas minhas,/ eu sou a fúria que desfecha golpes,/ eu sou aquele que conhece os prazeres" ("Faltando Leite, Faltando Pão").
Desde "Cinco Prelúdios" até "Epitáfio", respectivamente o primeiro e o último poemas do livro, os temas da fecundação e da cópula se anunciam e tomam a forma da imagem de um sonho circular, no qual uma pétala é engravidada pelo pingo morno que lhe afoga o ventre e se faz "liberto, líquido, livre", ao acender-se a chama do amor pelos dedos da amiga, que lampejam na noite fria. Se isto é o que se tematiza no primeiro poema, que dá ensejo à abertura do ciclo da fecundação amorosa, no último texto – discurso da memória que flui – há o desdobramento final do ciclo que evolui ao longo do livro, e "Aqui jaz o amor um dia dito". E, com resta morto o amor, cabe à palavra poética resgatá-lo.
Este ciclo – fecundação/paixão/morte/resgate – do amor justifica o título da obra: Memória Corporal, além de explicitar o sentido que o poeta atribui ao termo memória. Este é apresentado, no texto de Roberto Pontes, como uma tentativa de se apreender, surpreender e suspender o tempo. Memória como instância que torna possível ao homem resgatar, do círculo inexorável e destrutivo de vida/morte, tanto o sentimento quanto as coisas. Como se a poesia, fazendo-se na cumplicidade com a memória, se tornasse uma "verdade indestrutível" e perpetuasse, para além de Cronos, a viagem de Eros.
Uma viagem lírica, em que a beleza do efeito rítmico-sonoro a todo momento nos relembra as melhores realizações da poesia lírica, dos cancioneiros ao hoje. Uma viagem de sensibilidade que nos penetra mansamente, à maneira do amor, e outras vezes avidamente, à maneira da paixão.
Esta obra do poeta cearense Roberto Pontes, que tece o amor no traço do homem e do nome, se apresenta como uma das melhores realizações da poesia lírica contemporânea. E, acredito e desejo, ocupará seu lugar.
LÚCIA HELENA é Mestre em Teoria Literária e Doutora em Letras
pela UFRJ. Professora de Literatura da Universidade Federal
Fluminense e de Teoria da Literatura na UFRJ. Professora
conferencista nas Universidades de Lisboa (Portugal),
Pavia e Bérgamo (Itália). Ensaísta e crítica literária tem
colaborado com publicações especializadas, entre as quais:
revista Colóquio/Letras (Portugal); Revista de Cultura Vozes
Petróplis/RJ) e Revista Tempo Brasileiro (RJ). É autora de
A Cosmo-Agonia de Augusto dos Anjos (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro),
Uma Literatura Antropofágica (Rio de Janeiro/Brasília: Cátedra/INL, 1982)
e Modernismo Brasileiro e Vanguarda (São Paulo: Ática, 1996).
Caminhando a passos lentos, voltando do trabalho muito mais tarde do que eu queria, senti a garganta arranhar, estava muito frio e eu parecia que adoeceria muito em breve. "Mais essa agora!" Pensei. Como se já não bastasse as pilhas de relatorios para revisar inadiavelmente, eu ficaria doente e dolorido. Meus resfriados sempre eram fortes e me deixam muito mal.
As ruas da minha cidade são muito escuras e eu ando sempre a pé. Meu dinheiro é curto e eu tenho que sustentar a mim e ao meu filho, o Felipe. Felipe tem só cinco anos e sente muito a falta da mãe. Minha querida e amada Julia, que Deus a tenha.
Chegando perto de casa eu sempre vejo a luzinha da Tv ligada da janela, já passam das nove e meia da noite e Felipe sabe que já devia estar dormindo. A babá só fica até as oito então ele aproveita pra fazer suas travessuras quando ela sai. Sempre que ele ouve o barulho do velho portão de metal rangir eu vejo a luzinha da TV apagar, e como num passe de magica, quando eu entro em casa ele deita na cama e finge estar dormindo.
Menino travesso,o meu, mas eu prefiro que seja assim, pelo menos não é uma criança triste.
Esta noite em especial eu cheguei e o Felipe não fingiu dormir, ao invez disso ele desligou a TV e me esperou na porta. Parecia chateado.
- Papai! Eu fiquei com medo.
Ele abraçou minhas pernas com força e pareceu choramingar.
Meu coração estava partido, o que tinha feito meu garotinho levado chorar?
Eu acariciei seus cabelos escuros e me pareceram suados e oleosos. Afastei-o devagar e com delicadeza e me agachei para nivelar a altura.
-Do que você teve medo filho? Aconteceu alguma coisa?
Ele esfregou os olhinhos molhados e avermelhados de sono. Seus olhos eram verdes, iguais os da Julia, lembrava muito a mãe.
-A Bárbara, foi embora muito cedo, eu não gosto de ficar sozinho aqui.
Eu fiquei confuso, Bárbara era a babá, sempre foi muito confiável, e ela sempre me avisava quando tinha de sair antes do horário, não me lembrava dela ter dito nada a mim hoje.
-Como assim filho? A Bárbara sempre sai ás oito, quando a lua começa a aparecer lembra? E minutinhos depois o papai chega, só hoje que eu me atrasei um pouquinho.
-Sim Papai! Mas hoje ela saiu quando ainda tinha sol, fiquei muito tempo sozinho, você não chegava nunca mais, achei que você tivesse ido embora.
Felipinho desabou a chorar, e aquilo deixou meu coração em frangalhos, ao mesmo tempo que me deixou enfurecido. Como a Bárbara pode fazer isso sem avisar, deixar meu pequeno sozinho sem mais nem menos.A que horas ela saiu?
-Filho, calma, você já tomou banho?
-Não. Ela saiu sem me dar banho.
Ela sempre da banho no Felipe por volta das seis, antes de ele fazer a lição, jantar e ir pra cama, se ela saiu sem dar banho nele, significava que ela havia saído no meio da tarde. Eu fiquei extremamente zangado. Respirei fundo, não podia transparecer minha fúria a uma criança.
-Vamos para o banheiro, papai vai te dar banho e aí a gente vai dormir, ta bom?
- Ta bom, mas eu posso dormir com você hoje pai? Só hoje!
Tinha um nó na minha garganta. Engoli meu choro.
-Pode sim meu anjo.
Dei um banho no Felipe, ele estava bem sujinho, talvez de tanto brincar, ele pareceu mais alegre naquela hora, fazia muito tempo que eu não dava banho nele e ele gargalhava fazendo espuma pra todo lado. Coloquei ele na cama e acho que não demorou nem cinco minutos para que ele pegasse no sono, o pobrezinho parecia exausto.
Deitei na cama ao lado dele, mas não podia dormir, não sem uma explicação, Levantei e sai do quarto silenciosamente, encostei a porta.
Fui até a cozinha e peguei meu celular. Liguei pra Bárbara. Ela atendeu ao terceiro toque.
-Alô.
-Alô, Bárbara, aqui é o Gregório.
-Ah, seu Gregório, oi.
-Bárbara, o Felipe me disse que você saiu mais cedo hoje, o que foi isso? Aconteceu alguma coisa? Não me lembro de você ter dito nada.
-Não. É que na verdade eu não vou mais.
-Como assim não vem mais? E o nosso contrato? O que aconteceu?
-Eu não posso é que .... Não consigo, não da.
- Como assim? Por que não?
-Essas pessoas estranhas paradas aí na frente da casa o dia todo, é perturbador, eu não posso com isso, to muito apavorada e .... Não vou, não mesmo.
Eu não conseguia processar o que ela estava falando, não estava entendendo bulhufas.
- Que pessoas, menina? Não tem ninguem aqui, do que você ta falando?
- Desculpa, seu Gregório, me desculpa mesmo, manda o Beijo pro Felipinho, fala que eu adoro ele tá?
- O que? Não, espera, como assim?
Ela desligou.
Que porra Bárbara!
Joguei o celular no chão. Estava desamparado. E agora o que eu iria fazer? Ela esteve cuidando do Felipinho por dois anos, como eu iria achar uma substituta tão em cima da hora?
Sentei na cadeira e dei uma respirada. Pequei meu notebook e mandei um e-mail pro meu chefe, não poderia ir trabalhar no dia seguinte, ficaria cuidando do meu filho.
As palavras dela não me saiam da cabeça. De que pessoas ela estava falando?
Levantei e fui até a janela da cozinha, abri só uma pequena fenda da cortina, do outro lado da rua quatro figuras encapuzadas estavam paradas olhando pra casa, quando me perceberam espiar, acenaram pra mim.
Acordei meio suado, parecia já ser tarde, só me lembrava de ter ido me deitar ao lado do meu filho, eu estava apavorado e me perguntando quem seriam aquelas pessoas estranhas em frente à minha casa. Esfreguei os olhos tentando despertar, rolei para o lado e a cama meio bagunçada estava vazia. O Felipe não estava ali.
Levantei de supetão, estava tremendo, não sei se de frio ou de nervoso. Talvez fosse os dois. Procurei no banheiro, nada. Chamei meu filho e não houve resposta.
Estava atordoado, meu deus, meu filho. Fui correndo até a varanda dos fundos e vi o Bolinha, nosso cachorro comendo um pedaço enorme de carne. Estranhei aquilo, eu não havia dado nada a ele, tinha acabado de acordar. Não dei muita importância, precisava achar meu filho.
Corri para a sala, estava vazia, da forma que estava na noite anterior. Estava ofegante, parecia que eu ia desmaiar quando ouvi um barulho de talher na cozinha.
Corri até lá desesperado, entrei pela porta escorregando no piso por causa das meias, e vi meu filho, sentado à mesa, que estava farta, cheia de frutas e doces caseiros. Foi um alivio enorme, tão grande que minhas pernas amoleceram, soltei todo o ar dos pulmões.
-Filho! Não ouviu o papai te chamar?
Ele com toda a sua tranquilidade de criança, balançando as perninhas na cadeira terminou de mastigar uma colherada de cereal com fruta.
-Não ouvi papai, desculpe.
Eu não sabia o que dizer, estava ficando paranoico, dei um beijo na testa dele e fui pegar uma xícara de café, estava aliviado. Enchi uma xícara bem cheia de café e me escorei no balcão, fui dar um gole e me virei para mesa e só então me dei conta. Quem havia preparado aquilo tudo?
Meus olhos arregalaram, meu coração palpitou, me senti tremer novamente, coloquei de vagar a xícara em cima do bancão e vagarosamente me aproximei do Felipe, meu corpo em choque tentando entender, olhei para ele e perguntei pausadamente, engolindo em seco.
-Felipe.
-hum?
-Quem preparou isso tudo pra você?
Ele me olhou confuso.
-Você?
Eu esfreguei a mão na testa, não estava conseguindo conter meu nervosismo.
-Não filho, o pai tava dormindo.
Ele fez uma expressão pensativa, entendo que pra ele deveria estar ainda mais difícil de compreender.
-humm, a Bárbara?
Ele estava tentando adivinhar.
-Não querido, a Bárbara não veio hoje. Você viu alguém aqui hoje cedo? Quero dizer, fazendo alguma coisa?
-Não. Já tava aqui. Ah! Você deixou a porta aberta ontem pai. tava tudo frio aqui.
Eu senti tontura, parecia que eu ia enfartar. "não eu não deixei". Pensei. Me apoiei na mesa para me manter de pé.
-Sim, claro, me esqueci, Obrigado.
Fui até a porta da frente, andando meio duro, parecia um robô inexpressivo, em choque. Olhei para fora com medo do que eu veria, mas para minha surpresa não havia nada estranho, aquelas pessoas da noite passada não estavam mais lá, olhei para a rua cima a baixo, procurando nem eu sei o que, e não vi absolutamente nada fora do normal. Quando já estava quase fechando a porta vi no chão um papel meio amassado, resolvi desamassar para ver o que tinha ali, e para meu espanto, desenhado à lápis havia um símbolo estranho, um pentágono com uma estrela de seis pontas no meio, e quatro assustadores olhos desenhados no centro da estrela, havia também outro pedaço de papel colado no canto da folha com o carimbo de um ponto de interrogação.
O que essas aberrações estavam querendo me dizer? Eu estava surtando, guardei o papel no bolso do pijama, dei mais uma olhada para fora e fechei a porta. Tranquei.
Coloquei um agasalho no Felipe e me aprontei para pegar o ônibus rumo a biblioteca municipal, eu vou scannear essa porcaria e fazer uma busca na internet para ver se eu acho alguma coisa que faça sentido, se eu tiver sorte pode ser que seja alguma piada de mal gosto que se tornou viral.
Estávamos aguardando no ponto quando eu vejo de longe um golzinho velho vermelho se aproximando e parando bem perto de nós, a janela do carro se abriu devagar e fazendo um rangido estranho.
-Falaa Greg!
Era o Barba, meu amigo do trabalho, o apelido dele é esse por causa da barba comprida que ele mantem e cuida igual cabelo de mulher. A maioria do pessoal até já esqueceu o nome dele de verdade, eu mesmo que o conheço desde que entramos juntos na empresa me esqueço as vezes, O nome dele é Jurandir, então Barba, pega mais fácil.
-Eae Barba!-Respondi.
Ele olhou para o Felipe, que estava distraído.
-Oi Felipinho, como você ta campeão?
O Felipe adora o Barba, ao perceber que era ele ficou todo agitado.
-Oi Tio Barba! Eu cresci um tanto assim - Ele fez um sinal exagerado de tamanho com os braços.-
-Tudo isso rapaz? desse jeito vai bater a cabeça nas nuvens eim.
-Uau! Eu acho que eu vou sim, dai eu vou comer um pedaço delas, porque elas são de algodão doce, só que branco.
Levei a mão na testa, que imaginação era aquela, rimos muito.
-Mas eai Senhor Gregório, pra onde você ta indo? Fiquei sabendo do que a Barbara fez, ela não é disso cara, que foda.
-Eu to indo na biblioteca agora. Pois é cara, sacanagem, acontece que ...
-Não, não, me conta no caminho, vou dar uma carona pra vocês entra aí.
Ele jogou umas tralhas pro canto do banco de trás e eu acomodei o Felipe no assento. No caminho até a biblioteca contei tudo o que tinha acontecido pro Barba, ele não falou nada até eu terminar, só balançava a cabeça.
-Uff. - ele soltou o ar como se fosse algo pesado.- Mano, que porra de história bizarra que tu acabou de me contar. Verídico mesmo?
-É claro que é caramba! Da onde que eu ia inventar um troço desse? Você me conhece, sou quadradão demais pra isso de inventar coisa.
-Mas assim, os caras, deixaram o desenho e PUFF desapareceram no ar?
-O que? Não! -Eu estava frustrado, ela não estava me levando a sério-. Eles só deixaram lá e foram embora, seja lá pra onde gente estranha mora.
-Eu vou te ajudar a resolver essa fita aí.
-Não precisa, deve ser bobeira.
-E daí se for bobeira? Agora eu quero saber, sou doido nesse negócio de teoria da conspiração, meu sonho investigar essas paradas.
-Cara, não é teoria da conspiração.
-Não corta o meu barato, falou? Pra mim é sim, esses negócios existem em toda parte irmão, ou você acha que o homem foi mesmo pra lua? Não se iluda!
-Ta bom. -Ri-. Mas eai, porque você não foi trabalhar hoje?
-Peguei atestado, doido.
-Você ta doente?
-To, doente daquele monte de relatório, deus me livre.
-Não acredito, O Marcelo vai ter que fazer tudo sozinho?
-Vai. - Ele me deu um olhar maléfico e demos uma gargalhada juntos.- Aquele mala vive puxando o saco do Afonso, ele que se vire, não é o senhor prestativo, senso de dono da empresa? Se vi-re.
-Bem feito.
Chegamos em nosso destino, eu já mais descontraído por causa da conversa com o Barba. A biblioteca municipal é um lugar enorme, deve ter sido construído lá por mil oitocentos e pouco, porque tem um aspecto bem antigo. Estacionamos o carro e subimos a longa escadaria até a porta. Chegando lá me virei pro meu filho.
-Filho, o papai vi ter que procurar umas coisas e pode ser que demore um pouquinho, lá dentro tem uma sala de joguinhos e uma tia bem simpática que vai cuidar de você, você promete que vai se comportar?
Ele balançou a cabeça em sinal de sim e saiu correndo para a entrada da sala de jogos.
Me aproximei da moça da recepção. Era uma mulher bonita, cerca de 30 anos, morena.
-Quanto tá a hora da salinha? - Perguntei pra ela-.
-São 20 reais, senhor.
Meu bolso doeu, aqueles homens misteriosos estavam me custando os olhos da cara.
-Me ve 1 hora então, por favor.
-Nome?
-Gregório Aparecido Boulevard.
-Nome da criança?
-Felipe de Alcântara Boulevard.
-Vamos anotar o telefone do senhor para contato.
Ela retirou uma fitinha com o nome do meu filho, amarrou no pulso dele e girou a catraca, Felipe saiu correndo feito um doido e sumiu no meio das crianças e dos brinquedos.
Não pude conter minha preocupação, não gostava de deixa-lo sozinho assim, mas desta vez foi preciso. Parece que transpareci demais, o Barba percebeu.
-Relaxa, a recepcionista bonitona vai cuidar dele.
Eu ri.
-Deixa só a Cristina ouvir isso.
-Deus o livre, ela arranca meu couro.
Adentramos a imensa biblioteca e fomos confiantes rumo a nossa caçada ao desconhecido.
Digitalizei o pedaço de papel e fiz uma busca rápida na internet. Nada.
Olhei para o Barba que assim como eu se sentiu frustrado. Resolvi fazer uma busca em livros de papel. Imprimi uma cópia do símbolo para o barba e pedi para ele seguir pelo lado esquerdo da biblioteca e procurar por livros de simbologia ou qualquer coisa que remetesse ainda que vagamente aquilo. Eu segui pelo lado direito.
Voltamos minutos depois, ambos com os braços cheios de livros pesados, colocamos sobre a bancada.
Depois de quase uma hora folheando páginas e mais páginas e sem sucesso algum, me senti exausto, estava quase na hora do Felipe sair da salinha de jogos e eu decidi fazer uma última busca desesperada. Sai entremeio as imensas prateleiras lendo os títulos nas bordas dos livros o mais rápido quanto podia, quando um deles em especial chamou minha atenção, era um livro velho de capa de couro cujo título era "Os lugares mais misteriosos do Brasil e suas histórias".
Me aproximei dele, e retirei da prateleira pela borda, analisei a capa em busca de algo que indicasse se aquilo tinha alguma relação ainda que mínima com meu símbolo misterioso, como não encontrei nada concreto olhei novamente para prateleira na intenção de colocá-lo no lugar, mas o que vi, me fez tremer os ossos. Do outro lado, no espaço vazio que o livro deixara havia um homem parado, cujo o olho estava posicionado perfeitamente na brecha, um homem de pele escura e olhos verdes como folha.
Eu travei, não sabia mais falar, gritar nem me mover, com muito custo consegui chamar o Barba que estava apenas a alguns passos de mim.
Ele parou ao meu lado confuso e olhou para prateleira, ao perceber aquele homem ali, ele entendeu o motivo do meu pavor. Barba sempre foi mais destemido que eu, e resolveu enfrentar a figura que viamos.
-Ei! Ei cara, o que você ta querendo, meu irmão?
O homem moveu-se saiu do nosso campo de visão, mas ouvimos sua voz grave e calma quando ele disse do outro lado:
-Aquele que com aplicação procura, sempre acha.
Barba puxou meu braço, me tirando do meu estado de choque.
-Vamos Greg! Vamos caramba. Vamos pegar esse cara.
Caminhamos a passos rápidos até o fim do corredor para dar a volta e nos encontrarmos com nosso colega misterioso, mas quando dobramos a esquina não encontramos nada incomum. Do outro lado só havia um grupo de estudantes de cerca de vinte anos sentados em volta de uma grande mesa.
Barba se aproximou de um deles e questionou:
-Desculpa interromper, pessoal, mas vocês viram um cara grandão, pele escura, olhos verdes por aqui?
O garoto olhou para os colegas como quem refazia a pergunta a todos e como ninguém se manifestou, respondeu:
-Foi mal, não prestamos atenção não.
Barba deu dois tapinhas no ombro do rapaz como quem diz um obrigado silencioso.
Nos afastamos andando lentamente, confusos e decepcionados. Peguei o Felipe na saída da salinha e só então me dei conta que ainda estava com o livro na mão. Dei meia volta, na intenção de retornar à prateleira para devolve-lo quando ouvi um grito e um alarme soou. No alto falante um rapaz repetia freneticamente. "incêndio na sessão 7, incêndio na sessão 7. Repito. Isso não é um teste, incêndio na sessão 7. Todos os leitores e funcionários favor dirijam-se para a saída mais próxima. Repito(...)"
Coloquei o livro dentro do meu casaco, pequei meu filho no colo e fomos até a saída principal. Atrás de nós um caos de pessoas saindo apressadas e desnorteadas.
Em silencio andamos até o estacionamento e entramos no carro.
Barba suspirou forte, e soltou um palavrão em tom animado e incrédulo.
-Que merda foi essa meu amigo? Caraaaaalho, que isso? Mano, sessão sete não era a que a gente estava? Caraaaalho, isso foi insano.
Eu estava com o olhar fixo a minha frente, era muito para processar, estava nervoso.
-Barba, e-eu roubei um livro da biblioteca municipal!
-O que
-E-eu nunca roubei nada na vida, nem bala, uma vez a moça me deu um real a mais no supermercado e eu devolvi. Eu roubei um livro da caralha da biblioteca municipal!
-Você ta fumado Gregório? Me atualiza aí que eu não to entendendo porcaria nenhuma do que você ta falando.
Abri o casaco, retirei o livro de dentro dele e apontei para o Barba. Estava eufórico.
O Barba olhou pra ele, processou por alguns segundos. Soltou uma gargalhada e ligou o carro.
-Ora, ora, parece que temos um grande ladrão entre nós. Próxima parada, Banco Central.
-Cala sua boca!- Ri.
O transito naquela área estava péssimo por conta do fuzuê do incêndio. Caminhões de bombeiro pra todo lado, curiosos dirigindo devagar e policiais isolando a área. Pedi pro barba ligar o rádio do carro pra gente saber o que os repórteres estavam falando sobre o acontecido.
Em várias estações de rádio, ouvimos notícias de que o incêndio fora criminoso, estavam analisando as câmeras de segurança para identificar o culpado. Chamaram o ato de terrorismo.
Naquele momento estávamos tensos. Aquilo tinha tomado proporções muito maiores do que jamais pudemos imaginar. Não eram apenas caras estranhos querendo fazer uma pegadinha de mal gosto, era algo muito sério, e o pior de tudo é que eu estava envolvido.
-Mano. -Eu disse tentando não parecer nervoso-. O que eu vou fazer agora?
Barba me olhou por uns instantes.
-Você? Você nada. NÓS vamos dar um jeito nesses caras. Vamos na polícia, talvez eles nos ajudem em algo.
Me exaltei.
-Policia? Você ta locão? Eu não posso ir na polícia! E-eu, eu roubei a merda de um livro!
-Ta bom, ta bom! Calma! Vamos resolver nós dois então. Eu e você. Sem polícia.
-Melhor assim.- Esfreguei as mãos no rosto tentando aliviar a tensão e pensar lucidamente-. Mas o que nós dois contadores de uma empresa furreca podemos fazer? Estamos fu...- Lembrei que meu filho de 5 anos de idade estava no banco de trás ouvindo todos aqueles palavrões. Me senti um péssimo pai.- Estamos lascados!
Barba me deixou na porta de casa, tudo parecia estranho ali, segurando a mãozinha gelada do meu filho tudo que eu conseguia sentir era medo. Eu havia passado o dia todo correndo atrás de mistérios e me esqueci completamente que, apesar das minhas horríveis aventuras eu ainda era um pobretão que por acaso trabalharia na manhã seguinte e não tinha nenhuma babá.
Barba já estava saindo quando pedi para que esperasse um pouco e abaixasse os vidros. Precisava fazer um pedido a ele:
-Mano, tem como você me arrumar um desses seus atestados aí? Ainda to sem babá cara.
Barba fez uma expressão malandra.
-É claro que eu consigo, Brother! Peguei um de 7 dias pra mim. Te arranjo um igual, até você acertar essas paradas suas aí com os iluminatti.
Não acreditava que tinha escutado aquilo. Barba era mesmo muito doidão. Ri muito.
-Sim claro! E com os Maçons também.
Barba riu, mas depois fez uma expressão pensativa.
-Mano! Será que eles são Maçons?!
Não podia acreditar naquilo. Bati a mão na testa.
-Vai pra casa, Barba.
Ele arrancou com o carro em alta velocidade e saiu fazendo uma barulheira pelo bairro todo.
Aquele velho golzinho deve estar todo ferrado com as loucuras que o Barba apronta com ele. O que se pode fazer? O cara vive intensamente. Eu, por outro lado, não passo de um pamonha.
Destranquei a porta e logo que ela abril Felipe saiu correndo pra dentro, imaginei o quão cansado das aventuras de hoje ele deveria estar, correu pra geladeira e pegou um pedaço enorme de chocolate que estava lá esquecido. Pensei em repreende-lo por comer doces àquela hora, mas não o fiz, só desta fez não faria mal algum.
Comecei a dar uma organizada na casa, quando fui procurar o Felipe para organizar os brinquedos da sala o encontrei jogado na minha cama dormindo ainda com o chocolate lhe lambuzando as mãozinhas. O cobri e voltei aos meus afazeres domésticos.
Pensei em abandonar toda aquela loucura, aqueles homens de capuz e o episódio todo da biblioteca, não era nenhum agente secreto para ficar resolvendo mistérios, mas era um pai que precisava tomar conta de seu filho pequeno. Decidi que no dia seguinte devolveria o livro à biblioteca e diria que na correria o levei por engano e se acaso aqueles homens aparecessem novamente eu chamaria a polícia. Era o mais sensato a se fazer.
Estava perdido em meus pensamentos quando ouvi uma batida na porta, dei um pulo do susto que levei, não estava esperando ninguém, provavelmente o Barba havia esquecido algo e voltou para dizer.
Abri a porta calmamente, mas não foi o Barba que vi, na verdade era uma figura completamente diferente, uma moça loira, não mais que quarenta anos, trajando um vestido fino vermelho, parecia uma celebridade. O único pensamento que me passava pela cabeça era o que um ser tão deslumbrante fazia à minha porta no subúrbio do mundo. Quase não consegui dizer nada.
-Senhor Boulevard? -Ela perguntou com um sotaque russo-.
Balancei a cabeça como que para desfazer minha cara de bocó.
-Eu mesmo, pois não?
Ela me entregou um envelope igualmente vermelho com meu nome escrito em letra cursiva.
-Compareça neste endereço hoje ás 20:00 horas.
Não entendi porcaria nenhuma, percebi naquele momento que de uns dias para ali eu não entendia nada de porcaria nenhuma. Tentei parecer educado.
-Perdão Senhorita, do que se trata?
Ela não tinha expressão alguma.
-Posso lhe dizer que não se trata de um convite.
Fiquei atônito e com um pouco de raiva também, eu agora seria forçado a ir a lugares.
Abri a boca para protestar, mas ela não permaneceu para me escutar, virou as costas e andou até um enorme carro preto que estava parado em meu portão, sentou no banco de trás e saiu sem nem se quer olhar novamente para mim.
Pronto! Pensei. Mais essa agora! Eu já tinha decido não entrar nessa loucura.
Passei a tarde tentando ignorar aquele envelope maldito, mas eu sofria de um mal incurável, a curiosidade.
Abri o envelope e dentro dele só havia um bilhete simples escrito à mão com um endereço. Naquele momento eu entendi o que me forçaria a ir até lá. Eu mesmo.
Liguei pro Barba e pedi pra ele cuidar do Felipe naquela noite. fucei o guarda roupas em busca do meu terno de casamento, me pareceu pela aparência da moça que eram pessoas poderosas com a qual iria lidar, então precisava me misturar. Ao retirar meu velho paletó empoeirado no cabide, meu coração apertou. "Que saudades Julia, meu amor. Se ao menos você estivesse aqui".
Afastei meus pensamentos tristonhos e me trajei a rigor.Escutei alguém bater à porta, era o Barba, finalmente.
Estava com um cigarro de seda na boca.
-Que porra é essa aí,Barba?
Ele soltou a fumaça e me respondeu com a voz rouca:
-Maconha.
-Eu sei que é maconha seu animal. Eu quero dizer.. cara tem uma criança aqui, você sabe né.
- Ou, eu sei ta. -Jogou o cigarro no chão e pisou em cima-. aí, pronto já joguei fora.
-ah, sim agora ta melhor mesmo. - Estava nervoso, passei a mão pela cabeça-. Deus, eu vou deixar o meu filho com um drogado!
- Cara não surta, relaxa, vai lá encontrar a loira gostosona.
-Eu não ... olha, só não deixa ele sair de casa ta? Ele se vira.
-Ta bom.
Eu não sabia que rumo aquilo estava tomando, peguei as chaves do carro do Barba emprestado e saí sem ter a mínima ideia do que me aguardava.
Dirigi uns vinte minutos pela rodovia, o endereço que a moça me deu era de uma zona rural, não sabia ao certo qual entrada lateral tomar, então parei no acostamento e peguei o bilhete novamente. No final da descrição do endereço estava descrito "Fazenda Escorpião". Dirigi mais uns quinhentos metros e encontrei a entrada com esse nome.
Parado ali na entrada de uma longa estrada de terra eu refleti se eu realmente estava fazendo uma boa escolha, e se me fizessem algum mal, como ficaria meu filho? Ele já não tinha mais a mãe e por conta de uma besteira perderia o pai também?
Pensei em dar meia volta e acabar com aquilo, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude alguém bateu no vidro da janela. Quase morri de susto, do lado de fora um homem alto, trajado de segurança, usando terno e aqueles comunicadores de ouvido, pedia para que abrisse a janela:
-Boa Noite senhor. Preciso dos seus documentos de identidade e bilhete de convocação.
Eu ainda estava me recuperando do susto, não sabia como lidar com aquilo, com as mãos tremulas e ansioso abri o porta-luvas e entreguei o que ele me pediu. Minha testa suava, eu estava realmente nervoso.
Ele deu uma olhada, falou alguma coisa no comunicador em uma língua que eu não consegui compreender e me devolveu a documentação.
-Siga em frente por mais cem metros, há uma vaga no estacionamento reservada para o senhor após o portão principal. Tenha uma boa noite.
Acenei com a cabeça para identificar que tinha entendido.
-Obrigado.
Era isso, a partir dali não tinha mais volta, se alguma coisa parecesse fugir do controle eu planejava sair de lá o mais rápido possível, dirigi mais um pouco a frente quando avistei um enorme portão branco perolado, era magnifico, digno da realeza.
Ao ultrapassar o portão havia uma vaga logo a frente, no meio de vários carrões de luxo com o meu sobrenome escrito em uma placa. Estacionei o golzinho, que parecia tímido e ofuscado em meio a tantas maquinas milionárias.
Subi uma pequena escadaria de mármore e parei frente a uma enorme porta branca. Toquei a campainha.
Segundo depois a porta se abriu, e lá estava novamente a minha frente aquela mulher deslumbrante, trajando um vestido de veludo preto, igualmente charmosa e fina.
-Por favor entre, estávamos te aguardando. Madame Nikole Ivanov, ao seu dispor.
Entrei meio desconfiado a casa mais parecia um palácio, escadarias enormes de mármore se elevavam em espiral até um segundo piso com pequenas salinhas como em um teatro.
Entramos em uma enorme sala redonda com várias cadeiras organizadas em um semicírculo, contei pelo menos umas vinte, mas sei que haviam mais. Sentados uma em cada cadeira estavam pessoas poderosas, vi alguns vereadores a até mesmo o prefeito em uma delas, o restante deveria ser empresários ou celebridades, não sabia dizer, só conseguia ver a riqueza e o poder em suas faces pomposas.
No meio deles havia apenas uma cadeira vazia, imaginei que seria a minha então tomei-a e me sentei. Ainda estava nervoso com aquela situação, minhas mãos me entregavam e eu batia os dedos no apoio ansiosamente.
Minutos após a minha chegada, Madame Ivanov, que havia se retirado, voltou a sala empurrando uma cadeira de rodas com um senhor muito idoso sentado nela. Colocou a cadeira o centro da sala, para que todos nós o víssemos. Apesar da idade avançada o senhor estava finamente trajado, e tossia em intervalos muito pequenos.
Ivanov parou ao seu lado e começou a discursar:
-Sejam bem-vindos a nossa trigésima sessão de sucessão. Como muitos de vocês já sabem, meu pai, Dom Dimitri Ivanov, está muito doente. Após a sua partida, eu, tomarei o seu lugar como suprema mestre da fraternidade brasileira.
Fiquei confuso e agitado, aquilo era o que? Algum tipo de seita? Estava perdido, mal sabia como me comportar. Ela continuou:
-No entanto, para tomar o meu lugar como governador geral da fraternidade, meu pai escolherá um de seus herdeiros. Eu já tenho o nome de cada um de seus filhos, e ele, junto aos supremos mestres de cada país fará a melhor escolha.
Minha cabeça rodava, governador geral? Nossos filhos? Eu não envolveria o Felipe nessa loucura, eu nem mesmo fazia parte daquilo tudo, não tinha a mínima ideia do porque havia sido levado até aquilo. Protestei.
-Perdão, Madame Ivanov, mas receio que meu filho não fará parte desta votação, eu nem mesmo faço parte disso.
Todos na sala voltaram suas atenções para mim. Me senti suar. A face da mulher era inexpressiva, não poderia dizer de forma alguma como ela sentiu diante da minha objeção. Só depois de alguns segundos me analisando ela exclamou:
-Não. O senhor certamente não, Senhor Boulevard. No entanto a Senhora Julia, era uma de nossas mestras. Você é o representante dela como esposo, devido a infortuna circunstância de sua ausência, nada mais.
Me senti amolecer, tontear, tamanho o meu choque. Julia? Não, não poderia ser. Como? A Julia fazia parte dessa bizarrice. Como eu nunca soube de nada? Porque ele envolveu nosso filho nisso? Eu estava com raiva, como a mulher que eu amava era membro de uma fraternidade louca e eu não sabia? Ivanov continuava a falar.
-Nesse momento faremos uma pausa de quinze minutos para a tomada de decisão dos supremos mestres. Aguardem, por favor.
Ivanov saiu da sala empurrando a cadeira de seu pai. Eu ainda sentado na cadeira, suava frio. Não conseguia processar aquilo, minhas mãos tremiam e ninguém ao meu redor parecia estar preocupado. Quinze minutos pareceram ser horas até que Nikole e o velho senhor retornaram:
-A decisão foi tomada.
Ela tinha um envelope vermelho em mãos. Eu só conseguia pensar. "Que não seja o meu filho, por favor, que não seja o meu filho".
Ela abriu o envelope e leu o cartão que estava dentro dele. Ela soltou um risinho irônico, pareceu sair involuntariamente, só então exclamou:
-Felipe de Alcântara Boulevard.
Meu mundo caiu, naquele momento, eu senti vontade de vomitar, mas não pude, estava paralisado. As pessoas ao redor sussurravam umas com as outras, incrédulas. Meu coração acelerava cada vez mais. Parecia que eu iria explodir. Escutei uma voz masculina vindo do outro lado da sala em tom alto. Era o prefeito.
-Governadora, isso é inconcebível! O garoto é uma criança!
Nikole deu com os ombros como quem diz que não há o que fazer. Pediu silencio a todos.
-Devido a esse atípico fato, declaro que o senhor Gregório será o Mentor de Felipe até que ele alcance a maior idade. Isso não indica a detenção do poder a ele, O cargo é de Felipe por direito, ele só responderá por ele até que o menino alcance a maior idade.
Os cochichos retornaram, os participantes pareciam não aceitar a decisão. Ouvi alguém gritar no meio deles.
-Isso é um absurdo!
Madame Ivanov levantou a voz.
-Absurdo ou não, é a decisão dos supremos. Esta sessão está encerrada! Há um coquetel na sala ao lado, aproveitem.
Ela saiu, soltando o ar de stress. Todos levantaram e se dirigiram para a sala indicada ainda cochichando indignados. Fui atrás de Ivanov.
-Madame Ivanov por favor espere! Nikole!
Ela se virou para mim, também não parecia muito satisfeita.
-Precisa de alguma coisa Senhor Boulevard?
Eu ainda estava muito nervoso, não sabia como começar.
-Olha, eu sei que eu não faço parte disso, a Julia nunca me disse nada sobre vocês, eu realmente não sei o que fazer.
Eu estava desesperado. Ela cerrou os olhos, parecia surpresa.
-Não? Interessante.
-Não, não, não, nada de interessante, olha você não entende, aqueles caras de capuz assustaram minha babá, eu não tenho ninguém, não sou esses ricaços aí, preciso trabalhar, não da.
Ela arregalou os olhos, pareceu assustada.
-O que você disse?
Fiquei confuso, o que eu disse que a assustou?
-Eu não sou rico?
-Não isso, idiota, os caras de capuz, o que você disse sobre os caras de capuz?
-Bom, eles ficam me observando em frente à minha casa, deixam bilhetes.
Ela pareceu ficar nervosa, passou a mão na testa tentando se recompor.
-Quatro caras de capuz, é isso?
Eu não estava entendendo, o que havia de errado.
-Sim, quatro deles, eles não são dos seus?
Ela se apoiou na parede, parecia apavorada, e eu me apavorava mais ainda vendo aquilo.
-Não, não são dos nossos. Isso é ruim, muito ruim. Já estão aqui.
Madame Ivanov me deixou sozinho na sala, saiu rápidamente batendo o salto alto no piso de mármore fazendo ecoar um som seco de trote pelo grande salão. Eu fiquei ali parado, confuso, nervoso e ávido por respostas. Levei as mãos à cabeça e dei aguns passos desnorteados pelo salão até decidir sair dali e ir para casa.
Cruzei o salão até a porta principal andando tão rápido que se alguém me observasse de longe poderia até mesmo dizer que eu estava correndo, entrei no carro e me sentei no banco do motorista sem saber ao certo ainda o que fazer, e foi ali, no silêncio e na solidão que tudo finalmente pesou.
Pensei naquelas pessoas, na votação, na minha esposa. Desferi socos desesperados contra o volante e me peguei chorando. Lembrei do meu filho, me recompus, limpei o rosto na manga do terno e girei a chave.
Não me lembro muito bem de como cheguei em casa, mas cheguei inteiro, estacionei o carro e olhei para a casa. Dela podia se ver apenas uma janela iluminada, era a luz da sala de estar. Entrei ainda amargurado, deixei as chaves na mesa da cozinha e fui até a sala. A cena que encontrei me fez dar o primeiro sorriso do dia, Barba e Felipinho estavam apagados, babando no sofá abraçados, ambos fantasiados de pirata com objetos improvisados. Aquilo aqueceu meu coração. Apesar de toda a loucura eu ainda tinha pessoas que me amavam acima de tudo.
Apaguei a luz da sala e deixei os dois dormindo lá, do jeitinho que estavam, não me atreveria a acorda-los. Entrei no quarto e me despi do meu traje de gala. Estava quase me deitando quando observei o livro que roubei da biblioteca, abandonado no criado mudo. Me peguei pensando no porquê diabos eu tinha me interessado por aquele livro tão aleatório e sem sentido.
Fui até ele e o encarei por um tempo, enquanto minha mente vagava buscando uma explicação, me lembrei da Julia, viva e linda. Amava ver a maneira como ele erguia seus cachos escuros em um coque para ler livros malucos para o nosso pequeno bebê.
Enquanto me deliciava em minhas memórias, por um instante pareci me recordar da minha esposa carregando um livro muito parecido com aquele que eu agora estava segurando, forcei a memória por alguns instantes até me dar conta de que com toda a certeza era o mesmo livro.
Folheei o livro desesperadamente tentando encontrar qualquer coisa fora do comum. depois de muito tempo e sem sucesso, esbravegei e soquei-o contra a madeira do criado mudo. O barulho que aquilo fez fi estranho, oco. Peguei a rapidamente o exemplar de volta e analisei com todo o cuidado a capa grossa que o revestia, até que percebi um relevo quase imperceptível que surgia na contra capa. Com um pedaço de clip de papel consegui desgrudar a parte em relevo da capa. Dentro do buraco, havia um fino medalhão prateado com um entalhe muito peculiar. Um circulo, uma estrela e quatro olhos sinistros. As palavras pularam da minha boca:
- Mas que merda, Julia!
Acordei energizado, tomei um banho rápido, peguei o celular e liguei para o Barba.
-Barba?
- Oi? Greg? Ta tão cedo cara, aconteceu alguma coisa?
- Eu tenho uma ideia, preciso da sua ajuda.
- Chego aí em dez minutos.
Deixei o Felipe com a Cristina, esposa do Barba, expliquei sobre o medalhão para ele. Tirei uma foto do objeto e imprimi o maior que pude. Colei na minha porta da frente, abri duas cervejas e sentamo-nos no sofá.
Barba me olhou com expectativa, algo em seus olhos indicava animação e adrenalina, características as quais eu invejava imensamente. Cansado do meu silencio ele questionou.
-E agora?
-Agora esperamos.
Dei uma golada na minha bebida e permaneci frígido. Estava decidido a obter todas as respostas ali.
O dia se desenrolou sem grandes emoções e a noite já quase caía enquanto eu e Barba permanecíamos jogados no sofá da sala, sem esperança alguma e assistindo um programa de culinária da tevê local.
Barba me dirigiu um olhar cansado e levantou para despedir-se, nesse exato momento ouvimos alguém bater à porta. Levantei de supetão e parei por um momento hesitante frente ao trinco, respirei fundo e abri.
Parado de frente para mim com uma postura invejável, completamente ereta e trajando uma farda muito bem alinhada, estava um homem de meia idade muito provavelmente militar. Sua expressão estava séria e seus duros olhos me encaravam com repreensão.
-Boa noite, Boulevard. O senhor tem a mais vaga noção da origem completamente sigilosa do símbolo que ostenta de forma tão vulgar em sua porta da frente?
O sangue me inundou os olhos, a petulância que me saltava à boca ignorava completamente a figura intimidadora daquele oficial.
-Na verdade, não tenho mesmo. Sou completamente leigo a respeito dessa coisa que vocês chamam de sigilosa e que por motivos que eu nem mesmo sei dizer acabou em minhas mãos civis. A imagem continuará aí até que essa merda toda me seja esclarecida.
Me arrependi de ter aberto a boca no pontual momento em que a fechei, mas já era tarde, tudo já havia sido dito e eu esperava qualquer que fosse a consequência agressiva que provavelmente sofreria.
Contradizendo todos os meus temores e instintos, o homem virou as costas e saiu, dirigiu-se à um carro preto e antigo que estava estacionado próximo ao meu portão. Quando pensei que havia sido deixado falando sozinho, a porta traseira do veículo se abriu, e de dentro dele surgiu o que julguei ser um homem muito robusto trajando uma roupa completamente preta e com o rosto coberto por um capuz.
Meu coração palpitou forte e a minha mente já estava a planejar um plano de fuga, eu queria correr, me esconder. A única frase que eu pude formar naquele momento e que saltaram dos meus lábios mais rápidos do que poderia pensar foi: "Fodeu! ".
Meu ofício se faz necessário,
Mas, no quesito reconhecimento, torna-se muito caro.
Sou simples aprendiz, embora com meio século de existência,
Tem horas que não vivo mas de paciência.
O tempo que sucumbo e afundo em meus dizeres.
Sou afetada pela falta do salário correto,
E, no concreto, ao escrever, gasto fosfato,
Mas, de fato nada ganho em vinténs.
Sou uma poetiza que vai além de si própria.
Com a concepção castroalvista de ter e ver a Justiça nos dias em que vivo.
Porém, como Castro Alves, que falava dos Navios Negreiros,
Estamos, como diria Cazuza, "Agenor Araújo", vivemos num puteiro.
A vida do brasileiro cada vez pior,
E, um sarrista na presidência,
Querendo afundar ainda mais a previdência.
Pois, eu nunca roubei,
Mas, sei que nossos políticos furtam na cara larga,
E, são aplaudidos por aí.
Já nem sei como viver.
Empréstimos e mais empréstimos, e a depressão que cisma em agir.
O tempo, que passa e eu aqui,
Sucumbindo como muitos,
E, vendo que só e somente Deus para confiar,
Pois, os homens que se dizem de Deus, estão também a roubar.
Enfim, temos que saber viver e sobreviver nos dias atuais.
Para nossa consciência viver em paz.
São Paulo, 10 de Janeiro de 2018.
Tereza Cristina G Castro.
9:39h. Dia com sol entre as nuvens.
S E L E T A
D
I
V E R S O S
Antonio Cabral Filho
Letras Taquarenses Edições
2014
*
NOTÍCIAS DE MIM
Nasci em 13 de agosto de 1953, no município de Frei Inocêncio - MG. Em 1964, após o golpe militar, fui para a escola, por decreto do generalíssimo Castelo Branco, aos onze anos de idade. Em 1968 concluí a quarta série, com média 7. Nessa época eu fazia teatro, na escola e na igreja, e, com a ajuda da única pessoa que eu considero Professora neste mundo, a Dona Adir, como eu ainda a chamo, montamos a peça O FILHO PRÓDIGO, com a intenção de realçar a auto-destruição em que se encontrava a juventude naquele momento.
Durante as férias escolares de junho de 1968, dei uma chegada ao Rio de Janeiro para fazer uns biscates e comprar roupa nova, mas ao chegar no Catumbi, meu primo Sadi levou-me para conhecer a cidade. Era 26 de junho, dia da PASSEATA DOS CEM MIL. Passeei na passeata.
Em junho de 1969, meu Tio paterno Sebastião Cabral, mestre de obras no Rio de Janeiro, foi buscar peão para suas obras e eu me alistei. Falei com ele da necessidade de eu sair da roça, escapar das garras do meu pai, deixar de ser mão-de-obra gratuita. Tinha quinze anos e era escravo do meu próprio pai.
Ele compreendeu e arrancou-me da casa paterna, não sem antes anunciar-me as agruras da cidade. Ao chegar em seu barraco, na Favela da Mineira, meu romantismo com a cidade grande foi pelo valão abaixo. Vi cair aos meus pés um menino fuzilado pela polícia, que segundo foi dito, era traficante. Durante muito tempo eu tive pesadelos por causa disso.
Morei na casa do meu querido tio até ir para o quartel. Matriculei-me na Escola Geny Gomes, no Rio Comprido e cursei o ginásio. Era um tempo turbulento, com muitos professores fazendo "inquéritos" com os alunos. Logo a seguir, entrei no Colégio Martin Luther King, fiz a sétima e a oitava séries e fui para o profissionalizante, no Curso Santa Rosa, Largo de São Francisco, em frente ao IFCS-UFRJ. Era 1974, fui promovido a cabo do exército, mas de olho no curso de sargento. Fiz o curso e passei, fiquei até 77 aguardando a promoção que não veio e pedi baixa; passei no vestibular e fui cursar direito na UFF. Abandonei por desilusão com a filosofia do direito após o quarto período; fui para comunicação social, mas a psicologia da notícia acabou comigo. Caí na vida e estou pegando touro à mão.
1 -
1 - ECCE HOMO - POESIA, Edições Curupira, 1997;
2 - DUELO DE SOMBRAS, POESIA, Edições Curupira, 1999;
3 - VER...SO CURTO&GROSSO - POEMAS PIADAS, Edições Letras Taquarenses, 2006;
4 - CINZA DOS OSSOS, POESIA, Edições Letras Taquarenses, 2008;
5 - MEUS HAICAIS PREFERIDOS, COLETÂNEA DE 20 AUTORES, Org Antonio Cabral Filho, Edições Letras Taquarenses, 2010
6 - TROVAS DE TORCEDOR, TEMA FUTEBOL, E-BOOK, 2010;
7 - TROVADOR DE FÉ, RELIGIÃO, E-BOOK, 2011;
8 - TROVAS DE AMIGO, HOMENAGENS, CRÍTICAS, IRONIAS, E-BOOK,2011;
9 - AUTOBIOGRAFIA EM TROVAS & VERSOS FAMILIARES, E-BOOK, 2012;
10 - CADERNO DE HAICAIS, E-BOOK, 2013.
11 - SELETA DI VERSOS 2014
2 - PARTICIPAÇÕES
1 - POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, ANE -
Associação Niteroiense de Escritores, 1992;
2 - POETAS 10ENGAVETADOS, Coletânea
, Org. Antonio Cabral Filho, Edição dos Autores, 1995;
3 - ANTOLOGIA POÉTICA VOL2, UFF/EDUFF 1996;
4 - INTERVALO, Ano II Nº10,
Edição Francisco Filardi, 2006;
5 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2007,
Org Ivone Vebber, 2007;
6 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2007,
Org Padre MossenPere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2007;
7 - CD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
8 - DVD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
9 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2009,
Org Ivone Vebber 2009;
10 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2010,
Org Padre Mossen Pere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2010;
11 - FANTASIAS COLETÂNEA,
Org Rozelia Scheifler Rasia et all,
Edição Alpas21/Ed Alternativa 2011;
12 - ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE,
oRG Araci Barreto, Edição Postal Clube, 2011;
13 - POETAS EN / CENA 6 - BELÔ POÉTICO,
Org Rogério Salgado e Virgilene Araújo, BELÔ POÉTICO 2012;
14 - VERSOS DE OUTONO ANTOLOGIA
Org Delmo Fonseca, Edição Confraria de Autores 2013;
15 - ANTOLOGIA 15 POSTAL CLUBE,
Org Araci Barreto, Edição Postal Clube 2013;
16 - ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS
Org Elenilson Nascimento, Editora Pimenta Malagueta, 2013;
17 - DIÁRIO DO ESCRITOR - Livro Agenda, Litteris Editora, 2013.
18 - APANHADOR DE SONHOS ANTOLOGIA - Editor Marcio M. do N. Sena - Beco dos Poetas 2014.
*
DEDICATÓRIA
A TODOS,
TANTOS,
QUE SABEM
A SUA IMPORTÂNCIA
NA MINHA VIDA.
***
ÍNDICE ( Lista de Poemas )
1 - Florão da América
2 - Poeta de Periferia
3 - Brecht Sob o Céu de Berlim
4 - Ladeira Saint Romain
5 - Me Disserem
6 - Lições de Tempo
7 - Solilóquio
8 - Cogitação
9 - Instinto Primitivo
10 - Política Anti - Literária
11 - Do Pobre Arlequim
12 - Lira dos Quinze Anos
13 - Cinza Wim Wenders
14 - Canção do Preto Inácio
15 - Canto a Ilu-ayê
16 - Delírios de prometeu
17 - Canção dos Guetos
18 - Tempo Fértil
19 - Lotação Esgotada
20 - Faluja
21 - Canções do Filho
22 - Rimbaudices
23 - Dezoito Brumário de Artur Rimbaud
24 - Deslumbramentos
25 - Neoliberal Postudo
26 - Poema Para Moacy Cirne
27 - Viver Sem Receita
28 - Shakespearíaco
29 - deuses do Gueto
30 - Cantiga Para Cassiano Nunes
31 - Quintana
32 - Quintana
33 - Quintana
34 - Quintana
31 - Ode ao Verso Livre
...
Apresentação
Mário de Andrade é uma fonte de inspiração à qual eu gosto muito de recorrer. Ele diz num determinado trecho do Prefácio Interessantíssimo que apresentação, prefácio, notas introdutórias, enfim, essas coisas de dar satisfações a que veio, são inúteis para quem nos despreza e desnecessárias para quem nos ama, ou algo assim.
Meu objetivo aqui não vai nessas direções. Não dou satisfações a quem despreza as diferenças nem preciso fazer preleções a quem as quer bem. Digo isto porque sempre marchei sozinho, sempre sem medo de aonde vai dar e no quê.
Minhas experiências com a escrita vêm desde a adolescência, quando da realização das festas juninas de 1967 em que meu pai pegou meu "Livro de Versos", apenas um caderno do MEC doado nas campanhas de alfabetização daquele período, e, acendendo o isqueiro do Vovó fumar, transformou-o numa tocha para pôr fogo na fogueira, não me lembro se de São João ou São Pedro, aos berros de " poesia é coisa de marica! " Lembro-me que no dia seguinte eu fui revirar as cinzas acreditando encontrar algum fragmento de poema que me ajudasse a reescrever alguma coisa. Inútil! Desde então trago comigo a noção de " estar só " naquilo que faço. Isso poderia ser um ponto de fraqueza para quase todos, mas aprendi a fazer disso a minha força: Não sei contar com ninguém, na hora do " pega-pra-capar ". Por isso, esta seleta de poemas eu a faço sem buscar apoio de ombros amigos, seja na escolha, seja na ordem dos poemas. E tudo que desejo registrar é que constitui-se de poemas bem divulgados, bem aceitos na nossa imprensa literária, a imprensa alternativa, hoje fortalecida pela internet, com seu mundo fantástico de sites, páginas e blogs.
Espero que quem os leia veja um pouco do meu trabalho, aqui representado por versos livres, sem nenhum poema minimalista, nem poemas-piadas, nem haicais, Nem trovas, nenhum soneto, sequer um poetrix. Apenas versos livres na sua expressão mais prosaica, mais solta, distante das formas fixas, modalidade na qual eu creio me mexer bem. Afinal, ser incluído em livros pela UFF - Universidade Federal Fluminense, ser editado em sites como o Jornal de Poesia, criado e dirigido pelo distinto Soares Feitosa, ou no Momento Litero Cultural, hoje tornado site pelo ilustríssimo Selmo Vasconcellos ou ainda figurar na ESCRITABLOG, do caríssimo Wladir Nader, não creio ser algo pouco significativo. E, com o devido respeito a quem gosta de tapinha nos ombros, eu não bajulei ninguém, não troquei favores, até porque não possuo nada trocável. Já cheguei a quinto lugar em diversos concursos, mas não me ressinto em injustiças e dou-me por satisfeito com os resultados até aqui. Mas de agora em diante, tudo muda.
***
FLORÃO DA AMÉRICA
O menino era pivete
E se chamava Joãozinho
Vivia como engraxate
Ganhando a vida por aí
Sem deus e sem diabo pra atentar
Foi estuprado por um maníaco
E encontrado morto na Lapa
Dentro de um latão de lixo
Não foi homenageado
Com honrarias militares
Nem imortalizado
Num samba de carnaval
Morreu e está morto
Morto, bem morto mesmo
Morto até na memória
O menino que era pivete
E se chamava Joãozinho
Que vivia como engraxate
Ganhando a vida por aí
Sem voz sem vez
E sem lugar na HISTÓRIA
*
POETA DE PERIFERIA
Nunca tirei um sarro
Nos bancos do Central Park
Nem aos pés da Estátua da Liberdade
Sequer algum dia
Imitei Hugh Grant
Trocando boquete
Com alguma Divine
Nos arredores de Los Angeles
Jamais mijei no Rio Hudson
Do vão central da Ponte do Brooklin
E nunca achei graça nenhuma
Em comer pipoca com bacon
No trem fantasma da Disney World
Tampouco nunca peguei um breack-fest
Em alguma lanchonete da Wall Street
Mas ninguém se assuste
Com o meu desdém debochado
Pelas coisas suntuosas
Desse mundo consumista
É que eu me sinto muito bem
Junto aos pés-de-cana
Dos butiquins pés sujos
Desses guetos suburbanos
Onde levo minha vida
De poeta proletário.
*
BRECHT SOB O CÉU DE BERLIM
Olhem para mim, vejam bem!
Eu estou aflito.
Não concebo ficar quieto
Diante da situação.
Se o tempo estiver bom,
Eu saio à rua a passear.
Se não estiver eu saio também.
Não dá pra ficar neutro.
Olhem para o tempo.
Como estão as nuvens?
Claras ou turvas?
Ou não há nuvens?
Chove e faz frio
Ou o calor é intenso?
Não importa!
Conforme a temperatura
Eu respondo à altura.
Não quero saber
Se são nuvens de tnt
Ou se neve suave de amanhecer.
Meus pés caminham...
*
LADEIRA SAINT ROMAIN
A Ladeira Saint Romain
Tem muita história a contar,
Mas a Ladeira Saint Romain
Não quer censura em sua história.
A Ladeira Saint Romain
Precisa de alguém que diga
Sua história com o Pasquim,
Mas que seja enquanto viva.
Pois a Ladeira Saint Romain
Não quer deixar sua história
Pra depois que ela morrer.
A Ladeira Saint Romain
Viu muita gente subir,
Mas não viu tanta gente descer.
*
ME DISSERAM
Eu menino me disseram
Que eu era HOMEM
Com todas as letras maiúsculas
Que eu teria uma mulher
Com a qual me casaria
E seríamos felizes para sempre
Porém eu descobri o AMOR e a LIBERDADE
E percebi que o amor é solteiro
E a liberdade não se casa com ninguém
Em seguida me disseram
Que todos tinham religião
E me venderam um deus
Que eu seguiria para sempre
Porém eu percebi
Que havia muitos templos
Tantas tendas onde comprar-se um deus
Que eu desisti
E fui tachado de ateu
Depois me disseram
Que todos tinham ideologia
E me venderam um partido
No qual eu ingressaria
E S P O N TA N E A M E N T E
E a ele serviria enquanto eu quisesse
Tornei-me então violento ativista
Mas constatei que todos tinham que ser iguais
E que o ser a si próprio era impossível
Até que um dia me avisaram
Que eu estava fora do partido
E que eu não era comunista
Desde então venho notando
Que todas as coisas têm um preço
E eu não posso comprar nada
Do que me querem vender
E ainda assim
o SHOW BUSSINESS
não quer deixar-me em paz
por onde quer que eu passo.
Como é possível
Numa mesma praça
De um lado um religioso
Fantasiado de cristo
Nos oferecendo a paz celestial
E do outro
Um comício eleitoral
Nos oferecendo um Strip-tease
Em troca de voto?
Agora restou-me a pecha:
Disseram que eu sou
ANARQUISTA.
*
LIÇÕES DE TEMPO
Houve um tempo
Não muito remoto
Em que me preocupei
Com a velhice
E até me programei
Pra fazê-la agradável,
Como lutei fiz planos
Formei vasta biblioteca
Pra passar o resto
Dos meus dias
Cercado de livros,
Planejei viagens
Pra conhecer a Ásia
A Europa a África
E da América
Visitar pelo menos
Machu Pichu.
Eu queria ser um
devorador de distâncias
guloso qual um marujo
pirata dos mares revoltos,
mas eu não sabia que o tempo passa
e que alguns copos de vinho
deixam a gente assim serelepe.
*
SOLILÓQUIO DE INVERNO
TUDO ANDA TURVO
Cigarras silentes
Arbustos estáticos
Há muito não noto
Formigas nervosas no seu ir e vir
Nem os grilos silvam mais
TUDO ANDA TURVO
Sapos aposentando pilões
Não sei mais dos agouros da côa
E o Bentivi não mais
Dedura ninguém
Os cães nem ladram mais
Nas noites frias
Não mais há bêbados
Cambaleando as calçadas
Rumo ao incerto caminho de casa
TUDO ANDA TURVO
Não mais se ouvem amigos
Falando alto na esquina
Contando histórias de amores furtivos
E mijando a saideira
Tomada agora há pouco
TUDO ANDA TURVO
E não basta dizer
Que tudo anda turvo
A manhã vem irrompendo
E Netuno acaba de soltar os ventos
E Vênus balança os cachos
Rindo-se de mim
Com seu sorriso de ninfa.
*
COGITAÇÃO
(Ao Poeta e Amigo Pedro Giusti)
Pense
Pense
&
Escreve
Se não puder sussurrar
Pense
Pense
&
Sussurre
Se não puder falar
Pense
Pense
&
Fale
Se não puder gritar.
*
INSTINTO PRIMITIVO
Foi assim
Sem mais
Nem menos
Me aproximei dela
E senti um odor diferente
Odor de terra molhada
Algo natural mesmo
Lhe cumprimentei
E senti todo meu corpo crispar-se
Ela notou e disse
Vem cá
E fomos de mãos dadas
Olhos nos olhos
Assim
Sem mais
nem menos
*
POLÍTICA ANTI - LITERÁRIA
O poeta ingênuo sai no pau com o crítico literário
Pra ver qual deles é capaz de regenerar
O poeta oportunista
Enquanto isso o poeta revolucionário
Panfleta nas favelas
O seu sonho visionário
E o poeta maior
O poeta menor
E o dito marginal
Fazem bolotinhas
Com meleca do nariz...
*
DO POBRRE ARLEQUIM
Nasci no sopé das montanhas
Lá onde terminam os bosques
E as florestas se adensam.
Bem cedo aprendi a brincar
Com os habitantes desse mundo
Onde reinam Sacis e Iaras.
Ainda menino fui pras cidades
Sem seio de mãe nem ombro de pai
Órfão de noite e de dia.
Segui sempre o sem-fim dos caminhos
E a poeira das estradas
Tingiu de vermelho os meus sonhos.
E o ronco do motor dos caminhões
É que ninou a soneca do menino
À sombra dos arbustos solidários.
Meu prato requentado e rápido
Eu soube sempre o seu sabor de sal
Temperado de relento e sol.
Na cidade sou um peixe fora d'água
E vez por outra ponho-me frente aos bares
Perscrutando por que essa gente bebe tanto.
O meu amor não sabe o pranto
Tão fartas comigo foram as mulheres francas
Em darem-se inteiras e detalhes tantos.
Não prometo ser algum dia um gentleman
Mas eu não mijo calçada a fora
Após uns chopes com steinhägen.
*
LIRA DOS QUIZE ANOS
Oh que alívio que eu tenho
Daqueles colegas de infância
Com seus mundos cor-de-rosa,
Heróis de história em quadrinho,
Coca-cola, chiclete, carmanguia,
Lencinhos perfumados, documentos,
Sem sombra de movimentos
Que os anos não trazem mais.
Como eram frios os versos
Profundamente românticos!
Mas contra os versos
Profundamente românticos
A alma dos versos meus
É francamente livre
E cospe na cara do eu-lírico
Que caça borboletas azuis.
Oh que alegrias que eu trago
Das minhas gazetas da infância,
Daquelas tardes jongueiras
À sombra dos oitiseiros
Entre o Largo da Carioca
E o tabuleiro da Baiana
Com tudo quanto é quitute,
Cuscuz, cocada, quindins
E os chamegos da mulata.
Oh que saudades que eu tenho
Da minha Avenida Central,
Avenida dos meus sonhos
Colhidos na Cinelândia
E comidos nos Arcos da Lapa
Por alguma linda Brigite
Com beijo gosto de menta
E seios de Marilyn Monroe.
Pobre do espírito pudico
Que nunca esbarrou com Cupido!
Jamais se esbaldou
Nas tabernas da Praça Mauá
Degustando cuba-libre
Com as nossas Bardots,
Nem trocou beijos calientes
Entre senha e contrassenha
Com alguma companheira
Aos cicios " pela revolução!"
Nas esquinas da Rio Branco.
Livre filho suburbano
Desfilava desafeto
Por meu boulevard sem Paris
Da minha Avenida Central,
Que só virou Rio Branco
Para agradar ditos-cujos,
E ria com meus olhos leigos
Da anarquia arquitetônica
Daquele casario sem eiras,
Que o Pereira "passo" extinguiu
Com um só "bota-baixo".
Naqueles tempos ruidosos
De ardente adolescência,
Papai montava a cavalo
E saía pra campear,
Mamãe brandia o chicote
E o leite fervia
No fogão a lenha,
Eu era pingente de trem
E ofice-boy da Light
E Che Guevara era bandeira
Nas barricadas de Paris.
Ai que saudades que eu tenho
Da Avenida Rio Branco
Como um palco a céu aberto
P'rum côro de cem mil vozes
Cantando Geraldo Vandré:
"Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer."
Mas "saudades" que eu sinto,
"Saudades" que me doem fundo mesmo
São da Avenida Rio Branco
Na Passeata dos Cem Mil
No auge dos meus quinze anos,
Daquela gente bronzeada
Mostrando tanto valor
Só pra mudar o Brasil,
Dos " bailes" que eu dei nos "ome"
Na Biblioteca Nacional
Com o saco de bola-de-gude,
Do Wladimir trepado no poste
Gritando "Abaixo a Ditadura!"
Alheio ao gás lacrimogênio,
Das balas com endereço certo
E o sangue correndo solto.....
................................................
São "saudades" que a palavra
Lhes recusa a assinatura,
Coisas muito duras para esquecer
Como diz o Rei Roberto,
Mas me fazem muito bem
Que os anos não tragam mais.
Por isso eu sigo cantando
"Caminhando" com Vandré:
" Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer."
*
CINZA WIM WENDERS
O céu turvo de Berlim
Lembra lona de circo velho,
Onde nossos avós nos levavam
Para vermos aquele palhaço
De há muito nosso conhecido.
Seus prédios cinzas,
De um cinza há muito conhecido,
Soltam o reboco feito animais
Que de tempos em tempos
Mudam de pele.
Suas árvores, em eterno outono,
Sem folhas pelo chão...
Suas cores, não sei como, jazem
Sob esse cinza perene
À espera da plena primavera...
*
CANÇÃO DO PRETO INÁCIO
Nasci nos caminhos de dentro,
Que ligam Minas Gerais à Bahia,
Ali pelas imediações do Suassuí,
Lugar de muita casa grande
E senzala mais ainda.
De início éramos todos lavradores,
Gente de lida que os senhores arrebanham
Com ajuda dos bate-paus,
Ora pegos em quilombos
Ora arrematados em leilões
Feitos pelos negreiros à beira dos cais.
Mas de tempos em tempos
Alguém saía de trouxa nas costas
Pendurada no pau de dois bicos,
Como fez o Preto Inácio
Que nunca mais deu sinal.
Quando fugia, dizia-se
Que fez poeira;
Quando saía por conta própria
Dizia-se que foi pra vida;
E, quando era posto pra fora,
Buchichava-se à boca miúda:
Foi vender puáia,
Que era como tratavam
esses pretos velhos
vendedores de raízes
nas feiras da cidade.
Entre uma e outra leva
Dessa gente que partia
Fui aprendendo com a vida
Lição por lição de partida
E assim que peguei tope
Aprontei meu pau de dois bicos
E fiz poeira,
Fui pra vida
Vender puaia.
*
CANTO A ILU-AYÊ
Negro é raiz da liberdade
Mais forte que qualquer outra
E faz nosso povo se unir
Hoje muito mais que outrora.
Porém, os chacais que o rondam
Ainda encontram lacaios
Contra o nosso porvir,
Pois quem nasceu para Judas
Não se cansa de trair.
Ilu-ayê tem o sorriso negro
Pra fortalecer meus irmãos
E regar a flor da resistência
Desde a grimpa dos morros
Até à vereda mais úmida
Em prontidão na tocaia
Para emboscar bate-estradas
E avisar aos capatazes
Que quem brinca com corda
acaba dependurado.
Ilu-ayê tem o abraço negro
Pra fortificar os quilombos
E multidões de Zumbis
Com suas bandeiras erguidas
Pra celebrar nosso Rei,
Que deu seu sangue por nós
E merece glória eterna.
Ao cismar sozinho relembro
Que todo instante da vida
É sempre vinte de novembro
Com a dignidade iluminada
E o espírito pleno de axé.
Pois nossa pele tem mais sol,
Nosso céu tem mais luar,
Nosso povo tem mais força
Quanto mais doar amor.
Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda faça um poema
Digno da beleza negra,
Com maior engenho e arte,
Que exalte Rainha Dandara,
Zumbi e Solano Trindade
Com uma imensa quizomba
Para alegrar nossa raça
E cantar pra Ilu-ayê!
*
DELÍRIOS DE PROMETEU
Acossado por despautérios,
As Tróias do presente
E as Cartagos do futuro
Obrigam-me a transpor muros
Da epopéia de quimeras
E prever que qualquer dia
Serei mito de ficção.
Algo ímpar na literatura universal,
Maior que Sherazad,
Maior que Dom Quixote,
Mais forte que os Três Mosqueteiros,
Mais valente que Robin Hood,
Mais sortudo que Robinson Cruzoé
Com Segunda Feira e tudo.
Desses que viram objeto de estudo,
Mais que Joyce e Ezra Pound
E dão pesadelo em curiosos,
São temas de teses acadêmicas
E motivo de congressos mundiais
Com reunião de exegetas renomados,
Cada qual com seu aporte
Sobre o pobrezinho aqui.
E o maior frisson
É o momento culminante
Em que todos vão à práxis
Acomodados em mesa redonda
Para provarem seus enfoques,
Quando enfim sou dissecado
Letrinha por letrinha
Até à exaustão,
Inclusive com preleção
De Leonardo da Vinci
E sua aula de anatomia.
Depois, todos partem felizes,
Com ares de dever cumprido,
Enquanto eu pairo sobre tudo
Alheio ao suor derramado,
À adrenalina gasta
E ao fosfato queimado,
Todo senhor de mim,
Dono do meu ser ficcional
Infinitamente inexaurível,
Como bem apraz à obra prima!
*
CANÇÃO DOS GUETOS
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos de Roma
Hanói, Formosa
Pequi, ou de la Habana Vieja
Y sus "desintegrados"
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos londrinos
Bem à margem do Buckingham
Guetos germânicos
De Bonn ou Berlim
Divididos em "Òssis e Véssis"
Cada um velando
em seu umbigo
o ovo da serpente
MADE IN GERMANY
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos da Bolívia
E seus índios "cocaleros"
Da tribo Quéchua,
Guetos do Peru
E seus guerrilheiros
Sem sendeiros luminosos
Para TUPAC AMARU,
Guetos da Venezuela
E seus caracazos bolivarianos
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos dos guetos amarelos
Brasilverdesifilíticos
Gonorrêicos que não lhes quero
Assim do Oiapoque ao Chuí
Das palafitas ribeirinhas de Manaus
Cheias de prostitutazinhas meninas
Vendida por seus próprios pais
A caftens made in europe
Às margens das trans...amaz
Ônicas de meninos e meninas ao relento
Nas praças da república
De suas megacapitais
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos de São Paulo
Dos casarios miseráveis
De tábua e zinco
Das zonas norte
Desnorteadas pro
Sul leste oeste
Que apesar dos pontos cardeais
Que os atritam
Nenhum cardeal
Nos deixam em paz
Nos seus sermões dominicais
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos do Rio de Janeiro
De tontas maravilhas
De janeiro a janeiro
E cariocas brejeiras
De cartão postal
De Chapéu Mangueira
E Pavão Pavãozinho
Vidigais e Vigários Gerais
Onde a palavra FAVELA
Fala a língua do "bigode grosso"
Pela graça da mordaça
De tantos COMANDOS
Há que buscar uma linha
Mesmo que seja vermelha
Mesmo que seja amarela
Ainda que seja anêmica
Para juntar tantas
Rocinhas Morros das Viúvas
Ladeiras dos Adeuses
Baixadas e Jardins Catarinas
Contra tantos opressores.
Pero hermanos
Hablar no me basta
Como no me basta
Llorar los hermanos caídos
Pois para poner fin
A tanto apartheyd
HAY QUE ENSUCIARSE LAS MANOS!
*
TEMPO FÉRTIL
Não sei se Homero foi à guerra,
Mas exaltou seus heróis
Que foram fazer fortuna.
Camões eu sei que foi
E cantou em verso e pólvora
Os crimes que cometeu.
Tem bardos compondo hinos
Por honra de seus irmãos
Mortos em alheio chão.
Não sei o que sentiriam
Se tivessem os seus lares
Invadidos por estranhos,
Mas eu digo a todos eles:
Não hastearei minha bandeira
Sobre os restos de ninguém,
Como apraz aos cães de guerra;
Não entoarei cantos de gesta
Pelas desgraças alheias,
Tão caras aos pais da usura;
Não gastarei tinta e papel
Só para matar o tempo
Ou agradar ociosos
Com coisas tão caras.
Nunca joguei porrinha
Valendo escalpe de índio
Nem minas de Vila Rica.
LOTAÇÃO ESGOTADA
Brasil cheio
De raças
De classes
De castas
Brasil rico
De prosas
De histórias
De causos
Brasil farto
De seitas
De facções
De máfias
Até o dia em que
Veremos ruir
Isso tudo
E o caos
Entorne a taça
E eu possa rir
O riso largado
Da sangria desatada
Com o potro solto no pasto
E o nosso povo altivo
Com a bandeira na mão.
FALUJA
Vou-me embora pra Faluja,
Aqui eu não sou feliz,
E vou sem Manoel Bandeira,
Pois na hora da partida
Virou porquinho da Índia.
Vou-me embora pra Faluja
E já disse porque vou.
Faluja é uma terra livre
Onde o povo não tem rei.
Vou-me embora pra Faluja,
Aqui eu não volto mais.
Faluja é terra de luz
Onde o povo faz a lei.
Vou-me embora pra Faluja,
Viver lá é uma aventura
De tal modo comovente
Que churrasco de yankee
É servido ainda quente.
Vou-me embora pra Faluja,
Vou juntar-me àquela gente
E fazer que um mundo surja
Sem choro e ranger de dente.
Vou-me embora pra Faluja,
E encerrar a ladainha
Senão eu não chego lá
Nem saio desta terrinha...
Vou-me embora pra Faluja,
Lá sou inimigo do rei
E minha maior diversão
É combater a opressão.
*
CANÇÕES DO FILHO
Parte I
Na minha genealogia
Tem um Pataxó destribalizado
E uma negra Haussa evadida,
Restolhos das "Entradas
E Bandeiras," por parte de mãe.
Ambos foram caçados
Por um bandeirante
E seus bate-paus,
Por parte de pai.
Nesta terra de Caminha
Que em se plantando tudo dá,
A escravidão sexual
Vira miscigenação
E ganha status em canção
De muito filho bastardo.
Muitos se ufanam
De serem mestiços
E até receitam isso
Com certidões de mulatos.
Mas eu não tenho dúvida,
Não cometo suicídio de raça
Nem viro escravo de sangue.
Parte II
Chamam-te AMÉRICA
E após tomarem teu corpo
E devassá-lo milhões de loucos,
Esquartejaram-no com mil cavalos
E aonde acharam manchas do teu sangue
Batizaram com nomes eurobestiais,
Mas pra conferirem ares santos
Providenciaram as bênçãos
De certa santa madre igreja
E em cada parte violada
Cravaram aí uma espada
Simbolizando a nova fé,
À qual chamaram cruz de cristo.
Santa Mãe Terra,
Tão divina, tão ultrajada,
Teu nome são teus filhos
E tu vives em todos nós
Desde a mais antiga Era
Ao mais distante Futuro.
Como eu vivo em meus avós
E o rio na montanha,
Somos todos um só,
Santa Mãe Terra.
*
Menos teus inimigos,
Que perecerão ao relento
Sem chão sob seus pés
Nem céu sobre seus rostos,
Como os ratos, sem berço
De Mãe nem Pátria.
Parte III
Este é um país de poetas
Em sua maioria crioulos,
Que derramam no papel
Transatlânticas nostalgias
Pelas pátrias de seus pais.
Desde Bento Teixeira e Manoel Botelho
Que lançam seus tentáculos
Aos confins de suas itálias,
Ricas em leonardos dantes;
Às suas lisboas fartas
De lusidíacas iguarias das índias
E bacalhau norueguês;
Às suas Londres opacas
Túmidas de piratas da rainha;
D'espanhas e franças e holandas
De germânicas reminiscências.
Felizmente não vivo aqui
Com o umbigo além-mar,
Não sofro a mácula
Do pecado original,
Não trago em meus ombros
Pesadas montanhas
De negros e índios
Dizimados por meus pais,
Para que eu vivesse em paz.
Não canto, não toco nem faço coro
Com o coral da escravidão,
Pois eu estou em minha terra,
Terra natal eterna
Dos meus antepassados longínquos,
Dela broto e a ela volto
E me deito sem colchão
E me desfaço em seu corpo de mãe.
Parte IV
Minha terra não é "minha"
Nem é de quem diz ser dono,
Mas tem impostor assim, oh,
Que a chamam de minha terra.
Muitos dizem minha terra,
Mas com os pés em chão alheio;
Só que esses "terratenientes"
Passam o dia no formol
Pra vampirá-la de noite
Com seus versinhos biáfricos
Por uma caneca de vinho.
Mas o fazem ser saber
Que só vinho não dá verve
Pra suas poéticas esquálidas
Tirá-los de cena à francesa,
Como se fossem nababos.
E tornam careta o Brasil,
Chinfrinizam os seus milagres
E deixam os marajás tupiniquins
Morrerem comendo acarajé
Na aba do sabiá.
*
RIMBAUDICES
Não confie em ninguém
Que xingue deus e o diabo,
E, como um litle bad boy,
Queira estuprar os anjos,
Mesmo que perca a perna esquerda
E a direita perca também
E ainda morra em Marselha,
Bem à porta do oriente
Carcomido pelo câncer.
Não acredite em ninguém
Com mais de trinta dinheiros,
Com mais de trinta invernos,
Que acredite em demônios,
Que fuja para a Abissínia
E contrabandeie armas
E ainda trafique escravos
E em sua hora final
Chame por seu Djami.*¹
Não confie em ninguém
Que levou tiro de Verlaine
E o colocou atrás das grades
E ainda fugiu para Roche
E, após uma Une Saisson em Enfern,
Mandou a Paul Demany
A Lettre Du Voyant,
Escreveu Iluminations
Sem dúvida bem além
Dos Paradises artificiales
De Monsieur Baudelaire,
Regado a muito haschisch.
Não confie em ninguém
Que nasceu gênio precoce,
Seja filho de gendarme,
Freqüente o CABARET VERT
E zombe de pátria e família
E vague noite a dentro no váquo
Como o Spleen de Paris.
Não confie em ninguém
Que sofra de rimbaudite
E viva pagando mico
Em algum coufeé maudit.
- *1 : Djami é o nome do mordomo de Rimbaud.
*
DEZOITO BRUMÁRIO DE ARHUR RIMBAUD
Tenho apenas vinte anos
A mais que Artur Rimbaud
E nem um segundo no inferno.
Nunca provei a taça da amargura
Nem quebrei a cara na Abissínia
Ou cheguei em casa perneta.
Jamais reneguei meus pais
Nem minha querida Jampruca
Por suas vidas pacatas.
E o fato de mochilar por aí
Não tornou-me um andarilho
Nem me fará urbanóide.
Sair da casa paterna, pra mim,
É o mesmo que ir ao trabalho
Ou à horta colher alfaces.
Não quero fazer do mundo
Um monte das minhas cinzas,
Porque me odeio e não tenho causa.
Não sofro de " cazuzismo ",
Acusando a burguesia
Por falta de ideologia.
*
DESLUMBRAMENTO
Meu primeiro amor
Foi como beijo roubado:
Sem liberdade de escolha.
Meu primeiro amor
Começou com a chupeta
Quando Ritinha ameaçou-me
"Só te namolo se laigá pepeta!"
Meu primeiro amor
Trocou bala boca-a boca
Na Igreja de Frei Inocêncio
Bem no meio da missa
E o Padre Daniel
Mandou-me rezar três Pai-Nossos
E eu rezei até mais
Para ficar bem perdoado
O pecadinho tão doce.
Meu primeiro amor
Bateu muita gazeta
Na pracinha da igreja
Só pra comer cocada
E dar beijinhos na boca
Das filhinhas-de-papai...
Meu primeiro amor
Passou nas provas
De educação sexual
Com notas de louvor,
Mas se o Grupo Escolar falasse...
Meu primeiro amor
Chupou muito ingá
Na galhada dos ingaseiros
Sobre as margens do Suassuí
Com a Dasdô do Mané Cachorro.
Meu primeiro amor
Tinha gosto de pé-de-moleque
Devorado com a gula
Do menino assustado
Com o presente da namorada
Que levantou a saia de chita
E lhe disse " mete aqui!"
Meu primeiro amor
Ficou de coração na mão
Com o bicho cabeludo
Da Maria Serafina
Nuinha na minha cama
Pra comer minha inocência,
Apesar dos avisos da mamãe
De que ela era rapariga.
*
Meu primeiro amor
Era como filme de Speelberg:
O tempo todo de suspense
E no fim sobra surpresa.
Meu primeiro amor
Nunca encontrou seu fim
Porque a poeira vermelha
Das estradas mineiras
Nos cobriu na encruzilhada
Entre o passado e o futuro
E o destino nos levou
Para distintos presentes.
*
NEOLIBERAL POSTUDO
Após a abertura
Lenta e gradual
Do General Geisel
Nos idos de 74,
Aceitei a receita
Do General Figueiredo
E empanturrei-me de democracia
Com eleição após eleição
E overdose de votos hoje
Pra curar o porre de ontem,
Nem sempre de votos.
Desde então aposentei
Meus apetrechos de guerrilha
Contra a ditadura militar,
Entre eles meu quixute
Mais veloz que bala de INA
E os arapongas do SNI
Com seus óculos Ray Ban
E cabelos James Dean,
Meus comprimidos de Redoxon
Contra gás lacrimogênio,
Minha lista de jornais
E ONGs de DH,
Minha coleção de calças jeans,
Meu Livro Vermelho de Mao Tsetung
E o trezoitão solidário
Que nunca "moscou" na hora
Quando fez-se necessário
Falar o idioma inimigo,
Além da inexorável certeza
De poder mudar o mundo
Nem que fosse a bala,
Mas a três décadas disso tudo
Não sou mais assim não,
Já não sei quem são meus inimigos,
Já não vislumbro as classes
Em que se antagonizam as pessoas
No seio da sociedade,
Não identifico mais ninguém
Como direita ou esquerda
E qualquer discurso ideologizado
Soa-me como algo anacrônico...
Enfim, tornei-me um reles
Neoliberal pós-tudo,
Sem os mínimos valores humanos
De respeito aos oprimidos
E à luta contra a opressão,
De solidariedade militante
Às minorias sociais
E aos despossuídos em geral.
Hoje, se o Tio Sam me pedisse,
Eu venderia minha própria mãe
E entregaria a alma ao diabo
Sem nenhum motivo aparente,
Porque tornei-me um neoliberal pós-tudo.
*
POEMA PARA MOACY CIRNE
Faz tanto tempo
Que não encontro alguém
Que há muito
Eu não encontrava
Alguém que me deixe assim
Alvissareiro
Como as flores e o sol
Às nove da manhã
Com o peito cheio de alegria
Pronto a dar vida às novas emoções,
Como aconteceu com o Cirne
E sua fada amante
Certo dia em Ceridó,
Que se sentiram crianças no parque
Com as façanhas que viveram
Tamanha a felicidade da dupla
Algo assim tão radiante
Que faz mister compartilhar
Fazer com que irradie
Em todo ambiente
Onde haja corações
Que buscam alguém
Digno de ser encontrado
Pelo puro prazer um do outro,
Como o vinho e os lábios
Da mulher amada.
*
VIVER SEM RECEITA
E assim foram-se vinte anos,
Vinte anos de namoro,
Após longas operações secretas
Nos hotéis da Frei Caneca
E seus corredores sinistros,
De arrepiar Hichtcock,
Com tantas fugas fantásticas
Pela Avenida Mem de Sá,
De congelar Mon Sieur Poirot
Depois de longas estadas
Nos cortiços da Gomes Freire
Durante tantos carnavais
Regados a frango assado
E muito vinho de buteco,
Muita lasanha com Black Prince
Nos bares da Cinelândia,
Filmes pornôs no Cine Íris
Só pra criar o clima,
*
Depois de muitos natais
Curtidos a dois nos quartinhos de favela
Regados a risoto de frango e Malzebeer,
Depois de muita briga besta,
Muita salada completa,
Muita "volta" recíproca,
Muita paz de beijo e abraço
Nos bancos da Cruz Vermelha,
Depois de Ana e de Edson,
Passaram-se vinte anos
Além dos cinco pregressos,
Almejo ainda mais vinte
Mas isto não é receita
Para mal sem cura...
*
SHAKESPEARÍACO
Ao tocar a sirene da fábrica
João não viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
Às dezessete e trinta.
Às dezoito horas
João não viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
Às dezoito e trinta
João soube pelo vigia
Que Maria fazia serão.
Às dezenove horas
João viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
E despedir-se do amante
Com um longo beijo na boca.
João perdeu a linha,
Bebeu a noite inteira,
Chegou em casa de manhã
E matou Maria
Com um tiro na cabeça,
Depois saiu dançando rua afora
Tocando Carinhoso
Em sua flauta de bambu
E nunca mais foi visto.
*
DEUSES DO GUETO
Na topografia do caos
Veias são avenidas
E ninguém viu
Cruzar esta via
Um calango de pedreira
Mais veloz que um tisio
Ou um guri de patins
Nas vielas da favela,
Que ostenta o status
De "aviãozinho da boca"
Mais querido no pedaço
E finda abatido em pleno vôo
Nos becos do mundaréu...
O "patrão" paga o enterro,
O jornal gera emprego,
A família sabe o troco.
*
CANTIGA PARA CASSIANO NUNES
Recebi poemas durante anos
Do Mestre Cassiano Nunes
E saía com eles pra rua,
Levava para os eventos
E lia para os amigos,
Nas rodas e recitais
E quando soube da sua morte
Fiquei desconsolado, e agora (?),
Pensei, mas certo de não ter resposta,
Segui de boca seca.
Senti por não fazer acervo
De tantos poemas que recebi,
Mas me desfiz deles após
Lê-los para o meu público
E publicá-los em meus fanzines.
E a falta que sinto agora
Seja dos poemas ou do poeta
É a satisfação que vai comigo
Pelos destinos que lhes dei
Enquanto eles se foram
Para outras vidas e outras formas.
Mas quando alguém perguntava
Após a leitura de um poema
Quem é Cassiano Nunes,
Eu respondia todo enrolado:
É um paulista de São Vicente,
foi a Brasília fazer carreira
E nunca mais saiu de lá.
*
QUATO POEMAS A MÁRIO QUINTANA
1 - PARAISO QUINTANA
Dizem os abduzidos
Que ao chegar no Paraíso,
Tão bestunta quanto sempre,
Mário Quintana estacou,
Pregou na nuvenzinha
Que lhe servia de tapete
E ficou abestalhado
Com tanta beleza,
Tanta alegria, tanta paz,
Que até esqueceu de sair do lugar,
Sem dar um Passo sequer
E que um anjo louro,
Louro louro muito louro,
Aterrissou a seu lado
Pegando-o pela mão,
E saíram voando, voando,
De início a meia altura
Para logo em seguida,
Seguros de vôos mais altos,
Estenderem as asas
E ganharem outros ventos...
*
Coisas de abduzidos...
E dizem que Mário Quintana
Pensou em perguntar ao anjo
Que parque era aquele,
Lá embaixo, bem ao centro
De todo aquele Paraíso,
Mas como fosse um anjo
Leitor de pensamentos,
Foi logo explicando
Que era o Parque Mário Quintana,
Onde crianças e poetas
Se exercitam nos versos
Bem aos olhos das musas,
Que as suas lhe aguardavam ansiosas
Para ouvirem os versos seus.
*
E ao notar insegurança
Nos olhos tímidos do poeta
Pensando em Bruna Lombardi,
O anjo se adiantou dizendo
Que ela enviara todas suas semelhantes
Enquanto se desvencilhava
De seus encantos terrenos.
Segundo os abduzidos,
Quintana vive cercado
De musas e discípulos,
Exercitando seus encantos
Lá nos palcos do Paraíso,
Bem alheios à realidade.
Mas
Quem
Diz
São os
Abduzidos!
*
2 - QUINTAN'ESSÊNCIAS
Não consigo imaginar
Quintana chorando,
Cortando soluços sentidos
A não ser lágrimas
De extrema alegria
Para lavarem as faces
Queimadas pelo arco-íris,
Pois a palavra Quintana
Sugere criança brincando,
Alheia a tudo,
Imune a qualquer risco
Longe desta vida,
De direitos e deveres,
De ordens e obediências,
Reduzidas a números e papéis,
Aliás, como Quintana sempre quis.
*
3 - GRAVATA DE QUINTANA
Quintana empaca meu verso,
Mas eu puxo-lhe a gravata
E ele ri seu risinho besta
Cheio de desdém
Pelas coisas deste mundo,
E sem largar a desgraça do cigarro.
Intimo-o a não rir de mim,
Mas sem dar-me nenhuma atenção
Mantem-se concentrado em seu vinho
Sem descuidar com o olhar
Atento para surpresas
Que eu possa aprontar-lhe,
Até que desata a rir mais ainda
E desfaz-se o nosso entrevero,
Como se defraudasse
A bandeira colorida
Dos seus sonhos infantis.
*
Mas novamente puxo-lhe a gravata
E não mais encontro Quintana,
Só o vaquo da mesa vazia,
O salão da adega em silencia
E o jornal à minha frente
Com a notícia repentina...
Quintana decola
Do aeroporto moinho de ventos
Rumo ao seu mundo de estrelas,
Onde pretende esquecer de tudo
E passar o resto da eternidade
Puxando perna de grilo
E beijando brunas lombardes.
*
4 - QUINTANA
Mário Quintana
Partiu
De Porto Alegre
Para Porto Feliz
E foi-se
Sem dizer adeus
Rumo ao Reino de Deus
Esquecido de nós
De vez
Sem mandar notícias
Jamais
Ou seria um deus-nos-acuda
Com tantas Babis, Babys
E Brunas Lombardes
Em êxtase.
*
ODE AO VERSO LIVRE
No princípio a poesia era uma canção regada a vinho
Ao som de harpas tocadas com carinhos e beijos de mulher amada
À sombra de uma palmeira frondosa
Onde o poeta-filósofo se deleitava com a vida sem fronteiras
E ela brincava solta pelos bosques entre duendes
Indiferente ao tempo acariciando a sua nudez
Coberta de inocência,
Depois, veio a escrita e de palavra em palavra
Foi vergando-a sob o rigor do verso
Moldando-a à disciplina da métrica
E aprisionando-a à liberdade
Que lhe permite esta margem de papel,
E agora ela atravessa as grades das gramáticas
Sobrevoa o muro das linguagens
E vem sondar-me
No ondular dos cabelos desta mulher que passa...
*
Juntaram-se a outros tantos jovens nos primeiros movimentos pela democracia. Orgulhosamente, de cara pintada, foram ás ruas pedir eleições livres.
Nas noites que passavam na danceteria Cacimba night Club, bebiam cuba libre e gim soda ouvindo Blitz, Cazuza, RPM e tantos outros imortalizados.
Motivado por esta vertente de ouro da música nacional o Brasil marca época com o primeiro Rock in Rio.
No cenário internacional o mundo conhecia a força musical de Bom Jovi, U2, Pet Shop Boys. Thriller tocava em todos os cantos do planeta. Madonna se tornava unanimidade.
Anos romanticamente alvissareiros em que a Columbia impressionava a todos em seu primeiro voo. A Argentina tentava defender as Ilhas Malvinas, Itaipu finalmente começava a produzir enquanto o muro de Berlim caía, pela paz. Chaves estreava no Brasil e E.T. ganhava as telas de todos os quadrantes. Junto com a esperança de um novo milagre econômico nascia o primeiro bebê de proveta brasileiro.
Foram anos românticos e rebeldes. Talvez só não foram mais intensos do que os anos de Woodstock, da então geração paz e amor.
Sou saudosista deste romantismo marcante. Dos cabelos volumosamente longos, dos amores e roupas coloridas. Época da rebeldia e das calças, propositadamente, rasgadas usadas com os All Star inesquecíveis.
Década em que se voltava para o futuro curtindo nove semanas e meia de amor sem esquecer que sempre haveria um tira da pesada nas ruas de fogo.
Tempos de quebrar regras, inovar, lutar pelo novo, mas mantendo sempre a doçura e a ternura tão própria de uma geração que foi à guerra lutar pela paz.
Cavalos Selvagens, o novo romance de Silas Corrêa Leite, de novo surpreende, cativa, emociona.
“...quem somos nós, autointitulados humanos, senão meros cavalos passando de mão em mão e servindo como veículos para que a vida possa escorrer por meio de nossas existências? – Roberto Damatta
-Como em seus outros diferenciados romances anteriores, o polímata Silas Corrêa Leite de novo se supera. Seu novo livro, bancado pela LetraSelvagem (SP) e Kotter (PR) - Editoras que inauguram parceria de coedição - começa como se em um thriller desesperado e assustador, já iniciando a própria dicotomia que funda a obra como um todo, feições entre a vida morrendo e a morte nascendo, nesses entremeios o medo, o desespero, revisitanças, mais doces e amargas memórias, passagens de vidas a limpo, a corrida contra o tempo, desvãos de almas, tudo isso partindo de uma doença fatal, da capital, para o interior, mais precisamente Itararé, sudoeste do Estado de São Paulo, divisa com o noroeste do Paraná, e ali finca-se o palco do romance em que o cavalo selvagem pode ser apenas uma metáfora de tudo o que somos, como em Hamlets, carnicentos e afins. Diz o rock Cavalos Selvagens “A infância é algo fácil de viver(...)/Você sabe que não posso deixar você deslizar pelas minhas mãos(...)/Cavalos selvagens não conseguiriam me levar embora(...)/Eu assisti você sofrer uma dor lancinante(...)/Nenhuma saída ligeira ou falas nos bastidores(...)/Podem me fazer sentir amargurado ou lhe tratar com grosseria - Wild Horses, (Composição de Keith Richards / Mick Jagger).
O livro em si, como se sob o foco dessa música, quando o autor, mais dez anos atrás escreveu esse romance que, como todas as obras dele, partem de um situação inusitada, crucial, quando não fatal, para o desenvolver do enredo como um devaneio de jorros neurais criando em disparada; como em Cavalos Selvagens romance que, mais uma vez, revela o escritor, blogueiro, professor e escritor premiado, surpreendendo pelo estilo, também ele mesmo um cavalo selvagem, nessa manada contemporânea de idiotas entre hordas fascistas em tantos estábulos de uma manada alienada. Nesse romance meio macunaímico pelas reviravoltas, narrativas sobre uma vida que vai findar, uma vida que acaba de nascer, e nesse prisma Silas Corrêa Leite focaliza o fio da trama, e vai tecendo rumos romance a dentro, o local ermo, a vida se esvaindo, o sangue de seu sangue que brota no rancho ermo sem recursos, uma charneca, e o personagem principal, um executivo sedentário que nem sabe fritar um ovo ou lavar um lenço, tem que cuidar de um recém-nascido, perseverar e preservar a vida do único remanescente de seu clã na face da terra, condenado que está. Como não se perturbar lendo, como não acompanhar a arte do escritor, ora a galope nas circunstancias terríveis e terminais, ora amansando a fera do momento, como parte do rebanho. No prefácio, o reconhecido literato, Joaquim Maria Botelho (ex-diretor da UBE-União Brasileira de Escritores) já bota água na fervura, bota fogo no chão, e apresenta o livro e o escritor dizendo, entre outras coisas: “O texto de Silas Corrêa Leite não é texto de quem vai à esquina, comprar fósforos para acender o candeeiro, com tempo, antes que escureça. É texto de quem vai longe, num andamento agalopado, meio frenético até, levar uma notícia que não pode esperar. Nessa corrida, é como se o exagero de ar batendo na cara da gente sufocasse, de tanto pensamento, de tanta reflexão, de tanta posição tomada. O leitor é o cavaleiro, no lombo dessa narrativa de aparente atropelo(...). No caminho, a cavalgada solitária leva a meditações e faz a realidade transitar para o sobrenatural. E surgem as assombrações, os medos atávicos que nos perseguem desde as cavernas mal iluminadas, antes da invenção do fósforo e do candeeiro. E lá se vai o mensageiro, metido em suposições e mistérios”. Prepare-se: você vai entrar nesse livro, ou, nessa baia, por assim dizer, e se sentir sobre o cabresto da leitura e o pelego das contações, talvez também se revelando um cavalo garraio se olhando no espelho da espécie, nas aparências que ficam, que foram, que virão. CAVALOS SELVAGENS é isso: um romance para você montar nele e curtir a narrativa, pois a “vidamorte” mesmo pode ser só isso, uma corrida contra o tempo, contra o tal final feliz em que todos morrem, já que o que o maior desfecho pode ser um páreo duro de saber, mas bonito de se ler e se situar, se sentido parte do cocho que, afinal, pode ser isso que rotulam de existir. Temos, dessa forma, num romance ultra contemporâneo e pós-moderno, drama e suspense reunidos em um só livro... quando a morte é o grande eixo da trama, talvez seja melhor desmontar da pose e pegar gosto na cavalgada da leitura.
Clarice Lispector disse: “O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto que os seres inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente humana. (in, “A paixão segundo GH”)
Eis o romance CAVALOS SELVAGENS, eis a fatalidade romanceada entre a ração, a razão e o chicote da vida abrindo veredas, trilhas, iluminuras, vertentes e histórias cavalares.
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Pedidos de livros também podem ser feitos pelo e-mail: atendimento@kotter.com.br
Então era um sábado e semsaber entrei numa classe diferente e tinha muita gente. Tive a aula na qual oprofessor nem sabe que acabou dando a mim como também a milhares de pessoas,creio.
Era Clássicos que não entendodireito, pois não sou especialista em música, mas lá estava eu ‘viajando’ entrenotas e tons, entre compassos e traços e aquele mestre encarnando ou encantandoou sei lá o que, vivenciado momentos mágicos.
Parece até perseguição, poishá tempos vi o mesmo tanto na TV, como na internet e me dou de cara com estetal professor que professa realidades sonhadas.
João Carlos Martins é o nomedo professor.
A sala de aula era uma tela deTV do canal Cultura. Os alunos presentes e os invisíveis ausentes, creio que milhõessubmetidos todos a uma mesma magia, emoção e alguns até em plena transposiçãoda realidade para algo místico.
O Maestro João Carlos Martins,que por si só como musicista e sua história como pessoa são lições dignas de méritose deveriam ser objetos para estudantes desde as séries iniciais até nos cursosde doutos; pois além de músico clássico é popular, com perfil e mensagens parapassar, que podemos crer ser muito mais importante que muitos cálculos matemáticos,físicos ou químicos.
Ah! Tem também as teorias psicossociaisque merecem apreender com tal mestre paradigmas das relações mentais emetafísicas pois não é por mero acaso que ele age assim, ou por determinaçãopessoal ou porque nasceu em um berço esplêndido.
O mestre João Carlos Martinstem algo que somente algumas figuras humanas conseguem nos fazer aprender eapreender, e nos prende de forma subliminar.
Este teimoso humano tem algo,ou alguma similaridade com outras figuras que passaram pelo nosso século, comopor exemplo: Luiz Gonzaga, Cora Coralina, Carlos Gomes, Ariano Suassuna,Vinicius de Morais, Tom Jobim, Joãozinho Trinta, Chico Xavier, Ayrton Senna, ElisRegina; entre tantos outros.
Este torcedor da Portuguesa deDesportos tem como antecedentes elementos, itens e passagens que, sem mesmosaber, torna-se uma atleta exponencial de nossa cultura brasileira. Digno deser tratado como Excelência ou como nas histórias infantis um de nossos heróis,enfeitiçando-nos de um jeito que não tem mais jeito de se livrar; graças adeus!
É um astro que entra em camponas vidas das pessoas, sem também conhecer as mesmas, marca-as com tamanhaprofundidade e com tanta emoção que estou seriamente pensando em arriscardenunciá-lo, para algum conselho profissional, pelo uso devido como terapeuta daalma através da música e expressão afetivo-emocional.
Se Freud ainda fosse vivo achoque dispensaria o divã e iria fazer as análises em um palco cheio deinstrumentos e cantos sob a regência deste pianista maestral. Se Einsteintivesse esta oportunidade de curti-lo jamais iria perder seu tempo embaixo deum pé de maçã, mas sim iria ver a gravidade dos toques, gestos e docilidadedeste inventor de cenários.
Se Cabral tivesse conhecimentodo mesmo antes de chegar a Santa Cruz da Cabrália, certamente teria deletadotal aventura de abuso contra os dos negros e então o Brasil seria descobertopor um outro João, o Bach que viria pra cá para ensinar e aprender a fazermúsica temperamental.
Creio que se Carlos Gomesestivesse esperado mais um pouquinho é bem provável que iria compor uma óperacom muita emoção, docilidade, alternâncias e impacto, retratando na mesma afigura de um moleque travesso que virou maestro.
Entendo que João CarlosMartins não é mero modelo para que outras pessoas com dificuldades venham a seguirou se superar, mas muito mais que isto.
O Maestro João, que talveztenha algo da encarnação de Bach (aquele outro João) é sim uma disciplina vivapara ser estudado, analisado, vivenciado, curtido, decorado, dançado, ouvido,sentido e praticado em todas as instâncias educacionais, organizacionais einstitucionais.
Quem não conhece João CarlosMartins sugiro imaginar 6.000 crianças encantando platéias em palcos deste país,ou mais de 30 orquestras construídas com a participação de menores proletáriosou imagine você receber uma carta de um jovem da Fundação Casa (ex-delinquente,como costumamos rotular) e ler: “TioMaestro a música venceu o crime”, graças a investimento joanino (relativo àJoão) que foi feito junto aosadolescentes daquela instituição.
Estas são as ‘coisas’ desteJoão Campeão, teimoso, são estes dados que têm a vibração e a afetividade de ummaestro que é muito mais que um maestro: é o exemplo de humildade comresponsividade, com criatividade e com dignidade.
Se a música venceu o crime,estas jornadas joaninas estão vencendo a descrença de quem não sonha acordado,ou para alguns que ainda acham impossível um país como o nosso ter 1.000orquestras com garotos da periferia e gerando cidadania.
Ei João, acorda! És referêncianacional e internacional e agora não tem jeito não...aguenta a gente João!
Aguente diante de quem te diz‘não’, ou aquelas ‘ótoridadis’ que sósabem se aproveitar de tua imagem e tentar angariar votos numa eleição.
Ei João! Acorda, mestrefulião, que o carnaval não acabou não e a cada apresentação tu aumenta o bandode loucos desfilando em tuas aulas com muita emoção.
Ei! João! Que bom que vocênasceu no Brasil, pois assim você pode virar samba-enrêdo nas avenidas denossas mentes, gerar orquestras em todo canto e assim criar o ‘encanto’ paraquem havia só desencanto.
Ei! João, continue mostrandocomo é possível criar o impossível pela teimosia de crer em si mesmo; serMestre sem esnobar os ‘títulos’ que são comuns aos incompetentes, mas simrevelar-se sempre com a humildade que não lhe impede a receber méritos da maisprofunda credibilidade.
Ei! João! Lá vem o Bexiga, talqual num desfile de tua escola de samba, lá estamos todos nós, um bando deloucos, a maioria ocultos e analfabetos em relação à música clássica, masletrados em tuas lições de amor e ousadia, de persistência e criatividade, deloucuras reais e saudáveis, tal qual um João Valentão, cantado pela pimentinhaElis, quando dizia:
“Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo
Do que sua terra, não há.”
E nesta terra de tantos ‘Joõesninguém’ você nos mostra nova visão através desta missão de gerar cidadãosatravés de teus sonhos, gestos, expressões, sorrisos, canções, toques eemoções.
Caro João valentão!
'Feliz da Vida, lá vem o Bexiga Exemplode comunidade...
A música venceu, O dom é a luz que vem deDeus..
A emoção, Vai-Vai esplandeceu...'
Este moleque travesso quechega a fazer uma escola de samba atravessar num palco se misturando comMozart; ou que atravessa uma avenida e dando lições de entusiasmo, criatividadee com simplicidade numa salada deliciosa entre negros, brancos, morenos,loiros, mulatos; enfim todos sob uma alma cativa que extrapola teus gestos eteu ser. Vai, Vai João!
João de muitos ‘Joões’, algunsque nem sabem ler não. Este João saracura que faz da música uma religiãoligando pessoas que jamais teriam tais ligações por outros meios, pois ele é oinventor de sonhos acordados e ousados.
João Carlos Martins é umamistura de muitos Joões sim!
Um João que era Bach alemão, outroque era João que era o símbolo dos dribles de um menino de pernas tortaschamado Garrincha de nossa Seleção e este de mãos tortas que dribla e inventa, encantaaté os acometidos por uma doença moderna chamada ‘surdez musical’.
Ei João! A Música Venceu eentão somos campeões mundiais graças ao teu DNA. Sim, isto é coisa de DNA, simDNA.
Não aquele DNA que é exploradonos programinhas de TV de terceiro nível, mas sim um DNA que está estampado emtua história, tua saga, tua ousadia ou tua loucura saudável.
DNA que oculta tuaDeterminação, Naturalidade e Alegria.
É este o teu DNA, Mestre JoãoCarlos Martins de mares que jamais terão fins, pois mesmo que não entenda,estás deixando legados significativos e marcantes em mentes e cidadãos que nemsabem de Mozart, Beethoven, Carlos Gomes, Tom Jobim e outros tantos tons.
Isto é loucura, caro João! Simloucura sim, pois somente um louco e genial pode gerar uma história como a tua.
Loucura sim como estácomprovado no documentário “Quis o destino”. Loucuras como a tua magistral invasãono Carnegie Hall pela primeira vez com uma orquestra brasileira dando showinesquecível.
João Carlos Martins que faz deJoão Sebastião Bach um alemão brasileiro em todos os cantos e canteiros. És simJoão, dono do Maracanazinho lotado degente simples para curtir aquelas meninas cegas num canto e dança de emoçãoprofunda.
João, em um pais que se dizespecializado em dribles, dribla a assertiva trágica de uma paralisia manual eme faz lembrar que este tem algo de um outro João. Um outro também estrangeiro,também menino travesso que um dia me pediu para imaginar, imaginar, imaginar.
Então João, que não és Lennon,mas tens a mesma travessura de quem ressuscita algo que não está morto, querenasce algo que não existe, que cria em crises criadas sei lá por quem e fazobras de arte em humanos outrora rejeitados.
Veja só João! João que foiparaParaisópolis, tomou estepaís como sua metrópole e por onde passa provoca delírios, aplausos, mudanças ehipnose.
João, veja como és outros Joõestambém, tal qual como aquele João Lennon que um dia nas Nova Iorques da vida afirmou:
“Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único. Tenho aesperança de que um dia você se juntará a nós e o mundo viverá como um só.”
João Carlos Martins que metraz a lembrança de meu próprio pai, também acometido de deficiência no braçodireito: amputado. Mas em momento algum o Senhor Antenor deixou de ser ousado,criativo, músico da gaita de boca, inventor de coisas e alegria contagiante.
Meu pai, Antenor acho quetinha as antenas ligadas em outras energias e suas notas eram de tenor vibranteque jamais se deixava abater; coisas que o Senhor João Carlos Martins conhecebem.
João, digno brasileiro queferve como uma brasa de emoção e dedicação ao próximo. Que merece ser inscriçãona bandeira deste país e assim passaria a ser então:
“JOÃO, ORDEM E PROGRESSO”
Assim, todos os demaisbrasileiros iriam pensar, sentir, vivenciar, vibrar, torcer, gerar, gritar Goooooooool Mais um Goooool brasileiro!Goool do Mestre Maestro JOÃO CARLOS MARTINS BRASILEIRO.
Sr. João Carlos Martins és oúnico culpado disto tudo.
E agora não adianta reclamar,pois quem mandou cativar, agora agüente, já que mesmo que não aceite és umprofessor, que professa aulas e lições das mais diversas, tal como naexpressão:
'Para ter sucesso é preciso a disciplinade um atleta
e a alma de um poeta'
Maestro João Carlos Martins,que já foi objeto de livros, filmes, documentários, entrevistas, reportagens, samba-enrêdos,novelas e tantos outros registros. Só está faltando uma coisa, creio.
Falta agora o Brasil, como umtodo, descobrir o Maestro JOÃO CARLOS MARTINS, desde as escolas até as feiraslivres, desde as rodoviárias até as vias aéreas, desde os joguinhos dasescolinhas de futebol até as posturas das autoridades constituídas deste país.
Falta só isto! E isto só, nãocabe em nada ao maestro, mas sim cabe a cada um de nós brasileiros que ocurtirem, ouvirem, assistirem e enfim vivenciarem este ídolo vivo e proativo deum país verde-amarelo.
Está faltando pouco, tenhapaciência caro Mestre Maestro.
Paz e ciência!
Caro Maestro Mestre,finalizando quero registrar que estava me sentindo algo estranho, por causa deminhas próprias palavras, achando como que excedendo limites ou ficando semrazões de tantos registros.
Mas enfim, me tranqüilizeilogo ao ler uma nota do jornal Le Figaro, de alguns anos atrás quando ao sereportar a vossa pessoa afirmou:
“Martins parece possuído, livre, hipnotizantede uma forma até demoníaca. Suas interpretações são fulgurantes.” Le Figaro
Caro Mestre Maestro JoãoCarlos Martins, ainda bem que não estou só nestas percepções a teu respeito ete respeito com o máximo de dignidade que mereces. Até mais!
“Vai, Vai Joãooooo e Goooooool !”
Parece até perseguição, poishá tempos vi o mesmo tanto na TV, como na internet e me dou de cara com estetal professor que professa realidades sonhadas.
João Carlos Martins é o nomedo professor.
A sala de aula era uma tela deTV do canal Cultura. Os alunos presentes e os invisíveis ausentes, creio que milhõessubmetidos todos a uma mesma magia, emoção e alguns até em plena transposiçãoda realidade para algo místico.
O Maestro João Carlos Martins,que por si só como musicista e sua história como pessoa são lições dignas de méritose deveriam ser objetos para estudantes desde as séries iniciais até nos cursosde doutos; pois além de músico clássico é popular, com perfil e mensagens parapassar, que podemos crer ser muito mais importante que muitos cálculos matemáticos,físicos ou químicos.
Ah! Tem também as teorias psicossociaisque merecem apreender com tal mestre paradigmas das relações mentais emetafísicas pois não é por mero acaso que ele age assim, ou por determinaçãopessoal ou porque nasceu em um berço esplêndido.
O mestre João Carlos Martinstem algo que somente algumas figuras humanas conseguem nos fazer aprender eapreender, e nos prende de forma subliminar.
Este teimoso humano tem algo,ou alguma similaridade com outras figuras que passaram pelo nosso século, comopor exemplo: Luiz Gonzaga, Cora Coralina, Carlos Gomes, Ariano Suassuna,Vinicius de Morais, Tom Jobim, Joãozinho Trinta, Chico Xavier, Ayrton Senna, ElisRegina; entre tantos outros.
Este torcedor da Portuguesa deDesportos tem como antecedentes elementos, itens e passagens que, sem mesmosaber, torna-se uma atleta exponencial de nossa cultura brasileira. Digno deser tratado como Excelência ou como nas histórias infantis um de nossos heróis,enfeitiçando-nos de um jeito que não tem mais jeito de se livrar; graças adeus!
É um astro que entra em camponas vidas das pessoas, sem também conhecer as mesmas, marca-as com tamanhaprofundidade e com tanta emoção que estou seriamente pensando em arriscardenunciá-lo, para algum conselho profissional, pelo uso devido como terapeuta daalma através da música e expressão afetivo-emocional.
Se Freud ainda fosse vivo achoque dispensaria o divã e iria fazer as análises em um palco cheio deinstrumentos e cantos sob a regência deste pianista maestral. Se Einsteintivesse esta oportunidade de curti-lo jamais iria perder seu tempo embaixo deum pé de maçã, mas sim iria ver a gravidade dos toques, gestos e docilidadedeste inventor de cenários.
Se Cabral tivesse conhecimentodo mesmo antes de chegar a Santa Cruz da Cabrália, certamente teria deletadotal aventura de abuso contra os dos negros e então o Brasil seria descobertopor um outro João, o Bach que viria pra cá para ensinar e aprender a fazermúsica temperamental.
Creio que se Carlos Gomesestivesse esperado mais um pouquinho é bem provável que iria compor uma óperacom muita emoção, docilidade, alternâncias e impacto, retratando na mesma afigura de um moleque travesso que virou maestro.
Entendo que João CarlosMartins não é mero modelo para que outras pessoas com dificuldades venham a seguirou se superar, mas muito mais que isto.
O Maestro João, que talveztenha algo da encarnação de Bach (aquele outro João) é sim uma disciplina vivapara ser estudado, analisado, vivenciado, curtido, decorado, dançado, ouvido,sentido e praticado em todas as instâncias educacionais, organizacionais einstitucionais.
Quem não conhece João CarlosMartins sugiro imaginar 6.000 crianças encantando platéias em palcos deste país,ou mais de 30 orquestras construídas com a participação de menores proletáriosou imagine você receber uma carta de um jovem da Fundação Casa (ex-delinquente,como costumamos rotular) e ler: “TioMaestro a música venceu o crime”, graças a investimento joanino (relativo àJoão) que foi feito junto aosadolescentes daquela instituição.
Estas são as ‘coisas’ desteJoão Campeão, teimoso, são estes dados que têm a vibração e a afetividade de ummaestro que é muito mais que um maestro: é o exemplo de humildade comresponsividade, com criatividade e com dignidade.
Se a música venceu o crime,estas jornadas joaninas estão vencendo a descrença de quem não sonha acordado,ou para alguns que ainda acham impossível um país como o nosso ter 1.000orquestras com garotos da periferia e gerando cidadania.
Ei João, acorda! És referêncianacional e internacional e agora não tem jeito não...aguenta a gente João!
Aguente diante de quem te diz‘não’, ou aquelas ‘ótoridadis’ que sósabem se aproveitar de tua imagem e tentar angariar votos numa eleição.
Ei João! Acorda, mestrefulião, que o carnaval não acabou não e a cada apresentação tu aumenta o bandode loucos desfilando em tuas aulas com muita emoção.
Ei! João! Que bom que vocênasceu no Brasil, pois assim você pode virar samba-enrêdo nas avenidas denossas mentes, gerar orquestras em todo canto e assim criar o ‘encanto’ paraquem havia só desencanto.
Ei! João, continue mostrandocomo é possível criar o impossível pela teimosia de crer em si mesmo; serMestre sem esnobar os ‘títulos’ que são comuns aos incompetentes, mas simrevelar-se sempre com a humildade que não lhe impede a receber méritos da maisprofunda credibilidade.
Ei! João! Lá vem o Bexiga, talqual num desfile de tua escola de samba, lá estamos todos nós, um bando deloucos, a maioria ocultos e analfabetos em relação à música clássica, masletrados em tuas lições de amor e ousadia, de persistência e criatividade, deloucuras reais e saudáveis, tal qual um João Valentão, cantado pela pimentinhaElis, quando dizia:
Porque não há sonho mais lindo
Do que sua terra, não há.”
E nesta terra de tantos ‘Joõesninguém’ você nos mostra nova visão através desta missão de gerar cidadãosatravés de teus sonhos, gestos, expressões, sorrisos, canções, toques eemoções.
Caro João valentão!
A música venceu, O dom é a luz que vem deDeus..
A emoção, Vai-Vai esplandeceu...'
Este moleque travesso quechega a fazer uma escola de samba atravessar num palco se misturando comMozart; ou que atravessa uma avenida e dando lições de entusiasmo, criatividadee com simplicidade numa salada deliciosa entre negros, brancos, morenos,loiros, mulatos; enfim todos sob uma alma cativa que extrapola teus gestos eteu ser. Vai, Vai João!
João de muitos ‘Joões’, algunsque nem sabem ler não. Este João saracura que faz da música uma religiãoligando pessoas que jamais teriam tais ligações por outros meios, pois ele é oinventor de sonhos acordados e ousados.
João Carlos Martins é umamistura de muitos Joões sim!
Um João que era Bach alemão, outroque era João que era o símbolo dos dribles de um menino de pernas tortaschamado Garrincha de nossa Seleção e este de mãos tortas que dribla e inventa, encantaaté os acometidos por uma doença moderna chamada ‘surdez musical’.
Ei João! A Música Venceu eentão somos campeões mundiais graças ao teu DNA. Sim, isto é coisa de DNA, simDNA.
Não aquele DNA que é exploradonos programinhas de TV de terceiro nível, mas sim um DNA que está estampado emtua história, tua saga, tua ousadia ou tua loucura saudável.
DNA que oculta tuaDeterminação, Naturalidade e Alegria.
É este o teu DNA, Mestre JoãoCarlos Martins de mares que jamais terão fins, pois mesmo que não entenda,estás deixando legados significativos e marcantes em mentes e cidadãos que nemsabem de Mozart, Beethoven, Carlos Gomes, Tom Jobim e outros tantos tons.
Isto é loucura, caro João! Simloucura sim, pois somente um louco e genial pode gerar uma história como a tua.
Loucura sim como estácomprovado no documentário “Quis o destino”. Loucuras como a tua magistral invasãono Carnegie Hall pela primeira vez com uma orquestra brasileira dando showinesquecível.
João Carlos Martins que faz deJoão Sebastião Bach um alemão brasileiro em todos os cantos e canteiros. És simJoão, dono do Maracanazinho lotado degente simples para curtir aquelas meninas cegas num canto e dança de emoçãoprofunda.
João, em um pais que se dizespecializado em dribles, dribla a assertiva trágica de uma paralisia manual eme faz lembrar que este tem algo de um outro João. Um outro também estrangeiro,também menino travesso que um dia me pediu para imaginar, imaginar, imaginar.
Então João, que não és Lennon,mas tens a mesma travessura de quem ressuscita algo que não está morto, querenasce algo que não existe, que cria em crises criadas sei lá por quem e fazobras de arte em humanos outrora rejeitados.
Veja só João! João que foiparaParaisópolis, tomou estepaís como sua metrópole e por onde passa provoca delírios, aplausos, mudanças ehipnose.
João, veja como és outros Joõestambém, tal qual como aquele João Lennon que um dia nas Nova Iorques da vida afirmou:
“Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único. Tenho aesperança de que um dia você se juntará a nós e o mundo viverá como um só.”
João Carlos Martins que metraz a lembrança de meu próprio pai, também acometido de deficiência no braçodireito: amputado. Mas em momento algum o Senhor Antenor deixou de ser ousado,criativo, músico da gaita de boca, inventor de coisas e alegria contagiante.
Meu pai, Antenor acho quetinha as antenas ligadas em outras energias e suas notas eram de tenor vibranteque jamais se deixava abater; coisas que o Senhor João Carlos Martins conhecebem.
João, digno brasileiro queferve como uma brasa de emoção e dedicação ao próximo. Que merece ser inscriçãona bandeira deste país e assim passaria a ser então:
“JOÃO, ORDEM E PROGRESSO”
Assim, todos os demaisbrasileiros iriam pensar, sentir, vivenciar, vibrar, torcer, gerar, gritar Goooooooool Mais um Goooool brasileiro!Goool do Mestre Maestro JOÃO CARLOS MARTINS BRASILEIRO.
E agora não adianta reclamar,pois quem mandou cativar, agora agüente, já que mesmo que não aceite és umprofessor, que professa aulas e lições das mais diversas, tal como naexpressão:
'Para ter sucesso é preciso a disciplinade um atleta
e a alma de um poeta'
Maestro João Carlos Martins,que já foi objeto de livros, filmes, documentários, entrevistas, reportagens, samba-enrêdos,novelas e tantos outros registros. Só está faltando uma coisa, creio.
Falta agora o Brasil, como umtodo, descobrir o Maestro JOÃO CARLOS MARTINS, desde as escolas até as feiraslivres, desde as rodoviárias até as vias aéreas, desde os joguinhos dasescolinhas de futebol até as posturas das autoridades constituídas deste país.
Falta só isto! E isto só, nãocabe em nada ao maestro, mas sim cabe a cada um de nós brasileiros que ocurtirem, ouvirem, assistirem e enfim vivenciarem este ídolo vivo e proativo deum país verde-amarelo.
Está faltando pouco, tenhapaciência caro Mestre Maestro.
Paz e ciência!
Caro Maestro Mestre,finalizando quero registrar que estava me sentindo algo estranho, por causa deminhas próprias palavras, achando como que excedendo limites ou ficando semrazões de tantos registros.
Mas enfim, me tranqüilizeilogo ao ler uma nota do jornal Le Figaro, de alguns anos atrás quando ao sereportar a vossa pessoa afirmou:
“Martins parece possuído, livre, hipnotizantede uma forma até demoníaca. Suas interpretações são fulgurantes.” Le Figaro
Caro Mestre Maestro JoãoCarlos Martins, ainda bem que não estou só nestas percepções a teu respeito ete respeito com o máximo de dignidade que mereces. Até mais!
“Vai, Vai Joãooooo e Goooooool !”
Rodrigo Augusto Prando[1]
(São Paulo - SP, 29 de setembro de 2019)
[1] Possui Graduação em Ciências Sociais (1999), Mestrado em Sociologia (2003) e Doutorado em Sociologia (2009) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente, é Professor Assistente Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas. Na Graduação ministra as disciplinas Sociologia Geral e Sociologia das Organizações. Na pós-graduação lecionou a disciplina Sociologia do Terceiro Setor. Administrativamente, foi Coordenador Didático da área de Sociologia e Humanidades e, posteriormente, Professor Responsável pela Linha de Formação "Humana e Social", do CCSA - UPM (2008-2013) e foi Professor Responsável pelo curso "Lato Sensu" de Gestão em Organizações do Terceiro Setor (2005-08). Professor da UNIFAE lecionando Sociologia para o curso de Publicidade e Propaganda e Professor do Mestrado em Desenvolvimento Sustentável e Qualidade de Vida. Na tese de doutorado versou acerca da trajetória intelectual e política de Fernando Henrique Cardoso e fez análise de conteúdo dos discursos presidenciais (1995-98). Na UPM, realizou pesquisas no Núcleo de Estudos do Terceiro Setor (NETS), no Núcleo de Empreendedorismo e Desenvolvimento Empresarial (NEDE) e no Núcleo de Pesquisa em Qualidade de Vida (NPQV) atualmente, é pesquisador da Agência Mackenzie Sustentabilidade. Desenvolve pesquisas e orienta nas áreas de empreendedorismo, empreendedorismo social, gestão em Organizações do Terceiro Setor, Responsabilidade Social Empresarial, valores, história e cultura brasileira, Pensamento Social Brasileiro e Intelectuais e poder político.
Um povo não merece ser governado por um mandatário condenado. Ontem, Cristina Kirchner foi condenada pela Justiça. Como os argentinos têm azar!
Como dar o exemplo? Os pais ensinam que é feio roubar, que isso não compensa. Os argentinos não têm mais este argumento. Aqui no Brasil, os juízes têm plena consciência: o crime não compensa. Por isto, lamento muito: que pena dos argentinos.
Governantes amigos de ditadores sul-americanos. Ditadores sul-americanos donos de uma estética caudilha terceiro-mundista. Foro de São Paulo, Grupo de Puebla, Unasul, Bolivarianismo etc. Esse pacote de besteiras faz parte do glossário do Mal e compõe essa estética latino-americana terceiro-mundista. Todos esses mandatários parecem oferecer um ideal de sociedade tão utópico que não conseguem entregar nunca. Acabam por “quebrar alguns ovos para fazer uma omelete”. Prometem uma igualdade que, se existe, se materializa como escassez para todos. A Argentina padece na mão dessa gente. Que azar!
O futebol é o ópio do povo. É Copa do Mundo, a seleção está classificada para as quartas de final, portanto, tudo é válido; é nessas horas que medidas impopulares passam no Congresso, A nossa rivalidade é só em campo. Por serem tratados assim, tenho pena deles, os argentinos.
Mesmo após a sentença, a permanência no governo é praticamente garantida. O crime, quando não é punido se banaliza, aí a cara de pau é institucionalizada, e até a Presidência abre as portas para quem deveria estar na cadeia. Governados por quem deveria estar na cadeia. E, pela idade avançada, isso não vai acontecer. Ah, os “hermanos”, quanto azar. Graças a Deus, sou brasileiro.
Perseguição política é a narrativa padrão para “vender” a condenação como algo ilegal. A turma da vice também fala em “máfia judicial” e “Estado paralelo”. A Argentina não é para amadores.
As urnas eletrônicas provam que no Brasil, sim, existe democracia. A apuração sempre ocorre magicamente, e os resultados são divulgados como, mágica, no dia. Eleições, aqui, são tão confiáveis e ágeis, que esse dia é conhecido como: “A festa da democracia”.
Realmente, nós temos muita sorte.
O título é falso, pois vejo os jogos de futebol. Tirando as denúncias de interferência nos resultados, as partidas não são realizadas pela empresa de comunicação. Então, não vejo e não sinto falta de qualquer produto da emissora.
Há alguns anos, troquei qualquer programa da televisão aberta por “produções” do YouTube. Parece que apenas sigo uma tendência. Pelo que tudo indica, a TV aberta está em processo avançado de extinção. Sim, os altos custos com estúdio, câmeras, apresentadores, repórteres etc foram superados por alguém que liga a filmadora do celular e dá sua opinião e exibe “prints” e vídeos com uma liberdade que William Bonner desconhece.
Não à toa, a chamada velha mídia, numa tabelinha com o Superior Tribunal Federal (STF), apelidou quase tudo o que é produzido na internet de “fake news”. Os termos em inglês nunca foram usados para designar “notícia falsa”, como é a real tradução, mas para estigmatizar tudo o que não pode ser dito ou o que, simplesmente, não se quer ouvir.
A velha mídia sempre mentiu sem concorrência e sem ser importunada. O monopólio da mentira já produziu pérolas: Boimate e o caso Escola Base, por exemplo. Ninguém quer consumir inverdades. Sem subestimar o consumidor de notícias, cada um possui o discernimento e a obrigação de descartar o que é exibido com a finalidade de desinformar ou, deliberadamente, mentir.
Como cantava Raul Seixas: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”. Aproveitando-se de que o brasileiro só lê as manchetes, é aí que o jornalista aproveita para distorcer os fatos. Com um jogo de palavras, que só quem domina o idioma consegue, o escritor engana na manchete e informa a verdade somente nas colunas. Esta artimanha é colocada em prática sem explicitar a mentira. Atualmente, a tática é adotada sem qualquer cuidado, ou seja, mentem “na cara dura”. A combinação “mentira” e “veículo de credibilidade” geram a desinformação. São as redações transformadas em diretórios acadêmicos, e os jornalistas, militantes.
Cresci assistindo às programações da Globo, acreditando que o Jornal Nacional apresentava a verdade. Passei décadas sendo enganado e me contentando com o “Boa noite” do Cid Moreira e demais apresentadores. Hoje, não sinto dó quando gritam: “Globolixo”.
Em 2014, os rolezinhos “chegaram chegando”. O que parecia um bando de moleques a fim de dar uns beijos, ficar muito louco e zoar virou palco para especialistas de gabinete, sociólogos de boteco e “flanelinhas de minorias”. Com teses estapafúrdias, querendo dar uma roupagem de discriminação social à reação ao fenômeno, esses picaretas encontraram uma oportunidade de encaixar explicações pré-fabricadas.
Eu já saí com uma turma com potencial para transformar o Shopping Center Norte numa área que não seria considerada de lazer; mas o freio social amenizou o ímpeto infanto-juvenil da turminha que circulava livre dos olhos dos pais. O máximo de rebeldia era jogar fliperama. Fora isso, o roteiro era: ‘McDonald’s’, cinema e sorvete. Reconheço que o “script” era quadradinho, quase pequeno-burguês, mas era isso que era entendido por passear no shopping.
Apesar de pobre, nenhum teórico classificou o “rolê” como discriminação social, ocupação de templo de consumo, ou falta de ambiente de lazer na periferia. Meu passeio não mereceu o “status” de movimento social, talvez por falta de barulho, algum objeto quebrado ou alguém ferido. Provavelmente, minha adolescência foi na época errada ou nada era problematizado e um rolê era apenas... um rolê.
Os jornalistas, especialistas, antropólogos, sociólogos ou pesquisadores devem guardar essas rebuscadas construções semânticas que, como coringas, justificam banalidades. Expressão de conquista de espaço, modelo de inclusão social, nova classe média, demonstração de desigualdade e elitismo da sociedade brasileira, triunfo de um capitalismo deslumbrado, manifestações de uma cidadania insurgente, não adequação do local para essas reuniões e blá, blá, blá.
Raizes na luta pelo espaço urbano, diz pesquisador. Embora essa frase não tenha quase nenhum sentido, e o pesquisador deva ser um teórico pirado ou um pensador chapado, eu sou fã desse cara. Se essa figura não existisse, também não teria parido essa ideia criativa. Sensacional.
As propostas de mudanças não ficaram de fora. Segundo os “especialistas” de sempre, a sociedade tem que se adaptar a fenômenos adolescentes. Mas é fácil alterar as teses de gabinete: basta ameaçar montar uma feira livre, promover um pancadão ou submeter a porta da casa desses teóricos a esses “fenômenos sociais”.
Recentemente, Chicago, EUA, experimentou uma versão mais violenta de rolezinho. Dessa vez, os intelectuais não conseguiram romantizar o evento, portanto não “venderam” suas teorias e se calaram.
“Os pobres colhem o que os intelectuais semeiam”
(Thomas Sowell)
No país da roubalheira
Vendo assim tanta besteira
Nada de bom pro seu lado
Sentindo-se tão enojado
Rasgou o “Tito” de inleitor
Se lasque o “Gunvernador”
Presidente do senado
Se arrombe os deputado
Pois neles num voto mais
Ô Raça de satanais
Disgraçado inganador
Prefeito e Veriador
Uma corja de mardito
Neles eu num mais cridito
São do povo enrolador
Num respeita professor
Nem trabaiador braçal
Uns monte de animal
Roubano minha cidade
A ninguém faz caridade
Essa cambada de ladrão
A mim num ingana não
Cum gesto de farsidade
As muié desses mardito
São quengas bem disfarçada
Trambiquera mazelada
Que tentam levar no grito
Lamento do povo aflito
Que pede ajuda aos pranto
È festa pra todo canto
Interior e capitá
Festança pra se daná
Gastando a crença do povo
Que vive a dançar de novo
Nas terras do meu lugá
Das veis que eu já votei
Não tive bom resultado
Eu cri num cabra safado
Com ele eu me enganei
Nada com este ganhei
A não ser decepção
Comprou até o meu chão
Pagando u’a micharia
Por eu tá nas agonia
Duns trocados precisando
Ele foi logo pagando
Menos do que merecia
Montou farmácia e mercado
Ao genro deu de presente
A filha era gerente
De um comercio encostado
Encheu fazenda de gado
O povo quieto olhando
Ninguém tava investigando
A roubalheira tramada
Sua família montada
Na grana que escorria
Quem fiscaliza não via
Fingia não era nada
Os conchavos e propinas
No meio da madrugada
As malas tão recheada
Para dar aos seus sovinas
Corja de imundos suínas
Rapador de coisa alheia
A coisa tava tão feia
Acho que não consertou
Essa quadrilha desviou
Nossa cidade ficando
O progresso atrasando
Pagou caro quem votou
Fazendas e mais fazendas
No Estado da Bahia
Era o que mais se via
Ninguém fazia contendas
Parecia inté parlendas
E o povo nem se mexia
Amargava a agonia
De ver ladrão se armando
E a todos ali comandando
Por muito tempo passado
Mas o troco será dado
Estamos nos preparando
Na terra de cego amigo
Quem tem um olho é Rei
Jamais me enganarei
E pra não correr perigo
Aprendi com o castigo
Não me meto com canalha
Se minha mente não falha
Nunca mais vou me meter
E tão pouco eleger
Bandido e nem trambiqueiro
Nem por rio de dinheiro
Lhe butarei no puder
Saúde e educação
Isso é coisa do passado
Hospital já foi fechado
La vem suplementação
Nome esquisito do cão
Para os buracos tapar
Legisladores a esperar
Pelo seu voto vendido
Que não é mais escondido
A falta de lealdade
E assim a tal cidade
É governada por bandido
Analfabetos no poder
Querendo enganar o povo
La vem pedindo de novo
Achando-se merecer
Ele quer enriquecer
As custas de quem é do bem
Quando chegar o ano que vem
La vem cheio de promessa
E a pancada é sempre essa
Dizendo que vai mudar
As coisas vão melhorar
Só que não podem ter pressa
Mudar de partido é ligeiro
O jogo do jogo é assim
Isso nunca terá fim
È o poder do dinheiro
Que ajuda o desordeiro
Brincar com o inleitor
O cabra confiador
Fica decepcionado
Sentindo-se tão enganado
Naquele que confiava
E neste depositava
Seu voto encabrestado
Gunvernador veio cá
Falou palavra bonita
E o povo todo cridita
Pois veio pra iscutá
O homem então discursá
Com jeito inteligente
Desses que mentem pra gente
Todo dia e toda hora
E o povo inda implora
Melhorar a comunidade
Conversa de farsidade
Tempo leva sem demora
É uma vela pra Deus
E uma reza pro cão
É um covil de ladrão
Reunião de ateus
Que roubam os sonhos meus
Afogam as esperança
E quem lhes dá confiança
Morre sem vê resultado
Tudo que tem é roubado
Com o apoio do inleitor
Que torna-se apoiador
Do politico safado
Eu já tô aresolvido
Nunca mais hei de votar
Mas sempre vou opinar
É meu direito adquirido
Por tanto ano sufrido
Em que fui um votador
Mas deixo para o senhor
Entendedor desta vida
A luta é merecida
De quem luta pra mudar
Então saiba manejar
Boa escolha na lida
Nunca venda o seu voto
Não traia sua confiança
Mantenha a esperança
Sem ser do besta devoto
Esse conselho lhe boto
Pense assim na sua gente
Seja mais inteligente
Na hora da votação
A arma tá na sua mão
Então vote consciente
E não seja negligente
Ajude sua nação
Dei o meu ponto de vista
Você segue se quiser
Faça a escolha que fizer
Seja honesto e calculista
Siga sua própria pista
Não se venda nem se traia
Em armadilha não caia
Lute por sua cidade
Pois a tal felicidade
Inda existe sim senhor
A ela então dê mais valor
Preserve sua honestidade
São esses versos rimados
De boa modalidade
Em 12 assim de verdade
Compostos bem humorados
E com carinho preparados
Numa linguagem matuta
Porém correta é a luta
De quem sonha e espera
Que mude essa esfera
Com responsabilidade
E que tenhamos na verdade
Mudança de nova era
É mera coincidência
Os fatos aqui descritos
Em meio a tantos gritos
Não perco a paciência
Se você tem a ciência
De ver em fato narrado
Nesse meu cordel traçado
Não mexo com sua cidade
Pois tenho maturidade
Não vou mudar seu pensar
Então queira respeitar
Minha criatividade
Minha estrofe em 12 versos
Deu-me a inspiração
Em linguagem bem matuta
Faço minha expressão
Mas isso é um recado
Se estiveres preparado
Votarás certo, ou não.
Sou um poeta brasileiro
Sou um cidadão do mundo
E conheço bem a fundo
Este meu país inteiro
O nosso povo ordeiro
Carrega dignidade
Espalha felicidade
Em verso prosa e canção
Na cidade ou no sertão
A luta é tão guerreira
Minha nação brasileira
Que me enriquece de emoção
Sou um poeta paulistano
Na Bahia fui criado
Amando esse Estado
Já me sinto um bom baiano
E ando fazendo plano
Do meu livro publicar
No Brasil irei lançar
Relatando em poesia
Fonte da minha alegria
No verso do canto falado
Um paulistano abaianado
Um versador em cantoria
Cada um tem sua arte
A sua escolha de lida
Rebusco nessa medida
Lutar com dignidade
Ouvindo assim com vontade
Somando a paz escolhida
Somos parte desse povo
Imitando o bom viver
Luta sonho e pensamento
Valorizar cada momento
Aprimorando o meu saber
Com Gonzagão aprendi
As coisas deste sertão
Com Jessier nosso irmão
Muita coisa dele ouvi
Foi então que escolhi
Traçar a vida em verso
Vagando nesse universo
Na saga da poesia
Que me enche de alegria
Nesse meu torrão amado
Sou um abrasileirado
Neste mundo de leotria
-Ranjan Lekhy
Santo Antônio de Jesus, Bahia, Brasil
Segunda-feira, 25 de agosto de 2025
Por Ranjan & Prof. Nubia Modolon
Homenagem à Professora no Céu
A Dra. Kamala Tharu encostou a testa na janela oval do voo 129 da Qatar Airways, sua respiração embaçava o policarbonato transparente. Abaixo, nuvens que pareciam tufos de algodão se dispersavam lentamente. Além desse vasto horizonte, estava Milão — uma cidade de moda, ciência e novos começos. Ela estava indo para lá para estudar Medicina, especializar-se em Medicina Genômica, para aprender técnicas avançadas como Edição de Bases (Adenina e Citosina) e CRISPR-Cas9. Era um fato inacreditável que Kamala, uma adolescente de uma família marcada pela pobreza crônica e superstição, estava agora a caminho de se tornar uma especialista em medicina genômica.
O sinal do cinto de segurança acendeu. Ela colocou seu jaleco branco no colo — não por estar frio, mas por hábito. Aquele jaleco carregava o peso silencioso de todo o seu sofrimento passado, rebeldia, ciência e fé. Era um símbolo: o véu branco de um fantasma assustador, o véu branco da morte e o avental vivificante da ciência.
Ela fechou os olhos.
O zumbido do motor da aeronave e a forte turbulência se transformaram no som e nos solavancos de uma carroça de bois da vila de Hekuli, transportando-a de volta ao momento em que estava semi-inconsciente, sendo levada ao hospital em Tulsipur. Ela se lembrava do calor e da poeira do Terai. A memória de buscar lenha na selva e, então, a árvore de Jamun — carregada de frutos, mas silenciosa e ameaçadora, um símbolo de medo. Lembranças de desmaiar com febre alta ali, e a dor implacável e excruciante que nenhum mantra de xamã conseguia aliviar. Os rituais profundos do Guruba, os sacrifícios encharcados de sangue, mas a doença de Kamala tinha um nome — Anemia Falciforme, um fantasma no gene que outrora foi protetor, mas agora se tornara predador, atormentando toda a comunidade.
O avião, cortando as nuvens, agora sobrevoava o Mar Mediterrâneo, na Europa. Luzes distantes começaram a aparecer. Não havia medo no coração de Kamala — apenas uma profunda confiança. E essa confiança foi dada por ninguém menos que sua amada professora, eternamente memorável, cujas palavras gentis eram como uma oração matinal: Gurumaa — Guru, o doador de conhecimento, e Maa, a força materna. Alta, clara, destemida, cheia de amor e dever, uma encarnação de Saraswati: Srta. Meena Rajaure. Kamala inclinou a cabeça, colocando a mão levemente no peito — não um mantra, apenas a lembrança de virtudes infinitas. Sua homenagem silenciosa à sua Gurumaa espalhou-se dentro da cabine pressurizada do avião como o perfume de madeira de agar.
Kamala não era mais aquela garotinha que fazia perguntas; ela era agora uma ponte — entre superstição e ciência, entre tradição e tecnologia, entre o passado e o futuro.
O voo seguia em direção ao futuro. Mas, para conhecer a história completa da Dra. Kamala, é preciso voltar treze anos, para uma vila Tharu comum chamada Hekuli, no vale de Dang.
Capítulo 1: A Adolescente Talentosa
Vale de Dang, no oeste do Nepal, o lendário reino do Rei Tharu Dangisharan. A vila de Hekuli, aninhada entre colinas arborizadas e um rio, envolta em névoa. Lá vivia uma adolescente de quinze anos chamada Kamala. Sua inteligência era afiada como uma faca e sua consciência clara como o sol nascendo no céu. Sua curiosidade era como um rio — incansável, fluindo rápido e profundo, sempre buscando saber até onde suas profundezas iam. Naquela escola da vila, com paredes quebradas e telhado de zinco, Kamala era nada menos que uma benção. Ela resolvia equações algébricas com facilidade, desvendava instantaneamente axiomas geométricos com lógica, memorizava as propriedades de todos os elementos da tabela periódica como um poema e fazia perguntas que deixavam os professores pensativos.
Sua professora de ciências, Srta. Meena Rajaure, tinha quarenta anos e era cheia de zelo pelo conhecimento. Ela havia ensinado centenas de alunos, mas Kamala era diferente. Durante uma aula sobre fotossíntese, Kamala perguntou: “Se a clorofila é verde, por que as folhas de ácer (Maple) ficam vermelhas no outono no Canadá?” A Srta. Meena Rijaure ficou momentaneamente atônita, depois riu e prometeu responder no dia seguinte. Na manhã seguinte, Kamala trouxe diagramas coloridos de antocianinas, explicando por que as folhas de ácer (Maple) mudam de cor no outono. Sua explicação foi tão clara que até o diretor, que ouvia, aplaudiu.
“No futuro,” previu a Srta. Meena Rajaure entusiasticamente aos colegas, “Kamala certamente usará jaleco branco e mudará o mundo.”
Mas Hekuli era um mundo de pobreza crônica, sons misteriosos e sombras escuras. Os pais de Kamala, o pai Mangala Tharu e a mãe Durgi, eram gentis, mas presos à superstição. Durgi era analfabeta. Mangala estudara até a oitava série na mesma vila. Como a maioria dos Tharus, eles acreditavam em divindades da floresta, espíritos ancestrais, fantasmas, bruxas e feiticeiros.
Na fronteira da vila, havia uma grande árvore de Jamun, carregada de frutos na estação, mas as pessoas tinham medo de colhê-los. As idosas da vila diziam que uma Chudail (bruxa) vivia naquela árvore e proibiam seus netos de irem lá após o meio-dia.
Kamala via as árvores apenas como árvores, considerando as crenças em fantasmas e espíritos como mera superstição. Seu coração batia pela ciência: hipótese, experimento, fatos e conclusões lógicas. Mas a vila era como o Satyug (Era de Ouro), firme em seus costumes, como diz um velho ditado em língua Tharu: ‘Hardi na chhode gardi sukathi na chhore gandh’ (O açafrão não abandona seu pó amarelado, o peixe seco não abandona seu cheiro) — significando ser firme em sua posição, não abandonar seu ritmo.
Capítulo 2: O Ataque Súbito
Era o mês de Asaar (junho-julho). Havia algumas nuvens no céu azul, flutuando de nordeste a sudoeste. Ainda não havia sinal de chuvas, apesar da estação de monções. Faltavam cerca de três horas para o pôr do sol; a vila de Hekuli e seus arredores estavam pintados de dourado. Naquele dia, um sábado de feriado, Kamala foi com três amigas à selva para buscar lenha. Ao voltar com a carga de madeira, suas sandálias quebradas faziam um som de batida, e suas pernas estavam empoeiradas. O calor a deixou com sede e fome. Ao ver a árvore de Jamun um pouco fora do caminho, ela disse de repente: “Vamos, pessoal, vamos sentar sobre a árvore de Jamun, está muito quente.”
Os avisos das idosas ecoaram em sua mente, mas ela os ignorou. Perto dali, alguns meninos Gaivār (pastores) pastoreavam búfalos e vacas, rindo e brincando. Encorajando suas amigas, ela disse: “Os Gaivārs estão bem aqui, o que há para temer?” As três colocaram suas cargas sob a árvore de Jamun para descansar. A árvore proporcionava uma sombra fresca, aliviando o calor. Os galhos estavam carregados de cachos de frutos Jamun, mas ninguém os comia. Onde estavam todos os pássaros? As três começaram a colher Jamuns com um graveto leve. Em cinco minutos, suas cestas estavam cheias de Jamuns. Movidas pela fome e sede, começaram a comê-los; eram muito doces e suculentos. Pensando que seus pais ficariam muito felizes, ela começou a adicionar o graveto à carga de madeira.
De repente, uma dor aguda começou no peito de Kamala, como se alguém estivesse apertando seu coração por dentro. Sua respiração ficou presa, seus olhos ficaram amarelados, e sua visão embaçou. Suas pernas e braços ficaram muito fracos, ela não conseguia se controlar, e todos os Jamuns de sua cesta caíram e se espalharam como bolinhas de gude. Seu corpo caiu no chão com um baque, e a escuridão envolveu seus olhos.
Uma garota gritou, quebrando a paz da tarde: “Kamala caiu! Kamala caiu!” Os meninos Gaivārs vieram correndo. Todos eram da mesma vila. “Temos que contar para a mãe de Kamala,” disse um menino, não mais velho que dez anos, e correu em direção à vila. Ao chegar perto, começou a gritar: “Kamala caiu perto da árvore de Jamun!”
A mãe de Kamala, Durgi, veio correndo sem fôlego; em seu pânico, seu sari ficou preso e rasgou em uma cerca de bambu, seu rosto estava pálido de medo. Uma pequena multidão se formou. Kamala estava inconsciente, seus lábios secos, seus membros inchados, sua pele amarelada como icterícia. Seu peito subia e descia levemente, cada respiração uma luta. Durgi se ajoelhou, segurando a mão de sua filha, e começou a orar a Deus silenciosamente. Alguém trouxe uma lôtā (copo com bico de bronze) de água e deu um pouco para Kamala beber. Os jovens fizeram uma maca amarrando um pano firmemente a uma vara de bambu forte nas duas extremidades, colocaram Kamala nela, segurando sua cabeça e pernas, e a carregaram para a vila, trocando os ombros que sustentavam o peso.
Eles colocaram um Bhottiya (colchão fino) sobre uma prancha de madeira Sakhuwa no pátio. Colocando um travesseiro ali, deitaram Kamala com cuidado. Toda a vila se reuniu. Uma Dadi (avó) magra e curvada chegou, caminhando com uma bengala, batendo-a no chão. Um menino colocou um banquinho perto e disse: “Dadi, por favor, sente-se neste banquinho.”
Durgi sentou-se em outro banquinho e começou a abanar com um leque de bambu. Vendo isso, a Dadi disse: “Por que você está abanando com um leque de bambu? Seu ar é quente, você não sabe? Pegue um leque de folha de palmeira.” “Não temos um leque de folha de palmeira!” disse Durgi. “Tia, temos um leque de folha de palmeira em casa,” disse uma criança e correu para pegá-lo.
“Veja, o sangue da nossa criança foi sugado,” disse a Dadi, sentindo o pulso de Kamala. “Parece que a Chudail bebeu todo o sangue da nossa neta.” A velha Dadi disse: “Ó noiva, pega um pouco de óleo de mostarda, aquece com alho amassado, cominho preto e assafétida e traz isso.”
Um menino disse: “Sim, vampiros também fogem do cheiro de alho, eu vi isso em filmes.”
Durgi correu para a cozinha, preparou o óleo quente e começou a aplicá-lo nas pernas de Kamala.
“Isso é definitivamente obra de uma Chudail!” disse a velha Dadi, ainda segurando o pulso de Kamala.
“Você não sabia que há uma Chudail naquela árvore? Por que deixou as crianças irem lá?” continuou a Dadi, “Não devíamos ter provocado essa Chudail!” Uma onda de medo percorreu a multidão. O coração de Durgi começou a bater forte. Ela ficou atônita. Enquanto isso, Mangala havia retornado para casa.
A Dadi disse: “Ei, Mangala, por que você está apenas olhando? Vá buscar pulseiras vermelhas, um bastão vermelho, um tikka vermelho, cachos vermelhos (de flores), fita vermelha, um véu vermelho (chunri) e faça uma oferenda para essa árvore. E ofereça um par de galos vermelhos, peça perdão até amanhã à noite.”
Em uma hora, todos os materiais foram reunidos, e dez a quinze meninos foram enviados para fazer a oferenda à árvore de Jamun. Alguns carregavam tochas, outros lanternas, alguns bastões, outros lanças. Lá, na base da árvore, Mangala espalhou água no chão, ofereceu arroz inteiro, pó vermelho (abir), folha de betel, noz de betel, tulsi e flores de Arahul. Ele acendeu um fogo e ofereceu fumaça de incenso. Após oferecer todos os materiais trazidos, ele pediu a ajuda de um menino para sacrificar o par de galos vermelhos, pois o próprio Mangala era Vaisnav, comprometido com a não-violência. Todos os homens pediram perdão por Kamala até a noite seguinte e voltaram sem olhar para trás.
A árvore de Jamun ficou perplexa, observando-os partir. Seus galhos pareciam apontar como o dedo de um juiz, como se perguntassem: “Por quê?”. Toda a atmosfera parecia estar prendendo a respiração. Até os próprios espíritos pareciam confusos.
Capítulo 3: Os Cantos do Exorcista Xamã
A escuridão envolveu a vila de Hekuli; o medo permeava cada beco, cada casa. Durgi sentou-se na varanda, esperando que sua filha melhorasse. À uma da madrugada, Kamala recuperou a consciência. Durgi ficou exultante. Ela correu para acordar Mangala: “Ei, Munsha (marido), levante-se, nossa filha voltou a si. Preciso fazer sopa. Ela deve estar com fome.”
Quando Durgi trouxe a sopa, Mangala sentou-se ao lado de sua filha. Durgi pegou sua filha no colo e começou a alimentá-la com sopa lentamente. Em quarenta e cinco minutos, Kamala só conseguiu tomar metade da sopa. Kamala disse: “Mamãe, não consigo tomar mais, estou cansada, minhas pernas doem.” Durgi deitou Kamala e começou a massagear suas pernas.
No dia seguinte, a dor no peito de Kamala diminuiu, mas seus membros estavam inchados e doloridos. Ela caiu novamente ao ir ao banheiro. Todo o seu corpo estava sem sangue. As pessoas disseram que precisavam chamar um Dhami (xamã).
Kalaru Guruba era um exorcista xamã muito famoso e poderoso em toda a região. Um homem foi enviado para chamá-lo. Kalaru Guruba era muito influente e tinha grandes exigências na sociedade. Finalmente, ele chegou por volta da meia-noite com dois discípulos. Seu rosto estava manchado de cinzas, ele batia um Dhamphu (tambor) feito de pele de cabra preta, pendurado em seu pescoço, dançando com penas de pavão, espalhando a fumaça de incenso por todos os lados e entoando mantras em uma linguagem alta e incompreensível enquanto entrava no pátio.
A casa da família de Kamala era tradicional, sustentada por pilares de madeira dura de Sakhu e as paredes eram feitas de bambu, rebocadas com esterco de vaca e lama, e o telhado era de telhas. Ela estava deitada em um cama de madeira. Uma lamparina de querosene estava acesa perto dela. Alguns vizinhos se levantaram e vieram.
Kalaru Guruba aspergiu água de açafrão no corpo de Kamala e começou a entoar mantras de deusas ferozes. A deusa feroz era tanto protetora quanto colérica. “A deusa está zangada,” declarou Kalaru, o xamã, e perguntou a Mangala: “Que voto você fez à deusa feroz que não cumpriu completamente?” Mangala ficou surpreso com a pergunta e olhou para sua mãe. Então Durgi, confusa, disse: “Sim, quando Kamala era pequena e teve febre, fizemos um voto à deusa feroz, de oferecer um par de galos, e nós o oferecemos.”
Kalaru Guruba fechou os olhos e começou a entoar mantras. Após dois minutos, quando os abriu, ambos os olhos estavam vermelhos. Então ele se virou para Durgi e disse: “Você está mentindo, você prometeu oferecer não um par de galos, mas um par de cabras pretas.” Dizendo isso, ele espumou pela boca e fechou os olhos novamente. Após um momento, abriu os olhos e ordenou: “Agora, como punição, você deve fazer um ídolo da deusa feroz e oferecer um par de búfalos.”
Durgi, com lágrimas escorrendo pelas bochechas, assentiu com a cabeça em um gesto de rendição. Mangala ficou em silêncio segurando a moldura da porta, com os punhos cerrados. Não havia um par de búfalos em casa; havia uma búfala prenha, um par de bois para arar e três cabras para vender e comprar alguns ornamentos de ouro e outros dotes para sua filha. Durgi vinha fazendo arranjos para o casamento de Kamala desde então. Todo ano ela vendia cabras e comprava coisas diferentes como dotes. Se a filha não ia viver, então qual era a necessidade de ornamentos de casamento? Então, eles decidiram vender tanto a búfala prenha quanto as três cabras.
Organizar tudo isso levou dois dias. No terceiro dia, Kalaru Guruba e seus dois discípulos cortaram, amassaram e moldaram argila e areia em um galpão de oleiro para preparar o ídolo da deusa feroz. No nono dia, os rituais de adoração começaram de manhã cedo. O som dos tambores Dhamphu e Madal ressoava, leques de penas de pavão balançavam, os aldeões ofereciam arroz, frutas, flores, dinheiro e moedas. Vendo a hora auspiciosa, um par de búfalos foram sacrificados à deusa feroz, o altar de adoração ficou vermelho com sangue. Suas orações e mantras se dissolviam na fumaça de incenso com força.
Mas Kamala, em um estado semi-inconsciente, gritava; seu corpo frágil se contorcia de dor. Suas articulações incharam ainda mais, sua pele começou a ficar azul em vez de amarela, mas os mantras ficavam ainda mais altos, abafando os gritos de Kamala. O que a pobre Durgi poderia fazer além de chorar e lamentar?
“Uma Chudail muito poderosa possuiu Kamala,” gritou Kalaru, o xamã. “Mais oferendas e sacrifícios são necessários.”
O coração de Durgi se partiu; toda esperança estava perdida. Ela acariciou a testa ardente de sua filha e começou a orar à deusa, implorando por misericórdia. O ritmo do Dhamphu, a dança das penas do pavão, os cânticos do xamã começavam agora a parecer o som da tristeza. Os aldeões, completamente perplexos, presos entre crença e desespero, retornaram às suas respectivas casas.
Capítulo 4: A Professora de Ciências Meena
A ausência de Kamala por duas semanas lançou uma sombra sobre a escola. Sua carteira, que antes era um centro de perguntas curiosas, agora parecia deserta. A Srta. Meena Rajaure, com o coração pesado e cheia de suspeitas sobre o evento incomum, perguntou aos colegas de classe de Kamala. As crianças contaram sobre a árvore de Jamun, a Chudail e os rituais intermináveis do xamã. O coração de Meena Rajaure derreteu — ela sabia que a superstição é uma grande doença, que corrompe as mentes de indivíduos e a sociedade e os mata.
Ela informou ao diretor, pegou sua bicicleta imediatamente e pedalou pelo caminho empoeirado e irregular para chegar à casa de Kamala. A casa de Kamala não era muito longe da escola, apenas dois quilômetros.
Ao ver a cena horrível lá, seu coração afundou. No curral, Mangala e seu sobrinho estavam limpando o pátio onde o ídolo aterrorizante foi estabelecido. Kamala estava deitada em uma cama no pátio, seu rosto sem cor, olhos fundos, mãos e pernas azuladas, articulações secas e duras como bambu. O ar cheirava a incenso, e as penas de pavão do xamã estavam espalhadas, quebradas.
Ao ver a Srta. Meena, um sorriso apareceu no rosto de Kamala, e ela tentou cumprimentá-la. Durgi estava lá; ela a cumprimentou esfregando as mãos e disse desanimada: “O Dhami Guruba diz que é uma Chudail—”
A Srta. Meena verificou o pulso de Kamala — irregular e fraco. Olhos amarelados, a respiração de Kamala era rápida, sua pele estava ficando azul em vez de amarela, membros inchados. “Chega!” A voz de Meena estalou como um chicote. “Isso não é obra de fantasmas, bruxas ou espíritos. Isso é uma doença. Kamala deve ser levada ao hospital imediatamente, agora, você está me ouvindo!”
“Os retuais dos Dhami ainda não terminou—” protestou Mangala em voz baixa.
“Vocês vão matar Kamala,” um vulcão irrompeu nos olhos de Meena. “Eu li sobre Anemia Falciforme. Se vocês amam sua filha, confiem em mim. Sou a professora de ciências de Kamala.”
A mente de Durgi vacilou por um momento, entre a fumaça de incenso e a certeza de Meena. Mas, vendo a confiança pela Professora Meena nos olhos de Kamala, ela decidiu imediatamente: “Sim, vamos ao hospital.”
Em uma carroça de boi de um vizinho, eles levaram Kamala de Hekuli ao Hospital Provincial de Rapti, em Tulsipur, que ainda ficava a 16 quilômetros de distância. A viagem foi difícil, as rodas do veículo batendo em buracos e solavancos na estrada. Durgi segurava a mão de Kamala, dando-lhe sopa fortalecedora, e chorava silenciosamente. A Srta. Meena Rajaure a confortava, dizendo: “Tenha fé, Kamala. A ciência vai te salvar.” Kamala deu um leve sorriso.
A placa do hospital tornou-se claramente visível sob a luz elétrica. A mente de Meena corria. Ela se lembrava de artigos que havia lido sobre a doença falciforme — dor, articulações inchadas, febre genética. Ela encontrou um médico conhecido na ala de emergência. Cumprimentando-o, ela explicou a história de Kamala e a suspeita de doença falciforme e pediu um exame rápido. O Dr. Acharya examinou Kamala imediatamente e disse: “Se tivéssemos chegado um dia depois, Kamala poderia ter morrido devido a uma Crise Vaso-Oclusiva, ou Síndrome Torácica Aguda, ou Derrame.”
Capítulo 5: A Ala de Emergência
Kamala foi levada para a ala de emergência. Seu corpo foi coberto com o lençol branco do hospital. As enfermeiras rapidamente tiraram sangue de Kamala com uma seringa e, manuseando cuidadosamente os tubos de ensaio que brilhavam sob a luz fluorescente, levaram-nos ao laboratório para testes. Outra enfermeira imediatamente colocou um oxímetro em seu dedo. Devido aos baixos níveis de oxigênio, após consultar o médico, ela imediatamente a colocou em um ventilador.
Os sons de conversa e passos enchiam o Hospital Provincial de Rapti, Tulsipur. Mangala e os aldeões esperavam no corredor do hospital. Durgi e Meena sentaram-se ansiosamente ao lado de Kamala, esperando o relatório. Durgi lembrava-se de sua divindade de clã, e Meena recordava o que havia lido sobre a Anemia Falciforme.
O médico conhecido, Dr. Acharya voltou. Seu rosto era gentil, mas sério. Ele carregava um arquivo com uma prancheta cheia de muitas páginas. Ele disse: “Srta. Meena, você está correta. Kamala tem Anemia Falciforme. Se tivéssemos chegado um dia depois, Kamala teria sido perdida.”
Virando-se para Durgi em voz suave, ele disse: “Este é um distúrbio genético. As células sanguíneas de Kamala têm a forma de foices ou lua crescente. Quando essas células sanguíneas imperfeitas ficam presas nos vasos sanguíneos, causam dor e deficiência de oxigênio.”
Os olhos de Durgi se arregalaram de medo: “A maldição da deusa feroz?”
“Não,” disse Meena com firmeza, “Esta é uma doença hereditária. Não é sua culpa, apenas é necessário o tratamento médico adequado.”
O Dr. Acharya concordou com a Srta. Meena Rajaure e disse: “Vamos começar com Hidroxiureia, que reduz as crises falciformes, comprimidos de Ácido Fólico, que produzem células sanguíneas saudáveis, e para o manejo da dor, daremos Morfina por enquanto (os médicos evitam dar Morfina para crianças menores de 16 anos, mas aqui era necessário). Para casos graves, pode-se fazer transplante de Células-Tronco ou Medula Óssea, que interrompe a produção de células sanguíneas defeituosas e produz células sanguíneas saudáveis, mas é uma tecnologia arriscada e cara, e o problema é que essa tecnologia não está disponível no Nepal.”
Durgi sentiu-se feliz e triste ao mesmo tempo. Meena entendeu o que estava na mente de Durgi; segurando sua mão, ela a confortou, dizendo: “Vamos gerenciar as doses de medicamentos, hidratação e cuidados. Não se preocupe! Kamala pode viver uma vida longa, mas são necessários check-ups regulares.”
O Dr. Acharya acrescentou: “O manejo da dor é muito importante. Gatilhos para crises falciformes como calor ou frio extremos, trabalho físico muito pesado, desidratação e estresse devem ser evitados. Vamos ensiná-los tudo em detalhes gradualmente.”
Embora Durgi não entendesse completamente tudo o que ambos disseram, sentindo as palavras de esperança, sua mente ficou mais leve e um sentimento de esperança surgiu em seu coração. Os olhos de Kamala se abriram; ela estava ouvindo a conversa de Meena e do médico em seu estado semi-inconsciente. Sua vontade de viver e esperança cresceram mais fortes.
Eram agora nove da noite. Ela chamou um irmão motociclista que morava em Tulsipur para levá-la para casa; o ensino na escola não podia ser negligenciado. Mas ela disse que voltaria para ver Kamala no dia seguinte de manhã.
Capítulo 6: O Segredo da Linhagem
No terceiro dia, inesperadamente, o primo materno de Mangala, Ayodhyasingh Tharu, que era algum tipo de supervisor, veio ver sua sobrinha Kamala. Todos estavam sentados ao lado de Kamala, conversando em voz baixa. Então, a conselheira genética Dra. Anoma Shrestha chegou com a Srta. Meena, carregando um laptop. Todos se levantaram e cumprimentaram ambas. Elas retribuíram os cumprimentos e sentaram-se na frente de Durgi, Mangala e Ayodhya. “Poderíamos ter essa discussão no meu consultório, mas, por conselho da Srta. Meena, queremos que Kamala também saiba disso. Afinal, Kamala tem que lutar contra essa doença,” disse a Dra. Anoma Shrestha. Todos ficaram em silêncio e assentiram em concordância.
Nestes dois dias, a saúde de Kamala havia melhorado muito. Ela conseguia sentar-se. A Dra. Shrestha virou-se para Kamala, abriu seu laptop e, mostrando diagramas de células humanas e DNA, começou a explicar: “Somos feitos de células visíveis ao olho. Um homem de sessenta e cinco quilos tem cerca de trinta e seis trilhões de células. Essas células têm várias formas e tamanhos. Cada célula tem três partes principais como um ovo: membrana, plasma e núcleo. O plasma tem mitocôndrias que contêm DNA Mitocondrial ou Mt DNA, que vem apenas da mãe. Portanto, é chamado de fonte do poder materno. O núcleo contém vinte e três pares de cromossomos. Dentre eles, vinte e dois pares são genes autossômicos ou linhagem, e um par é XX ou XY. Ou seja, uma menina tem vinte e dois pares de genes autossômicos mais um par de XX, e um menino tem vinte e dois pares de genes autossômicos mais um par de XY.”
Durgi disse timidamente, em um sussurro: “Nossa, não entendo nada.”
A Dra. Shrestha sorriu e disse: “Tudo bem, Kamala, você entende, certo?”
Kamala disse animada: “Sim, Doutora, a Srta. Meena me ensinou a teoria dos genes de Mendel na aula. Os cromossomos X e Y são os genes que determinam o sexo.”
“Nossa, Kamala, muito bom, você é muito inteligente,” pausando um pouco, a Dra. Shrestha perguntou: “Você sabe sobre os outros vinte e dois pares autossômicos?”
Kamala sorriu e indicou que não sabia.
“Esses vinte e dois pares de DNA autossômico vêm tanto do pai quanto da mãe para filhos e filhas. Na verdade, os genes que mostram hereditariedade estão aqui. Aqui, qualidades humanas, defeitos, doenças e enfermidades passam de pais para filhos geração após geração. Veja esta imagem!”
“A Anemia Falciforme vem em um padrão Autossômico Recessivo,” começou a explicar a Dra. Anoma. “Como seu pai e sua mãe carregam o traço falciforme — um gene mutado cada — é por isso que você teve essa doença.”
“Vocês Tharus são povos indígenas do Terai, vivem aqui há milhares de anos. O Terai é um lugar propenso à malária. Então, para se proteger da malária, alguns genes em seus antepassados mutaram há pelo menos cinco mil anos. Algumas populações desenvolveram Talassemia, e outras desenvolveram Anemia Falciforme.”
“Cinco mil anos atrás? Meu Deus! Somos descendentes do Senhor Buda?” perguntou Kamala curiosamente.
A Dra. Anoma Shrestha sorriu e disse: “Hmm, definitivamente não tenho certeza, mas é possível. Os Shakya e Koliya eram tribos indígenas do Terai, e além dos Tharus, não havia muitos outros antes.”
Após uma pausa, a Dra. Anoma Shrestha perguntou a Mangala: “Vocês praticam casamentos entre primos cruzados?”
“Não, nunca. Casamos fora de sete gerações, mas casamos dentro da nossa própria comunidade Dangaura Tharu,” respondeu Mangala hesitante.
A Dra. Shrestha pensou por um momento e disse: “Parece que, com o aumento da população, a tradição de casamentos entre tio materno-sobrinha e tia paterna-sobrinho terminou. Casamentos entre parentes próximos não apenas aumentam o risco de Anemia Falciforme, mas de qualquer doença genética.”
“Qual é a solução?” perguntou Ayodhyasingh, que até então estava em silêncio.
“Há duas soluções. Primeiro, não se deve casar dentro da própria casta. Se for necessário, então casar com outro grupo. Segundo, se for preciso casar dentro do próprio grupo, antes do casamento, os noivos devem fazer testes de triagem de portadores para descobrir se carregam o traço falciforme ou não,” disse a Dra. Shrestha. Mas ela imediatamente continuou: “Mas o problema é que os testes de triagem são eficazes para uma geração. Essas doenças podem aparecer em qualquer geração, mesmo após sete ou oito gerações. Portanto, uma solução eficaz é fazer casamentos intercastas.”
Ouvindo isso, Durgi, Mangala e Ayodhya ficaram boquiabertos. Ayodhya disse: “Não existe algo como sociedade e cultura? Como podemos casar com alguém de outra casta?”
Então, a Srta. Meena quebrou o silêncio e disse: “Sim, sociedade e cultura são muito importantes. Eles completam um ser humano. Mas os próprios humanos criam esses dois, que também estão sempre mudando. Assim como se uma peça de carro quebra, uma nova peça é instalada. Da mesma forma, as partes da cultura continuam mudando. As partes boas devem ser mantidas, as partes ruins devem ser descartadas, não carregadas. Se uma pessoa não muda com o tempo, sua existência termina como os dinossauros e Neandertais. O sistema de castas é um fardo social baseado em ego e ilusão; não tem base científica.”
A Dra. Shrestha concordou com a Srta. Meena e mudou de assunto. Mostrando outro slide no laptop, ela disse: “Esta é uma imagem do sangue de Kamala tirada sob um microscópio. Muitas das células sanguíneas de Kamala são como luas incompletas ou foices. Isso causa dor porque elas não conseguem fluir facilmente pelos vasos sanguíneos, o oxigênio não chega onde é necessário.”
Kamala olhava o diagrama com muita atenção. De repente, seus olhos brilharam com curiosidade científica: “Não se pode reparar a parte defeituosa do gene?”
“Não é possível agora,” sorriu a Dra. Anoma Shrestha, vendo seu pensamento científico, e disse: “Mas os cientistas estão trabalhando nesse campo. Em 2012, alguns cientistas desenvolveram uma tecnologia chamada CRISPR-Cas9, mas ainda está em testes. Até quando esta tecnologia será aprovada e chegará ao Nepal, ainda não se pode dizer nada.”
Desapontada, Kamala perguntou: “Não há outra maneira?”
“Sim, há transplante de Células-Tronco e Medula Óssea, mas o processo é longo e caro,” disse a Dra. Anoma Shrestha de forma reconfortante, “Mas não se preocupe. Podemos gerenciar os sintomas imediatos. Tudo ficará bem. Vamos conversar mais depois.”
A Srta. Meena olhou para o relógio e disse: “Nossa, duas horas se passaram. Devo ir para a escola.”
Tirando algum dinheiro de sua bolsa, ela entregou a Mangala e disse: “São quinze mil rúpias, dos professores e alunos da escola. Faremos o que mais pudermos.”
Acariciando a bochecha de Kamala, a Srta. Meena disse: “Não se preocupe. Tudo ficará bem. A ciência desenvolve-se divagar e constantemente, mas com certeza! Voltarei outro dia.”
A Srta. Meena e a Dra. Anoma saíram conversando. Ayodhyasingh também se despediu após alguma conversa. Tanto Mangala quanto Durgi acompanharam Ayodhya até lá fora. Na cama, Kamala fechou os olhos e começou a lembrar do diagrama de DNA, sonhando em dominar a ciência genética e fazer pesquisas.
Capítulo 7: Cura Através da Verdade
Kamala teve que ficar no Hospital Provincial de Rapti por um mês e meio. Esse mês e meio foi como uma escola dura e um centro de exames para sua vida. As enfermeiras ensinaram a ela como gerenciar a Anemia Falciforme. Hidroxiureia para reduzir a falcização, Ácido Fólico para aumentar a produção de células sanguíneas. Para o manejo da dor e febre — Paracetamol e, às vezes, Ibuprofeno com muitos líquidos (evitar dar Morfina para crianças menores de 16 anos). Para a dor nas articulações inchadas, aplicar compressa com bolsa de água quente.
Uma tabela alimentar balanceada e nutritiva baseada nas tradições Tharu foi solicitada à especialista em nutrição clínica brasileira Dra. Raquel Costa de Oliveira, que estudou os sistemas de nutrição Tharu. A Dra. Raquel preparou a tabela com pelo menos quatro objetivos:
1. Prevenir e corrigir a deficiência de nutrientes.
2. Melhorar o sistema imunológico e o sistema circulatório do coração.
3. Reduzir a inflamação e o estresse oxidativo no corpo.
4. Promover o desenvolvimento saudável e o crescimento físico de Kamala.
**Plano de Refeições Diárias Nutritivo Baseado na Tradição Tharu (Para Anemia Falciforme)**
| **Horário** | **Refeição** | **Alimentos Incluídos** | **Benefícios Nutricionais** |
|-------------|--------------|-------------------------|----------------------------|
| 🌅 **Café da Manhã** | Água de sattu (farinha de grão-de-bico, água e melaço), 1-2 colheres de chá de pó de moringa, ovo cozido, mamão ou manga | Ferro, Proteína, Ácido Fólico, Vitamina C |
| 🍵 **Lanche da Manhã** | Sementes de girassol e abóbora torradas ou amêndoas, água com limão, sal e açúcar | Zinco, Vitamina B, Hidratação |
| 🥘 **Almoço** | Arroz, curry de caracol (alho, açafrão, pimenta), espinafre, mistura de vegetais cozidos de Mausa/Marsha e beterraba, picles de rodela ou pepino (limão e pó de moringa) | Ferro, Fibra, Ácido Fólico, Antioxidantes |
| 🍉 **Lanche da Tarde** | Iogurte e arroz tufado misturado com pedaços de banana, 1 copo pequeno de suco fresco de beterraba | Probióticos, Vitamina C, Betacaroteno, Fibra |
| 🌇 **Jantar** | Roti de kodo ou milho, peixe de lagoa assado, curry de abóbora, quiabo e cenoura, dal de lentilha (1-2 colheres de chá de pó de moringa) | Proteína, Ferro, Fibra, Antioxidantes |
| 🌙 **Bebida antes de Dormir** | Leite morno com 1/4 colher de chá de pó de moringa e açafrão | Sono, Fortalecimento dos ossos, Imunidade |
Os Tharus usam óleo, sal e especiarias em excesso em seus alimentos. Óleos processados de mercado causam muita inflamação no corpo. Durgi foi ensinada a cozinhar evitando-os completamente. A comida pode ser cozida sem óleo, e uma pequena quantidade de ghee puro de vaca pode ser adicionada por cima. Além disso, manter-se hidratado é muito importante. Beber 8-10 copos de água por dia é necessário. Para reduzir o estresse, foi aconselhado fazer meditação Vipassana, Yoga e pranayama, e ouvir música suave.
A Srta. Meena vinha ao hospital para ver Kamala em sua scooter todos os dias após a escola. Sua scooter podia ser vista do lado de fora da ala todos os dias das 17h às 18h. Ela trazia livros sobre ciência genética, jogos intelectuais e histórias de vida de cientistas como Marie Curie, Rosalind Franklin, Barbara McClintock, Gerty Cori, Janaki Ammal — mulheres que vieram de sociedades marginalizadas.
“Você não apenas sobreviveu, Kamala,” disse Meena emocionada, “Você está se preparando para ensinar a Hekuli a linguagem da ciência.”
Kamala disse com determinação: “Quero estudar Medicina, Gurumaa.”
Foi a primeira vez que Kamala chamou Meena de Gurumaa.
A Srta. Meena sorriu e disse: “Minhas bênçãos estão sempre com você, Kamala.”
Kamala recebeu alta do hospital após um mês e meio. Ela voltou para Hekuli — usando a pulseira do hospital no pulso, como prova de estar viva. Seu corpo ainda estava fraco, mas sua mente retornou carregando a luz do conhecimento, a companheira da conquista científica.
Kamala estava agora na nona série. Ela começou a se preparar para seu SLC (Certificado de Saída Escolar). Seu método de estudo não era memorização mecânica, mas tentar entender os conceitos básicos da matéria, debatendo, discutindo. Se surgisse alguma dúvida, ela fazia perguntas aos professores, contraperguntas. Vendo a fome de conhecimento de Kamala, os professores ajudavam de todas as maneiras possíveis. Afinal, o conhecimento é como a espada de Manjushri, que corta camada após camada de ignorância. Mas, se essa espada não for usada, ela enferruja, fica cega.
Além dos estudos, Kamala começou a discutir com o chefe da vila e os anciãos aos sábados, carregando panfletos e folhetos sobre a doença falciforme. Ela começou a conscientizar contando sua própria história e experiência, o que médicos e enfermeiras ensinaram no hospital, e o que ela havia estudado.
“Podemos salvar nossos filhos através de exames de sangue,” insistia Kamala, explicando a herança autossômica recessiva com mapas e gráficos.
“Os exames de sangue para os noivos devem ser obrigatórios antes do casamento para que candidatos em potencial para Talassemia e Anemia Falciforme não se casem, como aconteceu com meus pais.”
Algumas pessoas descartaram isso como bobagem, dizendo: “Então ninguém vai se casar.”
Mas o chefe da vila ouviu seriamente e concordou, dizendo: “A ideia de Kamala é muito inteligente. É melhor proteger a colheita antes que o besouro da cana a destrua.”
O chefe da vila fez a triagem genética de seus netos a pedido de Kamala. Descobriu-se que seu neto também tinha essa doença; era necessário ser cauteloso a partir de agora. Melhorar a dieta e a nutrição era necessário. Então Kamala tornou público seu plano alimentar. Ela ensinou o que é uma dieta balanceada, como cozinhar alimentos nutritivos, como cozinhar sem óleo e com menos sal, como comida processada e junk food de mercado é veneno.
Ela criou uma canção de conscientização na língua Tharu e começou a cantá-la com suas amigas:
Faça o teste de sangue, salve sua vida.
Infância salva, sociedade salva, ninguém nunca chora.
Talassemia, doença falciforme, consome o corpo por dentro,
Saiba antes, evite a dor do arrependimento.
Faça o teste na infância, antes do casamento,
Viva sabiamente e disciplinado, mantenha as doenças afastadas.
Reduza óleo e sal, melhore sua culinária,
Deixe o álcool, deixe os doces, então a vida será doce.
Coma vegetais, mantenha caracóis/Situwa (peixes pequenos) no prato,
Ame a vida, não apenas o sabor, isso é o que importa.
Deixe Chyau-Chyau (macarrão instantâneo), evite pizza-hambúrguer,
Na comida caseira simples, está a luz da saúde.
Lentilhas/arroz, verduras/vegetais, são cheios de nutrição,
As doenças irão embora, nunca se adoecerá.
Comida barata e boa, caro é o estado de doença,
Nim, Moringa, grãos frescos — esses são ótimos.
Olhe para a saúde, não para o dinheiro, ame sua vida,
Salve as vilas/casas Tharu, quando você pensar certo.
Filhos/filhas, mulheres/homens, faça todos entenderem,
Faça o teste de sangue, salve das doenças.
Espalhe a mensagem de saúde, agora de vila em vila,
A terra Tharu brilhou, quando a lâmpada do conhecimento foi acesa.
Faça o teste — Salve a vida!
Coma bem — Expulse a doença!
Sociedade Tharu — Sociedade saudável!
Capítulo 8: Do Portão de Ferro ao Portão Dourado
Aos 17 anos, Kamala obteve notas excelentes em seu Certificado de Conclusão da Escola (SLC), recebeu uma bolsa de estudos de Associação de Amigos de Tharu (TFA) patrocinada pela diáspora Tharu na América — um segundo passo em sua educação que mudou a direção de sua vida. Ela ganhou uma medalha de ouro em seu I.Sc. (Intermediário de Ciência). Após um ano de preparação, ela recebeu uma bolsa do governo para estudar (O Bacharelado em Medicina, Bacharelado em Cirurgia) MBBS no Campus Médico de Maharajgunj, em Katmandu.
Lá, ela se especializou em Hematologia — o estudo da doença que a afligia desde a infância. Ela adquiriu um conhecimento profundo do processo de falcização, medicação, procedimentos de transplante e manejo da dor. Mas seu interesse especial era em Medicina Genética. Seu laboratório não era apenas no campus; ela mesma era um laboratório ambulante, tanto a investigadora quanto a amostra em investigação. Aos 26 anos de idade, a Dra. Kamala Tharu estabeleceu-se em Katmandu como uma influente trabalhadora de saúde pública e especialista em Hematologia Molecular.
Durante todas as férias, ela retornava a Hekuli — indo diretamente para Gurumaa antes de ir para casa, tocando seus pés. A Srta. Meena a levantava, abraçava-a contra o peito e beijava sua testa. Desta vez, a Srta. Meena perguntou: “Como está sua condição? As tecnologias para transplante de Células-Tronco e Medula Óssea finalmente chegaram ao Nepal agora?”
“Sim, Gurumaa, ambas as tecnologias de transplante de Células-Tronco e Medula Óssea chegaram ao Nepal. Mas essa tecnologia tem alguns contratempos, como encontrar um doador adequado é difícil, é muito caro e há o medo de infecção.” Após uma pausa, Kamala continuou: “Ainda tenho inflamação e dor às vezes, mas estou gerenciando apenas com medicamentos e nutrição.”
“Não pode ser criado um banco de dados de doadores adequados? Uma organização capaz deveria criar um banco de dados universal. É a era da internet agora.”
“Sim, Gurumaa, ainda não em nosso país, mas no país vizinho, a Índia, tais instalações começaram a criar um banco de dados de doadores. https://www.dkms-india.org/. Um doador adequado pode ser encontrado imediatamente lá. Mas há o risco de roubo e uso indevido de dados.”
“Sim, o perigo está em todos os lugares; usamos telefones celulares, há perigo nisso também. O governo deveria criar leis apropriadas.” Após um momento de reflexão, a Srta. Meena disse: “Kamala, meu pai era antropólogo. Li em seus livros que, antigamente, os Tharus costumavam cortar o cordão umbilical do bebê ao nascer e fazer um amuleto com ele.”
Ouvindo isso, os olhos de Kamala brilharam, e ela disse feliz: “Vou perguntar à minha mãe. Essa é uma tradição tão bonita. As células-tronco podem ser extraídas diretamente do cordão umbilical, que é seu próprio e tem 100% de compatibilidade. Milhares de doenças podem ser curadas com células-tronco desse cordão umbilical.” Pensando por um momento, ela disse desapontada: “O problema é que as próprias células-tronco de alguém podem não funcionar porque seus genes são defeituosos. Mas sim, células-tronco de um irmão saudável podem ser usadas. Pode-se fazer engenharia nesses genes. Há tantas possibilidades.”
Kamala se despediu de Gurumaa e dos outros professores e chegou em casa. Durgi preparou um banquete em casa para sua filha, de tanta felicidade. As pessoas estavam sentadas no pátio do lado de fora para receber Kamala. Afinal, Kamala era a primeira médica da vila, o orgulho da vila. Ela veio para quebrar a estagnação mental na vila, para promover o pensamento científico.
Kamala tocou os pés de todas as pessoas idosas, perguntando sobre seu bem-estar. Após algumas conversas, ela contou aos idosos sobre as palavras de Gurumaa Meena. Kamala perguntou: “Avós, antigamente, na nossa língua, como chamávamos o cordão umbilical, aquele objeto que era preso ao bebê ao nascer? Vocês costumavam cortar um pedaço dele e usá-lo como amuleto?”
“Sim, esse costume existia antigamente. Agora as pessoas não usam mais amuletos de linha ou medalhões?” falou uma avó.
“Sim, nos apegamos às nossas tradições, chamando nossas superstições e más práticas de nossa cultura, mas esquecemos as coisas boas. Esse amuleto de cordão umbilical não é um mantra de fantasma; é um truque científico. Esse amuleto feito de um pedaço do cordão umbilical tem o poder de curar centenas de doenças incuráveis.”
“Mas como fazer isso? Ninguém mais sabe o método,” perguntou um idoso.
“Lave o pedaço do cordão umbilical apenas com água pura (não use sabão, Dettol, álcool, etc.), mantenha-o limpo, seque-o à sombra com ar para não sujar, depois guarde-o em resina e coloque-o em um medalhão de prata. Talvez Kalaru Guruba saiba? Podemos conduzir essa campanha junto com ele.”
A vila concordou.
Então Durgi se levantou e disse, juntando as mãos: “Minha filha vai para a Itália na próxima semana para estudos médicos superiores. Quero oferecer um banquete de despedida para minha filha. Por favor, todos venham esta noite.” Convites foram enviados ao chefe da vila, Kalaru Guruba, os professores da escola e os médicos do hospital.
Um idoso se levantou e disse: “Sim, sim, claro, todos participarão do banquete de despedida. Kamala não é apenas sua filha; ela é a filha de toda a comunidade, o orgulho da vila. Nós, os aldeões, arcaremos com essa despesa.” Todos aplaudiram em concordância.
(Esta história é puramente fictícia e não está relacionada a ninguém. Os medicamentos mencionados na história não devem ser tomados ou administrados sem orientação médica. No entanto, a tabela alimentar pode ser usada.)
(Fim)
CARA OU COROA?
JOGUE A MOEDA; ENTRE A VIDA E A MORTE, OU O AZAR E A SORTE, EXISTE UM CAMINHO LONGO A PERCORRER.
QUAL VAI SER?
VAMOS DE SAPATIADO COM GINGADO, DE MUITO AXÉ E COM MUITO SAMBA NO PÉ;
SEGURA MEU MOLEJO, ACOMPANHA MEU BALANÇO, SAI DA MINHA FRENTE QUEM TA DEVAGAR PARA NÃO LEVAR UM TRANCO.
EU ANDO COM A SOLA DO PÉ QUENTE, SEMPRE DESVIANDO DOS ATROPE-LOS COM A MALÍCIA E A MALANDRAGEM DO BOM BRASILEIRO;
SEGURA MEU CHÁPEU GUERREIRO, TIRA A PREGUIÇA DO COLO E VEM AQUI PRO BATENTE ME ACOMPANHAR, ABRE TEUS OLHOS E MOSTRA BEM OS DENTES PARA NOS IMPRESSIONAR!
CARA OU COROA?
DEIXA AMOEDA CAIR, VAMOS SEGUIR LEVANDO A VIDA NUMA BOA, O SUCESSO TA LOGO ALI, UMA HORA ELE VAI CHEGAR É SÓ CONTINUAR CAMINHANDO DE CABEÇA ERGUIDA, COM O SORRISO NO ROSTO E UM SAPATIADO GOSTOSO!
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