Procurar Rio que corre para o mar
31 resultadosquando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte
procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer
irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia
As suas mãos tinham ficado ásperas, estava cansada de estar de pé e doíam-lhe um pouco as costas. Mas sentia dentro de si uma grande limpeza como se em vez de, estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma. A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava brandamente.
O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.
Havia um grande sossego. Tudo estava arrumado e o dia estava pronto.
E Joana atravessou devagar a sua casa.
Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.
Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.
O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio esculpia os volumes, recortava as linhas, aprofundava os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.
As coisas conhecidas - o muro, a porta, o espelho - mostravam uma por uma a sua beleza e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.
Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.
As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o pode captar?
O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.
E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimento imperceptível tomava em si a ordem e o silêncio da casa.
Com as mãos tocando a parede branca Joana respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade: Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.
A paz que a cercava era aberta e transparente. A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia mas reconhecia.
Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noite.
As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse necessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo inteiro.
E ela habitava essa unidade, estava presente e viva na relação das coisas e a própria realidade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença.
No ar, na cal, no vidro, tocava a sua felicidade e essa felicidade era no seu centro unidade.
Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.
Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o sino bateu duas badaladas. Foi então que se ouviu o grito.
Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.
Joana virou-se na janela. Houve uma pausa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia desformando, desfigurando até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, baixou, tomou um ritmo de soluço, um tom de lamentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.
Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida, E assim como a água começa a invadir o interior enxuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos tinham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.
Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.
A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.
Era uma rua estreita, apertada entre edifícios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço, parado e pegajoso.
Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agarrar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.
O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cortadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. As vezes erguia a cara e então via-se o rosto torcido e desfigurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem. Era tarde. As portas e as janelas estavam fechadas sobre gente adormecida e na rua não passava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.
O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, implorava-lhe que se calasse, pedia:
- Vamos embora.
Mas ela não o ouvia. Gritava como se estivesse só no mundo, como se tivesse ultrapassado toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor brotassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém, a responder. Gritava contra o silêncio.
Às vezes calava-se um momento e inclinava a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.
Então, de novo, o homem implorava:
- Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.
Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um adormecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.
Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocultação da noite, para o fundo do silêncio.
De repente calou-se, curvou a cabeça, tapou o rosto com as mãos. Então o homem cobriu-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos ombros, e, devagar, juntos, desceram a rua e viraram a esquina.
Durante algum tempo flutuou no ar pesado da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silêncio.
Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.
Joana voltou para a sala. Tudo agora, desde o fogo da estrela até ao brilho polido da mesa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.
E, tocando sem os sentir o vidro, a madeira, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.
(1966)
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Histórias da Terra e do Mar", págs. 47 a 55 | Texto Editora, 3ª. edição, 1989
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.
Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da aventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!
Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.
Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!
Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!
Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.
Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!
E todavia não o era!...
Com efeito não havia nem há rua mais opulenta de aromas, de perfumes, de pastilhas odoríferas, de banhas e de pomadas de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em vidrinhos, em frascos e em pequenas caixas bonitas que mantinham e mantêm a Rua do Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
Atualmente de noite observa-se o mesmo fato.
Naquele tempo, porém, isto é, nos tempos do Demarais, e ainda depois, a Rua do Ouvidor, de fácil e reta comunicação com a praia, era uma das mais freqüentadas pelos condutores dos repugnantes barris, das oito horas da noite até às dez.
A esses barris asquerosos o povo deu a denominação geralmente adotada de – tigres – pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à memória informação falsa e ridícula que li, e caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui testemunha ocular e nasal em 1839, no meu saudoso tempo de estudante.
A informação é a seguinte:
Um francês (viajante charlatão) passou pela cidade do Rio de janeiro, e demorando-se nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua do Ouvidor queixas dos incômodos tigres que freqüentes passavam ali de noite. Sábio e consciencioso observador que ra, o viajante tomou nota do ato, e poucos anos depois publicou, no seu livro de viagens, esta famosa notícia:
"Na cidade do Rio de Janeiro, capital do Império do Brasil, feras terríveis, os trigraves, vagam, durante a noite, pelas ruas, etc.,etc.!!!"
E é assim que escreve a história!
O caso que observei foi desastroso, mas de natureza que fez rir a todos.
Pouco depois das oito horas da noite, um inglês, trajando casaca preta e gravata branca...
Entre parêntese.
Em 1839 ainda era de uso ordinário e comum a casaca; o reinado de paletó começou depois; muitos estudantes iam as aulas de casacas, e não havia senador nem deputado eu se apresentasse desacasacado nas respectivas Câmaras: o paletó tornou-se eminentemente parlamentar de 1845 em diante.
Fechou-se o parênteses.
O inglês de chapéu de patente, casaca preta e gravata branca subia pela Rua do Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um tigre para despeja-lo no mar.
O pobre africano ainda a tempo recuou um passo, mas o inglês que na sabia recuar avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede que lhe ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que lhe dava passo à esquerda pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e sem mais tir-te nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano, que perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que não sei de nojo como o conte!
O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com os eu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano, sacudindo o chapéu em estado indizível, e bradando furioso:
– Pegue ladron! Pegue ladron!...
Mas qual – pega ladron! –: todos se arredavam de inocente e malcheiroso negro que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre pela inundação que recebera.
Era geral o coro de risadas na Rua do Ouvidor.
O inglês, perdendo enfim de vista o africano, completou o caso com um remate pelo menos tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua acima, parou em frente de numeroso grupo de gente que testemunhara a cena, e ria-se dela.
Ainda hoje o estou vendo; o inglês parou, e sempre a sacudir o chapéu olhou iroso para o grupo e disse mas disse com orgulhosa gravidade britânica:
– Amanhã faz queixa a ministro da Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu e de casaca perdidas.
Ah! Eu creio que então a melhor das risadas que romperam foi a minha gostosa, longa e repetida risada de estudante feliz e alegrão.
É inútil dizer que não houve questão diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha feito representar no Brasil pó Mr. Christie, o único capaz (depois do jantar) de exigir indenização do chapéu e da casaca que o patrício perdera.
Não foi este único desastres que os tigres ocasionaram, foram muitos e todos mais ou menos grotescos, e sei de um outro (além da encapelação do inglês) ocorrido na Rua do Carno hoje Sete de Setembro, que de súbito desfez as mais doces esperanças do casamento inspirado e desejado por mútuo amor.
O namorado da estudante, meu colega e amigo; estava perdidamente apaixonado por uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda como os amores.
Uma noite, a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o namorado que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão iluminador, lhe mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe, quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor de tigre, e, embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de desatar a rir, e logo depois de fugir da janela por causa do mau cheiro de que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida noiva; amoroso, porém, como estava, dois dias depois tornou a passar diante das queridas janelas.
No erro; a formosa viúva, ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente, mas levou o lenço a boca para dissimular o riso lembrador de ridículo infortúnio.
O estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um tigre matou aquele amor.
font size=1>MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Tip. Perseverança, 1878. p. 99-101.
I
Sou vil, sou reles, como toda a gente,
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.
É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.
Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.
Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
– Acaba lá com isso, ó coração!
II
Deuses, forças, almas de ciência ou fé.
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.
Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer...
Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outra coisa te põe separado?
Deixa de ser novelo o que nos fica...
A que brincar? Ao amor?, à indif'rença?
Por mim, só me levanto da barrica.
III
Corre, raio de rio, e leva ao mar
A minha indiferença subjectiva!
Qual «leva ao mar»! Tua presença esquiva
Que tem comigo e com o meu pensar?
Lesma de sorte! Vivo a cavalgar
A sombra de um jumento. A vida viva
Vive a dar nomes ao que não se activa,
Morre a pôr etiquetas ao grande ar...
Escancarado Furness, mais três dias
Te aturarei, pobre engenheiro preso
A sucessibilíssimas vistorias...
Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo
(E tu irás do mesmo modo que ias),
Qualquer, na gare, de cigarro aceso...
IV
Conclusão a sucata! ... Fiz o cálculo,
Saiu-me certo, fui elogiado...
Meu coração é um enorme estrado
Onde se expõe um pequeno animálculo...
A microscópio de desilusões
Findei, prolixo nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...
Que teorias há para quem sente
O cérebro quebrar-se, como um dente
Dum pente de mendigo que emigrou?
Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou...
V
Há quanto tempo, Portugal, há quanto
Vivemos separados! Ah, mas a alma,
Esta alma incerta, nunca forte ou calma,
Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.
Sonho, histérico oculto, um vão recanto...
O rio Furness, que é o que aqui banha,
Só ironicamente me acompanha,
Que estou parado e ele correndo tanto...
Tanto? Sim, tanto relativamente...
Arre, acabemos com as distinções,
As subtilezas, o interstício, o entre,
A metafísica das sensações –
Acabemos com isto e tudo mais...
Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!
no plano de outra vida.
Eras vasto vermelho,
em cada quarto havias
um ardiloso espelho.
Nele se refletia
cada figura em trânsito
e o mais que se não lia
nem mesmo pela frincha
da porta: o que um esconde,
polpa do eu, e guincha
sem se fazer ouvir.
E advindo outras faces
em contínuo devir,
o espelho eram mil máscaras
mineiroflumenpau-
listas, boas, más; caras.
50 anos-imagem
e 50 de catre
50 de engrenagem
noturna e confidente
que nos recolhe a úrica
verdade humildemente.
(Pois eras bem longevo, Hotel, e no teu bojo
o que era nojo se sorria, em pó, contigo.)
O tardo e rubro alexandrino decomposto.
Casais entrelaçados no sussurro
do carvão carioca, bondes fagulhando, políticos
politicando em mornos corredores
estrelas italianas, porteiros em êxtase
cabineirosem pânico:
por que tanta suntuosidade se encarcera
entre quatro tabiques de comércio?
A bandeja vai tremulargentina:
desejo café geleia matutinos que sei eu.
A mulher estava nua no centro e recebeu-me
com a gravidade própria aos deuses em viagem:
Stellen Sie es auf den Tisch!
Sim, não fui teu quarteiro, nem ao menos
boy em teu sistema de comunicações louça
a serviço da prandial azáfama diurna.
Como é que vivo então os teus arquivos
e te malsinto em mim que nunca estive
em teu registro como estão os mortos
em seus compartimentos numerados?
Represento os amores que não tive
mas em ti se tiveram foice-coice.
Como escorre
escada serra abaixo a lesma
das memórias
de duzentos mil corpos que abrigaste
ficha ficha ficha ficha ficha
fichchchchch.
O 137 está chamando
depressa que o homem vai morrer
é aspirina? padre que ele quer?
Não, se ele mesmo é padre e está rezando
por conta dos pecados deste hotel
e de quaisquer outros hotéis pelo caminho
que passa de um a outro homem, que em nenhum
ponto tem princípio ou desemboque;
e é apenas caminho e sempre sempre
se povoa de gestos e partidas
e chegadas e fugas e quilômetros.
Ele reza ele morre e solitária
uma torneira
pinga
e o chuveiro
chuvilha
e a chama
azul do gás silva no banho
sobre o Largo da Carioca em flor ao sol.
(Entre tapumes não te vejo
roto desventrado poluído
imagino-te ileso emergindo dos sambas dos dobrados da polícia militar, do coro ululante de torcedores do campeonato mundial pelo rádio
a todos oferecendo, Hotel Avenida,
uma palma de cor nunca esbatida.)
Eras o Tempo e presidias
ao febril reconhecimento de dedos
amor sem pouso certo na cidade
à trama dos vigaristas, à esperança
dos empregos, à ferrugem dos governos,
à vida nacional em termos de indivíduo
e a movimentos de massa que vinham espumar
sob a arcada conventual de teus bondes.
Estavas no centro do Brasil,
nostalgias januárias balouçavam
em teu regaço, capangueiros vinham
confiar-te suas pedras, boiadeiros
pastoreavam rebanhos no terraço
e um açúcar de lágrimas caipiras
era ensacado a todo instante em envelopes
(azuis?) nos escaninhos da gerência
e eras tanto café e alguma promissória.
Que professor professa numa alcova
irreal, Direito das Coisas, doutrinando
a baratas que atarefadas não o escutam?
Que flauta insiste na sonatina sem piano
em hora de silêncio regulamentar?
E as manias de moradores antigos
que recebem à noite a visita do prefeito Passos para discutir novas técnicas urbanísticas?
E teus mortos
incomparavelmente mortos de hotel fraudados
na morte familiar a que aspiramos
como a um não morrer morrido;
mortos que é preciso despachar
rápido, não se contagiem lençóis
e guarda-pires
dessa friúra diversa que os circunda
nem haja nunca memória nesta cama
do que não seja vida na Avenida.
Ouves a ladainha em bolhas intestinas?
Balcão de mensageiros imóveis saveiros
banca de jornais para nunca e mais
alvas lavanderias de que restam estrias
bonbonnières onde o papel de prata
faz serenata em boca de mulheres
central telefônica soturnamente afônica
discos lamentação de partidos meniscos
papelariasconversariaschope da Brahma louco de quem ama
e o Bar Nacional pura afetividade
súbito ressuscita Mário de Andrade.
Que fazer do relógioou fazer de nós mesmossem tempo sem mais pontosem contraponto semmedida de extensãosem sequer necrológioenquanto em cinza foge oimpaciente bisãoa que ninguém os chifressujigou, aflição?Ele marcava mar-cavacava cava cavae eis-nos sós marcadosde todos os falhadosamores recolhidosrelógio que não ouçoe nem me dá ouvidosrobô de puro olfatoa farejar o imensopaís do imóvel tatoas vias que corria teu comando fecham-senas travessas em Inos vagos pesadelosnos sombrios dejetosem que nossos projetosse estratificaram.A ti não te destroemcomo as térmitas papamlivro terra existência.Eles sim teus ponteirosvorazes esfarelama túnica de Vênuso de mais o de menoseste verso tatuadoe tudo que hei andadopor te iludir e tudoque nas arkademiasinstitutos autárquicoshistóricos astutosse ensina com malíciasobre o evolver das coisasó relógio hoteleirodeus do cauto mineiro,silêncio,pudicícia.Mas tudo que moestehoje de ti se vingapor artesde pensada mandinga.Deglutimos teu vidroabafando a linguagemque das próprias estilhasse afadiga em pulsaro minuto de esperaquando cessa na tardea brisa de esperar.Rangido de criança nascendo.
Por favor, senhor poeta Martins Fontes, recite mais baixo suas odes enquanto minha senhora acaba de parir no quarto de cima, e o poeta velou a voz, mas quando o bebê aflorou ao mundo é o pai que faz poesia saltarilha e pede ao poeta que eleve o diapasão para celebrarem todos, hóspedes, camareiros e pardais, o grato alumbramento.
Anoitecias. Na cruz dos quatro caminhos, lá embaixo, apanhadores, ponteiros, engole-listas de sete prêmios repousavam degustando garapa.
Mujer malvada, yo te mataré! artistas ensaiavam nos quartos? I wil grind your bones to dust, and with your blood and it I’ll make a paste. Bagaço de cana, lá embaixo.
Todo hotel é fluir. Uma corrente
atravessa paredes, carreando o homem,
suas exalações de substância. Todo hotel
é morte, nascer de novo; passagem; se pombos
nele fazem estação, habitam o que não é de ser habitado
mas apenas cortado. As outras casas prendem
e se deixam possuir ou tentam fazê-lo, canhestras.
O espaço procura fixar-se. A vida se espacializa,
modela-se em cristais de sentimento.
A porta se fecha toda santa noite.
Tu não se encerras, não podes. A cada instante
alguém se despede de teus armários infiéis
e os que chegam já trazem a volta na maleta.
220 Fremdenzimmer e te vês sempre vazio
e o espelho reflete outro espelho
o corredor cria outro corredor
homem quando nudez indefinidamente.
No centro do Rio de Janeiro
ausênciano curral da manada dos bondes
ausênciano desfile dos sábados
no esfregar no repinicar dos blocos
ausêncianas cavatinas de Palermo
no aboio dos vespertinos
ausência
verme roendo maçã
verme roído por verme
verme autorroído
roer roendo o roer
e a ânsia de acabar, que não espera
o termo veludoso das ruínas
nem a esvoaçante morte de hidrogênio.
Eras solidão tamoia
vir a ser de casa
em vir a ser de cidade onde lagartos.
Vem, ó velho Malta,saca-me uma fotopulvicinza efialtadesse pouso ignoto.Junta-lhe uns quiosquesmil e novecentos,nem iaras nem bosquesmas pobres piolhentos.Põe como legendaQ u e i j o I t a t i a i ae o mais que compreendacondição lacaia.Que estas vias feiasmuito mais que sujassão tortas cadeiasconchas caramujasdo burro sem raboservo que se ignorae de pobre-diabodentro, fome fora.Velho Malta, please,bate-me outra chapa:hotel de marquisemaior que o rio Apa.Lá do acento etéreo,Malta, sub-reptícioinda não te fere osuperedifícioque deste chão surge?Dá-me seu retratofuturo, pois urge
documentar as sucessivas posses da terra até o juízo final e
mesmo depois dele se há como três vezes três confiamos que
haja um supremo ofício de registro imobiliário por cima da
instantaneidade do homem e da pulverização das galáxias.
Já te lembrei bastante sem que amasse
uma pedra sequer de tuas pedras
mas teu nome — A V E N I D A — caminhava
à frente de meu verso e era mais amplo
e mais formas continha que teus cômodos
(o tempo os degradou e a morte os salva),
e onde abate o alicerce ou foge o instante
estou comprometido para sempre.
Estou comprometido para sempre,
eu que moro e desmoro há tantos anos
o Grande Hotel do Mundo sem gerência
em que nada existindo de concreto
— avenida, avenida — tenazmente
de mim mesmo sou hóspede secreto.
Aqui vem a árvore, a árvore
da tormenta, a árvore do povo.
Da terra sobem os heróis
como as folhas pela seiva
e o vento despedaça as folhagens
de multidão rumorosa,
até que cai a semente
do pão outra vez na terra.
Aqui vem a árvore, a árvore
nutrida por mortos desnudos,
mortos açoitados e feridos,
mortos de rostos impossíveis,
empalados sobre uma lança,
esfarelados na fogueira,
decapitados pela acha,
esquartejados a cavalo,
crucificador na igreja.
Aqui vem a árvore, a árvore
cujas raízes estão vivas,
tirou salitre do martírio,
suas raízes comeram sangue,
extraiu lágrimas do céu:
elevou-as por suas ramagens,
repartiu-as em sua arquitetura.
Foram flores invisíveis,
às vezes flores enterradas,
outras vezes iluminaram
suas pétalas, como planetas.
E o homem recolheu nos ramos
as corolas endurecidas,
entregando-as de mão em mão
como magnólias ou romãs
e logo abriram a terra,
cresceram até as estrelas.
Esta é a árvore dos livres.
A árvore terra, a árvore nuvem.
A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.
Afoga-a a água tempestuosa
de nossa época noturna,
mas seu mastro faz balançar
o círculo de seu poder.
Outras vezes de novo tombam
os ramos partidos pela cólera,
e uma cinza ameaçadora
cobre a sua antiga majestade:
foi assim desde outros tempos,
assim saiu da agonia,
até que uma secreta razão,
uns braços inumeráveis,
o povo, guardou os fragmentos,
escondeu troncos invariáveis,
e seus lábios eram as folhas
de imensa árvore repartida,
disseminada em todas as partes,
caminhando com suas raízes.
Esta é a árvore, a árvore
do povo, de todos os povos
da liberdade, da luta.
Assoma-te a sua cabeleira:
toca seus raios renovados:
mergulha a não nas usinas
de onde seu fruto palpitante
propaga a sua luz de cada dia.
Levanta esta terra em tuas mãos,
participa deste esplendor,
toma o teu pão e a tua maçã,
teu coração e teu cavalo
e monta guarda na fronteira,
no limite de suas folhas.
Defende o fim de suas coroas,
comparte as noite hostis,
vigia o ciclo da aurora,
respira a altura estrelada,
amparando a árvore, a árvore
que cresce no meio da terra.
I
Cuahtémoc (1520)
Jovem irmão há tempos e tempos
nunca dormido, nunca consolado,
jovem estremecido nas trevas
metálicas do México, em tua mão
recebo o dom de tua pátria nua.
Nela nasce e cresce o teu sorriso,
uma linha entre a luz e o ouro.
São os teus lábios unidos pela morte
o mais puro silêncio sepultado.
O manancial submerso
sob todas as bocas da terra.
Ouviste, ouviste, acaso,
no Anáhuac longínquo,
um rumo de água, um vento
de primavera destroçada?
Era talvez a palavra do cedro.
Era uma onda branca de Acapulco.
Porém na noite fugia
teu coração como um cervo
até as fronteiras, confuso,
entre os monumentos sanguinários,
sob a lua soçobrante.
Toda a sombra preparava sombra.
Era a terra uma escura cozinha,
pedra e caldeira, vapor negro,
muro sem nome, injúria
que te chamava dos noturnos
metais de tua pátria.
Mas não há sombra em teu estandarte.
Chegou a hora assinalada
e ao meio de teu povo
és pão e raiz, lança e estrela.
O invasor sustou o passo.
Não é Moctezuma extinto
como taça morta,
é o relâmpago e sua armadura,
a pluma de Quetzal, a flor do povo,
o elmo aceso entre as naus.
Mas a mão dura como séculos de pedra
apertou a tua garganta.
Não fecharam
o teu sorriso, não fizeram
tombar os grãos do milho
secreto, e te arrastaram,
vencedor cativo,
pelas distâncias de teu reino,
entre cascatas e cadeias,
sobre areais e aguilhões,
como uma coluna incessante,
como testemunha dolorosa,
até que uma corda enredou
a coluna da pureza
e dependurou o corpo suspenso
sobre a terra desgraçada.
II
Frei Bartolomé de las Casas
A gente pensa, ao chegar a casa, à noite, cansado,
entre a névoa fria de maio, à saída
do sindicato (na esmiuçada
luta de cada dia, a estação
chuvosa que goteja do beiral, o surdo
latejar do constante sofrimento),
esta ressurreição mascarada,
astuta, envilecida,
do encadeador, da cadeia,
e quando sobe a angústia
até a fechadura para entrar contigo,
surge uma luz antiga, suave e dura
como um metal, como um astro enterrado.
Padre Bartolomé, obrigado por esta
dádiva da crua meia-noite,
graças porque teu fio foi invencível:
pôde morrer massacrado, comido
pelo cão de fauces iracundas,
pôde ficar na cinza
da casa incendiada,
pôde cortá-lo a lâmina fria
do assassino inumerável
ou o ódio administrado com sorrisos
(a traição do próximo cruzado),
a mentira arremessada na janela.
Pôde morrer o fio cristalino,
a irredutível transparência
convertida em ação, em combatente
e despenhado aço de cascata.
Poucas vidas dá o homem como a tua, poucas
sombras há na árvore como a tua sombra, nela
todas as brasas vivas do continente acodem,
todas as arrasadas condições, a ferida
do mutilado, as aldeias
exterminadas, tudo sob a tua sombra
renasce, do limite
da agonia fundas a esperança.
Padre, foi sorte para o homem e sua espécie
que tivesses chegado à plantação,
que mordesses os negros cereais
do crime, que bebesses cada dia a taça da cólera.
Quem te pôs, mortal despido,
entre os dentes da fúria?
Como assomaram outros olhos,
de outro metal, quando nascias?
Como se cruzam os fermentos
na oculta farinha humana
para que o teu grão imutável
se amassasse no pão do mundo?
Eras a realidade entre fantasmas
encarniçados, eras
a eternidade da ternura
sobre a rajada do castigo.
De combate em combate a tua esperança
converteu-se em precisas ferramentas:
a solitária luta fez-se um ramo,
o pranto inútil agrupou-se em partido.
Não valeu a piedade.
Quando mostravas
tuas colunas, tua nave amparadora,
tua mão para abençoar, teu manto,
o inimigo pisoteou as lágrimas,
e violou a cor da açucena.
Não valeu a piedade alta e vazia
como uma catedral abandonada.
Foi a tua invencível decisão, a ativa
resistência, o coração armado.
Foi a razão o teu material titânico.
Foi flor organizada a tua estrutura.
De cima quiseram contemplar-te
(de sua altura) os conquistadores,
apoiando-se como sombras de pedra
sobre seus espadões, esmagando
com os seus sarcásticos escarros
as terras de tua iniciativa,
dizendo: “Ali vai o agitador”,
mentindo: “Foi pago
pelos estrangeiros”,
“Não tem pátria”, “Traidor”,
mas a tua prédica não era
frágil minuto, peregrina
pauta, relógio do passageiro.
Tua madeira era bosque combatido,
ferro em sua cepa natural, oculto
a toda luz pela terra florida,
e ainda mais, era mais fundo:
na unidade do tempo, no transcurso
da vida, era a tua mão antecipada
estrela zodiacal, signo do povo.
Hoje, padre, entra nesta casa comigo.
Vou mostrar-te as cartas, o tormento
de meu povo, do homem perseguido.
Vou mostrar-te as dores antigas.
E para não tombar, para firmar-me
sobre a terra, continuar lutando,
deixa em meu coração o vinho errante
e o pão implacável de tua doçura.
III
Avançando nas trevas do Chile
Espanha entrou até o sul do mundo.
Opressos
exploraram a neve os altos espanhóis.
O Bío-Bío, grave rio,
disse à Espanha: “Pára”,
o bosque de maitenes cujos fios
verdes pendem como um tremor de chuva
disse à Espanha: “Não prossigas”.
O lariço,
titã das fronteiras silenciosas,
disse em um trovão a sua palavra.
Mas até o fundo da pátria minha,
punho e punhal, o invasor chegava.
Pelo rio Imperial, em cuja margem
meu coração amanheceu no trevo,
entrava o furacão pela manhã.
O largo leito das garças seguia
das ilhas para o mar furioso,
cheio como taça interminável,
entre as margens do cristal sombrio.
Em suas barrancas eriçava o pólen
uma alfombra de estames turbulentos
e desde o mar a brisa comovia
todas as sílabas da primavera.
A aveleira da Araucania
embandeirava fogueiras e racimos
lá onde a chuva deslizava
sobre o agrupamento da pureza.
Tudo estava enredado de fragrâncias,
empapado de luz verde e chuvosa,
e cada matagal de odor amargo
era um ramo profundo do inverno
ou uma extraviada formação marinha
ainda cheia do orvalho oceânico.
Dos barrancos se erguiam
torres de pássaros e plumas
e um ventarrão de solidão sonora,
enquanto na molhada intimidade
entre as cabeleiras encrespadas
do feto gigante, era a topa-topa florescida
um rosário de beijos amarelos.
IV
Surgem os homens
Ali germinavam os toquis.
Daquelas negras umidades,
daquela chuva fermentada
na taça dos vulcões
saíram os peitos augustos,
as claras flechas vegetais,
os dentes de pedra selvagem,
os pés de estaca inapelável,
a glacial unidade da água.
O Arauco foi um útero frio,
feito de feridas, massacrado
pelo ultraje, concebido
entre os ásperos espinhos,
arranhado nos montões de neve,
protegido pelas serpentes.
Assim a terra extraiu o homem.
Cresceu como fortaleza.
Nasceu do sangue agredido, eriçou a cabeleira
como um pequeno puma rubro
e os olhos de pedra dura
brilhavam na matéria
como fulgores implacáveis
saídos da caçada.
V
Toqui Caupolicán
Na cepa secreta do raulí
cresceu Caupolicán, torso e tormenta,
e quando contra as armas invasoras
seu povo dirigiu,
andou a árvore,
andou a árvore dura da pátria.
Os invasores viram a folhagem
mover-se ao meio da bruma verde,
os grossos ramos e as vestimentas
de inumeráveis folhas e ameaças,
o tronco terrenal fazer-se povo,
as raízes saírem do território.
Souberam que a hora havia soado
para o relógio da vida e da morte.
Outras árvores vieram com ele.
Toda a raça de ramagens rubras,
todas as tranças da dor silvestre,
todo o nó do ódio da madeira.
Caupolicán, sua máscara de lianas
defronta o invasor perdido:
não é a pintada pluma imperadora,
não é o trono das plantas olorosas,
não é o reluzente colar do sacerdote,
não é a luva nem o príncipe dourado:
um é o rosto da mata,
uma carranca de acácias arrasadas,
uma figura ferida pela chuva,
uma cabeça com trepadeiras.
De Caupolicán, o toqui, é o olhar
fundido, de universo montanhoso,
os olhos implacáveis da terra,
e as faces do titã são muros
escalados por raios e raízes.
VI
A Guerra Pátria
A Araucania estrangulou o cantar
da rosa no cântaro, cortou
os fios
no tear da noiva de prata.
Desceu a ilustre Machi de sua escada,
e nos rios dispersos, na argila,
sob a copa hirsuta
das araucárias guerreiras,
foi nascendo o clamor dos sinos
enterrados.
A mãe da guerra
saltou as pedras doces do arroio,
deu asilo à família pescadora,
e o noivo lavrador beijou as pedras
antes que voassem à ferida.
Atrás do rosto florestal do toqui
Arauco amontoava a sua defesa:
eram olhos e lanças, multidões
espessas de silêncio e ameaça,
cinturas indeléveis, altaneiras
mãos escuras, punhos congregados.
Atrás do alto toqui, a montanha,
e na montanha, o inumerável Arauco.
Arauco era o rumor da água errante.
Arauco era o silêncio tenebroso.
O mensageiro em sua mão cortada
ia juntando as gotas de Arauco.
Arauco foi a onda da guerra.
Arauco os incêdios da noite.
Tudo fervia atrás do toqui augusto,
e quando ele avançou, foram trevas,
areias, bosques, terras,
unânimes fogueiras, furacões,
aparição fosfórica de pumas.
VII
O empalado
Caupolicán porém chegou ao tormento.
Ensartado na lança do suplício,
entrou na morte lenta das árvores.
Arauco redobrou o seu ataque verde,
sentiu nas sombras o calafrio,
cravou na terra a cabeça,
ocultou-se com as suas dores.
O toqui dormia na morte.
Um ruído de ferro chegava
do acampamento, uma coroa
de gargalhadas estrangeiras,
e junto aos bosques enlutados
somente a noite palpitava.
Não era a dor, a dentada
do vulcão aberto nas vísceras,
era só um sonho da mata,
a árvore que sangrava.
Nas entranhas de minha pátria
entrava a ponta assassina
ferindo as terras sagradas.
O sangue queimante tombava
de silêncio em silêncio, abaixo,
até onde a semente está
à espera da primavera.
Mais fundo tombava este sangue.
Caía sobre as raízes.
Caía sobre os mortos.
Sobre os que iam nascer.
VIII
Lautaro (1550)
O sangue toca um corredor de quartzo.
A pedra cresce onde a gota tomba.
Assim nasce Lautaro da pedra.
IX
Educação do cacique
Lautaro era uma flecha delgada.
Elástico e azul foi o nosso pai.
Foi sua primeira idade só silêncio.
Sua adolescência foi domínio.
Sua juventude foi um vento dirigido.
Preparou-se como uma longa lança.
Acostumou os pés nas cachoeiras.
Educou a cabeça nos espinhos.
Executou as provas do guanaco.
Viveu pelos covis da neve.
Espreitou as águias comendo.
Arranhou os segredos do penhasco.
Entreteve as pétalas do fogo.
Amamentou-se de primavera fria.
Queimou-se nas gargantas infernais.
Foi caçador entre as aves cruéis.
Tingiram-se de vitórias as suas mãos.
Leu as agressões da noite.
Amparou o desmoronamento do enxofre.
Se fez velocidade, luz repentina.
Tomou as vagarezas do outono.
Trabalhou nas guaridas invisíveis.
Dormiu sobre os lençóis da nevasca.
Igualou-se à conduta das flechas.
Bebeu o sangue agreste dos caminhos.
Arrebatou o tesouro das ondas.
Se fez ameaça como um deus sombrio.
Comeu em cada cozinha de seu povo.
Aprendeu o alfabeto do relâmpago.
Farejou as cinzas espalhadas.
Envolveu o coração de peles negras.
Decifrou o fio espiral do fumo.
Construiu-se de fibras taciturnas.
Azeitou-se como a alma da azeitona.
Fez-se cristal de transparência dura.
Estudou para vento furacão.
Combateu-se até apagar o sangue.
E só então foi digno de seu povo.
X
Lautaro entre invasores
Entrou na casa de Valdivia.
Acompanhou-o como a luz.
Dormiu coberto de punhais.
Viu seu próprio sangue derramado,
seus próprios olhos esmagados,
e dormindo nos pesebres
acumulou o seu poderio.
Não se mexiam os seus cabelos
examinando os tormentos:
olhava para além do ar
para a sua raça debulhada.
Velou aos pés de Valdivia.
Ouviu o seu sonho carniceiro
crescer na noite sombria
como uma coluna implacável.
Adivinhou esses sonhos.
Pôde levantar a dourada
barba do capitão adormecido,
cortar o sonho na garganta,
mas aprendeu - velando sombras -
a lei noturna do horário.
Marchou de dia acariciando
os cavalos de pele molhada
que se iam afundando em sua pátria.
Adivinhou esses cavalos.
Marchou com os deuses fechados.
Adivinhou as armaduras.
Foi testemunha das batalhas,
enquanto entrava passo a passo
no fogo da Araucania.
XI
Lautaro contra o Centauro (1554)
Atacou então Lautaro de onda em onda.
Disciplinou as sombras araucanas:
antes entrou o punhal castelhano
em pleno peito da massa vermelha.
Hoje foi semeada a guerrilha
sob todas as alas florestais,
de pedra em pedra e de vau em vau,
olhando dos copihues,
espreitando sob as rochas.
Valdivia quis voltar.
Era tarde.
Chegou Lautaro com traje de relâmpago.
Seguiu o conquistador aflito.
Abriu caminho nas úmidas brenhas
do crepúsculo austral.
Chegou Lautaro
num galope negro de cavalos.
A fadiga e a morte conduziam
a tropa de Valdivia na folhagem.
Aproximavam-se as lanças de Lautaro.
Entre os mortos e as folhas ia
como em um túnel Pedro de Valdivia.
Nas trevas chegava Lautaro.
Pensou na Extremadura pedregosa,
o dourado azeite, a cozinha,
o jasmim deixados em ultramar.
Reconheceu o uivo de Lautaro.
As ovelhas, as duras granjas,
os muros brancos, a tarde extremenha.
Sobreveio a noite de Lautaro.
Seus capitães cambaleavam ébrios
de sangue, noite e chuva para o regresso.
Palpitavam as flechas de Lautaro.
De queda em queda a capitania
ia retrocedendo dessangrada.
Já se tocava o peito de Lautaro.
Valdivia viu chegar a luz, a aurora,
talvez a vida, o mar.
Era Lautaro.
XII
O coração de Pedro de Valdivia
Levamos Valdivia para debaixo da árvore.
Era um azul de chuva, a manhã com frios
filamentos de sol desfiado.
Toda a glória, o trovão,
turbulentos jaziam
num montão de aço ferido.
A caneleira erguia a sua linguagem
num fulgor de vaga-lume molhado
em toda a sua pomposa monarquia.
Trouxemos pano e cântaro, tecidos
grossos como as tranças conjugais,
jóias como amêndoas da lua,
e os tambores que encheram
a Araucania com sua luz de couro.
Enchemos as vasilhas de doçura
e dançamos calcando os torrões
feitos da nossa própria estirpe escura.
Depois calcamos o rosto inimigo.
Depois cortamos o valente pescoço.
Que bonito foi o sangue do verdugo
repartido entre nós como romã
enquanto ainda vivo ardia.
Depois, no peito enfiamos uma lança
e o coração alado como os pássaros
entregamos à árvore araucana.
Subiu um rumor de sangue até a copa.
Então, da terra
feita de nossos corpos, nasceu o canto
da guerra, do sol, das colheitas.
Então repartimos o coração sangrento.
Eu meti os dentes naquela corola
cumprindo o rito da terra:
“Dá-me o teu frio, estrangeiro malvado.
Dá-me o teu valor de grande tigre.
Dá-me em teu sangue a tua cólera.
Dá-me a tua morte para que me siga
e leve o espanto até os teus.
Dá-me a guerra que trouxeste.
Dá-me o teu cavalo e os teus olhos.
Dá-me a treva retorcida.
Dá-me a mãe do milho.
Dá-me a pátria sem espinhos.
Dá-me a paz vencedora.
Dá-me o ar onde respira
a caneleira, senhora florida”.
XIII
A dilatada guerra
Depois, terra e oceanos, cidades,
naves e livros, conheceis a história
que desde o território rude
como uma pedra lançada
encheu de pétalas azuis
as profundezas do tempo.
Três séculos esteve lutando
a raça guerreira do carvalho,
trezentos anos a centelha
de Arauco povoou de cinzas
as cavidades imperiais.
Três séculos tombaram feridas
as camisas do capitão,
trezentos anos despovoaram
os arados e as colméias,
trezentos anos açoitaram
cada nome de invasor,
três séculos rasgaram a pele
das águias agressoras,
trezentos anos enterraram
como a boca do oceano
tetos e ossos, armaduras,
torres e títulos dourados.
Às esporas iracundas
das guitarras adornadas
chegou um galope de cavalos
e uma tormenta de cinza.
As naus voltaram ao duro
território, nasceram espigas,
cresceram olhos espanhóis
no reinado da chuva,
mas Arauco desceu as telhas,
moeu as pedras, abateu
os paredões e as vides,
as vontades e as roupas.
Vede como tombam na terra
os filhos ásperos do ódio,
Villagras, Mendozas, Reinosos,
Reyes, Morales, Alderetes,
rolaram para o fundo branco
das Américas glaciais.
E na noite do tempo augusto
caiu Imperial, caiu Santiago,
caiu Villarrica na neve,
rolou Valdivia pelo rio,
até que o reinado fluvial
do Bío-Bío se deteve
sobre os séculos do sangue
e estabeleceu a liberdade
nas areias dessangradas.
XIV
(Intermédio)
A Colônia cobre nossas terras (1)
Quando a espada descansou e os filhos
da Espanha dura, como espectros,
dos reinos e das selvas, até o trono,
montanhas de papel com uivos
enviaram ao monarca ensimesmado:
depois que na viela de Toledo
nu do Guadalquivir na esquina,
toda a história passou de mão em mão,
e pela boca dos portos andou
a mecha esfarrapada
dos conquistadores espectrais,
e os últimos mortos foram postos
dentro do ataúde, com procissões,
nas igrejas construídas com sangue,
a lei chegou ao mundo dos rios
e vejo o mercador com a sua bolsinha.
Ficou escura a extensão matutina,
roupas e teias de aranha propagaram
a escuridão, a tentação, o fogo
do diabo nas habitações.
Uma vela iluminou a vasta América
cheia de nevadas e favos de mel,
e por séculos falou ao homem em voz baixa,
tossiu trotando pelas ruazinhas,
persignou-se perseguindo centavos.
Chegou o nativo às ruas do mundo,
extenuado, levando as valas,
suspirando de amor entre as cruzes,
buscando o escondido
caminho da vida
sob a mesa da sacristia.
A cidade no esperma do cerol
fermentou, sob os panos negros,
e das raspaduras da cera
elaborou maçãs infernais.
América, a copa de acaju,
foi então um crepúsculo de chagas,
um lazareto alagado de sombras,
e no antigo espaço do frescor
cresceu a reverência do verme.
O ouro ergueu sobre as pústulas
maciças flores, heras silenciosas,
edifícios de sombra submersa.
Uma mulher coletava pus,
e o copo de substância
bebeu em honra do céu cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos.
Nas sombras do dia tenebroso
o mercador fez o seu reino
apenas iluminado pela fogueira
em que o herege, retorcido,
feito fagulhas, recebia
sua colheradazinha de Cristo.
No dia seguinte as senhoras,
ajeitando as entretelas,
relembravam o corpo enlouquecido,
atacado e devorado pelo jogo,
enquanto o aguazil examinava
a minúscula mancha do queimado,
graxa, cinza, sangue,
que os cachorros lambiam.
XV
As fazendas (2)
A terra andava entre os morgadios
de dobrão em dobrão, desconhecida,
massa de aparições e conventos,
até que toda a azul geografia
dividiu-se em fazendas e encomiendas.
Pela espaço morto andava a chaga
do mestiço e o chicote
do reinol e do negreiro.
O nativo era um espectro dessangrado
que recolhia as migalhas,
até que estas reunidas
dessem para comprar um título
pintado de letras douradas.
E no carnaval tenebroso
saía vestido de conde,
orgulhoso entre outros mendigos,
com um bastãozinho de prata.
XVI
Os novos proprietários (3)
Estancou-se assim o tempo na cisterna.
O homem dominado nas vazias
encruzilhadas, pedra do castelo,
tinta do tribunal, povoou de bocas
a cerrada cidade americana.
Quando já era a paz e a concórdia,
hospital e vice-rei, quando Arellano,
Rojas, Tapia, Castillo, Núnez, Pérez,
Rosales, López, Jorquera, Bermúdez,
os últimos soldados de Castela,
envelheceram atrás da Audiência,
tombaram.
mortos debaixo do cartapácio,
foram com os seus piolhos para a tumba
onde fiaram sonho
das adegas imperiais, quando
era a ratazana o único perigo
das terras encarniçadas,
assomou-se o biscainho com um saco,
o Errázuriz com suas alpargatas,
o Fernández Larraín a vender vedas,
o Aldunate da baeta,
o Eyzaguirre, rei das meias.
Entraram todos como povo faminto,
fugindo das pancadas, do policia.
Logo, de camiseta em camiseta,
expulsaram o conquistador
e estabeleceram a conquista
do armazém de importados.
Aí adquiriram o orgulho
comprado no mercado negro.
Apropriaram-se
das fazendas, chicotes, escravos,
catecismos, camisarias,
cepos, cortiços, bordéis,
e a tudo isto denominaram
santa cultura ocidental.
XVII
Comuneiros do Socorro (1781)
Foi Manuela Beltrán (quando rasgou os bandos
do opressor e gritou: “Morram os déspotas”)
quem derramou os novos cereais
por nossa terra.
Foi em Nova Granada, na Vila
do Socorro.
Os comuneiros
balançaram o vice-reinado
num eclipse precursor.
Uniram-se contra os estancos,
contra o sujo privilégio,
e levantaram a cartilha
das petições foreiras.
Uniram-se com armas e pedras,
milícia e mulheres, o povo, ordem e fúria, encaminhados
para Bogotá e sua linhagem.
Aí desceu o arcebispo.
“Tereis todos os vossos direitos,
em nome de Deus vos, prometo.
”
O povo juntou-se na praça.
O arcebispo celebrou
uma missa e um juramento.
Ele era a paz justiceira.
“Guardai as armas.
Cada um
em sua casa”, sentenciou.
Os comuneiros entregaram
as armas.
Em Bogotá
festejaram o arcebispo,
celebraram a sua traição,
seu perjúrio, na missa pérfida,
e negaram pão e direito.
Fuzilaram os caudilhos,
repartiram entre os povoados
suas cabeças recém-cortadas,
com as bênçãos do prelado
e os bailes do vice-reinado.
Primeiras, pesadas sementes
lançadas às regiões,
permaneceis, cegas estátuas,
chocando na noite hostil
a insurreição das espigas.
XVIII Tupac-Amaru (1781)
Condorcanqui Tupac-Amaru,
sábio senhor, pai justo,
viste subir a Tungasuca
a primavera desolada
dos patamares andinos
e, com ela, sal e desdita,
iniqüidades e tormentos.
Senhor Inca, pai cacique,
tudo em teus olhos se guardava
como num cofre calcinado
pelo amor e pela tristeza.
O índio te mostrou o ombro
no qual as novas mordidas
brilhavam nas cicatrizes
de outros castigos apagados,
e era um ombro e outro ombro,
todas as alturas sacudidas
pelas cascatas do soluço.
Era um soluço e outro soluço.
Até que armaste a jornada
dos povos cor de terra,
recolheste o pranto em tua taça
e endureceste as veredas.
Chegou o pai das montanhas,
a pólvora levantou caminhos,
e às aldeias humilhadas
chegou o pai da batalha.
Jogaram a manta na poeira,
uniram-se os velhos punhais,
e o búzio matinho
chamou os vínculos dispersos.
Contra a pedra sanguinária,
contra a inércia desgraçada,
contra o metal das correntes.
Porém dividiram o teu povo,
e irmão contra o irmão
mandaram, até que tombaram
as pedras da tua fortaleza.
Ataram os teus membros cansados
a quatro cavalos raivosos
e esquartejaram a luz
do amanhecer implacável.
Tupac-Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o sol do mar
uma luz desaparecida.
As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac germina na terra.
XIX
América insurrecta (1800)
Nossa terra, vasta terra, soledades,
povoou-se de rumores, braços, bocas.
Uma calada sílaba ia ardendo,
congregando a rosa clandestina,
até as campinas trepidarem
recobertas de metais e galopes.
Foi dura a verdade como um arado.
Rompeu a terra, estabeleceu o desejo,
mergulhou suas propagandas germinais
e nasceu na secreta primavera.
Foi silenciada a sua flor, foi rechaçada
sua reunião de luz, foi combatido
o fermento coletivo, o beijo
das bandeiras escondidas,
porém surgiu derrubando as paredes,
apartando os cárceres do chão.
O povo escuro foi a sua taça,
recebeu a substância rechaçada,
propagando-a aos limites marítimos,
repisando-a em almofarizes indomáveis.
E saiu com as páginas feridas
e com a primavera do caminho.
Hora de ontem, hora do meio-dia,
hora de hoje outra vez, hora esperada
entre o minuto morto e o que nasce
na eriçada idade da mentira.
Pátria, nasceste dos lenhadores,
de filhos sem batizar, de carpinteiros,
dos que deram qual uma ave estranha
uma gota de sangue voador
e hoje duramente nascerás de novo,
lá onde o traidor e o carcereiro
te acreditam submersa para sempre.
Hoje do povo nascerás como outrora.
Hoje sairás do carvão e do orvalho.
Hoje chegarás a sacudir as portas
com mãos maltratadas, com pedaços
de alma sobrevivente, com racimos
de olhares que a morte não extinguiu,
com ferramentas agrestes
armadas entre farrapos.
XX
Bernardo O'Higgins Riquelme (1810)
O'Higgins, para celebrar-te
à meia-luz há que iluminar a sala.
À meia-luz do sul no outono
com tremor infinito de álamos.
És o Chile, entre patriarca e cavaleiro,
és um poncho de província, um menino
que ainda não sabe o seu nome,
um menino férreo e tímido na escola,
um rapazinho triste de província.
Em Santiago te sentes mal, te espiam
a roupa negra que te sobra,
e ao cruzar-te a fita, a bandeira
da pátria que nos fizeste,
tinha um cheiro de joio matutino
para o teu peito de estátua campestre.
Jovem, teu professor Inverno te acostumou à chuva
e na universidade das ruas de Londres
a névoa e a pobreza te outorgaram seus títulos
e um elegante pobre, errante incêndio
da nossa liberdade,
te deu conselhos de águia prudente
e te embarcou na história.
“Como se chama o senhor?”, riam
os “cavalheiros” de Santiago:
filho de amor, de uma noite de inverno,
a tua condição de abandonado
te construiu com argamassa agreste,
com seriedade de casa ou de madeira
trabalhada no sul, definitiva,
Tudo o tempo muda, menos o teu rosto.
És, O'Higgins, relógio invariável
com uma só hora em tua cândida esfera:
a hora do Chile, o único minuto
que permanece no horário vermelho
da dignidade combatente.
Assim o mesmo estarás entre os móveis
de goiabeira e as filhas de Santiago
ou em Rancagua rodeado de morte e pólvora.
És o mesmo sólido retrato
de quem não tem pai, só tem a pátria
de quem não tem noiva, só tem aquela
terra de flor de laranjeira
que te conquistará a artilharia.
Te vejo no Peru escrevendo cartas.
Não há desterrado igual, maior exílio.
É toda a província desterrada.
O Chile iluminou-se como um salão
quando não estavas.
Em dissipação
um rigodão de ricos substitui
a tua disciplina de soldado ascético,
e a pátria ganhada pelo teu sangue
sem ti foi governada como um baile
que o povo faminto espia de fora.
Já não podias entrar na festa
com suor, sangue e pó de Rancagua.
Não teria sido de bom-tom
para os cavalheiros capitais.
Teria contigo entrado o caminho,
um cheiro de suor de cavalos,
o cheiro da pátria na primavera.
Não podias estar neste baile.
A tua festa foi um castelo de explosões.
O teu baile desgrenhado é a contenda.
Teu fim de festa foi a sacudidela
da derrota, o porvir aziago
para Mendoza, com a pátria nos braços.
Olha agora no mapa para baixo,
para o delgado cinturão do Chile
e coloca na neve soldadinhos,
jovens pensativos na areia,
sapadores que brilham e se apagam.
Fecha os olhos, dorme, sonha um pouco,
o único sonho, o único que volta
a teu coração: uma bandeira
de três cores no sul, a chuva
caindo, o sol rural sobre a tua terra,
os disparos do povo em rebeldia
e duas ou três palavras tuas quando
fossem estritamente necessárias.
Se sonhas, o teu sonho hoje está cumprido.
Sonha-o, pelo menos, em teu túmulo.
Nada mais saibas porque, como antes,
depois das batalhas vitoriosas,
dançam os señoritos no palácio
e o mesmo rosto faminto
espia da sombra das ruas.
Porém herdamos a tua firmeza,
o teu inalterável coração calado,
a tua indestrutível posição paterna,
e tu, entre a avalancha cegadora
de hussardos do passado, entre os ágeis
uniformes azuis e dourados,
estás hoje conosco, és nosso,
pai do povo, imutável soldado.
XXI
San Martín (1810)
Andei, San Martín, tanto e de lugar em lugar,
que descartei o teu traje, tuas esporas, sabia
que algum dia, andando pelos caminhos
feitos para voltar, nos finais
de cordilheira, na pureza
da intempérie que de ti herdamos,
acabaríamos nos vendo de um dia para outro.
Custa distinguir entre os nós
de ceibo, entre raízes,
entre veredas assinalar o teu rosto,
entre as aves distinguir o teu olhar,
encontrar no ar a tua existência.
És a terra que nos deste, um ramo
de cedrón que fere com o seu aroma,
que não sabemos onde está, de onde
chega o seu odor de pátria às pradarias.
Te galopamos, San Martín, saímos
amanhecendo a percorrer o teu corpo,
respiramos hectares de tua sombra,
fazemos fogo sobre a tua estatura.
És extenso entre todos os heróis.
Outros foram de planície em planície,
de encruzilhada em torvelinho,
tu foste construído de confins
e começamos a ver a tua geografia,
tua planície final, teu território.
Enquanto amadurecido o tempo dissemina
como água eterna os torrões
do rancor, os afiados
abraços da fogueira,
mais terreno compreendes, mais sementes
de tua tranqüilidade povoam os montes,
mais extensão dás à primavera.
O homem que constrói é logo o fumo
do que construiu, ninguém renasce
de seu próprio braseiro consumido:
de sua diminuição fez estoque, caiu quando somente teve o pó.
Tu abarcaste na morte mais espaço.
Tua morte foi um silêncio de celeiro.
Passou a vida tua, e outras vidas,
portas se abriram, muros se ergueram,
e a espiga saiu para ser derramada.
San Martín, outros capitães
fulguram mais do que tu, levam bordados
seus pâmpanos de sol fosforescente,
outros ainda falam como cachoeiras,
mas não há nenhum como tu, vestido
de terra e solidão, de neve e trevo.
Te encontramos no retorno do rio,
te saudamos na forma agrária
da Tucumania florida,
e nos caminhos, a cavalo,
te cruzamos correndo e levantando
a tua vestimenta, pai poeirento.
Hoje o sol e a lua, o vento grande
maduram a tua estirpe, a tua singela
composição: a tua verdade era
verdade de terra, arenoso amassilho,
estável como o pão, lâmina fresca
de argila e cereais, pampa puro.
E assim és até hoje, lua e galope,
estação de soldados, intempérie,
por onde vamos mais uma vez guerreando,
caminhando entre vilas e planuras,
instituindo a tua verdade terrestre,
esparzindo o teu germe espaçoso,
abanando as páginas do trigo.
Assim seja, e que não nos acompanhe
a paz até que entremos
depois dos combates em teu corpo
e durma a medida que tivemos
em tua extensão de paz germinadora.
XXII
Mina (1817)
Mina, das vertentes montanhosas
chegaste como um fio de água dura.
Espanha clara, Espanha transparente
te pariu entre dores, indomável,
e tens a dureza luminosa
da água torrencial da montanha.
Longamente, nos séculos e nas terras,
sombra e fulgor em teu berço lutaram,
unhas rampantes degolavam
a claridade do povo,
e os antigos falcoeiros,
em suas ameias eclesiásticas,
espreitavam o pão, negavam
entrada ao rio dos pobres.
Mas sempre na torre impiedosa,
Espanha, existe um espaço
para o diamante rebelde e sua estirpe
de luz agonizante e renascente.
Não em vão o estandarte de Castela
tem a cor do vento comuneiro,
não em vão por teus vales de granito
corre a luz azul de Garcilaso,
não em vão em Córdoba, entre aranhas
sacerdotais, deixa Góngora
as suas bandejas de pedrarias
aljofaradas pelo gelo.
Espanha, entre as tuas garras
de cruel antigüidade, o teu povo puro
sacudiu as raízes do tormento,
sufragou as azêmolas feudais
com invencível sangue derramado,
e em ti a luz, como a sombra, é velha,
gastada em devorantes cicatrizes.
Junto à paz do pedreiro cruzada
pela respiração dos carvalhos,
junto aos mananciais estrelados
nos quais fitas e sílabas reluzem,
sobre a tua idade, como um tremor sombrio,
vive em sua escalinata um gerifalte.
Fome e dor foram a sílica
de tuas areias ancestrais
e um tumulto surdo, enredado
às raízes de teus povos,
deu à liberdade do mundo
uma eternidade de relâmpagos,
de cantos e de guerrilheiros.
As ribanceiras de Navarra
guardaram o raio recente.
Mina arrancou do precipício
o colar de seus guerrilheiros:
das aldeias invadidas,
das povoações noturnas
extraiu o fogo, alimentou
a abrasadora resistência,
atravessou fontes nevadas,
atacou em rápidas voltas,
surgiu dos desfiladeiros,
brotou das pradarias.
Foi sepultado em prisões,
e ao alto vento da serra
retornou, revolto e sonoro,
seu manancial intransigente.
À América o leva o vento
da liberdade espanhola,
e de novo atravessa bosques
e fertiliza as campinas
seu coração inesgotável.
Em nossa luta, em nossa terra
se sangraram seus cristais,
lutando pela liberdade
indivisível e desterrada.
No México ataram a água
das vertentes espanholas.
E ficou imóvel e calada
a sua transparência caudalosa.
XXIII
Miranda morre na névoa (1816)
Se entrais na Europa tarde com cartola
no jardim condecorado
por mais de um outono junto ao mármore
da fonte enquanto caem folhas
de ouro andrajoso no Império
se a porta recorta uma figura
sobre a noite de São Petersburgo
tremem os cascavéis do trenó
e alguém na soledade branca alguém
o mesmo tempo a mesma pergunta
se sais pela florida porta
da Europa um cavalheiro sombra traje
inteligência signo cordão de ouro
Liberdade Igualdade olha seu rosto
entre a artilharia que troveja
se nas ilhas a alfombra o conhece
a que recebe oceanos Passe o Senhor Já o creio
Quantas embarcações E a névoa
seguindo passo a passo a sua jornada
se nas cavidades de lojas livrarias
há alguém luva espada com um mapa
com a pasta petulante cheia
de povoações de navios de ar
se em Trinidad pela costa o fumo
de um combate e de outro o mar de novo
e outra vez a escada de Bay Street a atmosfera
que o recebe impenetrável
como um compacto interior de maçã
e outra vez esta mão patrícia este azulado
guante guerreiro na ante-sala
longos caminhos guerras e jardins
a derrota em seus lábios outro sal
outro sal outro vinagre ardente
se em Cádiz amarrado ao muro
pela grossa corrente seu pensamento o frio
horror de espada o tempo o cativeiro
se baixas a subterrâneos entre ratazanas
e a alvenaria leprosa outro ferrolho
num caixão de enforcado o velho rosto
onde morreu afogada uma palavra
uma palavra nosso nome a terra
aonde queriam ir seus passos
a liberdade para seu fogo errante
o descem com cordéis à molhada
terra inimiga ninguém saúda faz frio
faz frio de tumba na Europa.
XXIV
José Miguel Carrera (1810)
EPISÓDIO Disseste Liberdade antes de ninguém,
quando o sussurro ia de pedra em pedra,
escondido nos pátios, humilhado.
Disseste Liberdade antes de ninguém.
Libertaste o filho do escravo.
Iam como as sombras mercadores
vendendo o sangue de mares estranhos.
Libertaste o filho do escravo.
Fundaste a primeira imprensa.
Chegou a letra ao povo obscurecido,
a notícia secreta abriu os lábios.
Fundaste a primeira imprensa.
Implantaste a escola no convento.
Retrocedeu a gorda teia de aranha
e o rincão dos dízimos sufocantes.
Implantaste a escola no convento.
CORO
Conheça-se a tua condição altiva,
senhor cintilante e aguerrido.
Conheça-se o que tombou brilhando
de tua velocidade sobre a pátria.
Vôo bravio, coração de púrpura.
Conheçam-se as tuas chaves desbeiçadas
abrindo os ferrolhos da noite.
Ginete verde, raio tempestuoso.
Conheça-se o teu amor de mãos cheias,
a tua lâmpada de luz vertiginosa.
Racimo de uma cepa transbordante.
Conheça-se o teu esplendor instantâneo,
o teu errante coração, o teu fogo diurno.
Ferro iracundo, pétala patrícia.
Conheça-se o teu raio de ameaça
destroçando as cúpulas covardes.
Torre de tempestade, ramo de acácia.
Conheça-se a tua espada vigilante,
a tua fundação de força e meteoro.
Conheça-se a tua rápida grandeza.
Conheça-se a tua indomável compostura.
EPISÓDIO Vai pelos mares, entre idiomas,
vestidos, aves estrangeiras,
traz naves libertadoras,
escreve fogo, ordena nuvens,
desentranha sol e soldados,
cruza a névoa em Baltimore
consumindo-se de porta em porta,
créditos e homens o desbordam,
todas as ondas o acompanham.
Junto ao mar de Montevidéu,
em sua casa desterrada,
abre uma oficina, imprime balas.
Rumo ao Chile vive a flecha
de sua direção insurgente,
arde a fúria cristalina
que o conduz, e endereça
a cavalgada do resgate
montado nas crinas ciclônicas
de sua despenhada agonia.
Seus irmãos aniquilados
gritam para ele do paredão
da vingança.
Sangue seu
tinge como labareda
nos adobes de Mendoza
seu trágico trono vazio.
Sacode a paz planetária
do pampa como um circuito
de vaga-lumes infernais.
Açoita as cidadelas
com o uivo das tribos.
Enfeixa as cabeças cativas
no furacão das lanças.
Seu poncho desatado
relampeja na fumarada
e na morte dos cavalos.
Jovem Pueyrredón, não relates
o desolado calafrio
de seu final, não me atormentes
com a noite do abandono,
quando o levam a Mendoza
mostrando o marfim de sua máscara
a solidão de sua agonia.
CORO Pátria, preserva-o em teu manto,
acolhe este amor peregrino:
não o deixes rolar para o fundo
de sua tenebrosa desgraça:
ergue a teu rosto este fulgor,
esta lâmpada inolvidável,
prega de novo esta renda frenética,
chama esta pálpebra estrelada,
guarda o novelo deste sangue
para as tuas teias orgulhosas.
Pátria, recolhe esta carreira,
a luz, a gota malferida,
este cristal agonizante,
este vulcânico anel.
Pátria, galopa para defendê-lo,
galopa, corre, corre, corre.
ÊXODO Levam-no até os muros de Mendoza,
à árvore cruel, à vertente
de sangue inaugurado, ao solitário
tormento, ao final frio da estrela.
Vai pelos caminhos inconclusos,
sarça e taipais desdentados,
álamos que lhe atiram ouro morto,
rodeado por seu orgulho inútil
como por uma túnica andrajosa
a que o pó da morte chega.
Pensa em sua dessangrada dinastia,
na luta inicial sobre os carvalhos
desgarradores da infância,
a escola castelhana e o escudo
rubro e viril da milícia hispânica,
sua tribo assassinada, a doçura
do matrimônio, entre as flores de laranjeira,
o desterro, as lutas pelo mundo,
O'Higgins enigma embandeirado,
Javiera sem saber nos remotos
jardins de Santiago.
Mendoza insulta sua linhagem negra,
ataca a sua vencida investidura,
e entre as pedras lançadas sobe
para a morte.
Nunca um homem teve
um final mais exato.
Das ásperas
investidas, entre vento e animais,
até a azinhaga onde sangraram
todos os de seu sangue.
Cada degrau
do cadafalso o ajusta ao seu destino.
Já ninguém pode continuar a cólera.
A vingança, o amor fecham as portas.
Os caminhos amarraram o errante.
E quando disparam, e através
de seu pano de príncipe do povo
assoma sangue, é sangue que conhece
a tetra infame, sangue que chegou
aonde tinha de chegar, ao chão
de lagares sedentos que esperavam
as uvas derrotadas de sua morte.
Indagou pela neve da pátria.
Tudo era névoa nos eriçados altos.
Viu os fuzis cujo ferro
fez nascer o seu amor desmoronado,
sentiu-se sem raízes, passageiro
do fumo, na batalha solitária,
e caiu envolto em pó e sangue
como em dois braços de bandeira.
CORO Hussardo infortunado, jóia ardente,
sarça acesa na pátria nevada.
Chorai por ele, chorai até que molhem,
mulheres, as vossas lágrimas a terra,
a terra que ele amou, a sua idolatria.
Chorai, guerreiros ásperos do Chile,
acostumados à montanha e à onda,
este vazio é qual uma nevada,
esta morte é o mar que nos atinge.
Não pergunteis por quê, ninguém diria
a verdade destroçada pela pólvora.
Não pergunteis quem foi, ninguém arrebata
o crescimento da primavera,
ninguém matou a rosa do irmão.
Guardemos cólera, dor e lágrimas,
enchamos o vazio desolado
e que recorde a fogueira na noite
a luz das estrelas falecidas.
Irmã, guarda o teu rancor sagrado.
A vitória do povo necessita
a voz de tua ternura triturada.
Estendei mantos em sua ausência
para que possa - frio e enterrado -
com o seu silêncio sustentar a pátria.
Mais de uma vida foi a sua vida.
Buscou a integridade como uma chama.
A morte foi com ele até deixá-lo
para sempre completo e consumido.
ANTÍSTROFE Guarde o loureiro doloroso a sua extrema substância de inverno.
A sua coroa de espinhos levemos areia radiante,
fios de estirpe araucana resguardem a lua mortuária,
folhas de boldo fragrante resolvam a paz de sua tumba,
neve nutrida nas águas imensas e escuras do Chile,
plantas que amou, melissas em xícaras de argila silvestre,
ásperas plantas amadas pelo amarelo centauro,
negros racimos transbordantes de elétrico outono na terra,
olhos sombrios que arderam sob os seus beijos terrestres.
Levante a pátria as suas aves, suas asas injustas, suas pálpebras rubras,
voe até o hussardo ferido a voz do queltehue na água,
sangre a loica a sua mancha de aroma escarlate rendendo tributo
àquele cujo vôo estendera a noite nupcial da pátria
e o condor suspenso na altura imutável coroe com plumas sangrentas
o peito adormecido, a fogueira que jaz nos degraus da cordilheira,
parta o soldado a rosa iracunda esmagada no muro esmagado,
pule o camponês ao cavalo de negra montaria e focinho de espuma,
volte ao escravo do campo a sua paz de raízes, o seu escudo enlutado,
levante o mecânico a sua pálida torre tecida de estanho noturno:
o povo que nasce no berço torcido de vimes e mãos de herói,
o povo que sobe de negros adobes de minas e bocas sulfúricas,
o povo levante o martírio e a urna e envolva a lembrança
com a sua ferroviária grandeza e a sua eterna balança de pedras e feridas
até que a terra fragrante decrete copihues molhados e livros abertos,
ao menino invencível, à lufada insigne, ao terno temível e acerbo soldado.
E guarde seu nome o duro domínio do povo em sua luta,
como o nome da nave resiste ao combate marinho:
a pátria em sua proa o inscreva e o beije o relâmpago
porque assim foi a sua livre e delgada e ardente matéria.
XXV
Manuel Rodríguez
CUECA Senhora, dizem que onde,
minha mãe dizem, disseram,
a água e o vento dizem
que viram o guerrilheiro.
Vida
Pode ser um bispo,
pode e não pode,
pode ser só o vento
sobre a neve:
sobre a neve, sim,
mãe, não olhes,
que chega a galope
Manuel Rodríguez.
Já vem o guerrilheiro
pelo ribeiro.
CUECA Saindo de Melipilla,
correndo por Talagante,
cruzando por San Fernando,
amanhecendo em Pomaire.
Paixão
Passando por Rancagua,
por San Rosendo,
por Cauquenes, por Chena,
por Nacimiento:
por Nacimiento, sim,
desde Chiñigüe,
por toda parte vem
Manuel Rodríguez.
Este cravo lhe damos,
com ele vamos.
CUECA Que se apague a guitarra,
que a pátria está de luto.
Nossa terra fica escura.
Mataram o guerrilheiro.
E Morte
Em Til-Til foi morto
por assassinos,
suas costas sangram
pelo caminho:
pelo caminho, sim.
Quem o diria,
ele que era o nosso sangue,
nossa alegria.
A terra está chorando.
Vamos nos calando.
XXVI
Artigas
(I)
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuosa
a sua passagem porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do ermo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaiano rocio.
(II)
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves tagarelas, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavalheiros amargos
que pela fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota,
estende-se o uníssono nome de pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.
(III)
Ó Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
o teu poncho estrelado de constelações que conhecias,
até que o sangue corrompesse e redimisse a aurora, e acordassem teus homens
marchando vergados pelos poeirentos entrançados do dia.
Ó pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!
(IV)
Passaram os dias de um século e seguiram as horas atrás de teu exílio:
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro:
atrás do silêncio no qual só tombavam os frutos apodrecidos sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desatada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do chicote, os cepos, os corpos roídos de escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com os seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.
(V)
“Amargo trabalha o exílio”, escreveu esse irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
opresso no imóvel olhar de vidro de um déspota num reino vazio.
(VI)
A América tua tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus, corriam até o [sacrifício:
morriam, nasciam, caíam: os olhos do cego matavam: a voz dos mudos
falava.
Os mortos, por fim, encontraram partido,
por fim conheceram o seu bando patrício na morte.
E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fileira: a terra não tem adversários.
(VII)
Uruguai é palavra de pássaro, o idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques na máscara azul do Atlântico.
Uruguai é a roupa estendida no ouro dum dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.
(VIII)
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas, te devia,
[Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta,
[recolhi os herbários do rio,
afundei a minha cabeça em tua areia e na prata dos peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desarrumados mercados
me purifiquei, até sentir-me devedor de teu olor e teu amor.
E talvez esteja escrito o rumor que teu amor e teu olor me conferiram
nestas palavras obscuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.
XXVII
Guayaquil (1822)
Quando entrou San Martín, algo noturno
de caminho impalpável, sombra, couro,
entrou na sala.
Bolívar esperava.
Bolívar farejou o que chegava.
Era aéreo, rápido, metálico,
todo antecipação, ciência do vôo,
seu contido ser tremulava
ali, no quarto imobilizado
na escuridão da história.
Vinha das alturas indizíveis
da atmosfera constelada,
ia seu exército em frente
quebrando noite e distância,
capitão de um corpo invisível,
da neve que o seguia.
A lâmpada tremeu, a porta
atrás de San Martin manteve
a noite, seus ladridos, seu tumor
tíbio de desembocadura.
As palavras abriram uma trilha
que neles mesmos ia e vinha.
Aqueles dois corpos se falavam,
se rechaçavam, se escondiam,
se incomunicavam, se fugiam.
San Martín trazia do sul
um saco de números cinzentos,
a solidão das montarias
infatigáveis, os cavalos
batendo terras, agregando-se
a sua fortaleza arenária.
Entraram com ele os ásperos
arrieiros do Chile, um lento
exército ferruginoso,
o espaço preparatório,
as bandeiras com apelidos
envelhecidos no pampa.
O quanto falaram caiu de corpo a corpo
no silêncio, no fundo interstício.
Não eram palavras, era a profunda
emanação das terras adversas,
da pedra humana que toca
outro metal inacessível.
As palavras voltaram a seus lugares.
Cada um, diante de seus olhos
via as suas bandeiras.
Um, o tempo com flores deslumbrantes,
outro, o roído passado,
os farrapos da tropa.
Junto a Bolívar uma mão branca
o esperava, o despedia,
acumulava o seu acicate ardente,
estendia o linho no tálamo.
San Martín era fiel a seus prados.
Seu sonho era um galope,
uma rede de correias e perigos.
Sua liberdade era um pampa unânime.
Uma ordem cereal foi a sua vitória.
Bolívar construía um sonho,
uma ignorada dimensão, um fogo
de velocidade duradoura,
tão incomunicável que o fazia
prisioneiro, entregue à sua substância.
Caíram as palavras e o silêncio.
Abriu-se outra vez a porta, outra vez toda
a noite americana, o largo rio
de muitos lábios palpitou um segundo.
San Martín regressou daquela noite
às soledades e ao trigo.
Bolívar continuou só.
XXVIII
Sucre
Sucre nas altas terras desbordando
o amarelo perfil dos montes,
Hidalgo tomba, Morelos recolhe
o ruído, o tremor de um sino
propagado na terra e no sangue.
Páez percorre os caminhos repartindo o ar conquistado,
cai o orvalho em Cundinamarca
sobre a fraternidade das feridas,
o povo insurge inquieto
desde a latitude à secreta
célula, emerge um mundo
de despedidas e galopes,
nasce a cada minuto uma bandeira
qual uma flor antecipada:
bandeiras feitas de lenços
sangrentos e de livros livres,
bandeiras arrastadas pelo pó
dos caminhos, destroçadas
pela cavalaria, abertas
por estampidos e relâmpagos.
As bandeiras
Nossas bandeiras daquele tempo
fragrante, bordadas apenas,
nascidas apenas, secretas
como um profundo amor, de súbito
encarniçadas ao vento
azul da pólvora amada.
América, extenso berço, espaço
de estrela, romã madura,
de súbito encheu-se de abelhas
a tua geografia, de sussurros
conduzidos pelos adobes
e pelas pedras, de mão em mão,
encheram-se de roupas as ruas
como colméia atordoada.
Na noite dos disparos
v baile brilhava nos olhos,
subia como uma laranja a flor de laranjeira pelas muralhas,
beijos de adeus, beijos de farinha,
o amor amarrava beijos,
e a guerra cantava com
a sua guitarra pelos caminhos.
XXIX
Castro Alves do Brasil
Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?
Para a flor cantaste? Para a água
cuja formosura diz palavras às pedras?
Cantaste para os olhos, para o perfil recortado
da que então amaste? Para a primavera?
Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho,
aquelas águas negras não tinham palavras,
aqueles olhos eram os que viram a morte,
ardiam ainda os martírios por detrás do amor,
a primavera estava salpicada de sangue.
- Cantei para os escravos, eles sobre os navios,
como um cacho escuro da árvore da ira
viajaram, e no porto se dessangrou o navio
deixando-nos o peso de um sangue roubado.
- Cantei naqueles dias contra o inferno,
contra as afiadas línguas da cobiça,
contra o ouro empapado de tormento,
contra a mão que empunhava o chicote,
contra os dirigentes de trevas.
- Cada rosa tinha um morto nas raízes.
A luz a noite, o céu, cobriam-se de pranto,
os olhos apartavam-se das mãos feridas
e era a minha voz a única que enchia o silêncio.
- Eu quis que do homem nos salvássemos,
eu cria que a rota passasse pelo homem,
e que daí tinha de sair o destino.
Cantei para aqueles que não tinham voz.
Minha voz bateu em portas até então fechadas
para que, combatendo, a liberdade entrasse.
Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro
torna a nascer para a terra livre,
deixa-me a mim, poeta da nossa América,
coroar a tua cabeça com os louros do povo.
Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens.
Cantaste bem.
Cantaste como se deve cantar.
XXX
Toussaint L'Ouverture
Haiti, de sua doçura emaranhada,
extrai pétalas patéticas,
retitude de jardins, edifícios
de grandeza, arrulha
o mar como um avô escuro
sua velha dignidade de pele e espaço.
Toussaint L'Ouverture ata
a vegetal soberania,
a majestade acorrentada,
a surda voz dos tambores,
e ataca, cerra o passo, sobe,
ordena, expulsa, desafia
como um monarca natural,
até que cai na rede tenebrosa
e o levam pelos mares
arrastado e atropelado
como o regresso de sua raça,
atirando à morte secreta
das sentinas e dos sótãos.
Mas na ilha ardem as penhas,
falam os ramos escondidos,
se transmitem as esperanças,
surgem os muros do baluarte.
A liberdade é o bosque teu,
escuro irmão, preserva
a tua memória de sofrimentos
e que os heróis passados
custodiem a tua mágica espuma.
XXXI
Morazán (1842)
Alta noite e Morazán vela.
É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.
Fita central, América angustura que os golpes azuis de dois mares
foram fazendo, levantando no ar
cordilheiras e plumas de esmeralda:
território, unidade, delgada deusa
nascida no combate da espuma.
Desmoronam-se filhos e vermes,
estendem-se sobre ti as alimárias
e uma tenaz te arrebata o sonho
e um punhal com teu sangue te salpica
enquanto se despedaça o teu estandarte.
Alta é a noite e Morazán vela,
Já vem o tigre brandindo um machado.
Vêm para devorar-te as entranhas.
Vêm para dividir as estrelas.
Vêm,
pequena América olorosa,
para cravar-te na cruz, para desolar-te,
para derrubar o metal de tua bandeira.
Alta é a noite e Morazán vela.
Invasores encheram a tua casa.
E te partiram como fruta morta,
e outros carimbaram em tuas costas
os dentes de uma estirpe sanguinária,
e outros te saquearam nos portos
carregando sangue sobre as tuas dores.
É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.
Irmãos, amanhece.
(E Morazán vela.
)
XXXII
Viagem pela noite de Juárez
Juárez, se recolhêssemos
o íntimo estrato, a matéria
da profundidade, se cavando tocássemos
o profundo metal das repúblicas,
esta unidade seria a tua estrutura,
a tua impassível bondade, a tua mão teimosa.
Quem olha a tua sobrecasaca,
a tua parca cerimônia, o teu silêncio,
o teu rosto feito de tetra americana,
se não é daqui, se não nasceu nestas
planícies, na argila montanhosa
de nossas soledades, não entende.
Te falarão divisando uma pedreira.
Te passarão como se passa um rio.
Darão a mão a uma árvore, a um sarmento,
a um sombrio caminho da terra.
Para nós és pão e pedra,
forno e produto da estirpe escura.
Teu rosto foi nascido em nosso barro.
Tua majestade é a minha região nevada,
teus olhos a enterrada olaria.
Outros terão o átomo e a gota
do elétrico fulgor, de brasa inquieta:
tu és muro feito de nosso sangue,
tua retidão impenetrável
sai de nossa dura geologia.
Nada tens para dizer ao ar,
ao vento de ouro que vem de longe,
que o diga a terra ensimesmada,
a cal, o mineral, a levedura.
Visitei eu os muros de Querétaro,
toquei cada penhasco na colina,
a distância, a cicatriz e a cratera,
o cacto de ramagens espinhosas:
ninguém persiste ali, foi o fantasma,
ninguém ficou dormido na dureza:
só existem a luz e os aguilhões
do matagal, e uma presença pura:
Juárez, a tua paz de noite justiceira,
definitiva, férrea e estrelada.
XXXIII
O vento sobre Lincoln
À s vezes o vento do sul resvala
sobre a sepultura de Lincoln trazendo
vozes e brisas de cidades e árvores
nada se passa em sua tumba as letras não se mexem
o mármore se suaviza com a lentidão de séculos
o velho cavaleiro já não vive
não existe o buraco de sua antiga camisa
se mesclaram as fibras do tempo e o pó humano
que a vida tão realizada diz uma tremelicante
senhora da Virgínia uma escola que canta
mais de uma escola canta pensando em outras coisas
mas o vento do sul a emanação de terras
de caminhos às vezes se detém na tumba
sua transparência é um periódico moderno
chegam surdos rancores lamentos como aqueles
o sonho imóvel vencedor jazia
sob os pés cheios de barro que passaram
cantando e arrastando fadiga e sangue
pois bem nesta manhã volta ao mármore o ódio
0 ódio do sul branco pelo velho adormecido
nas igrejas os negros estão sozinhos com Deus
com Deus conforme acreditam nas praças
nos trens o mundo tem certos letreiros
que dividem o céu a água o ar
que vida mais perfeita diz a delicada
senhorita e na Geórgia matam a pau
todas as semanas um jovem negro
enquanto Paul Robeson canta como a terra
como o começo do mar e da vida
canta sobre a crueldade e os anúncios
de coca-cola canta para os irmãos
de mundo a mundo entre os castigos
canta para os novos filhos para
que o homem ouça e suste o seu chicote
a mão cruel a mão que Lincoln abatera
a mão que ressurge como branca víbora
o vento passa o vento sobre a tumba traz
conversações restos de juramentos algo
que chora sobre o mármore como chuva fina
de antigas e esquecidas dores insepultas
o Klan matou um bárbaro perseguindo-o
enforcando o pobre negro a uivar queimando-o
vivo e esburacado pelos tiros
debaixo dos capuzes os prósperos rotarianos
não sabem assim crêem que são só verdugos
covardes carniceiros detritos do dinheiro
com a cruz de Caim regressam
para lavar as mãos e rezar no domingo
telefonam ao Senado contando suas façanhas
disto nada fica sabendo o morto de Illinois
porque o vento de hoje fala uma linguagem
de escravidão de fúrias de cadeias
e através das lousas o homem já não existe
é um esmiuçado polvilho de vitória
de vitória arrasada depois do triunfo morto
não só a camisa do homem se gastou
não só o buraco da morte nos mata
mas também a primavera repetida o transcurso
que rói o vencedor com o seu canto covarde
morre o valor de ontem derramam-se de novo
as furiosas bandeiras do malvado
alguém canta junto ao monumento é um coro
de meninas de escola vozes ácidas
que sobem sem tocar o pó externo
que passam sem descer ao lenhador adormecido
à vitória morta sob as reverências
enquanto burlão e viajeiro sorri o vento sul.
XXXIV
Martí (1890)
Cuba, flor espumosa, efervescente
açucena escarlate, jasmineiro,
custa-se a encontrar sob a rede florida
o teu sombrio carvão martirizado,
a antiga ruga deixada pela morte,
a cicatriz coberta de espuma.
Porém dentro de ti como clara
geometria de neve germinada,
onde se abrem tuas últimas cortiças,
jaz Martí como pura amêndoa.
Está no fundo circular da aragem,
está no centro azul do território,
e reluz como uma gota d'água
sua adormecida pureza de semente.
É de cristal a noite que o cobre.
Pranto e dor, de súbito, cruéis gotas
atravessam a terra até o recinto
da infinita claridade adormecida.
O povo às vezes baixa suas raízes
através da noite até tocar
a água quieta em seu pranto oculto.
À vezes cruza o rancor iracundo
pisoteando semeadas superfícies
e um morto cai na taça do povo.
Às vezes volta o açoite enterrado
a silvar na brisa da cúpula
e uma gota de sangue qual uma pétala
cai no chão e mergulha no silêncio.
Tudo chega ao fulgor imaculado.
Os tremores minúsculos batem
às portas do cristal oculto.
Toda lágrima toca a sua corrente.
Todo fogo estremece a sua estrutura.
E assim da jacente fortaleza,
do oculto germe caudaloso
saem os combatentes da ilha.
Chegam de um manancial determinado.
Nascem de uma vertente cristalina.
XXXV
Balmaceda de Chile (1891)
Mr.
North chegou de Londres.
É um magnata no nitrato.
Antes trabalhou no pampa,
de jornaleiro, algum tempo,
mas despediu-se e se foi.
Volta agora, envolto em libras.
Traz dois cavalinhos árabes
e uma pequena locomotiva
toda de ouro.
São presentes
para o presidente, um tal
de José Manuel Balmaceda.
“You are very clever, Mr.
North.
”
Rubén Darío entra por esta casa,
por esta presidência como quer.
Uma garrafa de conhaque o espeta.
O jovem Minotauro envolto em névoa
de rios, transpassado de sons,
sobe a grande escada que será
tão difícil de subir para Mr.
North.
O presidente regressou há pouco
do desolado norte salitroso,
ali dizendo: “Esta terra, esta riqueza
será do Chile, esta matéria branca
converterei em escolas, em estradas,
em pão para o meu povo”.
Agora entre papéis, no seu palácio,
sua fina forma, seu intenso olhar,
olha para os desertos do salitre.
Seu nobre rosto não sorri.
A cabeça, de pálida postura,
tem a antiga qualidade de um morto,
de um velho antepassado da pátria.
Todo o seu ser é um exame solene.
Algo desassossega, como rajada fria,
a sua paz, o seu movimento pensativo.
Rechaçou os cavalos, a maquininha de ouro
de Mr.
North.
Remeteu-os sem vê-los
para o dono, o poderoso gringo.
Apenas acenou com a mão desdenhosa.
“Agora, Mr.
North, não posso
entregar-lhe estas concessões,
não posso amarrar a minha pátria
aos mistérios da City.
”
Mr.
North instala-se no Club.
Cem uísques vão para a sua mesa,
cem jantares para advogados,
para o Parlamento, champanha
para os tradicionalistas.
Correm agentes para o norte,
os fios vão e vêm e voltam.
As suaves libras esterlinas
tecem como aranhas douradas
uma teia inglesa, legítima
para o meu povo, uma roupa, sob medida
de sangue, pólvora e miséria.
“You are very clever, Mr.
North.
”
A sombra sitia Balmaceda.
Ao chegar o dia, o insultam
e o escarnecem os aristocratas,
ladram-lhe no Parlamento,
o fustigam e caluniam.
Produzem a batalha, e ganharam.
Mas não basta: é preciso torcer
a história.
As boas vinhas
se “sacrificam” e o álcool
enche a noite miserável.
Os elegantes mocinhos
marcam as portas e uma horda
assalta as casas, arremessa
os pianos dos balcões.
Aristocrático piquenique
com cadáveres no canal
e champanha francês no Club.
“You are very clever, Mr.
North.
”
A embaixada argentina abriu
as suas portas ao presidente.
Nessa tarde escreve com a mesma
segurança de mão fina,
a sombra penetra seus grandes olhos
como escura mariposa,
de profundidade fatigada.
E a magnitude de seu rosto
sai do mundo solitário,
da pequena moradia,
ilumina a noite escura.
Escreve seu nítido nome,
as letras de longo perfil
de sua doutrina traída.
Tem o revólver na mão.
Olha através da janela
um derradeiro trecho da pátria,
pensando em todo o longo corpo
do Chile, sombreado
como uma página noturna.
Viaja e sem ver cruzam seus olhos,
como nas vidraças de um trem,
rápidos campos, casarios,
torres, ribeiras inundadas,
pobreza, dores, farrapos.
Ele sonhou um sonho preciso,
quis trocar a desgarrada
paisagem, o corpo consumido
do povo, quis defendê-lo.
Já é tarde, escuta disparos
isolados, os gritos vitoriosos,
o selvagem ataque, os uivos
da “aristocracia”, escuta
o último rumor, o grã silêncio,
e, com ele, recostado, entra na morte.
XXXVI
A Emiliano Zapata com música de Tatanacho
Quando cresceram as dores
na terra, e os espinheiros desolados
foram a herança dos camponeses,
e, como outrora, rapaces
barbas cerimoniais, e os açoites,
então, flor e fogo galopado.
.
.
Borrachita me voy
hacia la capital
empinou-se na alba transitória
a terra sacudida de facas,
o peão de suas amargas tocas
caiu qual uma espiga debulhada
sobre a solidão vertiginosa.
a pedirle al patrón
que me mandó llamar
Zapata então foi terra e aurora.
Em todo horizonte aparecia
a multidão de sua semente armada.
Num ataque de águas e fronteiras
o férreo manancial de Coahuila,
as estelares pedras de Sonora:
tudo veio ao seu passo adiantado,
à sua agrária tormenta de ferraduras.
que si va del rancho
muy pronto volverá
Reparte o pão, a terra:
te acompanho.
Renuncio a minhas pálpebras celestes.
Eu, Zapata, me vou com o rocio
das cavalarias matutinas,
num disparo desde as figueiras-do-inferno
até as casas de paredes róseas.
.
.
.
cintitas pa tu pelo
no llores por tu Pancho .
.
.
A lua dorme sobre as montarias.
A morte amontoada e repartida
jaz com os soldados de Zapata.
O sonho esconde sob os baluartes
da pesada noite o seu destino,
o seu incubador lençol sombrio.
A fogueira agrupa o sopro desvelado:
graxa, suor e pólvora noturna.
.
.
.
Borrachita rne voy
para olvidarte .
.
.
Pedimos pátria para o humilhado.
Tua faca divide o patrimônio
e tiros e corcéis amedrontam
os castigos, a barba do verdugo.
A terra se reparte como um rifle.
Não esperes, camponês, empoeirado,
depoís de teu suor a luz completa
e o céu parcelado em teus joelhos.
Levanta-te e galopa com Zapata.
.
.
.
Yo la quise traer
dijo yue no.
.
.
México, hostil agricultura, amada
terra entre os obscuros repartida:
das espadas do milho saíram
ao sol os teus centuriões suarentos.
Da neve do sul venho contar-te.
Deixa-me galopar em teu destino
e encher-me de pólvoras e arados.
.
.
.
Que si habrá de llorar
pa qué volver.
.
.
XXXVII
Sandino (1926)
Foi quando em terra nossa
Enterraram-se
as cruzes, gastaram-se
inválidas, profissionais.
Chegou o dólar de dentes agressivos
mordendo território,
na garganta pastoril da América.
Agarrou o Panamá com fauces duras,
enfiou na terra fresca os seus caninos,
chapinhou na lama, uísque, sangue,
e jurou um presidente de sobrecasaca:
“Seja conosco o suborno
de cada dia”.
Logo, chegou o aço,
e o canal dividiu as residências,
aqui os amos, ali a servidão.
Correram para a Nicarágua.
Desceram vestidos de branco,
disparando dólares e tiros.
Surgiu no entanto um capitão
que disse: “Não, aqui não pões
as tuas concessões, tua garrafa”.
Prometeram-lhe um retrato
de presidente, de luvas,
faixa atravessada e sapatinhos
de verniz recém-comprados.
Sandino dcscalçou as botas,
afundou-se nos trêmulos pântanos,
pôs a faixa molhada
da liberdade na selva,
e, tiro a tiro, respondeu
aos “civilizadores”.
A fúria norte-americana
foi indizível: documentados
embaixadores convenceram
o mundo de que seu amor era
a Nicarágua, que algum dia
a ordem haveria de chegar
a suas entranhas sonolentas.
Sandino enforcou os intrusos.
Os heróis de Wall Street
foram comidos pelo lamaçal,
um relâmpago os matava,
mais de um sabre os seguia,
uma corda os despertava
como serpente na noite,
e pendurados de uma árvore eram
carreados lentamente
por coleópteros azuis
e trepadeiras devoradoras.
Sandino, com os seus guerrilheiros,
na Praça do Povo, em todas
as partes estava Sandino,
matando norte-americanos.
justiçando invasores.
E quando veio a aviação,
a ofensiva dos exércitos
blindados, a incisão
de massacrantes poderios,
Sandino estava no silêncio,
como um espectro da selva,
era uma árvore que se enroscava
ou uma tartaruga que dormia
ou um rio deslizando.
E árvore, tartaruga, torrente,
foram a morte vingadora,
foram sistemas da selva,
mortais sintomas de aranha.
(Em 1948
um guerrilheiro
da Grécia, coluna de Esparta,
foi a urna da luz atacada
pelos mercenários do dólar.
Dos montes lançou fogo
sobre os polvos de Chicago,
e como Sandino, o valente
da Nicarágua, foi chamado
“bandoleiro das montanhas”.
)
Mas, quando fogo, sangue
e dólar não destruíram
a torre altiva de Sandino,
os guerreiros de Wall Street
fizeram a paz, convidaram
para celebrá-la o guerrilheiro,
e um traidor recém-alugado
disparou-lhe a carabina.
Seu nome é Somoza.
Até hoje
está reinando na Nicarágua:
os trinta dólares cresceram
e aumentaram em sua barriga.
Esta é a história de Sandino,
capitão da Nicarágua,
encarnação desgarradora
de nossa arena traída, dividida e acometida,
martirizada e saqueada.
XXXVIII
(1)
Até Recabarren
A terra, o metal da terra, a compacta
formosura, a paz ferruginosa
que será lança, lâmpada ou anel,
matéria pura, ação
do tempo, saúde
da terra desnuda.
O mineral foi como estrela
afundada e enterrada.
A golpes de planeta, grama por grama,
foi escondida a luz.
Áspera capa, argila, areia
cobriram o teu hemisfério.
Mas amei o teu sal, a tua superfície.
Tua goteira, tua pálpebra, tua estátua.
No quilate de pureza dura
cantou minha mão: na écloga
nupcial da esmeralda fui citado,
e no côncavo do ferro pus o meu rosto um dia
até emanar abismo, resistência e aumento.
Mas eu não sabia nada.
O ferro, o cobre, os sais o sabiam.
Cada pétala de ouro foi arrancada com sangue.
Cada metal tem um soldado.
(2)
O cobre
Eu cheguei ao cobre, a Chuquicamata.
Era tarde nas cordilheiras.
Era o ar como taça
fria, de seca transparência.
Antes vivi em muitos navios,
porém na noite do deserto
a imensa mina resplandecia
como um navio cegador
com o orvalho deslumbrante
daquelas alturas noturnas.
Fechei os olhos: sonbo e sombra
estendiam as suas grossas plumas
sobre mim como aves gigantes.
Apenas de queda em queda
enquanto dançava o automóvel,
a oblíqua estrela, o penetrante
planeta, qual uma lança,
me arrojavam um raio gelado
de fogo frio, de ameaça.
(3)
A noite em Chuquicamata
Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.
Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.
Era verde o sangue destas terras.
Alta até os planetas empapados
era a magnitude noturna e verde.
Gota a gota um leite de turquesa,
uma aurora de pedra,
foi construído pelo homem
e ardia na imensidade,
na estrelada terra aberta
de toda a noite arenosa.
Passo a passo, então a sombra
me levou
pela mão ao sindicato.
Era o mês de julho
no Chile, na estação fria.
Junto a meus passos, muitos dias
(ou séculos) (ou simplesmente meses
de cobre, pedra e pedra e pedra,
quer dizer, de inferno no tempo:
do infinito mantido
por mão sulfurosa),
iam outros passos e pés
que só o cobre conhecia.
Era uma multidão gordurosa,
fome e farrapo, soledades,
a que cavava o socavão.
Naquela noite não vi
desfilar sua ferida sem número
na costa cruel da mina.
Mas eu fui desses tormentos.
As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.
Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.
Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.
(4)
Os chilenos
Tudo isso foi a tua mão.
Tua mão foi a unha
do compatriota mineral, do “roto”
combatido, do pisoteado
material humano, do homenzinho em farrapos.
Tua mão foi como a geografia:
cavou esta cratera de treva verde,
fundou um planeta de pedra oceânica.
Andou pelas mestranças
manejando as pás quebradas
e botando pólvora por
todos os lados, como ovos
de galinha ensurdecedora.
Trata-se de uma cratera remota:
até da lua cheia
se veria a sua profundidade
feita lado a lado por
um tal de Rodríguez, um tal de Carrasco,
um tal de Díaz Iturrieta,
um tal de Abarca, um tal de Gumersindo,
um tal de chileno chamado Mil.
Esta imensidão, unha por unha,
o desgarrado chileno, um dia
e outro dia, outro inverno, a pulso,
em velocidade, na lenta
atmosfera das alturas,
recolheu-a da argamassa,
estabeleceu-a entre as regiões.
(5)
O herói
Não foi a firmeza tumultuosa
de muitos dedos, não só a pá,
não só o braço, as ancas, o peso
do homem todo e a sua energia:
foram dor, incerteza e fúria
os que cavaram o centímetro
de altura calcária, buscando
as veias verdes da estrela,
os finais fosforescentes
dos cometas enterrados.
Do homem gasto em seu abismo
nasceram os sais sangrentos.
Porque o Reinaldo é agressivo,
cata pedras, o infinito
Sepúlveda, teu filho, sobrinho de
tua tia Eduviges Rojas,
o herói ardendo, o que desvencilha
a cordilheira mineral.
Assim foi conhecendo,
entrando como na uterina
originalidade da entranha,
em terra e vida, fui me vencendo:
até sumir-me em homem, em água
de lágrimas como estalactites,
de pobre sangue despenhado
de suor caído no pó.
(6)
Ofícios
Outras vezes com Lafertte, mais longe,
entramos em Tarapacá,
desde Iquique azul e ascético,
pelos limites da areia.
Me mostrou Elías as pás
dos limpadores, enfiado
nas madeiras cada dedo
do homem: estavam gastadas
pelo roçar de cada ponta de dedo.
As pressões daquelas mãos derreteram
os pedernais da pá,
e abriram assim os corredores
de terra e pedra, metal e ácido,
estas unhas amargas, estes
enegrecidos cinturões
de mãos que rompem planetas,
e elevam os sais aos céus,
dizendo como no conto,
na história celeste: “Este
é o primeiro dia da terra”.
Assim aquele que ninguém antes viu
(antes daquele dia de origem),
o protótipo da pá,
levantou-se sobre as cascas
do inferno: dominou-as
com as suas rudes mãos ardentes,
abriu as folhas da terra,
e apareceu de camisa azul
o capitão de dentes brancos,
o conquistador do salitre.
(7)
O deserto
O duro meio-dia das grandes areias
chegou:
o mundo está nu,
largo, estéril e limpo até as últimas
fronteiras arenais:
escutai o som quebradiço
do sal vivo, só nas salinas:
o sol quebra seus vidros na extensão vazia
e agoniza a terra como um seco
e afogado ruído do sal que geme.
(8)
(Noturno)
Chega ao circuito do dserto,
À alta noite aérea do pampa,
Ao círculo noturno, espaço e astro,
Onde a zona do Tamarugal recolhe
Todo o silêncio perdido no tempo.
Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.
Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.
Eu te amo, irmã pura do oceano.
Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.
Estava só.
Era planura e solidão a vida.
Era este o peito varonil do mundo.
E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.
(9)
O páramo
No páramo o homem vivia
mordendo terra, aniquilado.
Fui direto ao covil,
meti a mão entre os piolhos,
caminhei entre os trilhos até
o amanhecer desolado,
dormi sobre as duras tábuas,
desci da faina na tarde,
me queimaram vapor e iodo,
apertei a mão do homem,
conversei com a mulherzinha,
portas adentro entre galinhas,
entre trapos, no cheiro
da pobreza abrasadora.
E quando tantas dores
reuni, quando tanto sangue
recolhi no cavo da alma,
vi chegar do espaço puro
dos pampas inabarcáveis
um homem feito de sua própria areia,
um rosto imóvel e estendido,
uma roupa com um corpo largo,
uns olhos entrecerrados
como lâmpadas indomáveis.
Recabarren era o seu nome.
XXXIX
Recabarren (1921)
Seu nome era Recabarren.
Bonachão, corpulento, espaçoso,
claro olhar, cara firme,
sua vasta compostura cobria,
como a areia numerosa,
as jazidas da força.
Olhai no pampa da América
(rios ramais, clara neve,
cortes ferruginosos)
o Chile com a sua destroçada
biologia, como um ramo
arrancado, como um braço
cujas falanges dispersou
o tráfico das tormentas.
Sobre as áreas musculares
dos metais e o nitrato,
sobre a atlética grandeza
do cobre recém-escavado,
o pequeno habitante vive,
acumulado na desordem,
como um contrato apressado,
cheio de meninos maltrapilhos
estendidos pelos desertos
da superfície salgada.
É o chileno interrompido
pela demissão ou a morte.
É o duríssimo chileno
sobrevivente das obras
ou amortalhado pelo sal.
Ali chegou com seus panfletos
este capitão do povo.
Pegou o solitário ofendido
que, enrolando suas mantas rotas
em seus filhos famintos,
aceitava as injustiças
encarniçadas, e lhe disse:
“Junta tua voz a outra voz”,
“Junta tua mão a outra mão”.
Foi pelos rincões aziagos
do salitre, encheu o pampa
com sua investidura paterna
e no esconderijo invisível
toda a miséria o viu.
Chegou cada “galo” ferido,
chegou cada um dos lamentos:
entraram como fantasmas
de pálida voz triturada
e saíram de suas mãos
com uma nova dignidade.
Em todo o pampa se soube.
E foi pela pátria inteira
fundando povo, levantando
os corações quebrantados.
Seus jornais recém-impressos
entraram nas galerias
do carvão, subiram ao cobre,
e o povo beijou as colunas
que levavam pela vez primeira
a voz dos atropelados.
Organizou as soledades.
Levou os livros e os cantos
até os muros do terror,
juntou uma queixa a outra queixa,
e o escravo sem voz nem boca,
o extenso sofrimento,
se fez nome, se chamou Povo
Proletariado, Sindicato,
ganhou pessoa e postura.
E este habitante transformado
que se construiu no combate,
este organismo valoroso,
essa implacável tentativa,
ate metal inalterável,
esta unidade das dores,
esta fortaleza do homem,
este caminho para amanhã,
esta cordilheira infinita.
esta germinal primavera,
este armamento dos pobres,
saiu daqueles sofrimentos,
do mais fundo da pátria,
do mais duro e mais ferido,
do mais alto e mais eterno
e se chamou Partido.
Partido
Comunista
Esse foi o seu nome.
Grande foi a luta.
Caíram
como abutre os donos do ouro.
Combateram com a calúnia.
“Esse Partido Comunista
é pago pelo Peru,
pela Bolívia, pelos estrangeiros.
”
Caíram sobre as impressoras,
adquiridas gota por gota
com o suor dos combatentes,
e ao atacaram, quebrando-as,
queimando-as, esparramando
a tipografia do povo.
Perseguiram Recabarren.
Negaram-lhe entrada e trânsito.
Ele, porém, congregou sua semente
nos socavões desertos
e o baluarte foi defendido.
Então, os empresários
norte-americanos e ingleses,
seus advogados, senadores,
seus deputados, presidentes,
verterem o sangue na areia.
Acurralaram, amarraram,
Assassinaram nossa estirpe,
A força profunda do Chile,
Deixaram junto às veredas
Do imenso pampa amarelo
Cruzes de operários fuzilados
Nas franjas da areia.
Uma vez em Iquique, na costa,
Mandaram buscar os homens
Que pediam escola e pão.
Ali, confundidos, cercados
Num pátio, foram dispostos
Para a morte.
Dispararam
Cm sibilante metralhadora,
Com fuzis taticamente
Dispostos, sobre a pilha
Amontoada de operários adormecidos.
O sangue encheu como um rio
A areia pálida de Iquique,
E lá está o sangue tombado,
Ardendo ainda sobre os anos
Como uma corola implacável.
Sobreviveu porém a resistência.
A luz organizada pelas mãos
de Recabarren, as bandeiras rubras
foram das minas aos povoados,
foram às cidades e aos sulcos,
rodaram com as rodas ferroviárias,
assumiram as bases do cimento,
ganharam ruas, praças, granjas,
fábricas afligidas pelo pó,
chagas cobertas pela primavera:
tudo cantou e lutou para vencer
na unidade do tempo que amanhece.
Quanta coisa se passou desde então.
Quanto sangue sobre sangue,
quantas lutas sobre a terra.
Horas de esplêndida conquista,
triunfos conquistados gota a gota,
ruas amargas, derrotadas,
zonas escuras como túneis
traições que pareciam
cortar a vida com seu fio,
repressões armadas de ódio,
coroadas militarmente
A terra parecia afundar.
Mas a luta permanece.
Oferta (1949)
Recabarren, nesses dias
De perseguição, na angústia
de meus irmãos relegados.
combatidos por um traidor,
e com a pátria envolta em ódio,
ferida pela tirania,
recordo a luta terrível
de tuas prisões, de teus passos
primeiros, tua solidão
de torreão irredutível,
e quando, saindo do páramo,
um e outro homem a ti vieram
para congregar a massa
do pão humilde defendido
pela unidade do povo augusto.
Pai do Chile
Recabarren, filho do Chile,
pai do Chile, pai nosso,
em tua construção, cm tua linha
urdida em terras e tormentos
nasce a força dos dias
vindouros e vencedores.
És a pátria, pampa e povo,
areia, argila, escola, casa,
ressurreição, punho, ofensiva,
ordem, desfile, ataque, trigo,
luta, grandeza, resistência.
Recabarren, sob o teu olhar
juramos limpar as feridas
mutilações da pátria.
Juramos que a liberdade
levantará sua flor nua
sobre a areia desonrada.
Juramos continuar teu caminho
Até a vitória
XL
Prestes do Brasil (1949)
Brasil augusto, quanto amor quisera
para estender-me em teu regaço,
para envolver-me em suas folhas gigantes,
em desenvolvimento vegetal, em vivo
detrito de esmeraldas: espia-te,
Brasil, dos rios
sacerdotais que te nutrem,
dançar nos terraços à luz
da lua fluvial, e repartir-me
por teus desabitados territórios
vendo sair do barro o nascimento
de grossos bichos rodeados
de metálicas aves brancas.
Quanta lembrança me darias.
Entrar de novo na alfândega,
sair pelos bairros, cheirar
teu estranho rito, baixar
a teus centros circulatórios,
a teu coração generoso.
Mas não posso.
Uma vez, na Bahia, as mulheres
do bairro dolorido,
do antigo mercado de escravos
(onde hoje a nova escravidão, a fome,
o trapo, a condição dolente,
vivem como antes na mesma terra),
me deram umas flores e uma carta,
umas palavras ternas e umas flores.
Não posso apartar a voz de quanto sofre.
Sei quanto me dariam
de invisível verdade as tuas espaçosas
ribeiras naturais.
Sei que a flor secreta, a agitada
multidão de mariposas,
todos os férteis fermentos
das vidas e dos bosques
me esperam com a sua teoria
de inesgotáveis umidades,
mas não posso, não posso
senão arrancar do teu silêncio
uma vez mais a voz do povo,
elevá-la como a pluma
mais fulgurante da selva,
deixá-la a meu lado e amá-la
até que cante por meus lábios.
Por isso vejo Prestes caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, Brasil, fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.
Vejo Prestes, sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.
Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.
(Poeta, buscas em teu livro
as antigas dores gregas,
os orbes acorrentados
pelas antigas maldições,
correm as tuas pálpebras torturadas
pelos tormentos inventados,
e não vês em tua própria porta
os oceanos que batem
no sombrio peito do povo.
)
No martírio nasce a sua filha.
E ela desaparece
a golpe de machado, no gás, tragada
pelos lamaçais assassinos
da Gestapo.
Oh, tormento
do prisioneiro! Oh, indizíveis
padecimentos separados
de nosso ferido capitão!
(Poeta, apaga de teu livro
a Prometeu e sua corrente.
A velha fábula não tem
tanta grandeza calcinada,
tanta tragédia aterradora.
)
Onze anos eles guardam Prestes
detrás das barras de ferro,
no silêncio da morte,
sem que se atrevam assassiná-lo.
Não há notícias para seu povo.
A tirania apaga o nome
de Prestes em seu mundo negro.
E onze anos seu nome foi mudo.
Viveu sem nome como uma árvore
em meio a todo o seu povo,
reverenciado e esperado.
Até que a liberdade
foi buscá-lo em seu presídio,
e saiu de novo à luz,
amado, vencedor e bondoso,
despojado de todo 0 ódio
que lançaram sobre a sua cabeça.
Lembro que em 1945
estive com ele em São Paulo.
(Frágil e firme sua estrutura,
pálido como o marfim
desenterrado na cisterna,
fino como a pureza
do ar nas solidões,
puro como a grandeza
custodiada pela dor.
)
Pela vez primeira a seu povo
falava, no Pacaembu.
O grande estádio pululava
de cem mil corações vermelhos
que espetavam vê-lo e tocá-lo.
Chegou em uma indizível
onda de canto e ternura,
cem mil lenços saudavam
como um bosque a sua boa-vinda.
Ele olhou com olhos profundos
a meu lado, enquanto falei.
XLI
Dito no Pacaembu (Brasil, 1945)
Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações.
Saudações das neves andinas,
saudações do oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?
Uma mensagem tinham: Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.
Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.
Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite
falei à multidão, fui pedir auxílio
para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.
A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.
Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.
Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe
e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,
Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,
são filhos dos heróis da América, são irmãos
de Bolívar, de O'Higgins, de San Martín, de Prestes.
E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.
Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.
Vou contar-vos outra pequena história.
Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,
no Chile, no frio porto de Talcahuano,
chegou uma vez, faz tempo, um cargueiro soviético.
(O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.
)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.
Aquela noite escura teve estrelas:
as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.
Também hoje, de todos os rincões
da nossa América, do México livre, do Peru sedento,
de Cuba, da Argentina populosa,
do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,
o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas
em que brilham as altas esperanças do homem.
Por isso me mandaram, pelo vento da América,
para que te olhasse e logo lhes contasse
como eras, que dizia o seu capitão calado
por tantos anos duros de solidão e sombra.
Vou dizer-lhes que não guardas ódio.
Que só desejas que a tua pátria viva,
E que a liberdade cresça no fundo
do Brasil como árvore eterna.
Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,
carregadas por estes anos entre a pele e a alma,
sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer
o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.
Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.
Um grande silêncio peço de terras e varões.
Peço silêncio à América da neve ao pampa.
Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.
Silêncio: Que o Brasil falará por sua boca.
XLII
De novo os tiranos
Hoje de novo a caçada
se estende por todo o Brasil,
procura-o a fria cobiça
dos mercadores de escravos:
em Wall Street decretaram
a seus satélites porcinos
que enterrassem os seus caninos
nas feridas do povo,
e começou a caçada
no Chile, no Brasil, em todas
as nossas Américas arrasadas
por mercadores e verdugos.
Meu povo escondeu meu caminho,
cobriu meus versos com as mãos,
da morte me preservou,
e no Brasil a porta infinita
do povo fecha os caminhos
onde Prestes outra vez
rechaça de novo o malvado.
Brasil, que te seja salvo
o teu capitão doloroso,
Brasil, que não tenhas amanhã
de recolher de sua lembrança
fibra por fibra a sua efígie
para erguê-la em pedra austera,
sem tê-lo deixado no meio
de teu coração desfrutar
a liberdade que ainda, ainda
pode conquistar-te, Brasil.
XLIII
Chegará o dia
Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.
Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece,
soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?
Transpassastes a sua tenebrosa vida?
O coração disperso
do povo abandonado e submerso!
Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.
Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga nos chama novamente.
Descei às raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
tocai a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.
Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram.
Cada espiga
nasce de um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.
EU, de nome José,
rasguei os olhos da vida
em cinza manhã de abril.
Chorei e o campo chovia
onde a cidade pedia
tempos, clemência e amor.
BENDITO sejais chão Pinheiro
com o canto dos bois
e os patos selvagens
que deixam as nuvens
e os ventos gigantes
que lhe guiaram as asas
cruzando oceanos
e pousaram
à beira dos Defuntos
onde sacodem a viagem
e fazem ninhos
na folha das plantas aquáticas
que flutuam como anjos deitados
na mansidão dos lagos.
IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo abandono dessa sombra
que prometeu entregar-me o corpo
de pelúcias de carne para que eu o amasse
com a força de todas as tempestades
e eu nunca o amei.
NÃO me julgueis por haver
começado o meu caminho
naquela canoa de toldos
e ramos que cantavam,
"bendito é o santo nome".
EU fui ferido pelos vampiros gigantes
que esmagaram a sunga de chita colegial
feita de flores pequenas e alças de rendas
onde ficou sepultado para sempre
o seu sexo pequenino
e o meu primeiro olhar
que eu carregava nas mãos
como o cálice
daquele vinho
do corpo de Deus que eu não bebi
para embriagar-me
na fome de amar a pronta carne,
o pão, o fruto, a vida e
os peixes que habitavam os lagos desse campo
que me abriu os olhos numa manhã de abril.
IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo que fui
e jamais fui e sempre serei,
pois de não ser vou sendo
esta noite que não teve pôr de sol.
EU juro que a cadela que latia
junto de tuas mãos e eu dizia que era raiva
devia ter morrido
para que hoje eu não a lembrasse
para matar o meu ódio e ressuscitar o meu nojo
de pensar que eu fui capaz de amar
e os ventos da minha vida
não têm mais velas a empurrar
nem barcos para sair do Rio Pericumã e chegar
ao mar alto da Ponta de Itacolomi
e ali afundar
como afundaram
nas pedras eternas de moluscos
tantas navegações e tantos monstros.
IRMÃOS:
Eu habitei a Rua da Madre de Deus
onde os teares funcionavam dia e noite, no número 127.
Dona Sérgia! eu te beijo cerzideira
que me carregou de amor quando os outros me cuspiam
e as estátuas de porcelana branca que vieram de Portugal
guardavam vigilantes as cumeeiras largas do casario da Fábrica
onde batiam algodão branco e doce
da velha indústria Santa Amélia
e as operárias furtavam
os casulos
para higiene do ciclo menstrual
naquele mundo de louças
fusos, caldeiras e fardos.
A Fonte das Pedras
que de pedras tinha a água que escorria como sangue
das carrancas que jamais aceitaram o suor dos escravos
que Dona Ana Jansen fazia atirar nos poços de lanças
para serem espetados e se transformarem em fantasmas que
enchiam de gemidos todos os becos desta cidade que
nasceu para ser possuída em coitos de agonia e pecado
e em virgindades com cheiro de alfazema
entre o amor e as picadas de arraia.
IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo bonde de minha infância que matei
porque eu o amava e o matei,
como se não mata o amor, mas
pelo indesejo da morte.
ELE não corre e foram minhas mãos
que o trucidaram e trucidaram com ele
as moças todas que estavam na janela
e eu desejava casar para fazer filhos que
de novo pegassem o bonde
e fossem até o fim dos caminhos
e de novo fizessem outros filhos e outros mais
para que o bonde fosse o trilho eterno
e não o fim do filho.
..............................................
IRMÃOS:
NÃO me julguei por não haver fugido
com a trapezista do circo mambembe,
com que todos os meninos
das cidades de cavalos e cabeças-de-cuia
pensam fugir para viver em
acrobacias e picadeiros.
Eu a reencontrei em Brooklin, num janeiro de neve
nessa cidade de Nova Iorque que eu também amei
como se ama a prostituta pintada
que nos acena com uma noite de orgia.
O táxi amarelo parou. De repente ao meu lado
a trapezista que eu tinha amado
e ali repousava de sandálias e tranças.
Ao meu espanto apenas disse:
José!
De repente o mundo voltou ao princípio e eu senti
que os passarinhos podem cantar em Manhatan como
na mangueira velha do quintal da casa do velho José Costa,
meu avô,
que me disse um dia:
Guarda a tua alma e o teu corpo em vinha-dalho,
porque a vida é feita de postas azedas
em que os figos e as melancias não têm nem gosto nem cor.
IRMÃOS:
EU, José,
vos digo que a vida é um bando de itãs
que gritam histéricas
na beira do lago de Viana à espera
da terra parar de repente
e de repente a canarana ter flores eternas
as mangueiras terem galhos de meia légua e
debaixo de sua sombra
os índios pedirem amor com os anjos,
plantando rosas de capim de marreca
e o homem Senhor do destino
possa descansar os seus lábios vermelhos
nos seios das deusas jovens,
adormecidas nas aguadas de ventos,
novilhas de todos os mundos.
IRMÃOS:
PERDOAI-ME de dizer a Deus
que ele não pode pisar meus caminhos
com os pés de cardos
que romperam de sangue a coroa fria e sem glória
desses dias que ele me deu e eu esmaguei.
IRMÃOS:
perdoai-me.
o sonho da morte é uma nuvem
que não cobre as eternas noites da vida.
(Os Maribondos de Fogo / 1978)
Milanês estava cantando em vitória de Santo Antão chegou Severino Pinto nessa mesma ocasião em casa de um marchante travaram uma discussão.
M - Pinto, você veio aqui
se acabar no desespero
eu quero cortar-lhe a crista
desmantelar seu poleiro
aonde tem galo velho
pinto não canta em terreiro
P - mas comigo é diferente
eu sou um pinto graúdo
arranco esporão de galo
ele corre e fica mudo
deixa as galinhas sem dono
eu tomo conta de tudo
M - Para um pinto é bastante
um banho de água quente
um gavião na cabeça
uma raposa na frente
um maracajá atrás
não há pinto que agüente
P - Da raposa eu tiro o couro
de mim não se aproxima
o maracajá se esconde
o gavião desanima
do dono faço poleiro
durmo, canto e choco em cima.
M - Pinto, cantador de fora
aqui não terá partido
tem que ser obediente
cortês e bem resumido
ou rende-me obediência
ou então é destruído
P - Meu passeio nesta terra
foi acabar sua fama
derribar a sua casa
quebrar-lhe as varas da cama
deixar os cacos na rua
você dormindo na lama
M - Quando vier se confesse
deixe em casa uma quantia
encomende o ataúde
e avise a feguezia
que é para ouvir a sua
missa do sétimo dia
P - Ainda eu estando doente
com uma asa quebrada
o bico todo rombudo
e a titela pelada
aonde eu estiver cantando
você não torna chegada
M - O pinto que eu pegar
pélo logo e não prometo
vindo grande sai pequeno
chegando branco sai preto
sendo de aço eu envergo
sendo de ferro eu derreto
P - No dia que eu tenho raiva
o vento sente um cansaço
o dia perde a beleza
a lua perde o espaço
o sol transforma-se em gelo
cai de pedaço em pedaço
M - No dia que dou um grito
estremece o ocidente
o globo fica parado
o fruto não dá semente
a terra foge do eixo
o sol deixa de ser quente
P - Eu sou um pinto de raça
o bico é como marreta
onde bate quebra osso
sai felpa que dá palheta
abre buraco na carne
que dá pra fazer gaveta
M - Eu pego um pinto de raça
e amolo uma faquinha
faço um trabalho com ele
depois pesponto com linha
ele vivendo cem anos
não vai perto de galinha
P - Milanês, você comigo .
desaparece ligeiro
eu chego lá tiro raça
me aposso do poleiro
e você dorme no mato
sem poder vir no terreiro
M - Pinto, agora nós vamos
cantar em literatura
eu quero experimentá-lo
hoje aqui em toda altura
você pode ganhar esta
porém com grande amargura
P - pergunte o que tem vontade
não desespere da fé
do oceano, rio e golfo
estreito, lago ou maré
hoje você vai saber
pinto cantando quem é
M - Pinto, você me responda
de pensamento profundo
sem titubear na fala
num minuto ou num segundo
se leu me diga qual foi
a primeira invenção do mundo
P - Respondo porque conheço
vou dar-lhe minha notícia
foi o quadrante solar
pelo povo da Fenícia
os babilônios também
gozaram a mesma delícia
M - Como você respondeu-me
não merece disciplina
hoje aqui não há padrinho
que revogue a sua sina
se você souber me diga
quem inventou a vacina?
P - Não pense que com pergunta
enrasca a mim, Milanês
foi a vacina inventada
no ano noventa e seis
quem estuda bem conhece
que foi Jener Escocês
M - Sua resposta foi boa
de vocação verdadeira
mas queira Deus o colega
suba agora essa ladeira
me diga quem inventou
o relógio de algibeira?
P - No ano mil e quinhentos
Pedro Hélio com façanha
em Nuremberg inventou
essa obra tão estranha
cidade da Baviera
que pertence a Alemanha
M - Pinto, cantando não gosto
de amigo nem camarada
se conhece a história
Roma onde foi fundada?
o nome do fundador
e a data comemorada?
P - Em l7 e 53
antes de Cristo chegar
nas margens do Rio Tibre
isso eu posso lhe provar
Rômulo ali fundou Roma
a 15 milhas do mar
M - Pinto, eu na poesia
quero mostrar-lhe quem sou
relativo o avião
perguntando ainda vou
diga o primeiro balão
quem foi que inventou?
P - Em mil seiscentos e nove
Bartolomeu de Gusmão
no dia oito de agosto
fez o primeiro balão
hoje no mundo moderno
chama-se o mesmo avião
M - Pinto estou satisfeito
já de você eu não zombo
mas não pense que com isto
atira terra no lombo
disponha de Milanês
pra ver se ele agüenta o tombo
P - Milanês, você comigo
ou canta ou perde o valor
você me responda agora
seja que de forma for
de quem foi a invenção
do primeiro barco a vapor?
M - Eu quero lhe explicar
digo não muito ruim
a 16 a 87
você não desmente a mim
o inventor desse barco
foi o sábio Diniz Papim
P - Em que ano inaugurou-se
da Europa ao Brasil
a linha pra esse barco
a vapor e mercantil?
Se não souber dê o fora
vá soprar em um funil
M - Foi um navio inglês
que levantou a bandeira
em 18 a 51
veio a terra brasileira
sendo a nove de janeiro
fez a viagem primeira
P - E qual foi a 1a guerra
feita a barco a vapor?
Você ou diz ou apanha
da surra muda de cor
quebra a viola e deserta
nunca mais é cantador
M - Em l8 e 65
a esquadra brasileira
dentro do Riachuelo
içou a sua bandeira
na guerra do Paraguai
foi a batalha primeira
P - Milanês, você comigo
ou canta muito ou emperra
não pode se defender
salta, pula, chora e berra
qual foi a primeira estrada
de ferro, na nossa terra?
M - Foi quando Pedro II
tinha aqui poderes mil
em 18 e 54
no dia trinta de abril
inaugurou-se em Mauá
a primeira do Brasil
P - Milanês, você é fraco
não agüenta o desafio
eu ainda estou zombando
porque estou de sangue frio
me diga quem inventou
o telégrafo sem fio?
M - Pinto, você não pense
que meu barco vai a pique
em mil seiscentos e oito
na cidade de Munique
Suemering inventou
este aparelho tão chique
P - Eu já vi que Milanês
não responde cousa à toa
se ainda quiser cantar
hoje um de nós desacoa
puxe por mim que vai ver
um pinto de raça boa
M - Pinto, o seu pensamento
pra todo lado manobra
mas eu não conheço medo
barulho pra mim não sobra
é fogo queimando fogo
é cobra engolindo cobra
P - Do pessoal do salão
levantou-se um cavalheiro
dizendo: quero que cantem
pelo seguinte roteiro
Milanês pergunta a Pinto
como passa sem dinheiro
M - Oh! Pinto, você precisa
dum palitó jaquetão
uma manta, um cinturão
uma calça, uma camisa
está de algibeira lisa
não encontra um cavalheiro
que forneça ao companheiro
pra fazer-lhe um beneficio
olhe aí o precipício
como compra sem dinheiro?
P - Eu recomendo a mulher
que compre na prestação
um palitó jaquetão
a camisa se tiver
quando o cobrador vier
ela estej
A solidão
é um grito selvagem
na infinita viagem
de nossa expectação.
Insulana e tirana
fere-nos com o sílex de sua maldição.
Ou dança às vezes crucial pavana
tornando mais escura a nossa habitação.
Ela vem de repente
com seu olhar parado, de serpente.
E nos põe em seus nichos
a ensinar-nos, com longos cochichos,
seu ofício final de penitente.
II
A solidão
é bailarina imóvel em cima de um tablado.
É o noivo enjeitado
que volta sozinho, em meio à multidão.
E semelha, às vezes, um velho trem parado.
Ou um rosto no espelho, aprisionado,
a ouvir, ao longe, o latido de um cão.
III
Oh, a disciplina dos que vivem sós
e dos que voam às cegas, como os noitibós!
E todos os poemas nascem dessa fonte.
Todos os nossos passos cruzarão sua ponte.
E como não temos para quem gritar
somos veleiros perdidos em seu mar.
IV
Já fui mais sozinho
do que os retratos de velhos casarões
onde se guarda, qual rubro vinho,
a soma imperial das solidões.
A solidão dos avós.
A solidão dos rondós.
A solidão da tia solteirona
adormecendo aos poucos, na poltrona.
Ou a solidão do negro acorrentado
por haver olhado a moça, no rio, desnuda.
A solidão graúda
dos que envelhecem em paz e castidade.
Ou planejam o amor, mas sem maldade,
e são logo feridos e esquecidos.
V
Ó solidão do desamor!
Solidão do Cristo no Tabor!
Solidão
dos que perderam as chuvas e a sazão!
E há um jogo de surpresas
quais passos pelas devesas
cheias de assombração.
Mastigamos, contudo, esse amargo pão
e há no corredor
do mundo interior
inexorável inavegação.
VI
Alma sozinha e perdida,
a solidão corre a toda a brida
para nada.
Mesmo assim, nasce a madrugada
sobre as casas vazias
e as penedias.
E tudo, em nós, verão ou primavera,
é uma vasta espera.
VII
Ai, solidão: a morte no último vagão.
Um longo e irrespondido olhar
ou um entreparar
de vento em nosso vão lamento.
Ela em nós se debruça
e soluça
enquanto uma seresta se afasta
qual canção azul e sempre casta
que jamais esquecemos
e em nós sofremos
igual à lembrança da infância perdida.
Ou da vida.
VIII
Triste é o nosso sorrir.
Às vezes, chegar é o mesmo que partir.
Somos uma longa viagem
em que vamos perdendo rumo e paisagem.
E no silêncio final dos caminhos
estaremos sozinhos.
Por isso, em minha alma indormida
o sonho é como o apito de despedida
de um navio tragado em rodopio.
IX
Ônix da ausência
a solidão é a consciência
do pélago nas almas mais sofridas.
Chuva molhando o rosto dos suicidas
é uma loba uivando sob o frio,
ou o cinzento do estio.
É o canto da araponga ao meio-dia.
O sol da noite. A dor da poesia.
O medo de alguém na multidão.
Um ser a fugir da escuridão.
E vem de Alba-Longa, talvez. Ou de Castela.
Ou do sertão, na Cantiga do Vilela.
Ou das longínquas ilhas
além dos horizontes das Antilhas.
Mas estando tão longe fica em nós tão perto
que sentimos seu abismo abrir-se num deserto.
X
Oh, a solidão dos espelhos
e do mugir dos bois na madrugada!
Ó solidão — batentes de uma escada
em que dormitam sete escaravelhos.
E há uma flauta triste no final de tudo.
Uma súplica em dor num espírito mudo.
Ou o grito inesperado. O final da lida.
O inalcançado amor. A alma já perdida
de um bêbado num bar. Ou de alguém a buscar
as cousas que deveriam estar e nunca estão.
E um punhal invisível se ergue: a solidão.
A solidão de Édipo e Narciso.
A solidão que chega sem aviso
ferindo os seios de luar da Amada.
E treme na balada
que em nós, qual soluço, sossegou.
Ou é um grou
voando ao solstício
sobre a boca fatal de um precipício.
E tudo parece o sono da verdade
qual cavalo cego em meio à tempestade.
Ainda assim, tentamos atravessar os nossos rios
vendo, nas lanternas, o lento apagar-se dos últimos pavios.
De cima (1942)
O percorrido, o ar
indefinível, a lua das crateras,
a seca lua derramada
sobre as cicatrizes,
o calcário buraco da túnica rota,
a ramagem de veias congeladas, o pânico do quartzo,
do trigo, da aurora,
as chaves estendidas nas rochas secretas,
a aterradora linha
do sul despedaçado,
o sulfato dormido em sua estatura
de longa geografia,
e as disposições da turquesa
girando em torno da luz cortada,
do acre ramo sem cessar florido,
da espaçosa noite de espessura.
II
Um assassino dorme
A cintura manchada pelo vinho
quando o deus tabernário
pisa os copos rotos e desgrenha
a luz da alva desencadeada:
a rosa umedecida no soluço
da pequena prostituta, o vento dos dias febris
que entra pela janela sem vidraças
onde o vingado dorme com os sapatos postos
em um odor amargo de pistolas,
em um a cor azul de olhos perdidos.
III
Na costa
Em Santos, entre o odor doce-agudo das bananeiras
que, como um rio de ouro brando, aberto nas costas,
deixa nas margens a estúpida saliva
do paraíso desengonçado,
e um clamor férreo de sombras, de água e locomotiva,
uma corrente de suor e plumas,
algo que baixa e corre do fundo das folhas ardentes
como de um sovaco palpitante:
uma crise de vôos, uma remota
espuma.
IV
Inverno no sul, a cavalo
Eu transpassei a cortiça mil
vezes agredida pelos golpes austrais:
senti o cachaço do cavalo dormir
sob a pedra fria da noite do sul,
tiritar na bússola do monte desfolhado,
ascender na pálida face que começa:
eu conheço o final do galope na névoa,
o farrapo do pobre caminhante:
e para mim não há deus senão a areia escura,
o lombo interminável da pedra e a noite,
o insociável dia
com um advento
de roupa ruim, de alma exterminada.
V
Os crimes
Talvez tu, das noites escuras percorreste
o grito com punhal, a pisada no sangue:
o solitário fio de nossa cruz mil vezes
pisoteada,
as grandes pancadas na porta calada,
o abismo ou o raio que tragou o assassino
quando ladram os cães e a violenta polícia
chega entre os adormecidos
a torcer com força os fios da lágrima
arrancando-os da pálpebra aterrada.
VI
Juventude
Um perfume como uma ácida espada
de cerejas num caminho,
os beijos do açúcar nos dentes,
as gotas vitais resvalando nos dedos,
a doce polpa erótica,
as eiras, os paióis, os incitantes
lugares secretos das casas amplas,
os colchões dormidos no passado, o acre vale verde
olhado de cima, da vidraça escondida:
toda a adolescência molhando-se e ardendo
como uma lâmpada derrubada na chuva.
VII
Os climas
Caem do álamo no outono
as altas flechas, o renovado olvido:
fundem-se os pés em puro cobertor:
o frio das folhas irritadas
é um espesso manancial de ouro,
e um esplendor de espinhos põe perto do céu
os secos candelabros de estatura eriçada,
e um jaguar amarelo, entre as unhas,
cheira uma gota viva.
VIII
Varadero em Cuba
Fulgor de Varadero desde a costa elétrica
quando, despedaçando-se, recebe nas ancas
a Antilha, o maior golpe de vaga-lume e água,
o sem-fim fulgurante do fósforo e a lua,
o intenso cadáver da turquesa morta:
e o pescador escuro retira dos metais
uma cauda eriçada de violetas marinhas.
IX
Os ditadores
Ficou um aroma entre os canaviais:
uma mescla de sangue e corpo, uma penetrante
pétala nauseabunda.
Entre os coqueiros os túmulos estão cheios
de ossos demolidos, de estertores calados.
O delicado sátrapa conversa
com taças, pescoços e cordões de ouro.
O pequeno palácio brilha como um relógio
e os rápidos risos enluvados
atravessam às vezes os corredores
e se reúnem às vozes mortas
e às bocas azuis frescamente enterradas.
O pranto está escondido como uma planta
cuja semente cai sem cessar sobre o chão
e faz crescer sem luz suas grandes folhas cegas.
O ódio se formou escama por escama,
golpe por golpe, ria água terrível do pântano,
como um focinho cheio de lodo e silêncio.
X
América Central
Que lua como uma culatra ensangüentada,
que ramagem de látegos,
que luz atroz de pálpebra arrancada
te fazem gemer sem voz, sem movimento,
rompem teu padecer, sem voz, sem boca,
ó, cintura central, ó, paraíso
de chagas implacáveis.
Noite e dia vejo os martírios,
dia e noite vejo o acorrentado,
o rubro, o negro, o índio
escrevendo com mãos batidas e fosfóricas
nas intermináveis paredes da noite.
XI
Fome no sul
Vejo o soluço no carvão de Lota
e a enrugada sombra do chileno humilhado
picar a amarga veia da entranha, morrer,
viver, nascer na dura cinza
agachados, caídos como se o mundo
entrasse assim e saísse assim
entre pó negro, entre chamas,
e só acontecesse
a tosse no inverno, o passo
de um cavalo na água negra, onde caiu
uma folha de eucalipto como faca morta.
XII
Patagônia
As focas estão parindo
na profundidade das zonas geladas,
nas crepusculares grutas que formam
os últimos focinhos do oceano,
as vacas da Patagônia
se destacam do dia
como um tumulto, como um vapor pesado
que levanta no trio sua quente coluna
para as solidões.
Deserta és, América, como um sino:
cheia por dentro dum canto que não se eleva,
o pastor, o llanero, o pescador
não têm uma mão, nem uma orelha, nem um piano,
nem um rosto perto: a lua os vigia,
a extensão os aumenta, a noite os espreita,
e um velho dia, lento como os outros, nasce.
XIII
Uma rosa
Vejo uma rosa junto à água, uma pequena taça
de pálpebras vermelhas,
sustentada na altura por um som aéreo:
uma luz de folhas verdes toca os mananciais
e transfigura o bosque com solitários seres
de transparentes pés:
o ar está povoado de claras vestimentas
e a árvore estabelece sua magnitude adormecida.
XIV
Vida e morte de uma mariposa
Voa a mariposa de Muzo na tormenta:
todos os fios equinociais,
a pasta gelada das esmeraldas,
tudo voa no raio
são sacudidas as últimas conseqüências da aragem
e então uma chuva de estames verdes
o pólen das esmeraldas sobe;
seus grandes veludos de fragrância molhada
caem nas ribas azuis do ciclone,
unem-se aos tombados fermentos terrestres,
regressam à pátria das folhas.
XV
O homem enterrado no pampa
De tango em tango, se conseguisse
riscar o domínio, as pradarias,
se já adormecido
saindo de minha boca o cereal selvagem,
se eu escutasse nas planuras
um trovão de cavalos,
uma furiosa tempestade de patas
passar sobre os meus dedos enterrados,
beijaria sem lábios a semente
e amarraria nela os vestígios
de meus olhos
para ver o galope que amou minha turbulência:
mata-me, vidalita,
mata-me e que minha substância se derrame
como o rouco metal das guitarras.
XVI
Operários marítimos
Em Valparaíso, os operários do mar
me convidaram: eram pequenos e duros,
e seus rostos queimados eram a geografia
do oceano Pacífico: eram uma corrente
por dentro das imensas águas, uma onda muscular,
um ramo de asas marinhas na tormenta.
Era formoso vê-los como pequenos deuses pobres,
semidesnudos, malnutridos, era formoso
vê-los lutar e palpitar com outros homens além do oceano,
com outros homens de outros portos miseráveis, e ouvi-los,
era a mesma linguagem de espanhóis e chineses,
a linguagem de Baltimore e Kronstadt,
e quando cantaram A internacional cantei com eles:
um hino me subia do coração, quis dizer-lhes: “Irmãos”,
mas tive apenas a ternura que se me fazia canto
e que ia com o seu canto de minha boca até o mar.
Eles me reconheciam, me abraçavam com seus poderosos olhares
sem dizer-me nada, olhando-me e cantando.
XVII
Um rio
Quero ir pelo Papalopán
como tantas vezes pelo terroso espelho,
tocando com as unhas a água poderosa:
quero ir a matrizes, à contextura
de suas originais ramagens de cristal:
ir, molhar meu rosto, mergulhar na secreta
confusão do orvalho
a pele, a sede, o sonho.
O sável saindo da água
como um violino de prata,
e na margem as flores atmosféricas
e as asas imóveis
num calor de espaço defendido
por espadas azuis.
XVIII
América
Estou, estou rodeado
por madressilva e páramo, por chacal e centelha,
pelo acorrentado perfume dos lilases:
estou, estou rodeado
por dias, meses, águas que só eu conheço,
por unhas, peixes, meses que só eu estabeleço,
estou, estou rodeado
pela delgada espuma combatente
do litoral povoado de sinos.
A camisa escarlate do vulcão e do índio,
o caminho, que o pé descalço levantou entre as folhas
e os espinhos entre as raízes,
chega a meus pés à noite para que o caminhe.
O escuro sangue como num outono
derramado no solo,
o temível estandarte da morte na selva,
os passos invasores se desfazendo, o grito
dos guerreiros, o crepúsculo das lanças adormecidas,
o sobressaltado sonho dos soldados, os grandes
rios em que a paz do caimão chapinha,
tuas recentes cidades de alcaides imprevistos,
o coro dos pássaros de costume indomável,
no pútrido dia da selva, o fulgor
tutelar do vaga-lume,
quando em teu ventre existo, em tua tarde
de almenaras, em teu descanso, no útero de teu nascimento,
no terremoto, no diabo dos camponeses, na cinza
que cai das nevadas, no espaço,
no espaço puro, circular, inatingível,
na garra sangrenta dos condores, na paz humilhada
da Guatemala, nos negros,
nos cais de Trinidad, na Guayra:
tudo é minha noite, tudo
é meu dia, tudo
é meu ar, tudo
é o que vivo, sofro, levanto e agonizo.
América, nem da noite
nem do dia estão feitas as sílabas que eu canto.
De terra é a matéria apoderada
do fulgor e do pão de minha vitória,
e não é sonho meu sonho porém terra.
Durmo rodeado de espaçosa argila
e por minhas mãos corre quando vivo
um manancial de caudalosas terras.
E não é vinho o que bebo porém terra,
terra escondida, terra de minha boca,
terra de agricultura com orvalho,
vendaval de legumes luminosos,
estirpe cereal, adega de ouro.
XIX
América, não invoco o teu nome em vão
América, não invoco o teu nome em vão.
Quando sujeito ao coração a espada,
quando agüento na alma a goteira,
quando pelas janelas
um novo dia teu me penetra,
sou e estou na luz que me produz,
vivo na sombra que me determina,
durmo e desperto em tua essencial aurora:
doce como as uvas, e terrível,
condutor do açúcar e o castigo,
empapado em esperma de tua espécie,
amamentado em sangue de tua herança.
A fronteira (1904)
O primeiro que vi foram árvores, barrancos
decorados com flores de selvagem formosura,
úmido território, bosques que se incendiavam
e o inverno detrás do mundo, transbordado.
Minha infância são sapatos molhados, troncos partidos
tombados na selva, devorados por cipós
e escaravelhos, doces dias sobre a aveia,
e a barba dourada de meu pai saindo
para a majestade da ferroviária.
Diante de minha casa a água austral cavava
fundas derrotas, lameiros de argilas enlutadas,
que no verão eram atmosfera amarela
por onde as carretas rangiam e choravam
prenhadas com nove meses de trigo.
Rápido sol do sul:
restolhos, fumaradas
em caminhos de terras escarlates, ribeiras
de rios de redonda linhagem, currais e potreiros
em que reverberava o mel do meio-dia.
O mundo poeirento entrava grau por grau
nos galpões, entre barricas e cordéis,
nas adegas carregadas com o resumo rubro
da aveleira, todas as pálpebras do bosque.
Pareceu-me ascender com o traje tórrido
do verão, com as máquinas debulhadoras,
pelas costas, na terra envernizada de boldos
erguida entre os carvalhos, indelével,
agarrando-se às rodas como carne esmagada.
Minha infância percorreu as estações: entre
os trilhos, os castelos de madeira recente,
a casa sem cidade, apenas protegida
por reses e maçãs de perfume indizível
fui eu, delgado menino cuja pálida forma
se impregnava de bosques vazios e adegas.
II
O fundeiro (1919)
Amor, talvez amor indeciso, inseguro:
só um golpe de madressilvas na boca,
só umas tranças cujo movimento subia
até minha solidão como uma fogueira negra,
e o mais: o rio noturno, os sinais
do céu, a fugaz primavera molhada,
a enlouquecida fronte solitária, o desejo
levantando as suas cruéis tulipas na noite.
Eu desfolhei as constelações, ferindo-me,
afiando os dedos no tacto das estrelas,
afiando fibra por fibra a contextura gelada
dum castelo sem portas,
ó destroçados amores
cujo jasmim detém sua transparência em vão,
ó nuvens que no dia do amor desembocam
como um soluço entre as ervas hostis,
nua solidão amarrada a uma sombra,
a uma ferida adorada, a uma lua indomável.
Nomeai-me, disse talvez aos rosais:
eles talvez, a sombra de confusa ambrosia,
cada tremor do mundo conhecia meus passos,
me esperava o rincão mais oculto, a estátua
da árvore soberana na planície:
tudo na encruzilhada chegou a meu desvario
debulhando o meu nome sobre a primavera.
E então, doce rosto, açucena queimada,
tu, a que não dormiste com o meu sonho, bravia,
medalha perseguida por uma sombra, amada
sem nome, feita de toda a estrutura do pólen,
de todo o inverno ardendo sobre estrelas impuras:
ó amor, desenredado jardim que se consome,
em ti se levantaram meus sonhos e cresceram
como um fermento de pães tenebrosos.
III
A casa
Minha casa, as paredes cuja madeira fresca,
recém-cortada, cheira ainda: destrambelhada
casa de fronteira, que rangia
a cada passo, e silvava com o vento de guerra
do tempo austral, fazendo-se elemento
de tempestade, ave desconhecida
sob cujas geladas plumas cresceu o meu canto.
Vi sombras, rostos que como plantas
em torno de minhas raízes cresceram, parentes
que cantavam toadas à sombra duma árvore
e disparavam entre os cavalos molhados,
mulheres escondidas na sombra
que deixavam as torres masculinas,
galopes que fustigavam a luz,
enrarecidas
noites de cólera, cachorros que latiam.
Meu pai com a alva escura
da terra, para que perdidos arquipélagos
em seus trens que uivavam se deslizou?
Mais tarde amei o odor do carvão no fumo,
os azeites, os eixos de precisão gelada,
e o grave trem cruzando o inverno estendido
sobre a terra, como uma lagarta orgulhosa.
De repente trepidaram as portas.
É meu pai.
Rodeiam-no os centuriões do caminho:
ferroviários envoltos em suas mantas molhadas,
o vapor e a chuva com eles revestiram
a casa, a sala de jantar se encheu de relatos
enrouquecidos, os copos se verteram,
e até mim, dos seres, como uma separada
barreira, em que viviam as dores,
chegaram as aflições, as carrancudas
cicatrizes, os homens sem dinheiro,
a garra mineral da pobreza.
IV
Companheiros de viagem (1921)
Logo cheguei à capital, vagamente impregnado
de névoa e chuva.
Que ruas eram essas?
Os trajes de 1921 pululavam
num odor atroz de gás, café e tijolos.
Entre os estudantes passei sem compreender,
reconcentrando em mim as paredes, buscando
cada tarde em minha pobre poesia os ramos,
as gotas e a lua que se haviam perdido.
Acudi ao fundo dela, submergindo
cada tarde em suas águas, agarrando impalpáveis
estímulos, gaivotas de um mar abandonado,
até fechar os olhos e naufragar no meio
de minha própria substância.
Foram trevas, foram
apenas escondidas, úmidas folhas do subsolo?
De que matéria ferida se debulhou a morte
até tocar os meus membros, conduzir meu sorriso
e cavar nas ruas um poço desgraçado?
Saí a viver: cresci e endurecido
fui pelas ruelas miseráveis,
sem compaixão, cantando nas fronteiras
do delírio.
Os muros se encheram de rostos:
olhos que não olhavam a luz, águas torcidas
que iluminavam um crime, patrimônios
de solitário orgulho, cavidades
cheias de corações arrasados.
Com eles fui: só em seu coro
a minha voz reconheceu as solidões
onde nasceu.
Comecei a ser homem
cantando entre as chamas, acolhido
por companheiros de condição noturna
que cantaram comigo nas pousadas,
e que me deram mais de uma ternura,
mais de uma primavera defendida
por suas mãos hostis,
único fogo, planta verdadeira
dos desmoronados arrabaldes.
V
A estudante (1923)
Ó tu, mais doce, mais interminável
que a doçura, carnal enamorada
entre as sombras: de outros dias
surges enchendo de pesado pólen
a tua taça, na delícia.
Da noite cheia
de ultrajes, noite como o vinho
destampado, noite de oxidada púrpura,
em ti caí como uma torre ferida,
e entre os pobres lençóis a tua estrela
palpitou contra mim queimando o céu.
Ó redes do jasmim, ó fogo físico
alimentado nesta nova sombra,
trevas que tocamos apertando
a cintura central, golpeando o tempo
com sanguinárias rajadas de espigas.
Amor sem nada mais, no vazio
duma borbulha, amor com ruas mortas,
amor, quando morreu toda a vida
e nos deixou acendendo os rincões.
Mordi mulher, me afundei desvanecendo-me
desde minha força, entesourei cachos de uva,
e saí a caminhar de beijo em beijo,
atado às carícias, amarrado
a esta gruta de fria cabeleira,
a estas pernas por lábios percorridas:
faminto entre os lábios da terra,
devorando com lábios devorados.
VI
O viajante (1927)
E saí pelos mares aos portos.
O mundo entre as gruas
e as adegas da praia sórdida
mostrou em sua greta chusmas e mendigos,
companhias de famintos espectrais
no costado dos navios.
Países
recostados, ressequidos, na areia,
trajes talares, mantos fulgurantes
saíam do deserto, armados
como escorpiões, guardando o buraco
do petróleo, na empoeirada
rede dos calcinados poderios.
Vivi na Birmânia, entre as cúpulas
do metal poderoso, e a mataria
onde o tigre queimava os seus anéis
de ouro sangrento.
De minhas janelas
em Dalhousie Street, o odor
indefinível, musgo nos pagodes,
perfumes e excrementos, pólen, pólvora,
de um mundo saturado pela umidade humana,
subiu até mim.
As ruas me chamaram
com os seus inumeráveis movimentos
de telas de açafrão e escarros vermelhos,
junto à suja marulhada do Irrawaddy, da
água cuja espessura, sangue e azeite,
vinha descarregando a sua linhagem
desde as terras altas cujos deuses
pelo menos dormiam rodeados por seu barro.
VII
Longe daqui
Índia, não amei a tua dilacerada roupa,
a tua desarmada população de farrapos.
Por anos fui com olhos que queriam
subir aos promontórios do desprezo,
entre cidades como cera verde,
entre os talismãs, os pagodes
cuja pastelaria sanguinária
espalhava terríveis aguilhões.
Vi o miserável acumulado, em cima
do outro, do sofrimento de seu irmão,
as ruas como rios de aflição,
as pequenas aldeias esmagadas
entre as grossas unhas das flores,
e fui na multidão, sentinela
do tempo, separando enegrecidas
cicatrizes, cerrames de escravos.
Entrei nos templos, estuque e pedraria
fazem os degraus, sangue e morte sujos,
e os bestiais sacerdotes, ébrios
do estupor ardente, disputando
moedas revolvidas no chão,
enquanto, ó pequeno ser humano,
os grandes ídolos de pés fosfóricos
estiravam as línguas vingativas,
ou sobre um falo de pedra escarlate
deslizavam as pedras trituradas.
VIII
As máscaras de gesso
Não amei.
.
.
Não sei se foi piedade ou vômito.
Corri pelas cidades, Saigon, Madras,
Khandy, até as enterradas, majestosas
pedras de Anuradhapura, e na rocha
do Ceilão, como baleias
as efígies de Siddhartha, fui mais longe:
no saibro de Penang, pelas ribeiras
dos rios, na selva
do silêncio puríssimo, culminado
pelo rebanho das intensas vidas,
para além de Bangkok, as vestimentas
de bailarinas com máscaras de gesso.
Golfos pestilenciais elevavam
tetos de pedraria transbordante,
em largos rios a vivenda
de milhares de pobres, apertados
nas embarcações, e outros, todos
cobriam a infinita terra,
para além dos rios amarelos,
com uma única pele de animal roto,
pele dos povos, pelanca humilhada
por uns e outros amos.
Capitães e príncipes
viviam sobre o úmido estertor
de agonizantes lâmpadas, sangrando
a vida dos pobres artesãos,
e entre as garras e chicotes, mais alto
era a concessão, o europeu,
o norte-americano do petróleo,
fortificando templos de alumínio,
arando sobre a pele desamparada,
estabelecendo novos sacrifícios de sangue.
IX
O baile (1929)
Na profundidade de Java, entre as sombras
territoriais: aqui está o palácio iluminado.
Passo entre arqueiros verdes, aderidos
aos muros, entro
na sala do trono.
Está o monarca,
apoplético porco, pavão impuro,
carregado de cordões, constelado,
entre dois de seus amos holandeses,
mercadores carrancudos que vigiam.
Que repugnante grupo de insetos, como arremessam sobre os seres, conscienciosamente,
pauladas de vileza.
As sentinelas sórdidas
das longínquas terras, e o monarca
como um saco cego, arrastando
a sua carne espessa e as suas estrelas falsas
sobre uma humilde pátria de prateiros.
Mas entraram de repente
do remoto fundo do palácio
dez bailarinas, lentas como um sonho
debaixo das águas.
Cada pé se aproximava
de costas, avançando mel noturno
como um peixe de ouro, e suas máscaras ocre
levavam sobre o cabelo de azeitada espessura
uma coroa fresca de flores de laranjeira.
Até que se colocaram
diante do sátrapa, e com elas a música, um rumor
de élitros de cristal, a dança pura
que cresceu como flor, as mãos claras
construindo uma estátua fugitiva,
a túnica batida nos calcanhares
por um golpe de onda ou de brancura,
e em cada movimento de pomba
feita em metal sagrado, o sussurrante
ar do arquipélago, aceso
como uma árvore nupcial na primavera.
X
A guerra (1930)
Espanha, envolta em sonho, despertando
como uma cabeleira com espigas,
te vi nascer, entre as brenhas
e as trevas, lavradora,
levantar-te entre os carvalhos e os montes
e percorrer o ar com as veias abertas.
Mas te vi atacada nas esquinas
pelos antigos bandoleiros.
Iam
mascarados, com as suas cruzes feitas
de víboras, com os pés metidos
no glacial pântano dos mortos.
Então vi o teu corpo desprendido
de matagais, quebrado
sobre a areia encarniçada, aberto,
sem mundo, aguilhoado na agonia.
Até hoje corre a água de tuas penhas
entre os calabouços, e susténs
a tua coroa de farpas em silêncio,
para ver quem pode mais, se tuas dores
ou os rostos que cruzam sem olhar-te.
Eu vivi com a tua aurora de fuzis,
e quero que de novo povo e pólvora
sacudam as ramagens desonradas
até que trema o sonho e se reúnam
os frutos divididos na terra.
XI
O amor
O firme amor, Espanha, me deste com teus dons.
Veio a mim a ternura que esperava
e me acompanha a que leva o beijo
mais profundo a minha boca.
Não puderam
apartá-la de mim as tempestades
nem as distâncias acrescentaram terra
ao espaço de amor que conquistamos.
Quando antes do incêndio, entre as messes
da Espanha apareceu a tua vestimenta,
eu fui dupla noção, luz duplicada,
e a amargura resvalou em teu rosto
até cair sobre pedras perdidas.
De uma grande dor, de arpões eriçados
desemboquei em tuas águas, amor meu,
como um cavalo que galopa em meio
à ira e à morte, e o recebe
de súbito uma maçã matutina,
uma cascata de tremor silvestre.
Desde então, amor, te conheceram
os páramos que fizeram a minha conduta,
o oceano escuro que me segue,
e os castanhos do outono imenso.
Quem não te viu, amorosa, doce minha,
na luta, a meu lado, como uma
aparição, com todos os sinais
da estrela? Quem, se andou
entre as multidões a procurar-me,
porque sou grão do celeiro humano,
não te encontrou, agarrada a minhas raízes,
elevada no canto de meu sangue?
Não sei, meu amor, se terei tempo e lugar para
escrever outra vez a tua sombra fina
estendida em minhas páginas, esposa:
são duros estes dias e radiantes,
e recolhemos deles a doçura
amassada com pálpebras e espinhos.
Não sei recordar quando começas:
estavas antes do amor,
vinhas
com todas as essências do destino,
e antes de ti, a solidão foi tua,
foi talvez a tua adormecida cabeleira.
Hoje, taça de meu amor, te nomeio apenas,
título de meus dias, adorada,
e no espaço ocupas como o dia
toda a luz que tem o universo.
XII
México (1940)
México, de mar a mar te vivi, transpassado
por tua férrea cor, subindo montes
sobre os quais aparecem monastérios
cheios de espinhos,
o ruído venenoso
da cidade, os dentes solapados
do pululante poetiso, e sobre
as folhas dos mortos e os degraus
que construiu o silêncio irredutível,
como coto dum amor leproso,
o esplendor molhado das ruínas.
Porém do acre acampamento, rude
suor, lanças de grãos amarelos,
sobe a agricultura coletiva
repartindo os pães da pátria.
Outras vezes calcárias cordilheiras
interromperam o meu caminho,
formas
das metralhadas nevadas
que despedaçam a casca escura
da pele mexicana, e os cavalos
que cruzam como o beijo da pólvora
sob os patriarcais arvoredos.
Aqueles que apagaram bravamente
a fronteira do prédio e entregaram
a terra conquistada pelo sangue
entre os esquecidos herdeiros,
também aqueles dedos dolorosos
atados ao sul das raízes,
a minuciosa máscara teceram,
povoaram de floral quinquilharia
e de fogo têxtil o território.
Não soube que mais amei, se a escavada
antigüidade de rostos que guardaram
a intensidade de pedras implacáveis,
ou a rosa recente, construída
por uma mão ontem ensangüentada.
E assim de terra em terra fui tocando
o barro americano, minha estatura,
e subiu por minhas veias o esquecimento
recostado no tempo, até que um dia
estremeceu a minha boca a sua linguagem.
XIII
Nos muros do México (1943)
Os países se estendem junto aos rios, buscam
o suave peito, os lábios do planeta,
tu, México, tocaste
os ninhos do espinho,
a desértica altura da águia sangrenta,
o mel da coluna combatida.
Outros homens buscaram o rouxinol, acharam
o fumo, o vale, regiões como a pele humana:
tu, México, enterraste as mãos na terra,
tu cresceste na pedra de olhar selvagem.
Quando chegou a tua boca a rosa do rocio
o látego do céu a converteu em tormento.
foi a tua origem um vento de punhais
entre dois mares de irritada espuma.
Tuas pálpebras se abriram na espessa papoula
de um dia enfurecido
e a neve estendia sua espaçosa brancura
onde o fogo vivo começava a habitar-te.
conheço a tua coroa de nopais
e sei que sob as tuas raízes
a tua subterrânea estátua, México, se constrói
com as águas secretas da terra
e os lingotes cegos das minas.
Ó terra, ó esplendor
de tua perpétua e dura geografia,
a derramada rosa do mar da Califórnia,
o raio verde que Yucatán derrama,
o amarelo amor de Sinaloa,
as pálpebras rosadas de Morelia,
e o longo fio da piteira fragrante
que amarra o coração à tua estatura.
México augusto de rumor e espadas,
quando a noite na terra era maior,
repartiste o berço do milho entre os homens.
Levantaste a mão cheia de pó santo
e a puseste em meio a teu povo
como uma nova estrela de pão e de fragrância.
O camponês então à luz da pólvora
olhou a sua terra desencadeada
brilhar sobre os mortos germinais.
Canto a Morelos.
Quando caía
seu fulgor verrumado,
uma pequena gota ia chamando
sob a terra até encher a taça
de sangue, e da taça um rio
até chegar a toda a silenciosa praia
da América, empapando-a de misteriosa essência.
Canto a Cuauhtémoc.
Toco
a sua linhagem de lua
e seu fino sorriso de deus martirizado.
Onde estás, perdeste,
antigo irmão, a tua dureza doce?
Em que te converteste?
Onde vive a tua estação de fogo?
Vive na pele de nossa mão escura,
vive nos cinzentos cereais:
quando, depois da noturna sombra
se debulham as cepas da aurora,
os olhos de Cuauhtémoc abrem a sua luz remota
sobre a vida verde da folhagem.
Canto a Cárdenas.
Eu estive;
eu vivi a tormenta de Castilla.
Eram os dias cegos das vidas.
Altas dores como ramos cruéis
feriam a nossa mãe angustiada.
Era o abandonado luto, os muros do silêncio
quando
se atraiçoava, se assaltava e feria
essa pátria da alva e do loureiro.
Então
só a estrela vermelha da Rússia e o olhar
de Cárdenas brilharam na noite do homem.
General, presidente da América, te deixo neste canto
algo do resplendor que recolhi na Espanha.
México, abriste as portas e as mãos
ao errante, ao ferido,
ao desterrado, ao herói.
Sinto que isto não possa se dizer de outra forma
e quero que se agarrem as minhas palavras
outra vez como beijos em teus muros.
De par em par abriste a tua porta combatente
e encheu-se de estranhos filhos a tua cabeleira
e tocaste com as tuas duras mãos
as faces dos filhos
que te pariu com lágrimas e tormenta do mundo.
Aqui termino, México,
aqui te deixo esta caligrafia
sobre as fontes para que a idade
vá apagando este novo discurso
de quem te amou por livre e por profundo.
Adeus te digo, mas não me vou.
Vou-me, mas não posso
dizer-te adeus.
Porque na minha vida, México, vives como uma pequena
águia equivocada que circula nas minhas veias,
e só no fim a morte dobrará as asas
sobre o meu coração de soldado adormecido.
XIV
O regresso (1944)
Regressei.
.
.
O Chile me recebeu com o rosto amarelo do deserto.
Peregrinei sofrendo
de árida lua em cratera arenosa
e encontrei os domínios agrestes do planeta,
a lisa luz sem pâmpanos, a retidão vazia.
Vazia? Mas sem vegetais, sem garras, sem esterco
me revelou a terra sua dimensão nua
e lá longe a sua longa linha em que nascem
aves e peitos ígneos de suave contextura.
Porém mais longe homens cavavam as fronteiras,
recolhiam metais duros, disseminados
alguns como a farinha de amargos cereais,
outros como a altura calcinada do fogo,
e homens e lua, tudo me envolveu em sua mortalha
até perder o fio vazio dos sonhos.
Me entreguei aos desertos e o homem da escória
saiu de seu buraco, de sua aspereza muda
e soube as dores de meu povo perdido.
Então, fui por ruas e curules e disse
o quanto vi, mostrei as mãos que tocaram
os torrões enfartados de dor, as vivendas
da desamparada pobreza, o miserável
pão e a solidão da lua esquecida.
E lado a lado com meu irmão sem sapatos
quis mudar o reino das moedas sujas.
Fui perseguido, mas a nossa luta continua.
A verdade é mais alta que a lua.
É vista, como se estivessem num navio negro,
pelos homens das minas quando a olham à noite.
E na sombra a minha voz é repartida
pelas mais duras estirpes da terra.
XV
A linha de madeira
Eu sou um carpinteiro, cego, sem mãos.
Vivi
sob as águas, consumindo frio,
sem construir as caixas fragrantes, as moradas
que cedro a cedro erguem a grandeza,
porém meu canto foi procurando fios do bosque,
secretas fibras, ceras delicadas,
e foi cortando ramos, perfumando
a solidão com lábios de madeira.
Amei cada matéria, cada gota
de púrpura ou de metal, água e espiga
e entrei em espessas camadas resguardadas
por espaço e areia tremulante
até cantar com a boca destruída,
como um morto, nas uvas da terra.
Argila, barro, vinho, me cobriram,
enlouqueci tocando os quadris
da pele cuja flor foi sustida
como um incêndio sob a minha garganta,
e pela pedra passearam os meus sentidos
invadindo fechadas cicatrizes.
Como mudei sem ser, desconhecendo
o meu ofício antes de ser,
a metalurgia
que estava destinada à minha dureza,
às serranias olfateadas
pelas cavalgaduras no inverno?
Tudo se fez ternura e mananciais
e servi somente para noturno.
XVI
A bondade combatente
Mas não tive a bondade morta nas ruas.
Rechacei o seu aqueduto purulento
e não toquei o seu mar contaminado.
Extraí o bem como um metal, cavando
além dos olhos que mordiam,
e entre as cicatrizes foi crescendo
meu coração nascido nas espadas.
Não saí desbocado, descarregando
terra ou punhal entre os homens.
Não era
meu ofício o da ferida ou o veneno.
Não sujeitei o inerme em ataduras
que lhe atravessassem chicotes gelados,
não fui à praça procurar inimigos
espreitando com a mão mascarada:
não fiz mais que crescer com as minhas raízes,
e o chão que estendeu o meu arvoredo
decifrou os vermes que jaziam.
Veio morder-me Segunda-feira e lhe dei algumas folhas
Veio insultar-me Terça-feira e fiquei dormindo.
Chegou logo Quarta-feira com dentes iracundos.
Eu a deixei passar construindo raízes.
E quando Quinta-feira veio com uma venenosa
lança negra de urtigas e de escamas
eu a esperei em meio à minha poesia
e em plena lua lhe parti um cacho de uva.
Venham aqui estrelar-se nesta espada.
Venham se desfazer em meus domínios.
Venham em amarelos regimentos,
ou na congregação dos sulfurosos.
Morderão sombra e sangue de sinos
sob as sete léguas do meu canto.
XVII
Reúne-se o aço (1945)
Vi o mal e o mau, mas não em seus covis.
É uma história de fadas a maldade com caverna.
Aos pobres depois de terem tombado
em farrapos, à mina desgraçada,
povoaram-no com bruxas o caminho.
Encontrei a maldade sentada nos tribunais:
no Senado a encontrei vestida
e penteada, torcendo os debates
e as idéias para os próprios bolsos.
O mal e o mau
acabavam de sair do banho: estavam
encadernados em satisfações,
e eram perfeitos na suavidade
de seu falso decoro.
Vi o mal, e para
desterrar esta pústula vivi
com outros, acrescentando vidas,
fazendo-me secreta cifra, metal sem nome,
invencível unidade de povo e pó.
O orgulhoso estava feramente
combatendo em seu armário de marfim
e passou a maldade em meteoro
dizendo: “É admirável
a sua solitária retidão.
Deixai-o”.
O impetuoso tirou o seu alfabeto
e montado em sua espada se deteve
a perorar na rua deserta.
Passou o mal e lhe disse: “Que valente!”
e se foi ao clube para comentar a façanha.
Mas quando fui pedra e argamassa,
torre e aço, sílaba associada:
quando apertei a mão de meu povo
e fui ao combate com o mar inteiro;
quando deixei a minha solidão e pus
o meu orgulho no museu, a minha vaidade no
desvão das carruagens desengonçadas,
quando me fiz partido com outros homens, quando
se organizou o metal da pureza,
então veio o mal e disse: “Duro
com eles, no cárcere, morram!”
Mas já era tarde, e o movimento
do homem, meu partido,
é a invencível primavera, dura
sob a terra, quando foi esperança
e fruto geral para mais tarde.
XVIII
O vinho
Vinho da primavera.
.
.
Vinho do outono, dai-me
meus companheiros, uma mesa em que caiam
folhas equinociais, e o grande rio do mundo
que empalideça um pouco movendo o seu som
longe de nossos cantos.
Sou um bom companheiro.
Não entraste nesta casa para que te arrancasses
um pedaço do ser.
Talvez quando te vás
leves algo meu, castanhas, rosas ou
uma segurança de raízes ou navios
que quis compartilhar contigo, companheiro.
Canta comigo até que as taças
se derramem deixando púrpura desprendida
sobre a mesa.
Esse mel vem à tua boca
da terra, de seus obscuros racimos.
Quantos me faltam, sombras do canto,
companheiros
que amei oferecendo a face, tirando de minha vida
a incomparável ciência varonil que professo,
a amizade, arvoredo de rugosa ternura.
Dá-me a mão, encontra-te comigo,
simples, não busques nada em minhas palavras,
a não ser a emanação duma planta nua.
Por que me pedes mais que a um operário? Já sabes
que a golpes fui forjando minha enterrada forja,
e que não quero falar a não ser como ê minha língua.
Sai a procurar doutores se não te agrada o vento.
Nós cantaremos com o vinho áspero
da terra: golpearemos as taças do outono,
e a guitarra ou o silêncio irão trazendo
linhas de amor, linguagem de rios que não existem,
estrofes adoradas que não têm sentido.
XIX
Os frutos da terra
Como sobe a terra pelo milho, buscando
leitosa luz, cabelos, marfim endurecido,
a primorosa rede da espiga madura
e todo o reino de ouro que se vai debulhando?
Quero comer cebolas, traze-me do mercado
uma, um globo pleno de neve cristalina,
que transformou a terra em cera e equilíbrio
como uma bailarina detida em seu vôo.
Dá-me umas codornizes de caça, cheirando
a musgo da selva, um pescado vestido
como um rei, destilando profundidade molhada
sobre a fonte,
abrindo pálidos olhos de ouro
sob o multiplicado mamilo dos limões.
Vamo-nos, e sob a castanheira a fogueira
deixará o seu tesouro branco sob as brasas,
e um cordeiro com toda a sua oferenda irá dourando
a sua linhagem até ser âmbar para a tua boca.
Dá-me todas as coisas da terra, torcazes
recém-tombadas, ébrias de cachos selvagens,
doces enguias que ao morrer, fluviais,
alongaram as suas pétalas diminutas,
e uma bandeja de ácidos ouriços
darão o seu alaranjado submarino
ao fresco firmamento das alfaces.
E antes que a lebre marinada
encha de aroma o ar do almoço
como silvestre fuga de sabores,
para as ostras do sul, recém-abertas,
em seus estojos de esplendor salgado,
vai o meu beijo empapado nas substâncias
da terra que amo e que percorro
com todos os caminhos do meu sangue.
XX
A grande alegria
A sombra que indaguei já não me pertence.
Eu tenho a alegria duradoura do mastro,
a herança dos bosques, o vento do caminho
e um dia decidido sob a luz terrestre.
Não escrevo para que outros livros me aprisionem,
nem para encarniçados aprendizes de lírio,
mas para singelos habitantes que pedem
água e lua, elementos da ordem imutável,
escolas, pão e vinho, guitarras e ferramentas.
Escrevo para o povo ainda que ele não possa
ler a minha poesia com seus olhos rurais.
Virá o instante em que uma linha, a aragem
que removeu a minha vida, chegará aos seus ouvidos,
então o labrego levantará os olhos,
o mineiro sorrirá quebrando pedras,
o caldeireiro limpará a fronte,
o pescador verá melhor o brilho
dum peixe que palpitando lhe queimará as mãos,
o mecânico, limpo, recém-lavado, cheio
do aroma do sabão, olhará meus poemas,
e talvez eles dirão: “Foi um camarada”.
Isso é bastante, essa é a coroa que quero.
Quero que à saída da fábrica e das minas
esteja a minha poesia aderida à terra,
ao ar, à vitória do homem maltratado.
Quero que um jovem ache na dureza
que construí, com lentidão e com metais,
como uma caixa, abrindo-a, cara a cara, a vida,
e afundando a alma toque as rajadas que fizeram
minha alegria, nas alturas tempestuosas.
XXI
A morte
Renasci muitas vezes, desde o fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com as minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre o meu corpo, destinado a ser terra.
Não comprei uma parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.
Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo de estudá-la,
enquanto os espancavam os que têm
o céu dividido e arrumado.
Tenho pronta a minha morte, como uma roupa
que me espera, da cor que amo,
da extensão que procurei inutilmente,
da profundidade que necessito.
Quando o amor gastou a sua matéria evidente
e a luta debulha os seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte para apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.
XXII
A vida
Que outro se preocupe com os ossários.
.
.
O mundo
tem uma cor nua de maçã: os rios
arrastam um caudal de medalhas silvestres
e em todas as partes vive Rosalía, a doce,
e Juan, o companheiro.
.
.
Ásperas pedras fazem
o castelo, e o barro mais suave que as uvas
com os restos do trigo fez minha casa.
Vastas terras, amor, sinos lentos,
combates reservados à aurora,
cabeleiras de amor que me esperaram,
depósitos adormecidos de turquesa:
casas, caminhos, ondas que constroem
uma estátua varrida pelos sonhos,
padarias na madrugada,
relógios educados na areia,
papoulas do trigo circulante,
e estas mãos escuras que amassaram
os materiais de minha própria vida:
para viver acendem-se as laranjas
sobre a multidão dos destinos!
Que os coveiros escarvem as matérias
aziagas: que levantem
os fragmentos sem luz da cinza,
e falem do idioma do verme.
Diante de mim só tenho sementes,
desenvolvimentos radiantes e doçura.
XXIII
Testamento (I)
Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
a minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que lá repousem os maltratados filhos
da minha pátria, saqueada por machados e traidores,
desbaratada em seu sangue sagrado,
consumida em vulcânicos farrapos.
Quero que ao limpo amor que percorresse
o meu domínio, descansem os cansados,
se sentem a minha mesa os obscuros,
durmam sobre a minha cama os feridos.
Irmão, esta é a minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que ergui lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som na minha janela
como num crescente caracol
e logo estabeleceu as suas latitudes
em minha desordenada geologia.
Vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.
XXIV
Testamento (II)
Deixo meus velhos livros, recolhidos
pelos rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no rouco tear interrompido
as significações de amanhã.
Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos c mineiros
haja dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão desengonçado, o filamento
que enredou as nossas ávidas planícies.
Toquem eles o inferno, este passado
que esmagou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.
Sobre os ossos de caciques, longe
de nossa herança traída, em pleno
ar de povos que caminham sós,
eles vão para povoar o estatuto
dum longo sofrimento vitorioso.
Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiães, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakóvski vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.
XXV
Disposições
Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
diante do mar que conheço, de cada área rugosa
de pedras e ondas que meus olhos perdidos
não tornarão a ver.
Cada dia do oceano
meu trouxe, névoa ou puros precipícios de turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha face.
Cada passagem enlutada de cormorão, o vôo
de grandes aves grises que amavam o inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode o frio,
e ainda mais, a terra que um escondido herbário
secreto, filho de brumas e sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa agarradas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado da minha alegria, sabem
que lá quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra.
.
.
Quero ser arrastado
abaixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos caudais subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.
Abri junto a mim o vazio da que amo, e um dia”
deixai-a que outra vez me acompanhe na terra.
XXVI
Vou viver (1949)
Não vou morrer.
Saio agora
neste dia cheio de vulcões
para a multidão, para a vida.
Aqui deixo arrumadas estas coisas
hoje que os pistoleiros passeiam
com a “cultura ocidental” nos braços,
com as mãos que matam na Espanha
e as forcas que oscilam em Atenas
e a desonra que governa o Chile
e paro de contar.
Aqui fico
com palavras e povos e caminhos
que me esperam de novo, e que batem
com mãos consteladas em minha porta.
XXVII
A meu partido
Me deste a fraternidade para o que não conheço.
Me acrescentaste a força de todos os que vivem.
Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.
Me deste a liberdade que não tem o solitário.
Me ensinaste a acender a bondade, como o fogo.
Me deste a retidão que necessita a árvore.
Me ensinaste a ver a unidade e a diferença dos homens.
Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos.
Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.
Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.
Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.
XXVIII
Aqui termino (1949)
Este livro termina aqui.
Nasceu
da ira como uma brasa, como os territórios
de bosques incendiados, e desejo
que continue como uma árvore vermelha
propagando a sua clara queimadura.
Mas não somente cólera em seus ramos
encontraste: não somente as suas raízes
procuraram a dor mas também a força,
e força sou de pedra pensativa,
alegria de mãos congregadas.
Por fim, sou livre dentro dos seres.
Entre os seres, como o ar vivo,
e da solidão acurralada
saio para a multidão dos combates,
livre porque em minha mão vai a tua mão,
conquistando alegrias indomáveis.
Livro comum de um homem, pão aberto
é esta geografia do meu canto,
e uma comunidade de lavradores
algum dia recolherá o seu fogo
e semeará as suas chamas e suas folhas
outra vez na nave da terra.
E nascerá de novo esta palavra,
talvez em outro tempo sem dores,
sem as impuras fibras que aderiram
negras vegetações em meu canto,
e outra vez nas alturas estará ardendo
meu coração queimante e estrelado.
Assim termina este livro, aqui deixo
meu Canto geral escrito
na perseguição, cantando sob
as asas clandestinas de minha pátria.
Hoje, 5 de fevereiro, neste ano
de 1949, no Chile, em “Godomar
de Chena”, alguns meses antes
dos quarenta e cinco anos de minha idade.
onde me queres levar?
- Rio que entras pela terra
e que me afastas do mar..."
(Mário de Andrade)
águas do tietê,
no jorro de tuas nascentes:
melhor ficassem paradas
em teus reflexos afluentes
tietê: índias águas verdadeiras
quando te chamavas anhembi
e tuas sinuosas ribeiras
guiavam um povo guarani
aquieta-te como lago,
esta pressa para que,
se adiante a luz de espelho
logo tu vais perder?
te insinuas por quilômetros
em teu leito decidido,
insisto no meu reclamo
mas descrês do meu aviso
segues murmurando marchas
incertas em certo destino
e mal sabes o destrato
dos esgotos mais íntimos
por teus caminhos indiretos
viajaram bandeirantes heris,
e agora bandeiam os dejetos
dos seus netos fabris
tuas águas conduziram à glória
os vencedores das regatas
nas linhas d’água da memória
da cidade que não te resgata
águas do tietê,
onde me queres levar?
- teu traçado e teu destino
não se casam com o mar...
exala antes que tarde
o aroma que será deposto!
em tua cor se resguarde
o teu sabor sem desgosto!
pois já te vão injetando
mais volume e vida a menos:
e nas tuas líquidas veias
os insanos vícios dos venenos
em tuas artérias aguascentes,
no percurso transformadas,
corre agora o pus demente:
e mal deságuas putrefatas
eis que te tornas plumas,
brancas formas cristalinas:
belo engano para os olhos,
e o odor corrói as narinas
há remédio mais perfeito
do que apenas uma lágrima,
se todos chorassem em teu leito,
lavando tuas águas da mácula
mas ninguém me escuta, corres
sem garças, só antíteses,
desde o lugar onde morres
até o pasto de lamas líquidas
águas do tietê,
onde me queres levar?
- eis as pontes e tudo é noite,
e muito longe dorme o mar...
te olho e não me vês, assim
em vão, corpo cego de águas:
em verso te afogo em mim,
em ti me afogo em mágoas...
aleilton fonseca, sp, 95
O grande oceano
Se de teus dons e de tuas destruições, oceano, a minhas mãos
pudesses destinar uma medida, uma fruta, um fermento,
escolheria teu repouso distante, as linhas de teu aço,
a tua extensão vigiada pelos ares e pela noite,
e a energia de teu idioma branco
que destroça e derruba as suas colunas
na sua própria pureza demolida.
Não é a última onda com o seu salgado peso
a que tritura costas e produz
a paz de areia que rodeia o mundo:
é o central volume da força,
a potência estendida das águas,
a imóvel solidão cheia de vidas.
Tempo, talvez, ou taça acumulada
de todo movimento, unidade pura
que não selou a morte, verde víscera
da totalidade abrasadora.
Do braço submerso que levanta uma gota
fica apenas um beijo de sal.
Dos corpos
do homem em tuas praias uma úmida fragrância
de flor molhada permanece.
Tua energia
parece resvalar sem ser gasta,
parece regressar a seu repouso.
A onda que desprendes,
arco de identidade, pluma estrelada,
quando se despenhou foi só espuma,
e regressou para nascer sem consumir-se.
Toda a tua força volta a ser origem.
Só entregas despojos triturados,
cascas que apartou o teu carregamento,
o que expulsou a ação de tua abundância,
tudo o que deixou de ser um cacho.
Tua estátua está estendida além das ondas.
Vivente e ordenada como o peito e o manto
de um só ser e suas respirações,
na matéria da luz irisadas,
planícies levantadas pelas ondas,
formam a pele nua do planeta.
Enches o teu próprio ser com a tua substância.
Cumulas a curvatura do silêncio.
Com o teu sal e o teu mel treme a taça,
a cavidade universal da água,
e nada falta em ti como na cratera
destampada, no corpo rude:
cumes vazios, cicatrizes, sinais
que vigiam os ares mutilados.
Tuas pétalas palpitam contra o mundo,
tremem os teus cereais submarinos,
as suaves algas penduram a sua ameaça,
navegam e pululam as escolas,
e só sobe ao fio das redes
o relâmpago morto da escama,
um milímetro ferido na distância
de tuas totalidades cristalinas.
II
Os nascimentos
Quando se transmutaram as estrelas
em terra e em metal, quando apagaram
a energia e entornada foi a taça
de auroras c carvões, submersa
a fogueira em suas moradas,
o mar caiu como uma gota ardendo
de distância em distância, de hora em hora:
seu fogo azul converteu-se em esfera,
o ar de suas rodas foi sino,
seu interior essencial tremeu na espuma,
e na luz do sal foi levantada
a flor de sua espaçosa autonomia.
Enquanto como lâmpadas letárgicas
dormiam as estrelas segregadas
adelgaçando a sua pureza imóvel,
o mar encheu de sal e mordeduras
a sua magnitude, povoou de labaredas
e movimentos a extensão do dia,
criou a terra e desatou a espuma,
deixou rastros de goma em suas ausências,
invadiu com estátuas o abismo,
e em suas praias se fundou o sangue.
Estrela de marulhadas, água manancial,
mãe matéria, medula invencível,
trêmula igreja levantada em lodo:
a vida em ti apalpou pedras noturnas,
retrocedeu quando chegou à ferida,
avançou com escudos e diademas,
estendeu dentaduras transparentes,
acumulou a guerra em sua barriga.
O que formou a escuridão quebrada
pela substância fria do relâmpago,
oceano, em tua vida está vivendo.
A terra fez do homem o seu castigo.
Demitiu bestas, aboliu montanhas,
esquadrinhou os ovos da morte.
Enquanto isso em tua idade sobreviveram
as etapas do transcurso submerso,
e a criada magnitude mantém
as mesmas esmeraldas escamosas,
os abetos famintos que devoram
com bocas azuladas de anel,
o cabelo que absorve olhos afogados,
a madrépora de astros combatentes,
e na força azeitada do cetáceo
desliza-se a sombra triturando.
Sem mãos se construiu a catedral
com golpes de maré inumerável,
o sal adelgaçou-se como uma agulha,
se fez lâmina de água incubadora,
e seres puros, recém-estendidos,
pulularam tecendo as paredes
até que como ninhos agrupados
com o cinzento atavio da esponja,
deslizou-se a túnica escarlate,
viveu a apoteose amarela,
cresceu a flor calcária de amaranto.
Tudo era ser, substância tremulante,
pétalas carniceiras que mordiam,
acumulada quantidade nua,
palpitação de plantas seminais,
sangria das úmidas esferas,
perpétuo vento azul que derrubava
os limites abruptos dos seres.
E assim a luz imóvel foi uma boca
e mordeu sua pedraria roxa.
Foi, oceano, a forma menos dura,
a translúcida gruta da vida,
a massa existencial, deslizadora
de cachos, as teias do ovário,
os germinais dentes derramados,
as espadas do soro matutino,
os órgãos acerbos do enlace:
tudo em ti palpitou enchendo a água
de cavidades e estremecimentos.
Assim a taça das vidas teve
seu turbulento aroma, suas raízes
e estrelada invasão foram as ondas:
cintura e plenitude sobreviveram,
penacho c latitude arvoraram
os hóspedes dourados da espuma.
E tremeu para sempre nas praias
a voz do mar, os tálamos da água,
a pele de furacão demolidora,
o leite enfurecido da estrela.
III
Os peixes c o afogado
De repente vi povoadas regiões
de intensidade, de formas aceradas,
bocas como uma linha que cortava,
relâmpagos de prata submersa,
peixes de luto, peixes ogivais,
peixes de firmamento tachonado.
peixes cujas pintas resplandecem,
peixes que cruzam como calafrios,
branca velocidade, ciências delgadas
da circulação, bocas ovais
da carniçaria e do aumento.
Formosa foi a mão ou a cintura
que rodeada de lua fugitiva
viu trepidar a povoação pescadora,
úmido rio elástico de vidas,
crescimento de estrelas nas escamas,
opala seminal disseminada
no lençol escuro do oceano.
Viu arder as pedras de prata que mordiam,
estandartes de trêmulo tesouro,
e submeteu seu sangue descendo
à profundidade devoradora,
suspenso por bocas que percorrem
seu torso com anéis sanguinários
até que desgrenhado e dividido
coma espiga sangrenta, é um escudo
da maré, um traje que trituram
as ametistas, uma herança ferida
sob o mar, na árvore numerosa.
IV
Os homens e as ilhas
Os homens oceânicos despertaram, cantavam
as águas nas ilhas, de pedra em pedra verde:
as donzelas têxteis cruzavam o recinto
em que o fogo e a chuva entrelaçados
procriavam diademas e tambores.
A lua melanésica
foi uma dura madrépora, as flores enxofradas
vinham do oceano, as filhas
da terra tremiam como ondas
no vento nupcial das palmeiras,
e entraram na carne os arpões
perseguindo as vidas da espuma.
Canoas balançadas no dia deserto,
das ilhas como ponto de pólen na direção
da metálica massa da América noturna:
diminutas estrelas sem nome, perfumadas
como mananciais secretos, transbordantes
de plumas e corais, quando
os olhos oceânicos descobriram a altura
sombria da costa do cobre, a escarpada
torre de neve, e os homens de argila
viram bailar os estandartes úmidos
e os ágeis filhos atmosféricos
da remota solidão marinha,
chegou o ramo
de flores de laranjeira perdido, veio o vento
da magnólia oceânica, a doçura
do acicate azul nos quadris,
o beijo das ilhas sem metais,
puras como o mel desordenado,
sonoras como lençóis do céu.
V
Rapa-Nui
Tepito-Te-Henúa, umbigo do mar grande,
oficina do mar, extinto diadema.
De tua lava escorial subiu o rosto
do homem mais acima do oceano,
os olhos gretados da pedra
mediram o ciclônico universo,
e foi central a mão que elevava
a pura magnitude de tuas estátuas.
Tua rocha religiosa foi cortada
em todas as linhas do oceano
e os rostos do homem apareceram
surgindo da entranha das ilhas,
nascendo das crateras vazias
com os pés enredados no silêncio.
Foram as sentinelas e fecharam
o ciclo das águas que chegavam
de todos os úmidos domínios,
e o mar distante das máscaras deteve
suas tempestuosas árvores azuis.
Ninguém mas só os rostos habitaram
o círculo do reino.
Era calado
como a entrada de um planeta, o fio
que envolvia a boca da ilha.
Assim, na luz da abside marinha
a fábula da pedra condecora
a imensidade com suas medalhas mortas,
e os pequenos reis que levantam
toda esta solitária monarquia
para a eternidade das espumas,
voltam ao mar na noite invisível,
voltam a seus sarcófagos de sal.
Só o peixe-lua que morreu na areia.
Só o tempo que morde os moais.
Só a eternidade nas areias
conhecem as palavras:
a luz selada, o labirinto morto,
as chaves da taça submersa.
VI
Os construtores de estátuas (Rapa-Nui)
Eu sou o construtor das estátuas.
Não tenho nome.
Não tenho rosto.
O meu se desviou até correr
sobre a sarça e subir impregnando as pedras.
Elas têm o meu rosto petrificado, a grave
solidão de minha pátria, a pele da Oceania.
Nada querem dizer, nada quiseram
senão nascer com todo o seu volume de areia,
subsistir destinadas ao tempo silencioso.
Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba da cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?
Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.
Outros foram os deuses pequenos e malignos,
peixes, pássaros que entretiveram a manhã,
escondendo as machadinhas, rompendo a estátua
dos mais altos rostos que concebeu a pedra.
Guardem os deuses o conflito, se o quiserem,
da colheita postergada, e alimentem
o açúcar azul da flor no baile.
Subam eles e desçam a chave da farinha:
empapem todos os lençóis nupciais
com o pólen molhado que imperceptível dança
dentro da rubra primavera do homem,
mas até estas paredes, a esta cratera, só venhas
tu, pequenino mortal, canteiro.
Vão ser consumidas esta carne e a outra,
a flor perecerá talvez, sem armadura,
quando estéril aurora, pó ressequido, um dia
venha a morte à cintura da ilha orgulhosa,
e tu, estátua, filha do homem, ficarás
olhando com os olhos vazios que subiram
de uma e outra mão de imortais ausentes.
Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.
Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.
A estátua cresceu sobre a nossa estatura.
Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobos lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.
Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.
E este olhar tem mais areia que o tempo.
Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.
Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.
VII
A chuva (Rapa-Nui)
Não, que a rainha não reconheça
o teu rosto, é mais doce
assim, amor meu, longe das efígies, o peso
de tua cabeleira em minhas mãos, recordas
a árvore de Mangareva cujas flores caíam
sobre teu cabelo? Estes dedos não se parecem
com pétalas brancas: olha-os, são como raízes,
são como talos de pedra sobre os quais desliza
o lagarto.
Não temas, esperemos que caia a chuva, nus,
a chuva, a mesma que cai sobre Manu Tara.
Mas assim como a água endurece seus rasgos na pedra,
sobre nós cais levando-nos suavemente
para a escuridão, mais abaixo do buraco
de Ranu Raraku.
Por isso
não te divise o pescador nem o cântaro.
Sepulta
os teus peitos de queimadura gêmea em minha boca,
e que a tua cabeleira seja uma pequena noite minha,
uma escuridão cujo perfume molhado me cobre.
À noite sonho que tu e eu somos duas plantas
que se ergueram juntas, com raízes enredadas,
e que conheces a terra e a chuva como minha boca,
porque de terra e de chuva estamos feitos.
Às vezes
penso que com a morte dormiremos abaixo,
na profundidade dos pés da efígie, olhando
o oceano que nos trouxe para construir e amar.
Minhas mãos não eram férreas quando te conheceram, as águas
de outro mar as passavam como por uma rede; agora
água e pedras sustêm sementes e segredos.
Ama-me adormecida e nua, que na praia
és como a ilha: teu amor confuso, teu amor
assombrado, escondido na cavidade dos sonhos,
é como o movimento do mar que nos rodeia.
E quando também eu vá me adormecendo
em teu amor, nu,
deixa a minha mão entre os teus peitos para que palpite
ao mesmo tempo que os teus mamilos molhados na chuva.
VIII
os oceânicos
Sem outros deuses que o couro das focas apodrecidas,
honor do mar, yámanas açoitados
pelo látego antártico, alacalufes
untados com azeites e detritos:
entre os muros de cristal e abismo
a pequena canoa, na eriçada
inimizade de timbales e chuvas,
levou o amor errante dos lobos
e as brasas do fogo sustentadas
sobre as últimas águas mortais.
Homem, se o extermínio
não desceu dos rios da neve
nem da lua endurecida
sobre o vapor glacial das geleiras,
mas do homem que até na substância
da neve perdida e das águas
finais do oceano,
especulou com ossos desterrados
até empurrar-te para além de tudo,
hoje mais para além de tudo e da neve
e da tempestade desatada do gelo
vai tua piroga pelo sal selvagem
e pela furiosa solidão buscando
a guarida do pão, és oceano,
gota do mar e de seu azul furioso,
e teu gasto coração me chama
como incrível fogo que não morre.
Amo a gelada planta combatida
pelo uivo do vento espumoso,
e ao pé das gargantas,
o diminuto povo lucernário
que arde sobre as lâmpadas crustáceas
da água removida pelo frio,
e antártica aurora em seu castelo
de pálido esplendor imaginário.
Amo até as raízes turbulentas
das plantas queimadas pela aurora
de mãos transparentes,
porém a ti, sobra do mar, filho
das plumas glaciais, esfarrapada
oceânica, vai esta onda
nascida nas rupturas, dirigida
com o amor ferido sob o vento.
IX
Antártica
Antártica, coroa austral, cacho
de lâmpadas geladas, cinerária
de gelo desprendida
da pele terrenal, igreja quebrada
pela pureza, nave desbocada
sobre a catedral da brancura,
imoladora de quebradas vidraças,
furacão estilhaçado nas paredes
da neve noturna,
dá-me o teu nobre peito removido
pela invasora solidão, o leito
do vento aterrador mascarado
por todas as corolas do arminho,
com todas as buzinas do naufrágio
e o afundamento branco dos mundos,
ou o teu peito de paz que limpa o frio
como um puro retângulo de quartzo,
e o não respirado, o infinito
material transparente, o ar aberto,
a solidão sem terra e sem pobreza.
Reino do meio-dia mais severo,
harpa de gelo sussurrada, imóvel,
perto das estrelas inimigas.
Todos os mares são o teu mar redondo.
Todas as resistências do oceano
concentraram em ti sua transparência,
e o sal te povoou com seus castelos,
o gelo fez cidades elevadas
sobre uma agulha de cristal, o vento
percorreu teu salgado paroxismo
como um tigre queimado pela neve.
Tuas cúpulas pariram o perigo
da nave das nevadas,
e em teu dorsal deserto está a vida
como uma vinha sob o mar, ardendo
sem consumir-se, reservando o fogo
para a primavera da neve.
X
Os filhos da costa
Párias do mar, antárticos
cães chicoteados,
yaganes mortos sobre cujos ossos
dançam os proprietários que pagaram
por tarifa os pescoços altaneiros
cerceados a golpes de navalha.
Carregadores de Antofagasta e da costa seca,
párias, piolhos gelados do oceano,
netos de Rapa, pobres de Anga-Roa,
lêmures rotos, leprosos de Hotu-Iti,
servos das Galápagos, cobiçados
esfarrapados dos arquipélagos,
roupas desfiadas que através
do emplastro sujo mostram
a contextura do combate,
a pele salgada pela brisa, o valente
troço de ser humano e ambarino:
à pátria do mar veio o embarque,
veio a corda, o selo, o fundamento,
o bilhete com um perfil borrado,
detritos de garrafa na praia,
veio o governador, o deputado,
e o coração do mar se fez costura,
se fez bolso, iodo e agonia.
Quando chegaram a vender foi doce
o amanhecer, as camisas
eram como a neve no navio,
e os filhos celestes se acenderam,
flor e fogacho, lua e movimento.
Piolhos do mar, comei agora esterco,
espreitai os despojos, os sapatos
rotos do navegante, do gerente,
cheirai a dejeções e a pescado.
Já entrastes no círculo
do qual só saireis para morrer.
Não na morte do mar, com água e lua,
mas a dos desengonçados buracos
da necrologia, porque agora
se quereis esquecer, estais perdidos.
Antes a morte teve territórios,
transmigração, etapas, estações,
e pudestes subir dançando, envoltos
no orvalho diurno da rosa
ou na navegação do peixe de prata:
hoje estais mortos para sempre: afundados
no decreto tétrico do frade,
e sois apenas vermes da terra
que no máximo revolverão a cauda
sob os cartórios do inferno.
Vinde e pululai pelas praias
do mar: ainda vos
aceitamos, podeis sair para pescar sempre
que nossa Sociedad Pesquera Inc.
seja garantida: podeis ir
arranhando as costelas nos cais,
carregando sacos de grão-de-bico,
dormindo nas escórias litorâneas.
Sois na verdade uma ameaça, mofosos
deserdados da espuma; é muito
melhor, se o sacerdote vos permitir,
que entreis no navio que vos espera,
e que, com tudo e piolhos, ao nada
vos levará, sem ataúde, mordidos
pelas últimas ondas e desgraças,
desde que não se paguem, à morte.
XI
A morte
Esqualos parecidos com as algas,
com o naval veludo do abismo,
e que de repente como estreitas luas
apareceis com o fio empurpurado:
barbatanas azeitadas em treva,
luto e velocidade, naves do medo
às quais ascende como uma corola
o crime com a sua luz vertiginosa,
sem uma voz, numa fogueira verde,
na cutelaria de um relâmpago.
Puras formas sombrias que resvalam
sob a pele do mar, como o amor,
como o amor que invade a garganta,
como a noite que brilha nas uvas,
como o fulgor do vinho nos punhais:
vastas sombras de couro desmedido
como estandartes de ameaça: ramos
de braços, bocas, línguas que rodeiam
com ondulante flor o que devoram.
Na mínima gota da vida
aguarda uma indecisa primavera
que fechará com seu sistema imóvel
o que tremeu ao cair no vazio:
a fita ultravioleta que desliza
um cinturão de fósforo perverso
na agonia negra do perdido,
e o tapete do afogado recoberto
por um bosque de lanças e moréias
trementes e ativas como o tear que tece
na profundidade devoradora.
XII
A onda
A onda vem do fundo, com raízes
filhas do firmamento submerso.
Sua elástica invasão foi levantada
pela potência pura do oceano:
sua eternidade apareceu inundando
os pavilhões do poder profundo
e cada ser lhe deu sua resistência,
debulhou fogo frio em sua cintura
até que dos ramos da força
despegou o seu nevado poderio.
Vem como uma flor da terra
quando avançou com decidido aroma
até a magnitude da magnólia,
mas esta flor do fundo que rebentou
traz toda a luz que foi abolida,
traz todos os ramos que não arderam
e todo o manancial da brancura.
E assim quando suas pálpebras redondas,
seu volume, suas taças, seus corais
incham a pele do mar aparecendo
todo este ser de seres submarinos:
é a unidade do mar que se constrói:
a coluna do mar que se levanta:
todos os seus nascimentos e derrotas.
A escola do sal abriu as portas,
voou toda a luz golpeando o céu,
cresceu da noite até a aurora
a levedura do metal molhado,
toda a claridade se fez corola,
cresceu a flor até gastar a pedra;
subiu à morte o rio da espuma,
atacaram as plantas procelárias,
transbordou-se a rosa no aço:
os baluartes da água se dobraram
e o mar se desmoronou sem derramar-se
a sua torre de cristal e calafrio.
XIII
Os portos
Acapulco, cortado como uma pedra azul,
quando desperta, o mar amanhece em tua porta
irisado e bordado como um caracol,
e entre as tuas pedras passam peixes como
[relâmpagos
que palpitam carregados pelo fulgor marinho.
És a luz completa, sem pálpebras, o dia
despido, balançando como uma flor de areia,
entre a infinitude estendida da água
e a altura acesa com lâmpadas de argila.
Junto a ti as lagunas me deram o amor
da tarde cálida com bestas e mangais,
os ninhos como nós nos ramos de onde
o vôo das garças levantava a espuma,
e na água escarlate como um crime fervia
um povo encarcerado de bocas e raízes.
Topolobampo, apenas traçado à beira
da doce e nua Califórnia marinha,
Mazatlán estrelado, porto de noite,
escuto as ondas que golpeiam a tua pobreza
e as tuas constelações, o pulsar
de teus apaixonados orfeões,
o teu coração sonâmbulo que canta
sob as redes vermelhas da lua.
Guayaquil, sílaba de lança, fio
de estrela equatorial, ferrolho aberto
das trevas úmidas que ondulam
como uma trança de mulher molhada:
porta de ferro maltratada
pelo suor amargo
que molha os cachos,
que goteja o marfim nas ramagens
e desliza à boca dos homens
mordendo como um ácido marinho.
Subi às rochas de Mollendo, brancas,
árido resplendor e cicatrizes,
cratera cujo gretado continente
subjuga entre as pedras seu tesouro,
a angústia do homem acurralado
nas calvícies do despenhadeiro,
sombra das metálicas gargantas,
promontório amarelo da morte.
Pisagua, letra da dor, manchada
pelo tormento, em tuas ruínas vazias,
em teus alcantilados pavorosos,
em teu cárcere de pedra e soledades
se pretendeu esmagar a planta humana,
se quis fazer de corações mortos
um tapete, rebaixar a desventura
como marca raivosa até romper
a dignidade: ali pelas salobras
ruelas vazias, os fantasmas
da desolação movem seus mantos,
e nas desnudas gretas ofendidas
está a história como um monumento
golpeado pela espuma solitária.
Pisagua, no vazio de teus cumes,
na furiosa solidão, a força
da verdade do homem se levanta
como um despido e nobre monumento.
Não é só um homem, não é só um sangue
o que manchou a vida em tuas encostas,
são todos os verdugos amarrados
ao lamaçal ferido, aos suplícios,
ao matagal da América enlutada,
e quando se povoaram com prisões
tuas desérticas pedras escarpadas
não foi só mordida uma bandeira,
não foi só um bandido venenoso,
mas a fauna das águas vis
que repete seus dentes na história,
atravessando com mortal punhal
o coração do povo desditado,
manietando a terra que os fez,
desonrando a areia da aurora.
Oh, portos arenosos, inundados
pelo salitre, pelo sal secreto
que deixa as dores na pátria
e leva o ouro ao deus desconhecido
cujas unhas rasparam a cortiça
de nossos dolorosos territórios.
Antofagasta, cuja voz remota
desemboca na luz cristalizada
e se amontoa em sacos e adegas
e se reparte na aridez matutina
na direção dos navios.
Rosa ressecada de madeira, Iquique,
entre tuas brancas balaustradas, junto
de teus muros de pinho, que a lua
do deserto e do mar impregnaram,
foi vertido o sangue de meu povo,
foi assassinada a verdade, desfeita
em sanguinária polpa a esperança:
o crime foi enterrado pela areia
e a distância sepultou os estertores.
Tocopilla, espectral, sob os montes,
debaixo da nudez cheia de agulhas
corre a neve seca do nitrato
sem extinguir a luz de seu desígnio
nem a agonia da mão escura
que sacudiu a morte nos torrões.
Desamparada costa que rechaças
a água afogada do amor humano,
escondido em tuas margens calcárias
como o metal maior da vergonha.
A teus portos desceu o homem enterrado
para ver a luz das ruas vendidas,
para desatar o coração espesso,
para esquecer arenais e desgraças.
Tu quando passas, quem és, quem desliza
por teus olhos dourados, quem acontece
nos cristais? Desces e sorris,
aprecias o silêncio nas madeiras,
tocas a lua opaca das vidraças
e nada mais: o homem está guardado
por carnívoras sombras e barrotes,
está estendido em seu hospital dormindo
sobre os arrecifes da pólvora.
Portos do sul, que desfolharam
a chuva das folhas em meu rosto;
coníferas amargas do inverno
de cujo manancial cheio de agulhas
choveu a solidão em minhas dores.
Puerto Saavedra, gelado nas ribeiras
do Imperial: as desembocaduras
areentas, o glacial lamento
das gaivotas que me pareciam
surgir como flores de laranjeira tempestuosas,
sem que ninguém arrulhasse suas folhagens,
doces desviadas para minha ternura,
despedaçadas pelo mar violento
e salpicadas nas soledades.
Mais tarde meu caminho foi a neve
e nas casas adormecidas do estreito
em Punta Arenas, em Puerto Natales,
na extensão azul do uivo,
na sibilante, na desenfreada
noite final da terra, vi as tábuas
que resistiram, acendi as lâmpadas
sob o vento feroz, meti as mãos
na nua primavera antártica
e beijei o pó frio das ultimas flores.
XIV
Os navios
Os barcos da seda sobre a luz levados,
erigidos na violeta matutina,
cruzando o sol marítimo, com rubros pavilhões
desfiados como estames andrajosos,
o odor caloroso das caixas douradas
que a canela fez ressoar como violinos,
e a cobiça fria que sussurrou nos portos
numa tempestade de mãos esfregadas,
as bem-vindas suavidades verdes
dos jades, e o pálido cereal da seda,
tudo passeou no mar como uma viagem do vento,
como um baile de anêmonas que desapareceram.
Vieram as delgadas velocidades, finas
ferramentas do mar, peixes de trapo,
dourados pelo trigo, destinados
por suas mercadorias cinzentas,
por pedras transbordantes que brilharam
como o fogo caindo entre as suas velas,
ou repletos de flores sulfurosas
recolhidas em ermos salinos.
Outros carregaram raças, dispuseram
na umidade de baixo, acorrentados,
olhos cativos que gretaram com lágrimas
a pesada madeira do navio.
Pés recém-separados do marfim, amarguras
amontoadas como frutos malferidos,
dores esfoladas como cervos: cabeças
que caíram dos diamantes do verão
na profundidade do esterco infame.
Navios cheios de trigo que tremeram
sobre as ondas como nas planícies
o vento cereal das espigas:
barcos das baleias, eriçadas
de corações duros como arpões,
lentos de caçadas, deslocando
para Valparaíso suas adegas,
velas graxentas que se sacudiram
feridas pelo gelo e pelo azeite
até encher as taças da nave
com a colheita branda ela fera.
Barcas desmanteladas que cruzaram
de tombo em tombo no furor marinho
com o homem agarrado a suas lembranças
e os andrajos derradeiros do barco,
antes que, como mãos amputadas,
os fragmentos do mar os conduzissem
às delgadas bocas que povoaram
o espumoso mar em sua agonia.
Naves dos nitratos, aguçadas
e alegres como indômitos delfins
até as sete espumas deslizadas
pelo vento em suas savanas gloriosas,
finas como os dedos e as unhas,
velozes como plumas e corcéis,
navegadoras do mar moreno
que bica os metais de minha pátria.
XV
A uma carranca de proa (elegia)
Nas areias de Magalhães te recolhemos, cansada
navegante, imóvel
sob a tempestade que tantas vezes teu peito doce e duplo
desafiou dividindo em seus mamilos.
Te levantamos outra vez sobre os mares do sul, mas agora
foste a passageira do obscuro, dos rincões, igual
no alto-mar, envolta pela noite marinha.
Hoje és minha, deusa que o albatroz gigante
roçou com a sua estatura estendida no vôo,
como um manto de música dirigida na chuva
por tuas cegas e errantes pálpebras de madeira.
Rosa do mar, abelha mais pura que os sonhos,
amendoada mulher que desde as raízes
de um carvalho povoado pelos cantos
te fizeste forma, força de folhagem com ninhos,
boca de tempestades, doçura delicada
que iria conquistando a luz com seus quadris.
Quando anjos e rainhas que nasceram contigo
se encerraram de musgo, dormiram destinados
à imobilidade com um honor de mortos,
subiste à proa delgada do navio
e anjo e rainha e onda, tremor do mundo foste.
O estremecimento dos homens subia
até a tua nobre túnica com peitos de maçã,
enquanto os teus lábios eram oh! doce! umedecidos
por outros beijos dignos de tua boca selvagem.
Sob a chuva estranha a tua cintura deixava
cair o peso puro da neve nas ondas
cortando na sombria magnitude um caminho
de fogo derrubado, de mel fosforescente.
O vento abriu em teus cacheados sua caixa tempestuosa,
o desencadeado metal de seu gemido,
e na aurora a luz te recebeu tremendo
nos portos, beijando o teu diadema molhado.
Às vezes detiveste sobre o mar o teu caminho
e o barco tremulante desceu por seu costado,
como uma gorda fruta que se desprende e cai,
um marinheiro morto que acolheram a espuma
e o movimento puro do tempo e do navio.
E somente tu entre todos os rostos esmagados
pela ameaça, mergulhados numa dor estéril,
recebeste o sal salpicado em tua máscara,
e os teus olhos guardaram as lágrimas salgadas.
Mais de uma pobre vida resvalou pelos teus braços
para a eternidade das águas mortuárias,
e o rocio que te deram os mortos e os vivos
gastou o teu coração de madeira marinha.
Hoje recolhemos da areia a tua forma.
Afinal, a meus olhos estavas destinada.
Dormes talvez, adormecida, talvez morreste, morta:
teu movimento, por fim, esqueceu o sussurro
e o esplendor errante fechou sua travessia.
Iras do mar, golpes do céu coroaram
tua altaneira cabeça com gretas e rupturas,
e teu rosto como um caracol repousa
com feridas que marcam teu rosto equilibrado.
Para mim tua beleza guarda todo o perfume,
todo o ácido errante, toda a sua noite escura.
E em teu empinado peito de lâmpada ou de deusa,
torre turgente, imóvel amor, vive a vida.
Tu navegas comigo, recolhida, até o dia
em que deixem cair o que sou na espuma.
XVI
O homem no navio
Além da linha do navio
fiada pelo sal em movimento,
entre a graxa morta que transpassa os sonhos
o tripulante dorme com nua fadiga,
alguém de guarda arrasta um cabo de metal,
soa o mundo
do barco, range o vento nas madeiras,
palpitam surdamente os ferros viscerais,
o foguista olha o seu rosto num espelho:
num pedaço partido de vidro, reconhece
dessa ossuda máscara manchada pelo fumo
uns olhos: aqueles olhos que amou Graciela
Gutiérrez, antes de morrer, sem que junto
a seu leito estes olhos que amou pudessem vê-la,
levá-la nesta última embarcação, adentro
da jornada, entre as brasas e o azeite.
Vão importa, com os beijos que se uniam
entre as viagens e aqueles presentes, agora ninguém,
ninguém na casa, O amor na noite do mar,
toca todos os leitos dos que dormem, vive
mais embaixo de navio; como uma alga
noturna que desliza seus ramos para cima.
Há outros estendidos na noite da viagem,
no vazio, sem mar sob os sonhos,
como a vida, alturas fragmentadas, pedaços
da noite, pedregulhos que separaram
a destroçada rede dos sonhos.
A terra
de noite invade o mar com suas ondas e cobre
o coração do pobre passageiro adormecido
com uma única sílaba de pó, com uma
colherada de morte que o reclama.
Toda pedra oceânica é oceano, a mínima
cintura ultravioleta da medusa, o céu
com todo o seu vazio constelado, a lua
tem mar abolido em seus espectros:
mas o homem fecha seus olhos, morde um pouco
seus passos, ameaça seu coração pequeno,
e soluça e arranha a noite com suas unhas,
procurando terra, fazendo-se verme.
É terra que as águas não cobrem e não matam.
É orgulho de argila que morrerá no cântaro,
quebrando-se, separando as gotas que cantaram,
amarrando à terra sua indecisa costura.
Não busques no mar esta morte, não esperes
território, não guardes o punhado de pó
para integrá-lo intacto e entregá-lo à terra.
Entrega-o a estes lábios infinitos que cantam,
doa-os a este coro de movimento e mundo,
destrói-te na eterna maternidade da água.
XVII
Os enigmas
Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre [as suas patas de ouro
e eu vos respondo: O mar o sabe.
Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente? Que espera?
Eu vos digo, espera como vós o tempo.
Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.
Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
[do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.
Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré austral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis embaralhado, sem dúvida,
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactite que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?
Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
[que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.
Eu não sou mais que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, ,medidas
de um tímido hemisfério de laranja.
Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.
XVIII
As pedras da praia
Oceânicas não tendes a matéria
que emerge das terras vegetais
entre a primavera e as espigas.
O tacto azul do ar que navega
entre as uvas não conhece o rosto
que da solidão sai ao oceano.
O rosto das rochas destroçadas,
que não conhece abelhas, que não tem
mais que a agricultura das ondas,
o rosto das pedras que aceitaram
a desolada espuma do combate
em suas eternidades gretadas.
Ásperas naves de granito hirsuto
entregue à cólera, planetas
em cuja imóvel dimensão detêm
as bandeiras do mar seu movimento.
Tronos da intempérie dos furacões.
Torres de soledades sacudidas.
Tendes, rochas do mar, a vitoriosa
cor do tempo, o material gastado
por uma eternidade em movimento.
O fogo fez nascer estes lingotes
que o mar estremeceu com suas granadas.
Esta ruga em que o cobre e a salmoura
se uniram: este ferro alaranjado,
estas manchas de prata c de pomba,
são o muro mortal e a fronteira
da profundidade com seus cachos.
Pedras de solidão, pedras amadas
de cujas duras cavidades pende
o tumultuoso frio das algas,
e a cuja borda ornada pela lua
sobe a solidão das praias.
Dos pés perdidos na areia
que aroma se perdeu, que movimento
de corola nupcial subiu tremendo?
Plantas de areia, triângulos carnosos,
aplanadas substâncias que chegaram
a acender seu fulgor sobre as pedras,
primavera marinha, delicada
taça sobre as pedras erigida,
pequeno raio de amaranto apenas
aceso e gelado pela fúria,
dá-me a condição que desafia
as areias do páramo estrelado.
Pedras do mar, centelhas detidas
no combate da luz, sinos
dourados pelo óxido, afiadas
espadas da dor, cúpulas partidas
em cujas cicatrizes se constrói
a estátua desdentada da terra.
XIX
Molusco gongorino
Da Califórnia trouxe um múrex espinhoso,
a sílica em suas farpas, ataviada com fumo
sua eriçada postura de rosa congelada,
e seu interior rosado de paladar ardia
com uma suave sombra de corola carnosa.
Mas tive uma ciprinóide cujas manchas saíram
sobre sua capa, ornando o seu veludo puro
com círculos queimados de pólvora ou pantera,
e outra levou em seu dorso liso como uma taça
um ramo de rios tatuados na lua.
Mas a linha espiral, sustentada
apenas pelo ar, oh,
escadaria, escadaria delicada,
oh, monumento frágil da aurora
que um anel com opala amassada
enrola deslizando a sua doçura.
Tirei do mar, abrindo as areias,
a ostra eriçada de coral sangrento,
spondylus, fechando em suas metades
a luz de seu tesouro submerso,
cofre envolto em agulhas escarlates,
ou neve com espinhos agressores.
A azeitona grácil recolhi da areia,
úmida caminhante, pé de púrpura,
jóia umedecida em cuja forma
a fruta endureceu sua chamarada,
poliu o cristal sua condição marinha
e ovalou a pomba a sua nudez.
O caracol do tritão reteve
a distância na gruta do som
e na estrutura de sua cal trançada
sustém o mar com pétalas, sua cúpula.
Oh, rostellaria, flor impenetrável
como um signo erguido numa agulha,
mínima catedral, lança rosada,
espada da luz, pistilo de água.
Mas na altura da aurora assoma
o filho da luz, feito de lua,
o argonauta que um tremor dirige,
que um trêmulo contacto da espuma
amassou, navegando em uma onda
com sua nau espiral de jasmineiro.
E então escondida na maré,
boca ondulante do mar cor de amora,
seus lábios de titânica violeta,
a tridacna fechou como um castelo,
e lá a sua rosa colossal devora
as azuis estirpes que a beijam:
monastério de sal, herança imóvel
que encarcerou uma onda endurecida.
Mas devo nomear, tocando apenas,
ó Nautilus, a tua alada dinastia,
a redonda equação em que navegas
deslizando a tua nau nacarada,
a tua espiral geometria em que se fundem,
relógio do mar, o nácar e a linha,
e devo até as ilhas, no vento,
ir-me contigo, deus da estrutura.
XX
As aves maltratadas
Alto sobre Tocopilla está o pampa nitroso,
os ermos, a mancha das salinas, é o
deserto sem uma folha, sem um escaravelho,
sem uma fibra, sem uma sombra, sem tempo.
La a garuma dos mares fez os seus ninhos,
faz tempo, na areia solitária e quente,
deixou seus ovos debulhando o vôo
desde a costa, nas ondas da plumagem,
até a solidão, até o remoto
quadrado do deserto que alcatifaram
com o tesouro suave da vida.
Formoso rio desde o mar, selvagem
solidão do amor, plumas do vento
arredondadas em globos de magnólia,
vôo arterial, palpitação alada
em que todas as vidas acumulam,
num rio reunido, suas pressões:
assim o sal estéril foi povoado,
foi coroado o páramo de plumas
e o vôo se incubou nos areais.
Chegou o homem.
Talvez encheram
a sua miséria de pálido extraviado
do deserto, os ramos do arrulho
que como o mar tremia no deserto,
talvez o deslumbrou como uma estrela
a extensão crepitante de brancura,
mas chegaram outros em seus passos.
Chegaram na alva, com garrotes
e com cestos, roubaram o tesouro,
espancaram as aves, derrotaram
ninho por ninho a nau de plumas,
sopesaram os ovos e esmagaram
aqueles que tinham criatura.
Levantaram-nos à luz e os arremessaram
contra a terra do deserto, em meio
ao vôo e ao grasnido e à onda
do rancor, e as aves estenderam
toda a sua fúria no ar invadido,
e cobriram o sol com as suas bandeiras:
mas a destruição feriu os ninhos,
arvorou o garrote e arrasada
foi a cidade do mar no deserto.
Mais tarde a cidade, na salmoura
vespertina de névoas e bêbados,
ouviu passar os cestos que vendiam
ovos de ave do mar, frutos selvagens
do ermo em que nada sobrevive,
senão a soledade sem estações,
e o sal agredido e rancoroso.
XXI
Leviatã
Arca, paz iracunda, resvalada
noite bestial, antártica estrangeira,
não passarás por mim deslocando
teu timbale de sombra sem que um dia
eu entre por tuas paredes e levante
a tua armadura de inverno submarino.
Para o sul crepitou o teu fogo negro
de expulsado planeta, o território
de teu silêncio que moveu as algas
sacudindo a idade da mata.
Foi só forma, magnitude fechada
por um tremor do mundo em que desliza
a sua majestade de couro amedrontado
por sua própria potência e sua ternura.
Arca de cólera acesa
com as tochas da neve negra,
quando o teu sangue cego foi fundado
a idade do mar dormia nos jardins,
e em sua extensão a lua desfazia
a cauda de seu ímã fosforescente,
A vida crepitava
como uma fogueira azul, mãe medusa,
multiplicada tempestade de ovários,
e todo o crescimento era pureza,
palpitação de pâmpano marinho.
Assim foi a tua gigante mastreação
disposta entre as águas como a passagem
da maternidade sobre o sangue,
e teu poder foi noite imaculada
que resvalou inundando as raízes.
Extravio e terror estremeceram
a solidão, e fugiu o teu continente
para além das ilhas esperadas:
mas o terror passou sobre os globos
da lua glacial, e entrou em tua carne,
agrediu solidões que ampararam
a tua aterradora lâmpada apagada.
A noite foi contigo: te envolvia
aderindo-te um limo tempestuoso
c revolveu a tua cauda de furacão
o gelo em que dormiam as estrelas.
Oh, grande ferida, manancial quente
revolvendo seus trovões derrotados
na comarca do arpão, tingido
pelo mar do sangue, dessangrado,
doce e adormecido bicho conduzido
como um ciclone de partidos hemisférios
até as barcas negras da graxa
povoadas por rancor e pestilência.
Oh, grande estátua morta nos cristais
da luta polar, enchendo o céu
como uma nuvem de terror que chora
e cobre os oceanos de sangue.
XXII
“Phalacrocorax”
Aves estercorárias das ilhas,
multiplicada vontade do vôo,
celeste magnitude, inumerável
emigração do vento da vida,
quando os vossos cometas deslizam
areando o céu sigiloso
do calado Peru, voa o eclipse.
Oh, lento amor, selvagem primavera
que desenraíza sua taça plena
e navega a nave da espécie
com um fluvial tremor de água sagrada
deslocando o seu céu caudaloso
para as ilhas vermelhas do esterco.
Eu quero submergir-me em vossas asas,
ir para o sul dormindo, sustido
por toda a mata tremulante.
Ir no rio escuro das flechas
com uma voz perdida, dividir-me
na palpitação inseparável.
Depois, chuva do vôo, as calcárias
ilhas abrem o seu frio paraíso
de onde cai a lua da plumagem,
a tormenta enlutada das plumas.
O homem inclina então sua cabeça
ante o arrulho das aves mães,
e cava esterco com as mãos cegas
que levantam as grades uma a uma,
raspa a claridade do escremento,
acumula as fezes derramadas.
e se prosterna ao meio das ilhas
da fermentação, corno um escravo,
saudando as ácidas ribeiras
que coroam os pássaros ilustres.
XXIII
Não só o albatroz
Não da primavera, não esperadas
sois, não na sede da corola,
não no mel roxo que se entretece
fibra por fibra em cepas e cachos,
mas na tempestade, na andrajosa
cúpula torrencial do arrecife,
na greta perfurada pela aurora,
e ainda mais, sobre as lanças verdes
do desafio, na desmoronada
solidão dos páramos marinhos.
Noivas do sal, pombas procelárias,
a todo aroma impuro da terra
destes o dorso pelo mar molhado,
e na selvagem claridade mergulhastes
a geometria celestial do vôo.
Sagradas sois, não só a que andou
como gota ciclônica no ramo
do vendaval: não só a que se aninha
nas vertentes da fúria, mas
a gaivota de neve arredondada,
a forma do remeiro sobre a espuma,
o prateado fardel de platina.
Quando tombou fechado como um nó
o alcatraz, mergulhando o seu volume,
e quando navegou a profecia
nas asas extensas do albatroz,
e quando o vento do petrel voava
sobre a eternidade em movimento,
para além dos velhos cormorões,
meu coração se recolheu em sua taça
e estendeu aos mares e às plumas
a desembocadura de seu canto.
Dá-me o estanho gelado que no peito
levais às pedras tempestuosas,
dá-me a condição que se congrega
nas garras da águia marinha,
ou a estatura imóvel que resiste
a todos os crescimentos e rupturas,
o vento da flor de laranjeira desamparado
e o sabor da pátria desmedida.
XXIV
A noite marinha
Noite marinha, estátua branca e verde,
te amo, dorme comigo.
Fui por todas
as ruas calcinando-me e morrendo,
cresceu comigo a madeira, o homem
conquistou a sua cinza e se dispôs
a descansar rodeado pela terra.
Fechou a noite para que os teus olhos
não vissem o seu repouso miserável:
quis proximidade, abriu os braços
custodiado por seres e por muros,
e caiu no sonho do silêncio, baixando
à terra funeral com suas raízes.
Eu, noite oceano, a tua forma aberta,
à tua extensão que Aldebarã vigia,
à boca molhada de teu canto
cheguei com o amor que me constrói.
Te vi, noite do mar, quando nascias
golpeada pelo nácar infinito:
vi se tecerem as fibras estreladas
e a eletricidade de tua cintura
e o movimento azul dos sons
que acossam a tua doçura devorada.
Ama-me sem amor, sangrenta esposa.
Ama-me com espaço, com o rio
de tua respiração, com o aumento
de todos os teus diamantes transbordados:
ama-me sem a trégua de teu rosto,
dá-me a retidão de teu quebranto.
Formosa és, amada, noite formosa:
guardas a tempestade como uma abelha
adormecida em teus estames alarmados,
e sonho e água tremem nas taças
de teu peito acossado de vertentes.
Noturno amor, segui o que erguias,
tua eternidade, a torre tremulante
que assume as estrelas, a medida
de tua vacilação, as povoações
que levanta a espuma em teus costados:
estou acorrentado à tua garganta
e aos lábios que rompes na areia.
Quem és? Noite dos mares, dize-me
se a ma escarpada cabeleira cobre
toda a solidão, se é infinito
este espaço de sangue e de prados.
Dize quem és, cheia de navios,
cheia de luas que tritura o vento,
dona de todos os metais, rosa
da profundidade, rosa molhada
pela intempérie do amor nu.
Túnica da terra, estátua verde,
dá-me uma onda como um sino,
dá-me uma onda de flor de laranjeira furiosa,
a multidão de fogueiras, os navios
do céu capital, a água em que navego,
a multidão do fogo celeste: quero um só
minuto de extensão e mais que todos
os sonhos, tua distância:
toda a púrpura que medes, o grave
pensativo sistema constelado:
toda a tua cabeleira que visita
a escuridão, e o dia que preparas.
Quero ter a tua fronte simultânea,
abri-la em meu interior para nascer
em todas as tuas praias, ir agora
com todos os segredos respirados,
com as tuas escuras linhas resguardadas
em mim como o sangue ou as bandeiras,
levando estas secretas proporções
ao mar de cada dia, aos combates
que em cada porta - amores e ameaças -
vivem adormecidos.
Mas então
entrarei na cidade com tantos olhos
como os teus, e sustentarei a vestimenta
com que me visitaste, e que me toquem
até a água total que não se mede:
pureza e destruição contra toda a morte,
distância que não pode gastar-se, música
para os que dormem e para os que despertam.
Escrevo para uma terra recém-secada, recém-
fresca de flores, de pólen, de argamassa,
escrevo para umas crateras cujas cúpulas de giz
repetem seu redondo vazio junto à neve pura,
opino de imediato para o que apenas
leva o vapor ferruginoso recém-saído do abismo,
falo para as pradarias que não conhecem nome
além da pequena campânula do líquen ou o estame queimado
ou a áspera mata onde se inflama a égua.
De onde venho, senão destas primíparas, azuis
matérias que se enredam ou se encrespam ou se destituem
ou se esparzem a gritos ou se derramam sonâmbulas,
ou se galgam e formam o baluarte da árvore,
ou se somem e amarram a célula do cobre,
ou saltam ao ramo dos rios, ou sucumbem
na raça enterrada do carvão ou reluzem
nas trevas verdes da uva?
Nas noites durmo como os rios, percorrendo
algo incessantemente, rompendo ultrapassando
a noite natatória, levantando as horas
para a luz, apalpando as secretas
imagens que a cal desterrou, subindo pelo bronze
até as cataratas recém-disciplinadas, e toco
em um caminho de rios o que não distribui
nada além da rosa nascida, o hemisfério afogado.
A terra é uma catedral de pálpebras pálidas,
eternamente unidas e agregadas em um
vendaval de segmentos, em um sal de abóbadas,
em uma cor final de outono perdoado.
Não haveis, não haveis tocado nunca no caminho
o que a estalactite desnuda determina,
a festa entre as lâmpadas glaciais,
o alto frio das folhas negras,
não haveis entrado comigo nas fibras
que a terra escondeu,
não haveis tornado a subir depois de mortos
grão por grão os degraus da areia
até que as coroas do orvalho
cubram de novo urna rosa aberta,
não podeis existir sem ir morrendo
com o vestuário usado do destino.
Porém eu sou o nimbo metálico, a argola
encadeada a espaços, a nuvens, a terrenos
que toca precipitadas e emudecidas águas,
e torna a desafiar a intempérie infinita.
I
Hino e regresso (1939)
Pátria, minha pátria, volto a ti o sangue.
Mas te peço, como à mãe o menino
cheio de pranto.
Acolhe
esta guitarra cega
e este rosto perdido.
Saí para encontrar-te filhos pela terra,
saí para cuidar caídos com o teu nome de neve,
saí pata fazer uma casa com a tua madeira pura,
saí para levar tua estrela aos heróis feridos.
Agora quero dormir em tua substância.
Dá-me tua clara noite de penetrantes cordas,
tua noite de navio, tua estatura estrelada.
Pátria minha: quero mudar de sombra.
Pátria minha: quero trocar de rosa.
Quero pôr meu braço em tua cintura exígua
e sentar-me em tuas pedras pelo mar calcinadas,
a deter o trigo e espiá-lo por dentro.
Vou eleger a flora delgada do nitrato,
vou fiar o estame glacial do sino,
e espiando tua ilustre e solitária espuma
um ramo litoral tecerei para tua beleza.
Pátria, minha pátria
toda rodeada de água combatente
e neve combatida,
em ti se junta a águia ao enxofre
e em tua antártica mão de arminho e de safira
uma gota de pura luz humana
brilha acendendo o inimigo céu.
Guarda tua luz, ó pátria!, mantém
tua dura espiga de esperança em meio
ao cego ar temível.
Em tua remota terra caiu toda esta luz difícil,
este destino dos homens
que te faz defender uma flor misteriosa
só, na imensidade da América adormecida.
II
Quero voltar ao sul (1941)
Enfermo em Veracruz, recordo um dia do sul, minha terra, um dia de prata
como um rápido peixe na água do céu.
Loncoche, Lonquimay, Carahue, de cima
esparzidos, rodeados por silêncio e raízes,
sentados em seus tronos de couros e madeiras.
O sul é um cavalo lançado a pique
coroado com lentas árvores e rocio,
quando levanta o verde focinho caem as gotas,
a sombra de sua cauda molha o grande arquipélago
e em seu intestino cresce o carvão venerado.
Nunca mais, dize-me, sombra, nunca mais, dize-me, mão,
nunca mais, dize-me, pé, porta, perna, combate,
transtornarás a selva, o caminho, a espiga,
a névoa, o frio, o que, azul, determinava
cada um de teus passos sem cessar consumidos?
Céu, deixa-me um dia de estrela a estrela ir-me
pisando luz e pólvora destroçando meu sangue
até chegar ao ninho da chuva!
Quero ir
por detrás da madeira pelo rio
Toltén fragrante, quero sair das serrações,
entrar nas cantinas com os pés empapados,
guiar-me pela luz da aveleira elétrica,
espichar-me junto ao excremento das vacas,
morrer e reviver mordendo o trigo.
Oceano, traze-me
um dia do sul, um dia agarrado a tuas ondas,
um dia de árvore molhada, traze um vento
azul polar a minha bandeira fria!
III
Melancolia perto de Orizaba (1942)
Que há para ti no sul senão um rio, uma noite,
umas folhas que o ar frio manifesta
e estende até cobrir as margens do céu?
Acaso a cabeleira do amor desemboca
como outra neve ou água do desfeito arquipélago,
como outro movimenta subterrâneo do fogo
e espera nos barracões outra vez,
onde as folhas caem tantas vezes
tremulando, devoradas por essa boca espessa,
e o brilho da chuva fecha sua trepadeira
desde a reunião dos grãos secretos
até a folhagem cheia de sinos e gotas?
Onde a primavera traz uma voz molhada
que zumbe nas orelhas do cavalo adormecido
e logo caí no ouro do trigo triturado
e logo assoma um dedo transparente na uva.
Que há para ti a esperar-te, onde, sem corredores,
sem paredes, te chama o sul?
Como o llanero escutas em tua mão a taça
da terra, pondo o teu ouvido nas raízes:
de longe um vento do hemisfério temível,
o galope no orvalho dos carabineiros:
onde a agulha cose com água fina o tempo
e sua esmiuçada costura se destrói:
que há para ti na noite de costados selvagens
uivando com a boca toda cheia de azul?
Há um dia talvez detido, um espinho
crava no velho dia seu aguilhão degradado
e sua antiga bandeira nupcial se despedaça.
Quem guardou um dia de bosque negro, quem
esperou umas horas de pedra, quem rodeia
a herança lastimada pelo tempo, quem foge
sem desaparecer no centro do ar?
Um dia, um dia cheio de folhas desesperadas,
um dia, uma luz partida pela fria safira,
um silêncio de ontem preservado no oco
de ontem, na reserva do território ausente.
Amo tua emaranhada cabeleira de couro,
tua antártica formosura de intempérie e cinza.
teu doloroso peso de céu combatente:
amo o vôo do ar do dia em que me esperas,
sei que não muda o beijo da terra, e não muda,
sei que não cai a folha da árvore, e não cai:
sei que o mesmo relâmpago detém seus metais
e a desamparada noite é a mesma noite,
porém és minha noite, porém és minha planta, a água
das glaciais lágrimas que conhecem meu cabelo.
Seja eu o que ontem me esperava no homem:
o que em louro, cinza, quantidade, esperança,
desenrola sua pálpebra no sangue,
no sangue que povoa a cozinha e o bosque,
as fábricas que o ferro cobre de plumas negras,
as minas verrumadas pelo suor sulfúrico.
Não só o ar agudo do vegetal me espera:
não só o trovão sobre o nevado esplendor:
lágrimas e fome como dois calafrios
sobem ao campanário da pátria e repicam:
é aí que em meio do fragrante céu,
é aí que quando outubro rebenta, e corre
a primavera antártica sob o fulgor do vinho,
há um lamento e outro e outro lamento e outro
até que cruzam neve, cobre, caminhos, naus,
e passam através da noite e da terra
até minha dessangrada garganta que os ouve.
Povo meu, que dizes? Marinheiro,
peão, alcaide, operário do salitre, me escutas?
Eu te ouço, irmão morto, irmão vivo, te ouço,
o que tu desejavas, o que enterraste, tudo,
o sangue que na areia e no mar derramavas,
o coração golpeado que resiste e assusta.
Que há para ti no sul? A chuva onde cai?
E desde o interstício, que mortos açoitaste?
Os meus, os do sul, os heróis sós,
o pão disseminado pela cólera amarga,
o longo luto, a fome, a dureza e a morte,
as folhas sobre eles tombaram, as folhas,
a lua sobre o peito do soldado, a lua.
o beco do miserável, e o silêncio
do homem em todas as partes, como um mineral duro
cujo veio de frio gela a luz de minh'alma
antes de construir o campanário nas alturas.
Pátria cheia de germes, não me chames, não posso
dormir sem teu olhar de cristal e treva.
Teu grito rouco de águas e seres me sacode
e ando no sonho à beira de tua espuma solene
até a última ilha de tua cintura azul.
Me chamas docemente como uma noiva pobre.
Tua longa luz de aço me cega e me busca
como uma espada cheia de raízes.
Pátria, terra estimável, queimada luz ardendo:
como o carvão dentro do fogo precipita
teu sal temível, tua despida sombra.
Seja eu o que ontem me esperava, e amanhã
resista num punhado de papoulas e poeira.
IV
Oceano
Se tua nudez evidente e verde,
se tua maçã desmedida, se
nas trevas tua mazurca, onde
está a tua origem?
Noite
mais doce que a noite,
sal
mãe, sal sangrento, curva mãe da água,
planeta percorrido pela espuma e a medula:
titânica doçura de estelar longitude:
noite com uma única onda na mão:
tempestade contra a águia marinha,
cega sob as mãos do sulfato insondável:
adega em tanta noite sepultada,
corola fria toda de invasão e ruído,
catedral enterrada a golpes na estrela.
Há o cavalo ferido que na idade de tua margem
percorre, pelo fogo glacial substituído,
há o abeto rubro transformado em plumagem
e desfeito em tuas mãos de atroz cristalaria,
e a incessante rosa combatida nas ilhas
e o diadema de água e lua que estabeleces.
Pátria minha, a tua terra
todo este céu escuro!
Toda esta fruta universal, toda esta
delirante coroa!
Para ti esta taça de espumas onde o raio
se perde como um albatroz cego, e onde o sol do sul
se levanta olhando tua condição sagrada.
V
Selaria
Para mim este arreio esboçado
como pesada rosa em prata e couro,
suave de fundura, liso e duradouro.
Cada recorte é uma mão, cada
costura é uma vida, nele vive
a unidade das vidas florestais,
uma cadeia de olhos e cavalos.
Os grãos da aveia o formaram,
o fizeram duro matagais e água,
a colheita opulenta lhe deu orgulho,
metal e tafiletes trabalhados:
e assim de desventuras e domínio
este trono saiu pelas campinas.
Olaria
Tarda pomba, alcanzia de argila,
em teu lombo de luto um signo, apenas
algo que te decifra.
Povo meu,
como com as tuas dores nas costas,
espancado e rendido, como foste
acumulando ciência desfolhada?
Prodígio negro, mágica matéria
elevada à luz por dedos cegos,
mínima estátua em que o mais secreto
da terra nos abre seus idiomas,
cântaro de Pomaire em cujo beijo
terra e pele se congregam, infinitas
formas do barro, luz das vasilhas,
a forma de uma mão que foi minha,
o passo de uma sombra que me chama,
sois reunião de sonhos escondidos,
cerâmica, pomba indestrutível!
Teares
Sabeis que lá a neve vigiando
os vales ou, melhor,
a primavera escura do sul, as aves negras
a cujo peito só uma gota de sangue
veio a tremer, a bruma
de um grande inverno que estendeu as asas,
assim é o território, e sua fragrância
sobe de flores pobres, derrubadas
pelo peso de cobre e cordilheiras.
- lá o tear fio a fio, buscando
reconstruiu a flor, subiu a pluma
a seu império escarlate, entretecendo
azuis e açafrões, a meada
do fogo e seu amarelo poderio,
a estirpe do relâmpago violeta,
o verde areento do lagarto.
Mãos do povo meu nos teares,
mãos pobres que tecem, uma a uma,
as plumagens de estrela que faltaram
a tua pele, Pátria de cor escura,
substituindo fibra por fibra o céu
para que cante o homem os seus amores
e galope acendendo cereais!
VI
Inundações
Os pobres vivem embaixo esperando que o rio
se levante à noite e os leve para o mar.
Vi pequenos berços que flutuavam, destroços
de vivendas, cadeiras, e uma cólera augusta
de lívidas águas em que se confundem o céu e o terror
Só é para ti, pobre, para tua esposa e tua sementeira,
para teu cão e tuas ferramentas, para que aprendas a ser mendigo.
A água não sobe até as casas dos cavalheiros
cujos nevados pescoços voam das lavanderias.
Come este lodo de roldão e estas ruínas que nadam
com teus mortos vagando docemente para o mar,
entre as pobres mesas e as perdidas árvores
que vão de tombo em tombo mostrando as raízes.
Terremoto
Acordei quando a terra dos sonhos faltou
sob a minha cama.
Uma coluna cega de cinza cambaleava no meio
da noite,
eu te pergunto: morri?
Dá-me a mão nesta ruptura do planeta
enquanto a cicatriz do céu roxo se faz estrela.
Ai! porém recordo, onde estão? onde estão?
Por que ferve a terra enchendo-se de morte?
Oh, máscaras sob as vivendas enroladas, sorrisos
que não atingiram o espanto, seres despedaçados
sob as vigas, cobertos pela noite.
E hoje amanheces, ó dia azul, vestido
para um baile, com a tua cauda de ouro
sobre o mar apagado dos escombros, ígneo,
buscando o rosto perdido dos insepultos.
VII
Atacama
Voz insofrível, disseminado
sal, substituída
cinza, ramo negro
em cujo extremo aljôfar aparece a lua
cega, por corredores enlutados de cobre.
Que material, que cisne oco
funde na areia sua nudez agônica
e endurece sua luz líquida e lenta?
Que raio duro rompe sua esmeralda
entre suas pedras indomáveis até
coagular o sal perdido?
Terra, terra
sobre o mar, sobre o ar, sobre o galope
da amazona cheia de corais:
adega amontoada onde o trigo
dorme na tremulante raiz do sino:
ó mãe do oceano!, produtora
do cego jaspe e a dourada sílica:
sobre tua pele pura de pão, longe do bosque,
nada, a não ser tuas linhas de segredo,
nada, a não ser o teu rosto de areia,
nada, a não ser as noites e os dias do homem,
mas junto à sede do cardo, lá,
onde um papel enterrado e esquecido, uma pedra
marca os fundos berços da espada e da taça,
indica os adormecidos pés do cálcio.
VIII
Tocopilla
De Tocopilla ao sul, ao norte, areia,
calações ruídas, o lanchão, as tábuas
partidas, o retorcido ferro.
Quem à linha pura do planeta,
áurea e cozida, sonho, sal e pólvora
agregou o utensílio desfeito, a imundície?
Quem pôs o teto arriado, quem deixou as paredes
abertas, como um ramo
de papéis pisados?
Lôbrega luz do homem em ti destituído,
sempre tornando à conca de tua lua calcária,
apenas recebido por tua letal areia!
Gaivota rara das obras, arenque,
petrel anelado,
frutos, vós, filhos do espinhel sangrento
e da tempestade, vistes o chileno?
Vistes o humano, entre as duplas linhas do frio
e das águas, sob a dentadura
da linha de terra, na baía?
Piolhos, piolhos ardentes atacando o sal,
piolhos, piolhos da costa, povoações, mineiros,
de uma cicatriz do deserto até a outra,
contra a costa da lua, fora!,
bicando o selo frio sem idade.
Além dos pés do alcatraz, quando
nem água nem pão nem sombra tocam a dura etapa,
o exercício do salitre assoma
ou a estátua do cobre decide sua estatura.
É tudo como estrelas enterradas
como pontas amargas, como infernais
flores
brancas, nevadas de luz tremulante
ou verde e negro ramo de esplendores pesados.
Não vale ali a pena mas só a mão rota
do chileno escuro, não vale ali a dúvida.
Só o sangue.
Só esse golpe duro
que pergunta na veia pelo homem.
Na veia, na mina, na esburacada cova
sem água e sem laurel.
Ó pequenos
compatriotas queimados por esta luz mais agra
que o banho da morte, heróis escurecidos
pelo amanhecer do sal na terra,
onde fazeis vosso ninho, errantes filhos?
Quem vos viu entre as fibras rotas
dos portos desérticos?
Sob
a névoa de salmoura
ou atrás da costa metálica,
ou talvez ou talvez,
sob o deserto já, sob
sua palavra de pó
para sempre!
Chile, Metal e Céu,
e vós, chilenos,
semente, irmãos duros,
tudo disposto em ordem e silêncio
como a permanência das pedras.
IX
“Peumo”
Parti uma folha lajeada do matagal: um doce
aroma das bordas partidas
me tocou como asa profunda que voasse
da terra, de longe, de nunca.
Peumo, então vi tua folhagem, tua verdura
minuciosa, encrespada, cobrir com seus impulsos
teu tronco terrenal e tua largueza olorosa.
Pensei como és toda a minha terra: minha bandeira
deve ter aroma de peumo ao despregar-se,
um odor de fronteiras que de súbito
entram em ti com toda a pátria em sua corrente.
Peumo puro, fragrância de anos e cabeleiras
no vento, na chuva, sob a curvatura
da montanha, com um ruído de água que baixa
até nossas raízes, ó amor, ó tempo agreste
cujo perfume pode nascer, desenredar-se
de uma folha e encher-nos até derramarmos
a terra, como velhos cântaros enterrados!
“Quilas”
Entre as folhas retas que não sabem sorrir
encondes teu plantel de lanças clandestinas.
Tu não esqueceste.
Quando passo por tua folhagem
murmura a dureza, e despertam palavras
que ferem, sílabas que amamentam espinhos.
Tu não esqueces.
Eras argamassa molhada
com sangue, eras a coluna da casa e a guerra,
eras bandeira, teto de minha mãe araucana,
espada do guerreiro silvestre, Araucania
eriçada de flores que feriram e mataram.
Asperamente escondes as lanças que fabricas
e que conhece o vento da região selvagem,
a chuva, a águia dos bosques queimados,
e o sutil habitante recém-despossuído.
Talvez, talvez: não digas a ninguém o teu segredo.
Guarda para mim uma lança silvestre, ou madeira
de uma flecha.
Eu tampouco esqueci.
“Drimis Winterei”
Plantas sem nome, folhas
e cordas montanhosas,
ramos tecidos de ar verde, fios
recém-bordados, ganchos de metais escuros,
inumerável flora coronária
da umidade, do vasto vapor, da água imensa.
E entre toda a forma que buscou este entrelaçado,
entre estas folhas cujo molde intacto
equilibrou na chuva seu prodígio,
ó árvore, despertaste como um trovão
e em tua copa povoada por toda a verdura
adormeceu como um pássaro o inverno.
X
Zonas frias
Termo abandonado! Linha louca
em que a fogueira ou o cardo enfurecido
formam capas de azul eletrizado.
Pedras batidas por
agulhas do cobre, estradas
de material silêncio, ramos mergulhados
no sal das pedras.
Aqui estou, aqui estou,
boca humana entregue ao passo pálido
de um tempo detido como taça ou cadeira,
central presídio de água sem saída,
árvore de corporal flor derrubada,
unicamente surda e brusca areia.
Pátria minha, terrestre e cega como
nascidos aguilhões da areia, para ti toda
a fundação de minha alma, para ti as perpétuas
pálpebras de meu sangue, e de volta
o meu prato de papoulas.
Dá-me de noite, em meio às plantas terrestres,
a hostil rosa de orvalho que dorme em tua bandeira,
dá-me de lua ou de terra teu pão polvilhado
com teu temível sangue escuro:
sob a tua luz de areia
não há mortos, mas longos ciclos de sal, azuis
ramos de misterioso metal morto.
XI
“Chercanes”
Gostaria que não desconfiásseis: é verão,
a água me regou c levantou um desejo
como um ramo, um canto meu me mantém
como um tronco enrugado, com certas cicatrizes.
Minúsculos, amados, vinde a minha cabeça.
Aninhai em meus ombros nos quais passeia
o fulgor de um lagarto, em meus pensamentos
sobre os quais caíram tantas folhas,
ó círculos pequenos da doçura, grãos
de alado cereal, ovozinho emplumado,
formas puríssimas em que o olho
certeiro dirige vôo e vida,
aqui, aninhai em minha orelha, desconfiados
e diminutos: ajudai-me:
quero ser mais pássaro cada dia.
“Loica”
Perto de mim, sangrenta, mas ausente.
Com tua máscara cruel e teus olhos guerreiros,
Entre os torrões, saltando de um tesouro
Para outro, na plenitude pura e selvagem.
Conta-me como entre todas,
Em nossos matagais que a chuva
Tingiu com seus lamentos, como, só,
Teu peitilho recolhe todo o carmim do mundo?
Ai, és polvilhada pelo rubro verão,
Entraste na gruta do pólen escarlate
E tua mancha recolhe todo o fogo
E tua mancha recolhe todo o fogo.
E a este olhar mais que ao firmamento
E à noite nevada em seu baluarte andino
Quando abre o leque de cada dia, nada
A detém: só a tua sarça
Que continua ardendo sem queimar a terra.
“Chucao”
Na fria folhagem multiplicada, de súbito
A voz do chucao como se ninguém existisse
A não ser esse grito de toda a solidão unida,
Como essa voz de todas as árvores molhadas.
Passou a voz a tremer e escura sobre o meu cavalo,
mais lenta e mais profunda que um vôo: parei,
onde estava? Que dias eram aqueles?
Tudo o que vivi galopando naquelas
Estações perdidas, no mundo da chuva
Nas janelas, o puma na intempérie
Rondando com duas pontas de fogo sangüinário,
E o mar dos canis, entre túneis verdes
De empapada formosura, a solidão, o beijo
Da que amei mais jovem sob as aveleiras,
Tudo surgiu de súbito quando na selva o grito
Do chucao com as suas sílabas úmidas.
XII
Botânica
O sanguinário litre e o benéfico boldo
disseminam seu estilo
em irritantes beijos de animal esmeralda
ou antologias de águas escuras entre as pedras.
A gomeleira no cimo da árvore estabelece
sua dentadura nívea
e a selvagem aveleira constrói seu castelo
de páginas e gotas.
A artemísia e a chépica rodeiam
os olhos do orégano
e o radiante louro da fronteira
perfuma as longínquas intendências.
Quila e quelenquelén das manhãs.
Idioma frio das fúcsias,
que se vai por pedras tricolores
gritando viva o Chile com a espuma!
O dedal de ouro espera
os dedos da neve
e roda o tempo sem seu matrimônio,
que uniria os anjos do fogo e do açúcar.
A caneleira mágica
lava na chuva sua racial ramagem,
e precipita os seus lingotes verdes
sob a vegetal água do sul.
A doce aspa do olmo
com fanegas de flores
sobe as gotas do copihue rubro
para conhecer o sol das guitarras.
A agreste delgadilla
e o celestial poejo
bailam nos prados com o jovem orvalho
recentemente armado pelo rio Toltén.
A indecifrável doca
decapita a sua purpura na areia
e conduz seus triângulos marinhos
até as secas luas litorais.
A brunida papoula,
relâmpago e ferida, dardo e boca,
sobre o trigo queimante
põe as suas pontuações escarlates.
A tiliácea evidente
condecora os seus mortos
e tece suas famílias
com águas mananciais e medalhas de rio.
O paico arranja lâmpadas
no clima do sul, desamparado,
quando vem a noite
do mar jamais adormecido.
O roble dorme sozinho,
muito vertical, muito pobre, muito mordido,
muito decisivo no prado puro
com a sua roupa de maltrapilho maltratado
e sua cabeça cheia de solenes estrelas.
XIII
Araucária
Todo o inverno, toda a batalha,
todos os ninhos do molhado ferro,
em tua firmeza atravessada de aragem,
em tua cidade silvestre se levantam.
O cárcere renegado das pedras,
os fios submersos do espinho,
fazem de tua aramada cabeleira
um pavilhão de sombras minerais.
Pranto eriçado, eternidade da água,
monte de escamas, raio de ferraduras,
tua atormentada casa se constrói
com pétalas de pura geologia.
O alto inverno beija a tua armadura
e te cobre de lábios destruídos:
a primavera de violento aroma
rompe a tua sede em tua implacável estátua:
e o grave outono espera inutilmente
derramar ouro em tua estatura verde.
XIV
Tomás Lago
Outras pessoas se deitaram entre as páginas dormindo
como insetos elzevirianos, entre eles
foram disputados certos livros recém-impressos
como no futebol, marcando gols de sabedoria.
Nós então cantamos na primavera
junto aos rios que arrastam pedras dos Andes,
e estávamos entrançados com nossas mulheres sorvendo
mais de uma colméia, devorando até o enxofre do mundo.
E não só isso mas muito mais: compartilhamos
a vida com humildes amigos que amamos,
e que nos ensinaram com as flechas do vinho
o alfabeto honrado da aldeia, o repouso
dos que conseguiram na dureza
sair cantando.
Ó dias em que juntos
visitamos a cova e os tugúrios,
destroçamos as teias de aranha, e nas margens
do sul sob a noite e sua argamassa
removida viajamos:
tudo era flor e pátria passageira,
tudo era chuva e material do fumo.
Que longa estrada caminhamos, detendo
o passo nas pousadas, dirigindo
nossa atenção a um extremo crepúsculo, a uma pedra,
a uma parede escrita por um carvão, a um grupo
de foguistas que de repente
nos ensinaram todas as canções do inverno.
Mas não só a lagarta andava camaleando,
em nossas janelas, banhada em celulose,
cada vez mais celestial em seu papel de culto,
mas também o ferruginoso, o iracundo, o vaqueiro
que nos queria cobrar com duas pistolas no peito,
ameaçando devorar as nossas mães
e empenhar nossos bens
(chamando a tudo isso heroísmo e outras coisas).
Nós os deixamos passar a olhá-los, não puderam
arrancar-nos uma casca, amolecer um ganido,
e cada um se foi a seu túmulo,
de jornais europeus ou pesos bolivianos.
Nossas lâmpadas continuam acesas, ardendo
mais altas que o papel e que os foragidos.
Rubén Azócar
Para as ilhas!, dissemos.
Eram dias de confiança
e estávamos sustentados por árvores ilustres:
nada nos parecia longe, tudo podia enredar-se
dum momento para outro na luz que produzíamos.
Chegamos com sapatos de couro grosso: chovia,
chovia nas ilhas, assim se mantinha o território
como uma mão verde, como luva
cujos dedos flutuavam
entre as algas vermelhas.
Enchemos de tabaco o arquipélago, fumávamos
até tarde no Hotel Nilsson, e disparávamos
ostras frescas para todos os pontos cardeais.
A cidade tinha uma fábrica religiosa
de cujas portas grandes, na tarde inanimada,
saía como um longo coleóptero um desfile
negro de sotainazinhas sob a triste chuva:
acudíamos a todos os borgonhas, enchíamos
o papel com os signos de uma dor hieróglifa.
Eu me evadi de repente: por muitos anos, distante,
em outros climas que acaudalaram minhas paixões
recordei as barcas sob a chuva, contigo,
que ali ficavas para que as tuas grandes sobrancelhas
lançassem suas raízes molhadas sobre as ilhas.
Juvencio Valle
Juvencio, ninguém sabe como tu e eu o segredo
do bosque de Boroa: ninguém
conhece certas veredas de terra avermelhada
sobre as quais acorda a luz da aveleira.
Quando as pessoas não nos ouvem não sabem
que ouvimos chover sobre árvores e tetos
de zinco, e que ainda amamos a telegrafista,
aquela, aquela moça que como nós
conhece o grito fundido das locomotivas
de inverno, nas comarcas.
Só tu, silencioso,
entraste no aroma que a chuva despenca,
incitaste o aumento dourado da flora,
recolheste o jasmim antes que ele nascesse.
O barro triste, defronte dos armazéns,
o barro triturado pelas graves carretas
como a negra argila de certos sofrimentos,
está (quem o sabe como tu?) derramado
por trás da profunda primavera.
Também
temos em segredo outros tesouros:
folhas que como línguas escarlates
cobrem a terra, e pedras suavizadas
pela torrente, pedras dos rios.
Diego Muñoz
Nós só nos defendemos, assim parece, com descobrimentos
e signos estendidos no papel tempestuoso,
mas que, capitães, corrigimos
a murros a rua maligna
e logo entre acordeões elevamos
o coração com águas e cordames.
Marinheiro, já regressaste de teus portos
de Guayaquil, odores de frutas poeirentas,
e de toda a terra um sol de aço
que te fez derramar vitoriosas espadas.
Hoje sobre os carvões da pátria chegou
uma hora - dores e amor - que compartilhamos,
e do mar sobressai sobre tua voz o fio
de uma fraternidade mais vasta que a terra.
XV
Ginete na chuva
Fundamentais águas, paredes de água, trevo
e aveia combatida,
cordoagens já unidas na rede duma noite
úmida, gotejante, selvagemente fiada,
gota desgarradora repetida no lamento,
cólera diagonal cortando o céu.
Galopam os cavalos de perfume empapado,
sob a água, golpeando a água, nela intervindo
com suas ramagens rubras de pelo, pedra e água:
e o vapor acompanha como um leite louco
a água endurecida com fugazes pombas.
Não há dia mas apenas as cisternas
do clima duro, do verde movimento
e as patas atam veloz terra c transcurso
entre bestial aroma de cavalo com chuva.
Mantas, montarias, xairéis agrupados
em sombrias romãs sobre os
ardentes lombos de enxofre que golpeiam
a selva decidindo-a.
Mais além, mais além, mais além, mais além,
mais além, mais além, mais além, mais alééééém,
os ginetes despencam a chuva, os ginetes
passam sob as aveleiras amargas, a chuva
torce em trêmulos raios seu trigo sempiterno.
Há luz da água, relâmpago confuso
derramado na folha, e do mesmo som do galope
sai uma água sem vôo, ferida pela terra.
Úmida rédea, abóbada enramada,
passos de passos, vegetal noturno
de estrelas rotas como gelo ou lua, ciclônico cavalo
coberto pelas flechas como um gelado espectro,
cheio de novas mãos nascidas na fúria,
golpeante maçã rodeada pelo medo
e sua grande monarquia de temível estandarte.
XVI
Mares do Chile
Em longínquas regiões
teus pés de espuma, tua esparzida praia
reguei com pranto desterrado e louco.
,
Hoje a tua boca venho, hoje a teu rosto.
Não ao coral sanguinário, não à queimada estrela,
nem às incandescentes e despencadas águas
entreguei o respeitoso segredo, nem a sílaba.
Guardei a tua voz enfurecida, uma pétala
de tutelar areia
entre os móveis e as velhas roupas.
Um pó de sinos, uma rosa molhada.
E muitas vezes era a água própria
de Arauco, a água dura:
mas eu conservava minha pedra submersa
c nesta, o palpitante som da tua sombra.
Ó mar do Chile, ó água
alta e cingida como aguda fogueira,
pressão e sonho e unhas de safira,
ó terremoto de sal e leões!
Vertente, origem, costa
do planeta, tuas pálpebras
abrem o meio-dia da terra
atacando o azul das estrelas!
O sal e o movimento se desprendem de ti
e repartem oceano às grutas do homem
até que além das ilhas teu peso
parte-se e estende um ramo de substâncias totais.
Mar do deserto norte, mar que fere o cobre
e adianta a espuma para a mão
do áspero habitante solitário,
entre alcatrazes, rochas de frio e esterco,
costa queimada ao passo de uma aurora desumana!
Mar de Valparaíso, onda
de luz sozinha e noturna,
janela do oceano
a que se assoma
a estátua de minha pátria
a ver com os olhos ainda cegos.
Mar do sul, mar oceano,
mar, lua misteriosa,
em Imperial aterrador de robles,
em Chiloé ao sangue assegurado
e de Magalhães ao limite
todo o silvo do sal, toda a lua louca,
e o estelar cavalo sem freio do gelo.
XVII
Ode de inverno ao rio Mapocho
Ó, sim, neve imprecisa.
Ó, sim, tremulando em plena flor de neve.
pálpebra boreal, pequeno raio gelado
quem, quem té chamou até o acinzentado vale,
quem, quem te arrastou desde o pico da águia
até onde as tuas puras águas tocam
os terríveis farrapos de minha pátria?
Rio, por que conduzes
água fria e secreta,
água que a alba dura das pedras
guardou em sua catedral inacessível,
até os pés feridos de meu povo?
Torna, torna à tua taça de neve, rio amargo,
torna, torna à tua taça de espaçosas escarchas,
submerge a tua prateada raiz em tua secreta origem
ou despenha-te e arrebenta-te em outro mar sem lágrimas!
Rio Mapocho quando a noite chega
e como negra estátua tombada
dorme sob as tuas pontes como um cacho negro
de cabeças batidas pelo frio e pela fome
como por duas imensas águias, ó rio,
ó duro rio parido pela neve,
por que não te ergues como imenso fantasma
ou como nova cruz de estrelas para os esquecidos?
Não, a tua rápida cinza corre agora
junto ao soluço lançado à água negra,
junto à manga rota que o vento endurecido
faz tremer sob as folhas do ferro.
Rio Mapocho, aonde levas
plumas de gelo para sempre feridas,
sempre junto à tua encardida ribeira
a flor selvagem nascerá mordida pelos piolhos
e a tua língua de frio raspará as faces
de minha pátria desnuda?
Oh, que não seja isso,
oh, que não seja, e que uma gota de tua espuma negra
salte da lama à flor do fogo
e precipite a semente do homem!
C'est aussi simple qu'une phrase musicale.
Rimbaud
I
Foi no instante em que o luar desceu da face do Cristo como um velário
E na madrugada atenta ouviu-se um choro convulso de criança despertando
Sem que nada se movesse na treva entrou violentamente pela janela um
grande seio branco
Um grande seio apunhalado de onde escorria um sangue roxo e que pulsava
como se possuísse um coração.
Eu estava estendido, insone, como quem vai morrer — o ar pesava sobre
mim como um sudário
E as ideias tinham misteriosamente retornado às coisas e boiavam como
pássaros fora da minha compreensão.
O grande seio veio do espaço, veio do espaço e ficou batendo no ar como
um corpo de pombo
Veio com o terror que me apertou a garganta para que o
[mundo não pudesse ouvir meu grito (o mundo! o mundo! o mundo!...)
Tudo era o instante original, mas eu de nada sabia senão do
[meu horror e da volúpia que vinha crescendo em minhas pernas
E que brotava como um lírio impuro e ficava palpitando dentro do ar.
Era o caos da poesia — eu vivia ali como a pedra despenhada no espaço
perfeito
Mas no olhar que eu lançava dentro de mim, oh, eu sei que
[havia um grande seio de alabastro pingando sangue e leite
E que um lírio vermelho hauria desesperadamente como uma boca infantil
longe da dor.
V oavam sobre mim asas cansadas e crepes de luto flutuavam — eu tinha
embebido a noite de cansaço
Eu sentia o branco seio murchar, murchar sem vida e o rubro lírio crescer
cheio de seiva
E o horror sair brandamente pelas janelas e a aragem balançar a imagem do
Cristo pra lá e pra cá
Eu sentia a volúpia dormir ao canto dos galos e o luar pousar agora sobre o
papel branco como o seio
E a aurora vir nascendo sob o meu corpo e ir me levando para as
[ideias negras, azuis, verdes, rubras, mas também misteriosas.
Eu me levantei — nos meus dedos os sentidos vivendo, na minha mão um
objeto como uma lâmina
E às cegas eu feri o papel como o seio, enquanto o meu olhar hauria o seio
como o lírio.
O poema desencantado nascia das sombras de Deus...
II
Provei as fontes de mel nas cavernas tropicais... (— minha imaginação,
enlouquece!)
Fui perseguido pelas floras carnívoras dos vales torturados e penetrei os rios
e cheguei aos bordos do mar fantástico
Nada me impediu de sonhar a poesia — oh, eu me converti à necessidade
do amor primeiro
E nas correspondências do finito em mim cheguei aos grandes sistemas
poéticos do renovamento.
Só desejei a essência — vi campos de lírios se levantarem da terra e cujas
raízes eram ratos brancos em fuga
Vi-os que corriam para as montanhas e os persegui com a minha ira — subi
as
[escarpas ardentes como se foram virgens
E quando do mais alto olhei o céu recebi em pleno rosto o vômito das
estrelas menstruadas — eternidade!
O poeta é como a criança que viu a estrela. — Ah, balbucios, palavras
entrecortadas e ritmos de berço. De súbito a dor.
Ai de mim! É como o jovem que sonhando nas janelas azuis, eis que a
[incompreensão vem e ele entra e atravessa à toa um grande corredor
sombrio
E vai se debruçar na janela do fim que se abre para a nova paisagem e ali
estende o seu sofrimento (ele retornará...)
Movimentos de areia no meu espírito como se fossem nascer cidades
esplêndidas — paz! paz!
Música longínqua penetrando a terra e devolvendo misteriosamente a
doçura ao espelho das lâminas e ao brilho dos diamantes. Homens correndo
na minha imaginação — por que correm os homens?
O terrível é pensar que há loucos como eu em todas as estradas
Os faces-de-lua, seres tristes e vãos, legionários do deserto
(Não seria ridículo vê-los carregando o sexo enorme às costas como
trágicas mochilas — ai! Deixem-me rir...
Deixem-me rir — por Deus! — que eu me perco em visões que nem sei
mais...)
É Jesus passando pelas ruas de Jerusalém ao peso da cruz. Nos campos e
nos montes a poesia das parábolas. V ociferações, ódios, punhos cerrados
contra o mistério. Destino.
Oh, não! Não é a ilusão enganadora nem a palavra vã dos oráculos e dos
sonhos
O poeta mentirá para que o sofrimento dos homens se perpetue.
E eu diria... “Sonhei as fontes de mel...”
III
Do amor como do fruto. (Sonhos dolorosos das ermas madrugadas
acordando...)
Nas savanas a visão dos cactos parados à sombra dos escravos — as negras
mãos no ventre luminoso das jazidas
Do amor como do fruto. (A alma dos sons nos algodoais das velhas
lendas...)
Êxtases da terra às manadas de búfalos passando — ecos vertiginosos das quebradas azuis
Ô Mighty Lord!
Os rios, os pinheiros e a luz no olhar dos cães — as raposas brancas no olhar dos caçadores
Lobos uivando, Yukon! Yukon! Yukon! (Casebres nascendo das montanhas paralisadas...)
Do amor como da serenidade. Saudade dos vulcões nas lavas de neve descendo os abismos
Cantos frios de pássaros desconhecidos. (Arco-íris como pórticos de eternidade...)
Do amor como da serenidade nas planícies infinitas o espírito das asas no vento
Ô Lord of Peace!
Do amor como da morte. (Ilhas de gelo ao sabor das correntes...)
Ursas surgindo da aurora boreal como almas gigantescas do grandesilêncio-branco
Do amor como da morte. (Gotas de sangue sobre a neve...)
A vida das focas continuamente se arrastando para o não-sei-onde — cadáveres eternos de heróis longínquos
Ô Lord of Death!
Compreenda-se que escrevo para explicar: que se trata de uma tumultuosa, desavinda multidão de metáforas encerradas numa única metáfora.
Que tem, esta, o ar complacente de apresentar uma imagem exemplar do mundo.
Duvido deste mundo, desta imagem — a metáfora que a escrita foi conseguindo no seu dinamismo interno e obscuro.
Alguém falou de duas mulheres realizando a virtude do espaço através de uma peça de roupa, um grande lençol branco, que desdobravam, pegando cada uma delas numa ponta.
Penso no espaço até me doer a cabeça.
É como este papel branco, o lençol idiomático, latejando, tremendo nas intenções das mãos — delas, que tremem das intenções inspiradas na experiência e na aspiração.
Repare-se no espaço.
Eu poderia abandoná-lo, a esse espaço — mas que seria de nós?
Porque os outros talvez esperem numa ponta do espaço.
Observe-se que há luz, e essa luz se moveu de uma treva cujo simples pensamento nos faz estremecer, aos que estiveram à espera, a mim que me tinha de salvar de um crime qualquer, talvez daquele momento anterior às primeiras linhas das cosmogonias — o caos precedente aos livros sagrados, para onde se trasladou a instauração do estilo — a aparição do espaço.
É certo que falo das plantas, dos animais, do homem e da mulher — disso que se conseguiu: a idade.
A sofreguidão, a vigília desesperada, o sono onde o corpo sem defesa é trabalhado pelo sobressalto interior.
Mas explico-me bem?
Temos de recorrer às fábulas laterais, ao que não foi, ou foi por uma razão independente — nota-se que, para a criação do espaço, se fala sobretudo do medo?
Se falo de mim, movendo-me para todos os lados, esperando inspirações, consultando as coisas, inventando espelhos para um rosto que se perdeu em enredos que não podem ser violados — se me engano em pequenos apólogos, pequenas fábulas, registos acessórios — não me terei perdido no espaço?
Porque o labirinto, veja-se, só é espaço para a boa contabilidade das emoções e pensamentos, se se tem a chave dele, se ele deixou de ser um labirinto.
Atente-se nos antigos: apresentavam um espaço.
Havia uma cronologia e hierarquia de seres, coisas, factos — convergiam todos, numa ordem, para a metáfora una, viva e real do mundo, que eles depois percorriam, estendendo lençóis, edificando casas, dizendo: pátria.
Escrevo um livro, estou a falar de nós — nós que nos esperamos, homens, por dilatar, com os poderes da emissão e da receptividade, os pontos imóveis onde apenas estávamos a ter atenção, expectativa.
Acontece-me este espanto: que as paisagens existem e que sou um homem diante de paisagens.
Então, não sei.
Primeiro: porquê, as paisagens?
Depois: porquê, diante?
E como: paisagens e diante?
E isto é que seria o essencial para o espaço.
Afirma-se que se compreende o fragmento, os fragmentos.
Diz-se mesmo: não há fragmentos.
Diz-se: não há tempo.
O que há é um sentido da idade — e diz-se que idade é já um sentido de espaço, de organização, como quem afirmasse que a comunicação estava estabelecida e, com ela, a unidade e o amor.
Sabem? — é bom ver dormir uma pessoa.
Assim, de fora, respirando devagar, os olhos fechados, a cabeça inclinada — tudo nela refluindo para aquele centro único do sono — desapareceu de nós o alarme, a dúvida, a confusão: eis a unidade.
Mas eu não assisto ao meu próprio sono, nem se pode oferecer o nosso próprio sono — ele pode apenas ser colhido por outrem, de passagem, por acaso.
Não é assim que se instaura um espaço.
Devo ter conhecimento da minha unidade.
O que eu percorro são as mortes, levo às costas todos os meus cadáveres.
E o que explico é isto: estamos inquietos, porque atingimos uma verdade insuportável — a metáfora, arquitectada sobre uma higiene dos sentimentos e acontecimentos, já não pode ser erguida para segurança da linguagem, para segurança de pessoas e bens.
Para o espaço.
Temos pequenas metáforas, temos uma colecção.
Tentamos a factura do círculo, com a ideia de que uma identificação do princípio com o fim possa encerrar o cumprimento do ser, a totalidade da vida — a sabedoria.
Em seguida olhamos, como se isso fosse o espaço e pudéssemos ser, nós os vagabundos, o exemplo do nascimento, desenvolvimento e preenchimento.
Ele dizia, Poe, (na Filosofia da Composição?) que só havia poemas curtos, ligados por aplicação, por partes mortas, num poema longo.
É isto.
Depois, ficar numa ilha, assistindo (e participando talvez nela) à acumulação de imagens — significa que se criou um espaço, ganhou uma perspectiva, se estendeu um lençol (essa ideia do Deguy!) sobre uma espécie de vazio, noite, desabitação, de solidão?
Começo a descobrir a verdadeira tristeza.
Tristeza quer dizer: ser obrigado a recorrer a qualquer coisa como a gratuidade, e enchê-la de uma súbita comoção.
Não creiam que alguém se possa salvar.
Não há uma verdadeira metáfora humana — um estilo.
Às vezes não durmo, para poder imaginar o meu sono.
Compreendo então como o destino do espírito é a tristeza.
Mas a tristeza apenas nos dá inteligência.
E então voltamo-nos para a contemplação das imagens do mundo, e ficamos com uma imagem.
Metemo-la numa garrafa e atiramo-la ao mar.
Algures, alguém recolhe a garrafa, lê a imagem e, como tinha feito o mesmo que nós, não entende o nosso conhecimento da tristeza.
Pensa: quem terá recolhido a minha imagem?
E compreende só, e mais uma vez, o seu próprio conhecimento da tristeza.
Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.
As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído.
E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso.
E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas e, neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom.
E então a gente ama as mitologias delas.
À parte isso, o lugar era horrível.
As pessoas chiavam como os ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se.
Diziam: boa tarde, boa noite.
E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam.
Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente.
Tenho medo — diziam.
E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite.
Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.
E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender, claro, etc.
E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam.
Bom dia, bom dia.
E desatavam a correr.
É o meu inferno, é o meu paraíso, vai ser bom, vai ser terrível, está a crescer, faz-se homem.
E a gente então comove-se, e apoia, e ama.
Está mais gordo, mais magro.
E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política.
Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco — e que fizeram da dignidade humana? — as reivindicações são legítimas.
Não queremos este inferno.
Dêem-nos um pequeno paraíso humano.
Bom dia, como está?
Mal, obrigado.
Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta.
E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida.
E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem.
E era horrível.
Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre.
Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico — batiam ali e resvalavam.
E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro, como a luz do deserto, e aquilo não era humano — diziam as pessoas.
E temos medo — pensavam.
E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver.
E havia o progresso.
Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução.
Desejam examinar?
Por este lado, se fazem favor.
Aí à direita.
Muito bem.
Não é uma boa revolução?
Bem, compreende.
Claro, é uma belíssima revolução.
E é barata?
Uma revolução barata!?
Não, senhor, esta é uma verdadeira revolução.
Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas.
É um bocado cara.
Mas de boa qualidade, isso.
E o rosto, que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das cadeiras, o rosto?
Lembra-se?
Como foi que ficou assim?
Não sei: tinha uma luz.
Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente.
Era horrível.
Boa noite.
E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada do sol, e era do signo da Balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se.
Não compreendo.
E julgas tu que eu compreendo?
Quem pode compreender?
Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical…, compreendes?
Sim, sim.
Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se.
Para diante, para diante.
Não se deve parar.
Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros.
Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade.
Por pouco tempo, julgo eu.
Como?
Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente.
Remodelemos o ensino.
Cantemos esta pequena canção que fala da flor da tília.
Bebamos um pouco.
E o outro, o outro, o que viu Deus, quando caminhava para o emprego?!
Isto, imaginem, às 8 h. e 45 m. de uma manhã de março.
Uma partida.
Uma partida de Deus?
Boa piada.
Não amará Deus essas maliciosas surpresas?
Um pequeno Deus folgazão?
Folgazão?!
Ele ficou doido.
Começou a gritar e a fugir.
Que Deus vinha atrás dele.
E depois?
Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar.
Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra.
É belo.
Vamos amar isto?
Vamos, é humano, é do homem.
E então as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam fazendo pela vida — como elas próprias diziam.
E então as condições sociais?
Sim, melhoraram muito.
Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e dela ficou apenas para os outros uma memória incómoda.
Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou.
Era uma criança.
Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia.
Nada mau, para uma antiga criança.
A verdade é que era uma criança, e não se aguentou, quando o médico disse: aguente-se.
E as ruas são tão tristes.
Precisam de mais luz.
Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste.
É até mais triste do que as outras.
Estou tão triste.
Vamos para férias, para o pequeno paraíso.
Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.
Era um ser excepcional.
Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e ele embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele.
E onde está?
Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível.
Partiu.
E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas.
E depois, e depois?
Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se partissem entre os dedos.
Foi-se embora.
A milhares de quilómetros de distância, eu olhava num jornal as mãos do criminoso.
No outro hemisfério — enquanto era outono e o ar muito limpo estava colocado sobre as árvores vazias.
A lisa e fixa luz dava um relevo cruel às mãos brancas.
Acima delas, o rosto virava-se para o lado, e quase que era somente uma nódoa escura.
Mas na América, em volta da prisão, erguia-se uma nova noite — e turnos sucessivos de polícia interrogavam o homem.
No jardim grave, uma folha de plátano caía sobre as mãos assassinas.
Uma folha fria, que afastei com as minhas próprias mãos — e então essas minhas mãos, depois de a folha cair do jornal, tocavam a imagem (unicamente a rígida e branca imagem) das mãos do assassino.
As minhas mãos estavam quentes: eram umas doces mãos humanas — e a fotografia do homem, das suas mãos por baixo da cabeça escamoteada: a fotografia.
Outono: tempo de espera.
Que é que se espera?
As coisas dormem, depois hão-de aparecer em alíneas diferentes, com cem rostos, as coisas talvez todas inúteis.
É um jardim para exemplo, onde seguro um jornal que fala de tudo com uma espécie de turbulenta ignorância.
Bom lugar, bom instrumento para todos os equívocos: os meus, os da América.
Posso estar só, para um grande e tortuoso pacto por cima das leis, dos países, da simples justiça das gentes.
Na América, há uma estupenda ferocidade à volta do criminoso e do seu crime.
Ele está cercado, e as suas mãos cheias de culpa recuam, com o crime, diante da ferocidade americana.
Trata-se afinal, segundo parece, de um problema complicado: política.
Então o assassino revela-se mais patético, ele, com o seu crime tão agudo, procurando defender ainda as mãos carregadas, no meio da gente feroz.
O momento do crime já lá foi — o impulso, o instrumento, o gesto.
E a vítima, também.
Ficaram as mãos.
Afasto o jornal.
Como é?
A pessoa que se assume, com um crime.
E a polícia cheirando, os espertos cães cheios de faro.
As folhas tapam tudo, vedam-me o conhecimento do tempo a trabalhar sobre o mundo.
Talvez aconteça um grande milagre nas nossas vidas.
A terra está sempre a dar bons exemplos.
Alguma gente anda atenta a essas coisas.
Outra gente, porém, está completamente só, sem exemplos — e então procura realizar o exemplo mais extremo.
Quando se pensa nisso, não há nada a fazer.
Merda, diz-se, isto é um grande exemplo.
E a terra está por baixo, com o outono.
A terra vem em todos os manuais, como um acontecimento histórico.
Mas a mim, realmente, só me interessam os crimes.
E então apenas sei que ele está tremendamente só nos Estados Unidos.
Que isto de ser assassino não é brincadeira nenhuma.
Ele foi até ao fim, esse homem de cabeça em forma de nódoa e as mãos em primeiro plano, saturadas de um exemplo desesperadamente decisivo.
Os polícias cercam-no, farejando e abanando a cauda — e ele, só com o crime, vira a cabeça, desenvolve, mostra, recolhe as mãos, fá-las voltar à intimidade do próprio crime.
De modo que tudo aquilo se torna uma só coisa comovente, ameaçada e inexpugnável — a solidão.
Uma consequência, o movimento mesmo do acto — a pessoa com a sua força terrível, para a frente.
Isto, na América, onde os polícias se vão multiplicar em todas as direcções e pessoas.
Depois, no jardim (e ainda suficientemente de dia), a cara aparece melhor na 2.ª edição.
O jornal mostra que o homem tem um ligeiro sorriso ambíguo, que eu acho inteligente bastante para as mãos, estas sempre em bom plano.
Estou com o assassino, e todo o meu calor de homem se insere no problema, e a multidão americana roda um pouco sobre si mesma, sofre uma pequena deslocação e, confusa, esbarra no extraordinário sorriso do assassino, que a minha adesão torna mais sábio ainda.
Tudo isto para proteger as mãos — espantoso sinal, agora, do único acto, aquele pelo qual se ganham toda a culpa e solidão.
Entretanto, foram descobertas mais provas.
E o homem sorri — leve, alto — tremendamente ascético na sua culpa.
O céu vai escurecendo, vê-se menos no jornal a maneira como o sorriso se dirige aos Estados Unidos, e por isso posso supor, ou adivinhar, a sua verdadeira profundeza.
A raiz do sorriso é a mesma raiz das mãos.
É, primeiro, o acto — e, depois, a própria vocação humana (até que enfim aparecida) para realizar um acto espantosamente completo.
E as poucas palavras que se conhecem do criminoso aumentam a sombria gravidade do acto, tornam-no perfeitamente denso, esférico, acabado.
E é quando, ao outro dia, continuando a ser outono e a haver a mesma luz parada e polida para ver as novas fotografias e notícias, é quando o criminoso encontra o seu próprio assassino.
Incrível.
Ao princípio, tomo o caso como um fantástico folhetim.
Foi deste modo: ao transferir-se o criminoso de uma prisão para outra, um homem destacou-se do meio dos jornalistas e, atirando-se para a frente, disparou-lhe um tiro no coração.
Há fotografias.
Vê-se tudo muito bem.
Como direi?
Há na história, evidentemente, certo barroquismo e precipitação que talvez possamos chamar — americanos.
No entanto, não sei de história mais conforme com as leis da excepção.
Com o seu escandaloso imprevisto, está implacavelmente certa, do princípio ao fim.
Pela minha parte, reconheço que as mãos da fotografia prenderam o seu velho acto criminoso e ficaram para sempre com a força enigmática que as inspirou.
Reconheço ainda que o sorriso tocou os limites da significação e que a frase — não fui eu que matei, estou inocente — dita desde o começo e levada, inteira, para dentro do silêncio, pode ficar como o melhor esforço de equívoco.
E vêde como os Estados Unidos se desdobram em todos os sentidos da confusão.
Tenho de afastar do jornal muitas folhas de plátano, enquanto o meu amor abrange crime, solidão e silêncio, como se fossem uma só coisa: um limite, espécie de milagre ou extremo exemplo.
A minha solidão também cresce, à espera do seu crime e da sua heróica (ou irónica) dignidade.
Porque nunca se sabe bem se nos merecemos a nós mesmos.
Levanto-me do banco, atravesso o jardim, e tenho na minha frente uma cidade que desejaria fazer saltar a cargas de dinamite.
Numa noite do mês de março, estava o tempo esplêndido, olhei para as minhas mãos, e vi uma nódoa branca.
Compreendam-me.
Eu era um homem sereno, emocionalmente próspero, digamos, sem entretanto me entregar à dissipação.
Convivia com muita gente e podia fazer com que me amassem.
Claro, não amava ninguém, mas a minha vida era como que atravessada diariamente por um calor tranquilo e ligeiro.
E então vi de repente que tinha uma nódoa branca na mão direita.
Gosto da mão direita um pouco mais que da outra, pois tenho aquela ideia tradicional de que ela é um nobre instrumento da obra e está ligada superiormente ao espírito.
Além desta, eu possuía muitas outras ideias em que o espírito, a serenidade e a sabedoria constituíam uma espécie de centros vitais.
É isso: tinha o meu tempo, a memória e o futuro bem arrumados.
Achava-me, de certo modo, um indivíduo sem culpas, conhecendo algumas leis seguras, amando lentamente a terra e as estações.
Organizara mesmo um conjunto de aforismos, e acreditava na imparcialidade e — quem sabe? — talvez até acreditasse na justiça.
Havia de ter um dia um talhão de rosas e ser-lhes-ia dedicado.
Rosas tornam o espírito condescendente e vagaroso e dão aos gestos uma grave e amável subtileza.
Tinha esse projecto, o das rosas, certamente.
Mas estava sentado a ler, e então vi uma nódoa esbranquiçada na base do polegar da mão direita.
Pensei primeiro que fosse da luz, depois imaginei que alguma substância deixara ali a sua marca.
Mas não era, porque desloquei a mão e a mancha permanecia no mesmo sítio.
E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, não se alterou, nem de leve.
Que pensar?
Devia ser, então, qualquer coisa como irritação de pele, um eczema branco.
Bem.
Eu tinha um grande equilíbrio interior e, embora aquele sinal no meu prezado corpo (na mão direita) me inquietasse um pouco, havia tudo o mais onde a serenidade se me garantira.
O livro era mesmo excelente e o mês de março sem chuva é dos que mais aprecio.
Quanto ao resto, é óbvio que eu desprezava — embora com gentileza e rectidão — as pessoas que estavam, ou entravam, ou saíam da minha vida.
Um homem de certa cultura e inteligência, cepticismo manso, uma esparsa ternura sem compromisso pelos seres e coisas.
Apoiava-me uma grande tradição.
Contudo, mais tarde, quando me fui deitar, ao colocar a mão sobre a cobertura da cama, notei que a mancha crescera.
Abrangia agora toda a base do dedo, fazendo uma espécie de grosseiro anel.
Lembro-me de que levantei a cabeça, um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas estremeciam.
Vinha da rua, de um jardim próximo, um cheiro de cravos, suponho.
Ouvi também a voz de alguém, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas que, de súbito, me pareceram espantosas.
Mas eram palavras banais, talvez sobre o tempo, os cravos, a noite, sei lá.
A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro daquele instante único.
Estive à beira do pânico, mas olhei tudo de novo à minha volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera, e que eu era um homem coordenado com os meus dias, compreendendo bem que a minha força não estava ao alcance da maioria das pessoas.
Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos, ainda que fáceis, os seus rostos e movimentos, e pensei que gostavam de mim, sem me exigirem demasiado.
Depois deitei-me e dormi, tendo decidido ir ao médico um desses dias, a ver do que se tratava aquela pequena mancha.
Durante a noite, tive um sonho incómodo, onde apareciam altas escadas de pedra, do cimo das quais eu fazia um imperceptível sinal de despedida a alguém que se encontrava em baixo, no último degrau.
Atravessei portas que se fechavam depois da minha passagem, sem que lhes tocasse.
Por fim, senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava, fazendo-me rolar até ao beiral.
No fundo, estava um pântano, e eu mergulhei nele.
No sonho, tinha a mão direita presa e fechada como sobre um punhado de brasas.
E então acordei e acendi a luz.
A mancha crescera e uma outra, ainda mais viva, apanhava-me quase toda a palma da mão.
Foi assim que os novos dias invadiram a minha vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas iam cobrindo toda a mão, avançando já pelo pulso acima.
Não era ainda o medo, mas as minhas leis vacilaram e comecei a esconder a mão e a aproximar-me mais das outras pessoas.
Quanto ao médico que pensara consultar, tive de bani-lo, pois cada vez menos desejava saber o que eram precisamente as manchas brancas.
A mão ganhara uma insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível.
Ela, que me dera antes o sentido do exemplo criador, a mão humanista — perdera o seu talento de ser hábil e construtora, e era agora a mão dramática, proibida entre os homens, subversiva.
Sabia que ela se vingava, com a sua anunciação de um inédito sentido trágico, do quanto representara em dignidade plácida e inteligência sobre a desordem.
Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de pelica, caminhava sem jeito, mas intacta, com a sua pureza artificial, nos objectos e movimentos.
Cheguei a possuir um pequeno talento de pelica.
Mas aproximava-me mais e mais das outras pessoas, e tinha com elas conversas ardentes e instáveis.
Começava a amá-las com aflição e a achar tremendamente belos os seus rostos, as palavras, as mãos com que, surpreendidas, tocavam na minha luva.
Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus passos pelos quartos, as frases mais altas, as canções que trauteavam.
Ia para a janela, por detrás das cortinas, e tremia de emoção ao ver o movimento das ruas.
A mancha, porém, alastrava.
Já atingira um terço do antebraço e era cada vez mais branca.
A carne do polegar parecia tornar-se levemente esponjosa.
A mão esquerda principiara também a ser tocada e, uma manhã, descobri no meio da testa uma ligeira mancha circular, do tamanho de uma pequena moeda.
Ah, foi rápida a propagação.
Da raiz dos testículos subia já o florescimento maldito, enquanto nas mãos e no rosto as manchas aumentavam sempre.
Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma coisa para comer.
E o meu amor pelas pessoas também crescia, varado por singular violência e fraqueza, um pânico, uma melancolia enormes.
Um dia comprei uma garrafa de aguardente, e embebedei-me no meu quarto.
Despi-me todo, e eu era branco e repugnante.
Haviam-me caído as sobrancelhas e os pêlos do púbis e, um pouco por toda a parte, a carne tornara-se porosa como sabugo.
E então vi em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma maldição pela qual me apaixonei.
Adormeci nu, sobre o soalho, chorando de tortuosa alegria.
Tornou-se forçoso afastar-me dos outros.
Poderia eu, acaso, meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica, arranjar um talento artificial de pelica com todo o meu tamanho?
Porque era já notório o estado em que me achava.
O meu amor pelos outros, não obstante, desenvolvia-se sempre.
E só de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava os cabelos — as pessoas andavam, corriam, falavam e sorriam e riam — só de imaginá-lo, ficava com os olhos húmidos.
Amava-as, com a maior profundeza, amava-as muito.
Nu, diante do alto espelho, tocava devagar no corpo e sentia vómitos.
Transformara-me num réptil branco e inconsistente.
Contudo, penso às vezes que não era, nem é, uma doença física, algo como lepra ou coisa assim.
Talvez o meu corpo esteja como dantes, limpo e vivo.
Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa zona terrivelmente mais importante.
Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior, onde nem mesmo se espere esquecer ou fugir.
Os poetas interessam-se.
O amor dos mitos, dos lugares sobrecarregados.
O amor das alusões, símbolos e signos.
Os poetas interessam-se pelas crianças.
Isso — aperta a loucura contra ti, debaixo da gabardina — desce.
As cabeças já não são partes nobres das aventuras do corpo, não as envolvem as folhas que brotavam de uma grande tensão — a tremenda voltagem das imaginações.
Desce ao metropolitano — a isto que te é dado como figuração de um inferno sem maravilha.
Os poetas interessam-se pelos rostos.
São rostos esbulhados — os destes habitantes da semana.
Fazem uma vida com boa caligrafia, eles — e acabou-se.
Vão e voltam.
Uma pequena demência nos olhos?
Talvez.
Alguma coisa escapou aos dias — alguma coisa.
O corpo move-se no inferno debaixo.
A ti comove-te o silêncio por onde os corpos se deslocam com os minúsculos olhos intraduzíveis.
O silêncio esmagado pelos comboios, e logo restituído.
Um silêncio móvel, ameaçado, instável.
Aperta a gabardina.
Possuis uma alta voltagem — tu sim, poeta inédito.
Vemos que te interessas.
Lá tens as imagens turbulentas, a vertigem do silêncio interior.
Moves-te, comoves-te, desenvolves-te.
Apertas contra ti a tua loucura — e o olhar é o de um poeta inédito.
Tens uns belos olhos perscrutadores, fixos e aterrorizados.
Andas com uma graça implacável — sim, sim, incómoda.
Sente-se o circuito electromagnético em volta da cabeça.
Não tocar — perigo de morte.
Tal a terrível delicadeza do teu espírito, a força de anjo.
Tens outro ritmo.
Ainda te não calibraram.
És inédito, forte, doloroso.
Interessas-te pelas crianças.
Vemos isso quando os teus olhos tocam no rapazinho de onze anos, no fim da carruagem, e fogem, e voltam de novo para ele.
Interessas-te por onze anos, por essa estranha debilidade que os outros curam, o ritmo secreto da vacilação.
A tua loucura bate de áspero entusiasmo.
Tens uma perigosa ciência — sabes?
É que vês, revês, prevês, tresvês.
Andas para a frente e para trás, páras e corres, e ficas tenso ouvindo e vendo, com a loucura toda a trabalhar.
És sensível — demoníaco.
É quase impossível estares à altura dos teus dons.
Mas esforças-te — vê-se.
Trabalhas, trabalhas.
E de súbito és muito inteligente, alcanças tudo, ficas com o poder de te fascinares de uma ponta à outra do talento.
Um poeta como tu interessa-se pelos onze anos, pela criança.
Vê como o rapazinho sai nesta estação, e atravessa o cais.
Que pensas daquela forma de andar?
Ele oscila, parece um pêndulo, e a sua cara é triste, ele não percebe nada, não percebe a sua dor, e caminha rente às paredes do metro.
Tu percebes.
O teu ofício é perceber.
Amas.
Que pensas daquela forma de andar?
Sim, sim.
Que doçura trágica, não é?
Percebes a ambiguidade?
Se percebes.
Vê: fez qualquer coisa terrível, teve a sua grande força.
Agora está surpreendido.
Não sabia que a tinha, à força, e depois ficou com o medo da sua força maior que ele.
Vai dizer-te isso, aos onze anos, no seu ritmo, na sua linguagem suspensa e atemorizada.
Vai dizer: sabe?
E tu, tu — como tu sabes.
Segue-o.
Vemos como apanhaste o ritmo dele.
Pareces um lobo apaixonado, tens toda a esfaimada doçura de um lobo.
Pisas os passos dele, a pista insegura.
Já andas como ele, andas com onze anos, numa atenção obsessiva.
E a doçura do teu rosto, a sua velocidade amarga e calorosa.
Desce ao inferno, e vê: encontras um rosto tecido de novo, a macia textura de uma matéria quase virgem — encontras o teu enigma.
Nas escadas rolantes, quase sobre ele, aspiras o perfume da sua cabeleira de rapazinho.
Como tu o amas.
O perfume enche o teu silêncio todo.
Não, nem respiras.
Não te mexes.
Ficas cego.
Sabemos como te entregas, tão redescoberto, ao mais profundo terror.
Tens a ciência disso tudo.
É a tua profissão.
Reconhecer, instalar, ligar os contactos, mergulhar na alegria monstruosa.
És diabolicamente inédito.
A vida toda muito devagar.
E quando a boca do metropolitano vos puser — a ele, a esse espectáculo que estiveste prestes a denominar, mas ainda não; e a ti, seguidor trémulo, mestre e discípulo de um «eu» irreparável — quando, quando.
Sim, na praça quando, sob as árvores negras, no meio das temperaturas baixas — tudo construído para o exercício da piedade escandalosa.
Quando o abordares, e ele disser que sim ao magistério da tua idade enganadora, saída do anonimato para a vacilação, o pavor urbano dele.
Estou só, diz ele, mas.
Etc.
Tu compreendes.
Sabes que ele também já tinha o seu silêncio, e do silêncio nascia um incomportável sofrimento, e uma força.
E agora falas muito, e diriges a força dele e a sua fraqueza, e colocas tudo num lugar extraordinariamente seguro, ao que parece, e dizes: vamos tomar outra vez o metro, tenho o meu carro no outro lado da cidade.
Reparaste como os onze anos olharam para ti?
Não sabem que hão-de fazer, os onze anos, com o amor que nasceu neles, agora que saíste completamente do anonimato e és tão real, tão pessoal, tão próximo, tão corrítmico.
Ele vai — estamos mesmo a ver que vai, e o seu modo de andar é curiosamente mais seguro e o teu é menos seguro — vê-se.
Os poetas interessam-se e as crianças interessam-se — e isso é um pacto.
Demasiado pesada, a vossa festa.
Lado a lado pelas ruas, vendo a festa silenciosa, um pouco vergados ao peso de uma alegria tão difícil.
A quatro mãos.
Continua, continua.
Tens uma nova maneira de ver os rostos imóveis sobre os corpos excessivamente móveis, e os olhos ligeiramente alucinados.
Uma nova maneira de conceber a tua própria loucura, de andar com ela, de parar e seguir e respirar com ela.
Sim, um modo especial, nesta tarde, de te aproximares da tua sonâmbula solidão, e encontrares o ponto onde ela de súbito se torna expansiva e ardente, e abrange o ocasional discípulo, o pretexto, o objecto da mais trémula memória.
Cuidado com a memória.
Tu interessas-te.
Ama-la demais.
E a paixão?
És um operário da paixão.
Observamos a demoníaca inteligência de gestos, quando falas ao rapazinho.
O teu amor é lento e veloz — centrípeto, centrífugo.
Como aprendeste.
E que importam os rostos, senão como oscilante fundo para o teu milagroso rosto, esse sensível e atormentado rosto de criança, viajando pelos túneis, de uma ponta à outra da cidade que trabalha noutra coisa, descansa de outro trabalho, ou se prepara para uma estranha musa.
Sabes em que se inspiram eles, os trabalhadores desta cidade?
Nada te importa, a não ser o teu amor — vê-se.
E de novo sobes umas escadas, e a criança sorri, e tu pareces sonhar e vacilas na luz interior, e mais uma vez acreditas, e de repente é como se amasses a tua extensa vida obscura.
E já no carro dizes: vamos pelo meio das árvores.
E guias em direcção ao parque.
Vês tudo muito bem: as árvores negras, o céu brusco e mercurial e a íntima imobilidade do instante.
Sabemos: tremes, quando o rapazinho diz que quer andar sob as árvores, pisando as folhas podres.
Ele sai, caminha, abaixa-se para apanhar uma folha.
E que significa isso, apanhar a folha?
E ergue-se, e continua a andar.
Apanhou a folha como quem encontrou uma coisa perdida, como se tivesse achado a significação de uma palavra confusa no labirinto dos dicionários.
Que tremes e sufocas, sim.
É a embriaguez, o amor lancinante, a memória, a piedade, a sufocação da alegria.
Sim, é a dor — a força da tua presença.
Tens medo.
Interessas-te muito pelas emoções, sabemos.
E vês a solidão impossível da criança apanhando a folha, o distraído empenhamento dela, a frágil nuca.
Repara naquela forma de andar.
Parece que desejarias dizer o que é aquela forma de andar, mas a piedade não tem palavras, a tua piedade.
A loucura dos teus olhos confunde-se com a embriagada piedade dos teus olhos, e tremes.
E então sais do carro e aproximas-te dos onze anos, e vês cada vez mais dolorosamente a forma como eles caminham, os onze anos, sobre as folhas podres, e a imagem violenta da tua obscura vida sobe do fundo — sem perdão, sem nome.
Fechas os olhos — vacilas apavorado.
Páras, o vento refresca a tua cabeça negra, o teu pensamento negro, o teu coração negro.
Páras — maneira única de ficar apenas à porta dos crimes.
Espelho negro.
Vê-se que sabes tudo, que esgotaste a tua difícil ciência.
Há sempre uma cidade onde anoitece.
Mas haverá algum perdão para o homem perdido que a percorre, parando nas praças a decifrar os obeliscos, ou fechando os olhos nos jardins para respirar o perfume confuso e virgem das plantas e da terra húmida, ou ainda estacando na faixa central das avenidas por onde sobem e descem os automóveis e se desenvolve, em cadeia, o jogo obsessivo dos sinais luminosos?
É um homem que caminha até encontrar o rio como algo muito antigo, anterior às vozes e ao trabalho e à cólera e ao amor dos habitantes.
No rio é que vê como há um movimento verdadeiro, e sabe então que ele próprio, perdido por um momento, está muito mais perdido do que supunha: corre também, assim quase imperceptivelmente, reflectindo o que logo se desfaz.
E depois regressa ao centro da capital anoitecida e, erguendo a cabeça, tem a revelação veloz dos enormes edifícios de vidro e metal.
Estou perdido, e as pessoas são de repente arrastadas para os subúrbios, por uma secreta força centrífuga, que o apanha a ele também.
As casas engolem-nas.
Acendem-se e apagam luzes, as cortinas movem-se com a subtileza dos tecidos calmos.
Nas casas, alguém emudece, absorvido por uma lenta domesticidade.
Pensa-se como as cadeiras são inconcebivelmente imóveis e as pessoas se ajustam às cadeiras.
Nunca mais terei paz?, e de súbito a temperatura é baixa, uma árvore tremula na brisa, as casas movem-se subtilmente para uma distância ainda maior: os outros.
E imagina-se isto: estão sentados em volta de uma mesa, as mãos sobem e descem, levanta-se um rosto devagar, e a voz diz: sim, hoje, e o ritmo reorganiza-se em torno desta nova ideia, e o tema destas vidas é esse dia referido — hoje — que se estende para trás e para diante, com as múltiplas imagens rudimentares.
A ele, o que o queima é a inspiração demoníaca.
Talvez espere um dia caminhar sobre as águas, recuperar tudo, chegar junto à esfinge que existe à entrada de todos os lugares e destituí-la de poderes, pela decifração dos enigmas.
Que pode desejar um homem perdido senão ganhar a ciência e a glória?
Para ele, só é possível a salvação completa.
É por isso que este homem caminha sempre e encontra aquele sítio onde o tempo todo se fez espaço: coisa exterior, matéria.
Há uma sinagoga construída e reconstruída desde a fundação da cidade até ao século em que toda a gente está agora a viver, como se viver fosse hoje; e há a ponte romana; a fortaleza árabe; o paço medieval; o palácio renascentista; o convento filipino; o marquês de Pombal; o pequeno teatro arte-nova; a secunda metade do século vinte.
É o tempo.
Mas este tempo é ainda aberto pelos dois lados: e há nele o começo de tudo, e o fim.
Como se subir os degraus de pedra, entrar e sair das ruas estreitas, aparecer nas praças fosse uma aventura não só através do tempo, mas para fora dele: como se fosse consumir o tempo, assumi-lo.
No alto do terrível sentimento de liberdade, o homem pensa que alguém disse: sim, hoje — e é a este tema alheio que ele de repente se devota: ah, uma tarefa simples, uma pessoa, o amor, o comércio, as virtudes e os crimes de todos os dias, do dia de hoje.
Mas sim, sim — existe alguém nesta cidade onde anoiteceu.
Só que é preciso percorrer o pretexto.
São vinte metros talvez, ou trinta, ou o medo que está no fundo da vertigem silenciosa onde a fala se prepara, com as suas quentes e graves curvas, a arguta energia da sedução.
Vamos falar, erguer da treva tumultuosa as nossas antiquíssimas imagens, a espera e a esperança?
Dir-te-ei quem sou, houve um tempo, tive um sonho, lembro-me do teu rosto, a tua voz já existia.
E ele atravessa a rua, passando pelo tempo, de pedra em pedra, com um cigarro na mão para pedir lume ao cigarro alheio, que brilha no outro lado, ao cimo dos três degraus.
Vai ser assim: dá-me lume, por favor?, e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, será sim o dia de hoje.
Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão — é imensa, e apenas um pequeno órgão vivo palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece.
Então, uma vez mais a noite se levanta de nós, e o que estremece é a carne, a nossa, cega e desamparada — mas fremente na sua cegueira e desamparo.
Sabes que estás só? — pergunta a carne à carne —, sabes que a noite se ergueu de ti, como se fosses o seu próprio e único talento, e que esse talento te cerca como uma atmosfera, o morto clima que transportas em ti, de um lado para outro, ao longo das pedras, ao longo de todos os lugares do homem?
Ela sabe, ou pelo menos sabe que sabe.
E é demasiado.
Por isso, olha e espera.
E vê de novo a brasa que estremece na escuridão como uma planta que crescesse e florescesse na terra negra, ou um animal cujo calor abrisse uma brecha no tempo frio.
A carne embriaga-se com imprecisas metáforas de salvação — que salvação?! — com um movimento subterrâneo de analogias, e ele diz: vou pedir-lhe lume.
Vai através do bairro múltiplo, o tempo que o escuro abafou, e então é como se fosse fora do tempo, ou dentro de todo o tempo, à procura do lume para o seu cigarro.
Eles construíram e os anos destruíram, e eles reconstruíram as coisas gastas e construíram outras novas.
Que é isto?
Quer dizer que a carne renasce, e é essa a tarefa?
A noite vem sempre, mas talvez trabalhem também de noite.
Às vezes ouvem-se as picaretas e os martelos, à distância, durante certas noites.
E depois é manhã, e apercebemo-nos de que existe uma coisa nova, um corpo que se organiza para o dia, e isso foi um secreto trabalho nocturno.
Eles acreditam, então — será verdade que ousam acreditar?
Pode-se avançar nas trevas.
Uma, duas vezes, foi-nos indicada uma luz fugitiva — e depois sabemos.
Talvez ainda mais nítida, a topografia marcou-se na nossa cegueira, e então caminhamos, caminha ele com o seu cigarro por acender, a sua perseguição ao fogo.
Não é uma admirável virtude do fogo, não será até um milagroso talento das trevas que, aqui e ali, durante um segundo, o fogo abra a sua pequena rosa trémula, e o homem possa respirar na cega atmosfera dos séculos?
É — eis que ele o diz para si, com uma força maior do que ele próprio, o inventado poder da sua vertiginosa, momentânea fé.
Caminha pelos anos pétreos, com os pés a decifrarem o empedrado e os degraus do bairro.
Ouve os próprios passos, porque sempre ouviu as pancadas do coração — por aí é que reconhece estar vivo, embora isso seja violento demais e demasiado precipitado para a verdadeira harmonia que, possivelmente, seria o estar vivo.
Mas respira, isso sim, o sangue corre pelas veias e artérias, corrompe-se e purifica-se dentro da confusa massa da sua dor de homem, e anda, ele anda, sobe, desce.
Contudo, os passos que ouve, como se fossem as pancadas fortes do seu sangue, parecem distanciar-se.
Pára.
E os passos continuam, afastando-se.
Mais longe, aparece a brasa do cigarro.
O outro foge.
Porque foge?
Que medo inspira assim o desejo do conhecimento, ou o desejo do amor?
É a caça?
Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual — e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?
Porque o amor é mortal (o amor é mortal?).
Talvez se adivinhe que sim, e obscuramente se saiba que é mortal o conhecimento.
Talvez seja isso o que melhor se conheça do conhecimento — a sua natureza mortal.
Os passos do outro fogem pelo tempo fora, ouvem-se — embaraçados e rápidos — perdendo-se nas escadas, pelas ruas ondulantes, sob os arcos.
Um momento ecoam no meio de uma praça, o cigarro brilha, forma-se uma súbita coroa de silêncio.
Haveria palavras para dizer, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
Mas não haveria resposta.
Ou seria: tenho medo, ou então: é o jogo.
Contudo, não se sabe bem o que acontece, por isso não haveria resposta.
Medo?, porquê medo?, dir-se-ia, jogo, que espécie de jogo?
E as palavras nunca mais acabariam.
Não mais existiria este silêncio no qual, ofegantes, sabemos com tanta dor que ainda estamos vivos.
Por isso é que andamos, agora com todas as artes da caça, devagar, depressa, silenciosamente, cercando a presa.
Amo-te — diríamos nós, no exacto instante de lhe cravar o punhal no meio do peito.
E depois desejaríamos que se fizesse luz, uma grande luz branca, o sol, para vermos o sangue correr e, possivelmente, afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo, até ao fundo e até ao fim.
Porque o amor e o conhecimento são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti, diz o amante: são flores venenosas.
Mas toda a gente sabe isto: ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro está escondido na praça, ao meio da qual existe um largo fontanário, com a sua rodada taça de pedra, de onde transborda uma água silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro marca uma curva no ar e cai na água.
É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois tudo será mais difícil.
Porque será a perseguição declarada, sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já a indicação do lume, no meio da noite — o sinal de que ali está a pessoa, viva, fumando, respirando, tremendo.
Porque foges?, e enquanto, no mais secreto da sua aflição, ele o pergunta, corre em direcção ao fontanário e quase esbarra com o outro.
Sentem-se, mútuos, únicos, arfam no escuro da praça, a treva treme levemente na água adormecida.
Mas ele diz (e quem sabe se isso é absurdo?) diz: lume, e o outro escapa-se, e põe-se a correr em volta do fontanário.
Os sapatos chapinham na água e a ele, que já começou a persegui-lo, correndo também em torno da taça de pedra, chapinhando do mesmo modo na água vazada, ocorre-lhe um insólito pensamento: caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida, inclina o corpo para a direita, e mete a mão na água da taça.
É um ruído novo, virgem, e o contacto da sua carne com a água faz nascer em si uma confusa alegria, o sentido de uma festa natural, o desejo de morrer ali, agora, triunfalmente.
E o outro? — o outro foge, e como não abrandou o passo, nem mergulhou a mão na água, nem pensou (supõe-se) na alegria de uma festa mortal, o outro adiantou-se, e já se encontra no lado oposto do fontanário.
E é ágil, essa criatura sem nome, o ser que se ama, aquele que se persegue e a quem se deseja conhecer, para suplicar lume, ou voz, ou vida, ou sangue, ou sabe-se lá o quê.
Corre depressa demais.
E andando em círculo, chapinhando sempre na água, e às vezes pensando ainda: caminhamos sobre as águas, ele sente, súbito, que o outro avançou bastante.
Treme de medo, porque o outro avançou tanto que já ultrapassou o ponto onde, com o ponto onde ele se encontra, formava os extremos do diâmetro do círculo.
E isto significa: o outro é agora o perseguidor.
E, como avança cada vez mais, torna-se cada vez mais no perseguidor, e ele no perseguido.
Talvez o outro pense: porque foges?, e lhe queira pedir a sua voz, o seu amor, o seu sangue.
É quando sente perto da nuca a respiração do outro.
Tem tempo apenas para desviar-se, correr para a esquerda, atravessar a praça e meter por uma ruela negra.
Mas, parando um instante, ouve os passos do outro na sua direcção.
E então foge através do bairro, do tempo, de pedra em pedra, com o seu pavor de animal perseguido, ouvindo o bater implacável dos pés do outro.
Haveria palavras para ouvir, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
E que poderia ele dizer?: tenho medo?
Não se sabe bem o que acontece.
As palavras nunca mais acabariam, enredar-se-iam umas nas outras, seria um jogo mortal.
Não mais haveria a suspensão do irremediável, esta espécie de silêncio na beira do crime, no qual sabemos, com dor, que ainda estamos vivos.
Ele foge.
Quem sabe se a noite terá fim?
Boa-noite.
E as pessoas que assistem são estátuas com cabelo, um sorriso talvez — com esse ar ambíguo das estátuas: branco, fatal, atónito.
As estátuas não têm amor nem adivinhação.
Estão cravadas nas poltronas e nada fazem por esse Autor repentinamente aparecido no meio de sombras e luzes.
Contudo, esperemos ao menos que não sejam os «juízes».
São majores, advogados, comerciantes, professores.
Estátuas sentadas.
Estava ali a pensar, há pouco, para que serve aparecer.
(Ele refere-se, evidentemente, a um momento teatral anterior, que pode desenhar-se desta maneira:
O pano sobe.
A cena encontra-se na obscuridade.
Três panejamentos negros cobrem o fundo e os lados do palco.
A um canto, ao fundo, de preferência à esquerda, está um homem sentado numa poltrona de couro.
Fuma.
Tem ao lado um cinzeiro de pé alto.
Nada mais existe no palco.
O homem expele o fumo com força, uma última vez, e atira o cigarro para o cinzeiro.
Ergue-se devagar.
As luzes aumentam de intensidade sem, no entanto, iluminarem francamente a cena.)
Não serve para nada, continua, a menos.
Levanta um dedo, e todo o corpo como que se precipita para o alto desse jacto de energia.
A menos que se execute um milagre.
E toda a sala permaneceria muda e à margem da (miraculosa) solidão, se o Demónio, que passava pelos corredores, não tivesse encontrado a porta entreaberta e, espreitando, não dissesse: um milagre?
Sim, responde o Autor, um pequeno milagre.
Aqui é o lugar da malícia do Demónio.
Pequeno?, pergunta.
Então o Autor diz que tentará explicar.
Massas de sombra e de luz esperam atrás dele.
O espaço onde se encontra hesita entre vários, inconcluídos pensamentos.
Nem a temperatura, a pressão, a humidade se fixaram.
Eu apareço como exemplificador — mostro o estilo, o exemplo.
Um operário em fato-macaco levanta um dos panos laterais e introduz em cena meio corpo.
Pergunta: começa-se?
Ainda não, responde o Autor, estou a explicar umas coisas.
Quando acabar, chame, diz o operário, e desaparece.
Senhores militares, estudantes, médicos — minhas senhoras — meus senhores — ides assistir a um acto simbólico.
É esse o milagre, o pequeno?, pergunta o Demónio no fundo da sala.
Sim, é esse — e é pequeno.
Bate palmas, e entram alguns operários.
Agora?, perguntam.
Os operários saem e voltam com uma carpete, cadeiras, pequenas mesas e o mais que possa interessar para que surja uma sala-de-estar segundo a convenção.
Um momento, interrompe o Autor.
E os operários conservam-se a um canto, pacientemente à espera de poderem arrumar os móveis e objectos.
Eu ia pedir-vos, senhoras, senhores, para aceitardes o direito de poder imaginar a acção um pouco como quisésseis.
O que aqui se passar poderia passar-se noutro sítio qualquer, com pessoas diferentes e de maneira diversa.
Mete pessoas?, pergunta o Demónio.
Não haverá sempre pessoas?, não estaremos por acaso — tu, eu — bloqueados, sufocados, esmagados por pessoas? — há sempre pessoas.
E as pessoas estão em baixo, sorrindo, olhando — talvez, talvez.
Enfim, procuro defender o meu símbolo, apesar de tudo.
Podeis começar, senhores operários.
E para vós, senhoras, senhores, que simplesmente assistis, vou fazer, enquanto eles dão a este espaço o aspecto concreto da realidade, um pequeno truque de prestidigitação.
Uma coisa poética, pela qual procurarei dar a impressão de que repito o acto iluminante do Génesis.
É o milagre?, perguntam impertinentemente do fundo da sala.
Um milagre que não é precisamente uma arbitrariedade.
Os poetas arrogam-se o direito de recomeçar o mundo.
Aqui principia o mundo, se é verdade que pode principiar em qualquer parte e tempo.
E então arregaça as mangas do casaco como um prestidigitador de circo.
Mostra as mãos, de um lado e de outro.
Nada na manga, diz o Demónio.
Com efeito, nada na manga.
Dirige-se para os panejamentos negros que puxa, e caem, deixando à vista as paredes com estantes de livros, quadros, retratos de família, etc.
Bonito, não é?
Fiat lux!
E a luz fez-se.
Olha subtilmente para as estátuas, enquanto ao fundo rebenta uma gargalhada.
Depressa, diz para os operários, esta gente espera a acção.
A acção, não é?
Pois claro.
Onde estão as portas?
Uma para comunicar com o resto da casa.
Isto é a sala-de-estar de uma família.
Ora é preciso que as pessoas entrem e saiam.
Que vivam por toda a parte, por causa da verosimilhança.
Gosto muito da verosimilhança.
E outra, outra porta para fora.
Porque podem chamar de fora, da noite, do vento, e a pessoa por quem chamam poderá querer sair.
Estavam mal as pessoas, se o Criador.
Com a licença de todos, o Criador aqui sou eu.
Se o Criador, dizia, lhes não desse uma porta.
É tudo?, pergunta o Demónio.
Tudo, sim.
E o milagre?
Bem, o milagre.
Nada há a acrescentar, senão talvez que as pessoas que simplesmente assistem nunca se movem, porventura jamais se moverão.
Talvez nem mesmo sorriam, ou olhem.
Estão sentadas, vamo-lo supor.
Sentadas e hirtas, e se calhar não chegam a compreender que é para elas tudo o que se faça.
A paixão forma-se, cresce, desloca-se à sua frente.
Alguém se esgota à sua frente — o caloroso prestidigitador, sob a ironia de um demónio devoluto, emprestado pelas fábulas.
Escreve-se.
Há as nuvens, as árvores, as cores, as temperaturas.
Há o espaço.
É preciso encontrar a nossa relação com o espaço.
Fazer escultura.
Escultura: objecto.
Objectos para a criação de espaço, espelhos para a criação de imagens, pessoas para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de silêncio.
Temos enfim o silêncio: é uma autobiografia.
É algo que se conquista à força de palavras.
Pode-se morrer, depois, quero dizer.
Um amigo: quando já sabemos como viver estamos prontos para a morte.
Estou descontente.
Há primavera, verão, outono e inverno — no espaço.
Começa assim o Ricardo III:
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lourd’d upon our house
In the deep bosom of the Ocean buried.
Now are our brows with victorious wreaths;
Our bruised arms hung up for monuments;
Our stern alarums changed to merry meetings;
Our dreadful marches to delightful measures.
Gloucester não é feito para estes tempos de paz, os jogos voluptuosos, os delicados labirintos da beleza.
É monstruoso.
Why, I, in this weak piping time of peace,
Have no delight to pass away the time,
Unless to see my shadow in the sun
And descant on mine own deformity.
E ele realizará uma autobiografia activa, uma sufocante acumulação de crimes.
Uma soma de cadáveres.
Um cadáver ele mesmo, acto V, cena V.
É o silêncio dele.
Estou descontente.
Eis o inverno do meu descontentamento.
Autobiografia.
Denominação: dominação das coisas.
O amor e a palavra são belos crimes — e imperdoáveis.
E quem pode amar o crime senão o criminoso e, por vezes, devido a um ainda mais raro talento, a sua vítima?
O autobiógrafo é a vítima do seu crime.
Melhor verdade, porém, é que a única graça concedida ao criminoso é o seu próprio crime.
Estou só: escrevo.
A alegria de escrever.
A temperatura, a velocidade, a cor das palavras — a maneira.
Latejam e respiram.
Dormem e despertam — andam.
Olham para a nossa ciência e para a nossa inocência.
Amam-nos.
Descobrir o seu sistema de cristalização, ver como a luz se refracta através delas.
As montanhas deslocam-se, pela energia das palavras, aparecem pessoas, animais, girassóis, plantas negras, lugares negros — e o sol, pela energia das palavras, cria-se o silêncio, pela energia das palavras.
année par année sont des années sans années
pas par pas sont des pas sans pas
Uma notícia de jornal: uma estátua em granito, com mais de 2 metros de altura e pesando meia tonelada, desequilibrou-se e tombou sobre o escultor que a tinha feito, esmagando-o.
Porque não é assim: o homem pesa 60 toneladas, mede 22 metros de altura e 24 de largura, e ocupa uma superfície de 70 metros quadrados — é em aço inoxidável.
Escrever é perigoso.
(…)
Sim — no entanto, já me disseram isso: que eu devia ser paciente.
E os que mo disseram foram tão pacientes, pelo seu lado, que apodreceram.
Quanto a mim, tenho pressa.
Porque eu penso que vou morrer, e então como posso ser paciente?
Gostaria de escrever o livro de que tenho medo, mas os meus dias, afinal longos, são ameaçados pela esterilidade.
Nada disto é fácil.
Suporto mal a carga das experiências e inexperiências: um homem, bela fábula também para apodrecer, e (desta vez) depressa.
A minha convicção era esta: eu esgotara a cidade.
Então fiz a mala e dirigi-me para o norte.
O norte era um espaço organizado segundo outras regras, de certo modo opostas às da cidade esgotada.
A experiência que possa ou julgue ter apresenta-me o norte como um estilo ao mesmo tempo rigoroso e livre, onde as primeiras qualidades são talvez a verdade, a pureza e o esforço.
A minha vida na cidade orientava-se pelo princípio da dissipação.
O facto que eu fugia de admitir, isto é: que o livro me perseguia, o livro aterrador que eu aspirava escrever, para que fosse a minha purificação — seria colocado, o livro, o facto, seria colocado, no norte, numa nova perspectiva.
Sim.
Já me não equilibrava nas linhas do antigo estilo.
Havia peste na cidade.
Suponho que um perfeito desamor se estabelecera entre mim e os dias.
Repugnavam-me as casas brancas, a cal martelada pelo sol, e o rio — as grandes águas pesadamente luminosas.
Era a peste.
Mas a peste não é só esta face quente e branca que confunde o poder e a delicadeza dos pensamentos.
O sul comporta as noites aparentemente plácidas, de que os dias vazios são uma ambígua anunciação, onde um furor sensual empurra à embriaguez, à alegria dramática — exigência de atingir depressa os limites.
Eu vacilava então entre diversas pistas, convencido de que o ardor me guiaria ao melhor lugar, quero dizer: à exaltação mais alta.
Onde me conduzia o livro, o tema, aquela perseguição?
Que espécie de morte me vigiava — terrível e salvadora?
Em pequenos escritos de uma crueldade minuciosa mas lateral, eu fazia perguntas, e do outro lado aparecia o norte, com a fascinação da sua luz imóvel.
Era a sua fábula o que eu deveria aprender: descobrir o seu prestígio inocente.
E nessa fixa claridade desabrochariam os meus obscuros bestiários — o livro.
(…)
O livro, o livro.
Nos dias nevoentos fecho as janelas, acendo a luz forte, e deito-me no tapete.
Leio ou penso.
Ou então fumo, enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem, e as mais pesadas descem e as mais leves se tornam pesadas, até ser impossível destruir o silêncio.
É fascinante, debaixo de uma luz que brilha tanto.
Lá fora, a terra — a terra das criaturas que se aproximam umas das outras, se tocam e falam.
O silêncio é sólido, iluminado por cima, aquecido pelos lados.
Durante seis meses fumo e leio, estendido no tapete.
Depois chega o verão, e subo à montanha, e vou para o mar.
Rebento de sol e água, do odor a terra quente e agulhas de pinheiro.
Estou tremendamente forte.
Bebo vinho.
Uma noite começo a escrever.
Tenho uma memória: nada foi esquecido.
Vem adequado agora a um vivo sentido de expressão.
Feliz, eu caminho para o esgotamento, nesses terríveis dias da fecundidade.
As pessoas perdem o nome, os acontecimentos libertam-se do seu movimento centrífugo: fica um núcleo cerrado de significações.
Inspiro-me na minha alegria, na morte acumulada.
Vivo sobre um doloroso e minucioso sentimento de masculinidade — como se isso fosse uma doença.
Poderei dizê-lo: inspiro-me no que é uma força e uma terrífica fragilidade, diante da lembrança e do esquecimento.
Depois: um ritmo, uma libertação.
Há dentro da gaveta uma rima de folhas escritas de ambos os lados.
Escrevi-as para os sombrios tempos do esgotamento.
Eu sou — e ali está a minha prova.
Dias, dias, noites inteiras — sobre o tapete, enquanto a chuva, o sol, o vento, o mundo.
Tempo consumido por uma tranquilidade imóvel.
Mas o bolbo fermenta.
Começo a andar em volta do quarto e a sair do quarto.
Sim, sim, digo eu, sim.
Ando de um quarto para outro, fechando portas, voltando atrás para abrir portas.
Depois paro e fumo diante das janelas.
Eu, diante da noite, com as mãos cobertas de sangue.
Eu, cheio de medo.
Irrisória medida pessoal: comida, urina, fezes, esperma, suor.
As unhas e os cabelos que crescem.
E a noite adiante, atrás, por cima.
Uma distância avassaladora e inóspita.
Desamor, crueldade, sensibilidade na criatura, na estranha criatura coroada com a sua comida e as suas fezes.
E sangue nas mãos, não há lágrimas — masculinidade, podridão fria.
Os papéis são um motor, trabalhando ininterruptamente; os papéis trabalham pelos dias dentro e no meio da noite.
Um tremendo motor.
Acordo de madrugada para ouvir a trepidação do motor.
Comunica-se à mesa, e da mesa ao soalho, às paredes, e a toda a casa.
É uma força espantosa.
Divago pela casa, bêbado de hesitação, dissipo-me em passos, mergulho em sonos brutais.
Uma manhã, caminho debaixo de árvores frias.
A terra trabalha à minha volta, interior e silenciosa, o mar vibra sob um céu extenuantemente liso.
Enfrento este calmo sonho do mundo, eu — o homem exaltado.
O meu poder é profundo e obscuro.
E então canto.
É uma canção essencial, ingénua — desalojada dos labirintos da ciência.
Empunho essa arma inocente, atravesso com ela meu ser dúbio, o vocabulário das contradições.
Sim, sim, penso eu, sim.
Talvez a alegria comece nesta terrível purificação.
Vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e disseram: porque fizeste isso?
Pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Pensei: quem sou eu para que me ataquem as vozes?
E o sangue vacilou na minha carne, as mãos tremeram, e a minha boca estava gelada.
Porque eu sabia quem era — conhecia-me.
Que fiz eu?, perguntei, e eles olhavam-me com a sua terrível melancolia.
Vieram ter comigo numa rua de não sei que cidade, e quem sabe se eu era puro?
Tinham caras ferozes e dolorosas, e queriam conhecer a razão por que eu fizera aquilo.
Olhei em volta — e apenas uma noite sufocada pelo nevoeiro, o rumor apenas do vento arrastando papéis velhos pelas ruas.
Era uma vez um lugar — pensei — onde os pássaros apanhavam insectos e os cravavam nos espinhos dos cardos selvagens.
Era uma vez uns pássaros que cantavam, enquanto os insectos agonizavam enterrados em espinhos brancos e duros.
O seu canto era belo.
E então, voltando-me para aqueles rostos amargos e cruéis, perguntei: quereis cantar?
E eles sorriram, como quem sabe, e disseram: porque fizeste isso?
Serei um inocente? — isto, só isto o que me acudiu.
E pus-me a andar, enquanto eles me seguiam quase sem ruído pelo meio do nevoeiro.
De súbito, percebi que eu nada sabia, nada, que a minha ciência era inane, e me limpava de toda a culpa.
Estremeci de alegria e parei voltando-me para eles, e perguntei, radiante: que fiz eu?
Um deles avançou para mim e passou a mão direita pelo meu rosto, numa carícia leve e, ao mesmo tempo, investigadora.
Recordei todo o tempo inútil que vivera, e aquilo que opusera ao mundo, e pensei: como hei-de morrer, com que espécie de amor, de louvor, hei-de eu morrer?
Já sabia então toda a profundeza do meu crime, e como o meu espírito era frágil e cruel.
Terei cantado alguma vez? — perguntei, e aquele que avançara até mim recuou para o grupo, e todos me olhavam.
Ignoro em que cidade pode o nevoeiro correr assim pelas ruas, e deixar à volta dos rostos um espaço branco onde uma luz difusa trema longamente, como se não houvesse tempo e o peso incalculável das presenças fosse irremovível.
Vieram ter comigo nessa inexplicável cidade e, enquanto o nevoeiro passava, olhavam-me implacavelmente, conhecendo o meu medo, o ponto instável onde inocência e crime se equilibravam no meu coração, e disseram: porque fizeste isso?
Eu sorri.
Decerto, comecei a dizer.
E de novo reparei que os rostos escapavam ao nevoeiro, quase brilhando na massa escura e gelada da noite.
E o meu rosto, brilharia ele também, estaria como que suspenso na noite, seria um rosto implacável?
Como recusar que eu sempre me preparara para a morte do mesmo modo que se prepara uma vingança?
Decerto, disse sorrindo, decerto houve um erro qualquer, porque eu não posso ser procurado.
E recomecei imediatamente a andar.
Sim, isto é um lugar, isto é uma noite, mas há outros lugares e outros tempos.
Há uma libertação, algures, num tempo que não sei, mas que existe.
E eles seguiam-me, e tanto fazia que eu caminhasse depressa como devagar, porque se mantinham à mesma distância.
Ando à procura da minha velocidade, mas o que é isto, que é procurar a sua própria velocidade, se aparecem vozes com uma pergunta fora do tempo e dos lugares?
Há um erro, gritei, e enfrentei-os, há um erro, um erro.
E então um deles avançou para mim e passou a ponta dos dedos pela minha boca.
E não sei se eram os dedos que tremiam ou se era a minha boca, e não sei porque tremeriam os dedos ou tremeria a boca.
Ele afastou-se devagar, e eu perguntei: que fiz eu?
As ondas de nevoeiro abraçavam as figuras imóveis e o vento arrastava jornais velhos.
Os rostos continuavam a palpitar no ar frio.
Um dia chegará a luz.
Um dia correrão as águas, e as plantas sairão das trevas com a chama branca das suas flores, e alguém louvará o renascimento da vida.
Um dia o homem estará nu e inocente.
Então reconheci os seus rostos atrozes de ressuscitados, e aquela voz que irrompia do tempo e violava a sua qualidade mortal, para dizer: porque fizeste isso?
Quem sou eu para que as vozes me ataquem?
Porque fizeste isso? porque fizeste isso? porque fizeste isso?
Ah, um pouco de paz, um dia de paz, apenas um dia, para que saiba ao menos a qualidade da minha culpa.
E um deles avançou e deu-me um beijo no rosto, e depois recuou, e depois recomecei a minha caminhada sem propósito, e depois senti que a face me queimava no sítio do beijo, como uma chaga.
Era uma rua enorme, estreita e varrida pelo nevoeiro húmido.
Eles andavam atrás de mim, quase sem ruído.
Talvez a inocência seja mesmo a minha verdadeira vocação.
Que espécie de ciência terão eles, para fazerem tal pergunta?
Era uma vez um lugar onde pássaros terríveis cantavam inspirados pela agonia dos insectos.
O seu canto era de uma beleza inocente e parecia louvar a própria vida.
Há um erro, disse eu, e parei para olhar as caras brancas e amargas.
Quereis cantar?, perguntei, quereis alimentar-vos da minha inocência?
Então um deles destacou-se do grupo e veio para mim, cambaleando como um ferido, e depois tomou-me as duas mãos nas suas e levou-as lenta e apaixonadamente aos lábios, e comecei a chorar em silêncio, enquanto as minhas mãos ficavam entregues àquele beijo de um amor terrível.
Porque fizeste isso?, perguntaram os outros, dirigindo-se a mim.
E os seus rostos eram implacáveis.
O que estava junto de mim abandonou-me docemente as mãos e voltou para o grupo.
Disse: porque fizeste isso?
Um dia chegará a primavera, num lugar longe daqui, haverá homens e mulheres para louvar a vida, pensei eu.
E, virando-me para eles, perguntei: que fiz eu?
Ah, vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Porque fizeste isso?, perguntavam.
Mas nem eu avaliava bem a verdade da minha culpa ou da minha inocência, nem conhecia que espécie de sabedoria era a deles.
E caminhava pela cidade cheia de nevoeiro, e eles seguiam-me e às vezes beijavam-me apaixonadamente as mãos, e eu dizia: que fiz eu?
Se acaso eu pudesse pensar na morte, isso era como uma vingança, e parecia que eles sabiam tudo.
De nada servia que eu protestasse existir um erro.
Mostravam-me o seu amor demoníaco, e acusavam-me até eu sentir que tudo vacilava dentro de mim.
Talvez agonizássemos todos e todos nós esperássemos cantar, movidos pela agonia alheia, talvez estivéssemos ligados por insondáveis tramas de inocência e culpa, e as vozes fossem um obscuro esforço de libertação.
Eu parava e dizia: mas que fiz eu?
E um deles avançava para mim e encostava o seu rosto ao meu e afastava-se.
E depois eles perguntavam: porque fizeste isso?
Quem sabe?, talvez fosse muito rudimentar toda a nossa sabedoria de crime e inocência, e o amor e o medo enchessem o nosso coração, e assim caminhássemos pelas trevas com os rostos brilhando ao alto — dolorosos, implacáveis e doces, doces.
Não sei onde esconder
Este sofrimento
Esta dor que me consome
Estas lágrimas que
Não param
De correr como rios
Para o mar de todas
As minhas ilusões
São sombras que se desvanecem
Por entre as brumas
Da fantasia de um amor
Desejado mas nunca tido
Quero voar para longe
Como uma fenix
Onde o amor
Será um bem renascido
De todas as cinzas
Dos amores mortos
Com começo e sem
Fim ....
"Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com uma outra pessoa,você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela."Uma grande verdade...
Muitas vezes quando amamos achamos que devemos correr atrás da pessoa amada e esse correr atrás, não se pense que seja a questão bem direta que seria estar aonde a outra pessoa esta. Não. Você pode estar andando atrás do outro quando você também se recusa a esquecer aquele alguém que marcou a sua vida e insiste em ter essa pessoa plenamente presente na sua vida. E pior ainda: presente na sua mente e no seu coração. Quando um relacionamento acaba, nunca saberemos disser o porquê exatamente ele se acaba. Temos à nossa frente diversas causas possíveis, mas serão elas mesmas as culpadas?
Não existirão causas que muitas vezes sequer temos conhecimento?
Sim, existem. Porque quando duas pessoas se separam, nem sempre tudo foi completamente colocado à descoberto. Muitas coisas são ditas, mas muitas vezes nem tudo fica esclarecido. No mínimo se leva quase um ano para que tudo fique realmente esclarecido. E esse tempo variará conforme o grau da separação que ocorreu.
E muitas vezes sequer um dia se descobrirá o porquê, porque poucos casais voltam a se encontrarem.
E pelo resto da vida ficará a indagação: porque não deu certo? Parecia tudo tão fadado a dar certo.
E eu amo a Arte porque a Arte é assim: ela se cria e se recria através da inúmeras obras de Arte ao longo dos anos da humanidade.
Quando Mário Quintana escreveu a sua poesia, não imaginava que na nossa contemporaneidade, um cantor chamado Adam Levine, do grupo Maroon 5, iria atuar num vídeo que muito tem a ver com o seu poema. O vídeo é da música What Lovers Do, que traduzindo significa O que os apaixonados fazem.Nesse vídeo, que convido vocês leitores a verem, vemos que um garoto aparece seguindo borboletas num enorme campo. Nesse campo, além das borboletas tem uma linda menina morena, de cabelos cacheados, pele morena, mulata faceira, uma verdadeira bonequinha.
Ele a persegue , porém as borboletas a acompanham. Viu a semelhança com o poema?
Ela corre toda feliz, consciente de que ele a segue, mas ela está tão envolta com a façanha de estar cercada pelas borboletas e seguida por ele, que ela nem se dá conta do que possa estar acontecendo a ele. E ele, está tão obcecado pelo amor que sente por ela, que a persegue na esperança de que ela parará de correr e o esperará.
O tempo passa no vídeo e os dois personagens crescem.
E depois de adulto, ele continua perseguindo o seu alvo. Agora ela é uma mulata faceira, cabelos cacheados, longo, um corpo estonteante.
Uma verdadeira Gabriela do nosso saudoso Jorge Amado.
Ela continua a saber que o envolve totalmente e continua a correr sem deixar que ele a alcance. Ou melhor, que ele alcance o seu coração.
Ela sabe que ele a ama e isso a mantém firme e forte.
Ela adora saber que é desejada. Num determinado momento, ele a está perseguindo e vão ao fundo do mar. Quando ele quase sucumbe e não poderá mais segui-la, é ela quem vem e o salva.
E porque ela o salva?
Porque não teria graça viver sem ele.
Ela também se nutria daquele amor obcecado e desejoso.
E assim, o vídeo segue e ele sempre atrás da mulher de sua vida.O que quer nos ensinar este vídeo e este poema?
Que devemos desistir daquilo que desejamos?
Seja um amor ou qualquer outro objetivo? Não. Apenas como diz o poema e nos mostra o vídeo: "O segredo é não correr atrás das borboletas...
É cuidar do jardim para que elas venham até você.
No final das contas, você vai achar não quem vocêestava procurando, masquem estava procurando por você!"Devemos entender que nós não podemos empurrar o rio, expressão que amei quando li num dado texto que não me recordo.
Não podemos tentar prever o que a vida nos reserva, mas é próprio do ser humano querer adivinhar o como as coisas acontecerão. Ao tentarmos empurrar o rio, nós vamos nos cansar e desperdiçar energias.
O segredo para que cheguemos ao que queremos é não desperdiçar os momentos presentes estando correndo atrás do tão almejado prêmio.
Nós temos é que correr atrás dos nossos objetivos sem esquecermos de viver.
Se nos tornamos obcecados e esquecemos de viver, nem sempre chegaremos ao pódium.
Mas, se você vive e ao mesmo tempo vai usando das experiências como aprendizado, aí sim saberemos alcançar os objetivos porque soubemos aproveitar todos os momentos de aprendizagem.
Se você se afasta das reclamações e trabalha no seu jardim, que aqui representa a sua vida, as borboletas virão até nós porque nosso jardim estará perfumado e florido. Aprenda isso: deseje, mas viva!
Não desperdice os seus momentos reclamando da vida, ao contrário, sorria para ela e ela sorrirá para você.
(Anjo Eros)
Observação: este poema tem controvérsias.
Muitos apontam Quintana como autor, outros dizem ser o autor um desconhecido e alguns como sendo D. Elhers o criador.
Compactuo com Mário Quintana.
(Anjo Eros)
Código do texto: T6158952
Meu sou acordado no sonhar,
amor acreditando para amar,
sou poesia na poesia quero continuar.
Sonho.
Que a minha alma nunca pare
de me inspirar na capacidade no criar.
Sendo arte há arte quero pertencer,
preciso ser vida, no continuar a aprender a viver.
Em amor tudo é possível acontecer
quando em fé criamos a luz do continuar.
Sonho é vida, vida é continuar a sonhar,
sempre com foco de por cada sonho
lutar e realizar.
No rio, mar ou ribeira acontece que a agua
continua a correr.
Em silêncio mas em determinação
a mesma agua que cria a vida alimentando cada nova semente.
Não em sonho mas em amor e realidade permanente.
Corra para fora de Si.
Tente pensar por si próprio, sem ouvir a voz do alheio,
cuidado para não entrar num estranho devaneio
Idéias solidas podem de confundir,
ai então é hora de parar e agir.
Parar de pensar e agir é cair no modismo,
é olhar para baixo e enxergar um profundo abismo.
Idéias aqui e ali não param de se fundir,
corra para algum lugar talvez irá conseguir....
Conseguir o que , não adianta fugir,
fugir com artifícios que a lei não cansa de proibir.
Felicidade aparente
se estas linhas fixou em sua mente
Tu fazes parte desta gente.
rogerioalcolea@gmail.com
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Morri
Aqui gostaria de estar,
Neste globo terrestre já não posso mais pisar
Estou só,
minh'alma sofre como as provações de Jó.
Somente minh'alma é que pode se pronunciar,
o meu corpo num lindo jardim f lorido
eternamente a descansar.
Neste mundo já não faço parte,
o meu nome está gravado na sepultura
como se fosse arte.
Sentimentos ainda posso sentir,
lembranças da minha via terrestre,
se fosse pintar um quadro não conseguiria colorir.
O meu cadáver duro e frio,
fechado numa caixa que alguém um dia esculpiu.
Um conselho eu dou para os que possuem um tabernáculo carnal
Procure praticar o bem
evite certamente o mal.
rogerioalcolea@gmail.com
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Autopia de ser um Servidor Linux
Bytes e bytes de vivências,
Gravadas num enorme hard disk.
Às vezes buscando na memória cachê
Pequenas idéias, pequenas lembranças.
Talvez com bad block devido ao stress,
corriqueiro do dia a dia.
De tempos em tempos um descanso na fazenda,
Ouvir os sons dos pássaros, estágios de uma desfragmentação,
E estar pronto novamente para produzir e produzir.
Os anos se passaram é a hora de upgrade,
Apagam-se memórias permanentes e pequenas recordações,
restam apenas um gabinete , um flopy
e um cd-rom que raramente consegue ler algo.
Ou melhor, não resta, lá no fundo de uma prateleira
A fim de ser reutilizada partes de seu conteúdo.
Quem sabe uma nova existência na louca utopia de ser
Over clockizado com um software revolucionário,
Rodar linux e virar um servidor.
Rogério Thiago Alcoléa- Aprendiz de Poeta
rogerioalcolea@gmail.com
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Desempregado.
Estamos ai, a escolha é sua
bem vindo a vida, bem-vindo a rua.
Para expressar o que sinto de parábola usarei.
Minha carreira, uma viagem
para que lugar não sei.
Vi muito da janela deste trem,
belas paisagens, belas ruínas.
Pessoas gritando,
outras falando amem.
Desta viagem apesar dos pesares,
As paisagens pretendo levar,
As ruínas, muito obrigado aqui irei deixar.
A bagagem me desculpe por direito levarei,
Dentro dela todo conhecimento e amor que cultivei.
Me perdoe.. se magoa um dia deixei,
é para você essa linha com carinho dediquei.
O trem continua, minha parada é aqui,
como tudo na vida, hoje tenho que parti.
A uma nova viagem, buscando seguir,
com ética e dignidade usando o que aprendi.
rogerioalcolea@gmail.com
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Oh! Elipse que me inspira.
Traz-me enfastia não poder observá-la de perto
Es tão linda Oh! Elipse incandescente
Deretes o calor desta escuridão.
Não temo o breu que te circunda.
Olha a orbe e não te encalistra
Antes só do que cheia de indivíduos,
pavoneando suas pequenas conquistas.
Solidão não, aqui no planeta azul,
um panegírico incessante a tua perfeição.
Ingênua quem sabe, olho límpido,
não conheces a maldade dos seres,
que a louvam.
Talvez seus dias contados,
Como formigas que descobrem o doce,
hão de descobrir algo para sugar sua alma,
e ofuscar seu brilho.
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Sistema
Reprodutores de um sistema falido,
Que não nos leva alugar nenhum.
O ideal é a revolução ,
Para chegarmos num bem comum.
O que fazer para mudar?
Se a massa acomodada com suas idéias
nos deixa a desejar.
Capitalismo a elite sustentando o egoísmo,
miseráveis procurando no lixo dos ricos
algo para saciar a fome.
Pessoas matam para adquirir
o dinheiro fabricado pelo homem.
A elite esbanjando seus bens
que foram adquiridos sem sacrifícios.
Seres lutando para ganhar um salário
só para sustentar seus vícios.
Ingratidão
pessoas vendendo o corpo para ganhar o pão.
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Mundo medíocre.
A lucidez me padroniza a mediocridade deste mundo.
A embriaguez me abre uma única janela que me faz sair deste mundo medíocre.
A confusão de sentimentos em sintonia com o sorriso de um alcoólatra transmite para os seres que os observam uma certa felicidade disfarçada de angustias reprimidas.
Tudo para sair do mundo real, ou apenas para esquecer as punhaladas provinda da ganancia que nos rodeia
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PENSAMENTOS NA ESTRADA
Sozinho nesta longa estrada,
tento mas não consigo pensar em nada
Turbilhões de pensamentos nesta caminhada,
cumprirei esta jornada
Sorri sozinho com meus próprios pensamentos,
são estes blocos de idéias
que vão e voltam com o vento.
Parece que penso ainda como criança,
com mais experiência
mas sem muita confiança.
A brisa levemente fria
paira sobre meu corpo e me arrepia.
O cheiro da natureza
me faz entrar em sintonia
com esta magnifica leveza
A beleza da natureza
entra em extremo contraste
com idéias e incertezas
Questões não respondidas
mesmo assim não deixo de apreciar
esta linda vida.
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Capas Negras
Não sei porque insisto em viver,
o mundo não e mais aquele
quando buscava crescer
Poeiras sobre pessoas desmerecem
a raça humana
Capas negras envaidecem
camuflando o bacana
Desaparece entre muitos
a igualdade desigual
Faz com que leve a vida
magoando atrás do mal
Objetivos traçados
doa a quem doer
Capas negras vai sangrando
até a alma morrer
Gostaria de voltar, a infância sem igual
Onde sorria puramente
onde não enxergava o mal.
Fecharei este baú,
lançarei a chave ao abismo,
deixarei dentro dele todo ódio e egoísmo.
Mas também não sorrirei
não tenho razão para tanto
Talvez um dia rindo,
embaixo de um manto,
deixarei me levar pelo ultimo canto.
O azul do arco íris serei.
Quando olhares para cima
meu sinal deixarei.
Serei o símbolo da Alegria, Paz e Amor
Não haverás capas negras , não haverás dor
rogerioalcolea@gmail.com
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Numa praça em Piracicaba.
Problemas sentimentais
visão a escurecer
de pé não estava mais
sem muito saber.
Sentado ali estava
vários seres ao seu redor,
e querem saber...
- Família?
- Alguém morreu?
- Fez por merecer?
Com a visão ainda
escura
Sua pronuncia calada
seres desconfiam que se foi
sua verdadeira amada.
Enquanto um evangélico
grita em seu sermão
ao olhar aquele ser
vou-lhe fazer uma oração.
Sobre a cabeça sua mão
palavras fortes e de consolação
Perguntas ainda são feitas
respostas ainda não
O guarda que ali estava disse:
- Cumpri minha missão.
Ao levantar o indivíduo que tinha
caido no chão.
O pregador despediu-se
até logo meu irmão.
E eu que ali observava
Voltei para o serviço
Sei lá porque escrevo
Não tinha nada a haver com isto.
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Reflexão do viver.( a pintura é a mesma de sempre )
Um ano se finda nada se muda,
pessoas eufóricas, outras pedindo ajuda.
O que terá de tão especial
na entrada do novo milênio ?
Evolução, nada estagnado ,
Para compreender esta transformação
não precisa ser intelecto nem um gênio .
O que diz respeito ao ser humano,
muitos regridem e muitos evoluem na arte da vida.
Enquanto uma família feliz enriquece,
milhares de pessoas se sacrificam em sua vida sofrida.
A vida é um quadro cravado na parede
que algum dia alguém quis pintar.
A pintura é a mesma de sempre
só muda a forma de pensar.
Pessoas sacrificam outras,
até fazem pôr merecer ...
Se buscas a felicidade, cultive o amor
E verás que a alegria está dentro de cada ser ...
rogerioalcolea@gmail.com
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A felicidade nas pequenas coisas.
A massa cinzenta entra em erupção,
a alma vaga sobre as nuvens.;
Saltará lá de cima, melhor não .
Reflito na minha vida terrestre,
valores, tabus, bloqueios metais,
recordo nos conselhos do mestre.
Como é bom o agora,
momentos que não voltam jamais.
A brisa passa e leva-o embora.
No meu ser habita uma extrema felicidade,
gostaria de fazer feliz toda a humanidade.
Recordações passam sobre minha mente,
Coisas , cores, lugares, sons e gentes.
Um flash do meu passado ,
uma infância bonita e alegre,
fraternidade e amor sempre ao meu lado.
O tempo apaga a minha vida.
Infância , adolescência não serão mais vivida.
Temos que viver sempre com emoções ,
são gestos simples que marcam nossos corações.
Um sorriso, um olhar, se tu deres valor ,
significará mais que uma noite de amor.
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A Tristeza em teus olhos.
Tio me dá um trocado,
seus olhos descrevem a tristeza
de um garoto mal tratado.
"Deus" lhe pague , muito obrigado
as vezes para comer o pão
as vezes para sustentar viciados.
Sua mão é estendida , tristeza em seu semblante
irmãos passando fome, drogas , misérias
mesmo com tudo isto a vida leva avante. .
Imagine o coração deste ser machucar,
ao ver você o vidro de seu carro fechar.
Se tu não pode ajudar ,
de apenas amor.
Fale uma palavra amiga
com certeza darás valor
Não quer apenas seu dinheiro
que tu gastas em abundância
Quer Ter uma vida digna
E aos seus irmãozinhos
dar uma boa infância.
Seus olhinhos encheram de lágrimas
ao escutar uma engratidão. . .
Ao pedir ajuda no semáforo :
- Vai trabalhar vagabundo
- Para mim você é ladrão.
Do mesmo jeitinho que estes garotos pedem
Peço para ti agora :
Faça o bem enquanto é tempo pois um dia
Desta vida irás embora.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sonhos.
Sonhos se confundem com a realidade,
Sonhos bons , sonhos ruins,
sonhos que expressam desejos que estão dentro de mim.
Sonhos sem pré conceitos, sonhos que
expressam nossas verdadeiras essências.
Sonhos que representam nossos íntimos
que nos mostra nossas carências
As vezes me pego sonhando acordado,
sonhando sobre meu futuro ,
tentando enxergar por detrás de um enorme muro.
Quem somos nós para sonhar ?
almas fracas, praticamos injustiças
e temos intenções ingratas.
Mas não podemos deixar de sonhar ,
pois sonhar nos trás bem perto
desejos e conquistas difíceis de se concretizar.
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Tua alma Transparente
A transparência de tua alma
em teus olhos não cessam de cintilar
Meu ser procura em teus lábios
saciar a minha sede de amar.
Tua pele aveludada
com sinceros toques, por mim é acariciada
Se pudesse congelar,
congelaria os teus beijos e abraços,
nestes momentos magníficos atariam
em nós eternos laços.
Não consigo deslizar em tais linhas
A magestosidade do que estou sentindo
Sinto o meu coração pulsar,
entoando um lindo hino
e a cada sorriso teu sobre o horizonte
este hino vai fluindo.
Em teus braços me acalmo do mundo moderno
Minh'alma a levitar gostaria de ser eterno.
rogerioalcolea@gmail.com
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O ritmo do amor..
As pálpebras se fecharam
O ritmo do coração se eleva
Como naquele instante mágico
Retratado por Adão e Eva.
O sangue se flui , de uma forma jamais fluida
Sobre o corpo deitado que ali estava
Arrebatados para a dimensão do amor
Ali nada nos faltava.
Sobre uma sinueta uma escultura divina e macia.
Com os olhos abertos desacreditava
Na magnificência do que via.
Meus lábios sobre teu corpo
Deslizavam em demonstração
das grandezas de sentimentos
que detenho em meu coração.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sinto Saudades
O antes sempre será
Melhor do que o agora.
Momentos atrás maravilhosos
Outrora , foram embora.
Loucuras insanas
Êxtases de sensações
Talvez ilusões
O que já foram emoções
Lições,
Escorregões,
Regressaria?
Com certeza,
Impares gozaria
O meu ser invade,
Saudade
rogerioalcolea@gmail.com
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Verdade?
A verdade não existe.
Existem mentes doutrinadas a pensar
Da mesma forma causando sensações
Disfarçadas de uma veracidade coletiva
Vida , Grande Mentira
A cada verdade , duas mentiras se cultivam
O que colhera?
Regresse no hoje
Começaste a mentir para ti mesmo
Ao levantar , reproduzindo mentiras alheias
Maltratando seu próprio ser
Colherás o que plantaste
Talvez sem merecer.
Sofrerás muito
Quem sabe
Estágios do aprender.
rogerioalcolea@gmail.com
##############################################################
Euforia Musical
Angustia no ser
Talvez merecer
crescer, status
aparecer.
Vocação presente
Pulsar ,
ritmo ausente.
Querendo sair , sons,
claves, musicas, tons.
Vozes gritantes, fãs
Criticas e jogos, clãs.
Alegria fantasiosa
Dar o que está guardado
Sair da alma.
Sem ser crucificado.
Mostrar todo talento
Cantar, pular ao relento
Lual , flauta , violão
Guitarra ,Baixo, Bateria
Euforia, Euforia , Euforia
rogerioalcolea@gmail.com
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Sede de Paz.
Acordei de um sono profundo,
deparei com o mundo real
era bom quando eu sonhava,
ter acordado foi o meu mal.
Agora sofro pôr almas alheias,
No meu corpo circula um sangue
Frio que pulsa sobre minhas veias.
Sensível com tanta destruição,
Posso lutar contra " isto " mas lutarei em vão.
Fico olhando para o relógio
vendo os segundos se movimentar,
a cada movimento do ponteiro
um corpo estendido no chão
que não para de sangrar.
rogerioalcolea@gmail.com
##############################################################
Dê graças ao divino.
Olho para cima e observo o caminhar das nuvens,
lindo magnifico todos temos o direito de apreciar
Seres, montes e montanhas, brisa pássaros a cantar.
Pare um instante e valoriza a visão que tu tens ....
A felicidade se valoriza na simplicidade,
se tu quiseres muito enfeitar,
pelos vão de teus dedos a mesma irá escapar.
Tolos são aqueles que buscam alegria nos bens materiais ..
Um dia todos partiram, restará nada mais do que uma vaga lembrança, e nossos corpos serão consumidos pelos animais.
Escrevo em vão, coisas minha,
feche os olhos e graças a luz divina,
de estar podendo ler e decifrar tais linhas.
Nos momentos difíceis da vida temos que manter a calma
Isto fará que preservemos a saúde da alma.
O melhor remédio para canseira é o descanso
para a raiva um coração manso.
Para o ciúmes a confiança
Para o ódio a tolerância.
rogerioalcolea@gmail.com
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Eis que levitava..
Eis que levitava
com os olhos fechados enxergava
algo que a principio desacreditava
No mundo não mais estava
Minha vida terrestre ali se findava
Maravilhoso o que contemplava
o mundo em forma de miniatura eu observava.
Assim pude entender a essência de quem liderava.
Pude compreender a divindade do criador
que tanto nos amava
Muitos seres pude ver
Alguns praticando o bem
outros não fazendo por merecer.
Alguns preocupados com o porquê da existência......
Outros imitando o alheio sem querer saber de suas essências.
Outros pensando apenas em trabalhar ,em dinheiro ganhar
Esquecendo as maravilhas que estão ai para contemplar.
Triste fiquei .....
Os seres humanos não valorizam o Redentor
Fanatismo ,rituais sem valor.
Em busca da ganância, almas sacrificadas
Não foi em vão que seus pés e suas mãos na cruz foram cravadas
Agora pare e viva!
A vida é uma só , não seja digno de dó.
Valorize cada ser,
cada pôr do sol e cada nascer,
Valorize uma flor.
Dê para receber amor..........
rogerioalcolea@gmail.com
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Dispersão Mental.
A vista enubada
Vozes, múrmuros, tons
Frases pronunciadas que entram e saem
Sem nenhuma edificação
Sem artifícios , sobriedade total,
apenas cansaço e stress do mundo atual
Apenas o corpo
a alma está muito longe daqui.
Aonde será que ela estará?
Tentando fugir?
Assunto interessante ,
atenção nula,
viagem ao além do inexistente.
Mente vazia
A emissão de um eco no horizonte
Que se perde na minha insignificãncia.
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Amor turbulento
Promessas impossíveis prometi
Era sincero não fingi
Me entreguei
meu coração e meu corpo te dei
Não pensava
que este amor se minguaria e se acabava
Eu agora sofro
neste barco já não embarco mais, e nem em outro
Talvez momentâneo seja
E com o passar do tempo o meu coração te deseje
Nunca mais amarei
no meu coração, devido a desi lusão
espaço jamais abrirei
Me martirizo por momentos lindos não aproveitar
jamais pensava que este amor ia se acabar.
Não posso pensar em tua ausência
sentimentos ruins tocam o meu coração
deixa transmitir a minha carência.
Uma incógnita no ar
Para não sofrer com esta desilusão
procuro nisto não pensar.
O amor é mais forte que isto,
se tu insistir
terei que desistir
e meu rumo prosseguir.
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Absurdo Môr.
Absurdo o que sinto pôr t i
Não esperava sentir o que sinto
a primeira vez que te vi
Algo não palpável
,¨sentimentos¨, a vida é inexplicável .
Se tivesse poderes guardaria
meus sentimentos e os teus
numa caixinha fecharia.
O que sinto pôr ti é muito bom
Jamais negaria.
É mais do que amor
não tinha mais esperança
que isto aconteceria.
Agora paro e reflito
nosso amor tem que ser infinito.
Se nós agirmos sempre corretamente
outros seres não terão nosso corpo nossa mente.
"Deus" valoriza a sinceridade e o respeito ,
se tu continuar a me amar e a me respeitar
te amarei sempre ficarás no meu peito.
A prudência e a base da inteligência ,
Somos e seremos felizes , basta ter paciência .
Imagine nós dois flutuando
altura as poucos alcançando.
Observaremos o mundo lá de cima,
veremos muito mais do que é visto,
Verás que o mundo é mal que não fazemos
parte disto.
rogerioalcolea@gmail.com
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Acorde para a Natureza.
Temos que refletir no futuro de nossa nação
O que será de nós com tanta poluição
A hora é esta
Vamos salvar nossas florestas
Conhecemos a mãe natureza
Sabemos de suas maravilhas
e de tuas belezas
Preserve o que resta desta riqueza.
Para ver o que está acontecendo
com a nossa natureza, não precisa ter vivência .
Pessoas desmatam, poluem ,
acabam com nossa fauna com tanta imprudência .
Temos que fazer um minuto de silencio pôr dia
é nossa vida que está morrendo.
Haja paciência......
Com tanta destruição
não há como haver compreensão
Tem que haver conscientização.
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Degustação da liberdade.
No teu coração ,na tua mente não posso entrar
Se pudesse voltarei a te apaixonar
Nada é mais forte que o amor
por isto que sinto tanta dor
Que motivo tão forte
Te levaria a pensar na morte?
O meu coração morreu
O brilho dos teus olhos tu não devolveu.
Se tu pensas em amar outro ser
ódio fará o meu coração ter
Sentimentos ruins me domina
Na minha mente teu sorriso ainda me fascina.
Talvez aprenda a degustar a liberdade
sem amor apenas com amizade.
Sorrisos para manter as aparências
com as dificuldades é que adquirimos vivências.
Não sei mais sobre o amor
para mim estou fazendo um favor.
Para sair desta depressão lutarei com vigor,
é lutando que nos damos valor.
A muitos anos não me expressei
os sentimentos falaram mais alto e chorei
Se fosse nascer de novo muitas coisas não faria
curtiria bastante a vida e jamais me apaixonaria.
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Foi um Pesadelo.
Durmi ,
O relógio tocou e eu não acordava.
A paixão falou mais alto e por anos,
achava que te amava
Sonolento eu estava
Não sabia ao certo se meus atos te agradava
Deitado num colchão macio e aconchegante,
a rotina passou a ser um fato relevante.
Se não fugia se entregava ,
ai então o mundo para ti acabava.
Visões do mundo diferentes,
corações opostos, duas mentes.
Ninguém foi o dono da razão,
me feriu , partiu meu coração.
Já era tarde , então acordei
muito tempo perdi.
Refleti e conclui
Não foi bom
Apenas me iludi,
sofri.
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Reconquista
Queria também parar e pensar,
se tento refletir começo a viajar.
Não consigo finjo que não amo
e nem ligo.
A aparência pode enganar
Mas não cessarei de te amar.
Não me acanho de expressar o que sinto,
escrevo linhas sinceras e não minto.
Acho que assim simplesmente
Não irá acabar
Moverei montes e montanhas para te reconquistar.
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Frases fictícias .
A relação espaço e tempo,
nos obriga regras cumprir
Deixamos a essência
Alheios servir
Nunca chegamos ?
Aonde estaremos?
Nunca chegaremos..
O homem contra si mesmo.
Olhos medíocres
Cameras que perseguem
Em busca da verdade
Mentira de alguém.
Privacidade
nem nas profundezas do oceano.
Tua mente estará lá
acusando teu engano.
Não se deixe levar
Encare
Frases fictícias
Algo para se pensar.
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El espectáculo de la vida. |
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No meio da peça, aplausos e reconhecimento do publico |
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|
Acorde para a Natureza |
|
Temos que refletir no futuro de nossa nação |
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Verdade? |
|
A verdade não existe. |
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|
|
O antes sempre será |
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|
Cidade Maravilhosa |
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Oh! Titulo absoleto. |
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|
Lagrimas de sangue |
|
Lagrimas de sangue |
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|
Cidade Maravilhosa |
|
Oh! Titulo absoleto. |
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|
Asas a um pássaro cego. |
|
Do que adianta voar, |
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"Deus Escreve" |
|
" Deus Escreveu". |
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Semeando a Poesia |
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Escrevem pouco e dizem muito. |
rogerioalcolea@gmail.com
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Vertentes Musicais
A arte da combinação do som,
Suavidade, e ternura harmônica.
sucessões de sons agradáveis a audição.
Musicas das esferas,
capazes de vibrar constelações,
esferas celestes, estrelas e planetas.
Musicas, patrimônio de um povo, ritos e sons
remetem a focloridade.
Musicas sem destinos religiosos,
Profaníssimo.
Musica celestial, musica sacra dos Deuses,
Voltada a alcança-los.
Grandes peças sinfônicas,
centenas de instrumentos em sincronia,
em cima do que foi escrito.
A que sai da alma,
musica vocálica.
A quem se destina a tal,
musicante.
Quem musicocrafou, sons da natureza ?
Musicocrafar sons de um sentimento,
a tristeza de uma opera,
a alegria de um Axé.
Musicista todos nós,
Musicofilia a maioria,
Musicofobia, como pode existir!!!!!
Sem musica, sem essência,
Buscamos a perfeição,
Hiper-sensibilidade da audição,
Sermos sensíveis a diferença de um bemol,
a um sustenido.
Ao tempo de uma oitava de nota.
Musicalizar sentimentos?
Musica é arte, quadros abstratos que transmitem
Em cima de uma bagagem individual de cada ouvinte.
O que me deixa feliz talvez lhe trará tristeza.
Rogério Thiago Alcoléa)
rogerioalcolea@gmail.com
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Semeando a Poesia
Escrevem pouco e dizem muito.
Poetas são como o semeador que
plantam árvores sem saber que vai
descansar em suas sombras.
Sombras que aliviam o calor, sombras
que trazem sombras.
Poetas não possuem almas, são a própria
alma, são os próprios sentimentos,
buscam o porque daquela brisa,
o porque de tal sorriso,
o porque de tanta desarmonia.
Poetam não vivem!
Apenas descrevem vidas alheias, sentem
o imperceptível.
Poetas não choram, engolem seco, cristalizam
suas lágrimas, e as transformam em linhas.
Missão árdua, descrever o indescritível,
buscar a essência de sentimento de outrem,
talvez nunca sentido, talvez nunca vivido.
Poetas não envelhecem, petrificam,
imortalizam seus nomes e vivem para sempre,
deixam o que foi sentido,
e em cada leitura, um novo sentimento,
que fortalecem sua imortalidade.
rogerioalcolea@gmail.com
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Que venha a dor e anestesie tal sofrimento !!!!!
Íncola desta cápsula incolora,
Degustando o amargo de gariroba,
Furente pôr Ter que Ter, para ser
Minguando neste invólucro,
Encalistrado pôr estar ali.
Face para baixo, como quem observa
vermes embraseado,
horizonte solidão,
sem visão,
anelídeos na terra batida.
Difícil libertar-se,
embalsamado em plantas
leguminosas papilionáceas.
Contas de A até x,(dzeta)
para virar fagulha de um explosão,
Oferecer o corpo ao leu íntomo,
para que suguem seu sangue.
Quem sabe com tal moléstias a dor seja,
o anestésico para mingúes enraizada.
Tudo lá fora emudece
Meu tempo desvanece.
O silêncio me causa fastio
abandono-me,
ao meu ouvido o sussurrar do rio
que me traz arranhadas memórias
que surgem por atalhos ressuscitando
a infãncia.
Tudo se vai diluindo
Como areia engolida pelo mar
No esquecimento partindo...
O impiedoso tempo se apressou a devorar.
Encho-me de inquietação,
entre o ser e o já não ser
E a noite é para mim conspiração,
na dúvida do chegar o amanhecer.
Sinto tão próximo o longe
aquele que fui e sei não sê-lo jamais
Por hoje?
Me dói por demais.
O céu está silencioso, estrelado
Nele ponho o olhar parado
Que foi feito da minhas ideias?
Algo para sempre mudou
Até o sangue que corre nas veias.
Estenderei uma ponte
Que me leve ao novo dia
Meu sonho será a fonte
Que amparará minha melancolia.
Nesta noite de Outono
na solidão dos astros me abandono.
rosafogo
natalia nuno
Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=205901 © Luso-Poemas
voa o pássaro pra te ver
toda a aldeia tu abraças
passas por ela a correr
vens correndo da nascente
por aqui não vais parar...
trazes grandeza no ventre
que levas direito ao mar...
ponho os olhos na vidraça
e ainda sonho contigo
era moça cheia de graça
amei-te pra meu castigo
olhámos o céu perdidos
nesse reino q' nos pertence
e tantos sonhos paridos...
já a memória me vence.
vais entre pedras e cansaços
contigo vão sonhos d'água
nada te atormenta os passos
salgueiros te olham com mágoa
lembro sempre da promessa
um ao outro prometemos
talvez um de nós se esqueça
se de saudade... padecemos.
deixo-te palavras de ternura
descobri-me a envelhecer
dá-me da tua água tão pura
não me deixes d'amor morrer
Almonda, olho-te embebecida
rio que corres despreocupado
na corrente da minha vida
levo-te de maresia perfumado.
natalia nuno

... calcinha
imenso!
Do chão de pedra compensada imperial.
Viva flor da noite, inerte,
Pálida, Kali disse amém para
A minha estrela no céu de janeiro.
Andei ocupado tocando nuvens
Até a planície mais ao sul.
Hoje, mais um dia cheio de qualquer coisa;
Continuo oprimindo meu tempo,
Embaixo da sombra do ipê,
Acima do pátio púrpura,
E entre eu e eu mesmo.
Não, não havia rio na cidade
Nem na que eu nasci
Nem na que eu vivi
Logo não havia bondade ou pensamento
Nos meus olhos cansados e quase mortos
Que por hoje estão apenas apartados, amém
E aí eu contei:
Não existem segredos entre mim e o mundo
Doente! Ai de mim que com essa moléstia nua,
De noite em noite padeço em tremedeira,
Beijo da fria névoa, que da triste e morta macieira
Flagela meu frágil corpo à sombra da pálida lua!
Mas que anjo é esse? Ó, ser abissal
Traz tu até mim um sofrimento colossal
E errante! Piedade! não sois doente, então
Livre essa gente deste mal, ó maldito vilão!
Queda d'água esvaecendo, minto
Cabeças rolando pelo asfalto seco
De quem, com cabeças vazias tardaram,
A implorar por uma onda contínua
Da supervida insistente, que persiste,
Em prolongadas horas de atividades orgânicas e descontroladas.
Eu vi santos e profetas miraculosos sendo esmagados
Até restar somente uma poça de sangue;
Eu vi o céu tornar-se nublado no exato momento
Em que ergueram as bandeiras.
Tragédia anunciada: no mesmo dia, eu vi
Um raio destroçar um lindo corpo de áiries no meio da rua.
Do centro do espelho eu vi meu corpo travestido de Falso Profeta
E, dois dias depois, me peguei falando como se fosse tudo verdade.
Eu senti o trágico papel da lágrima caindo e vi,
Durante um mui silencioso amanhecer,
Atores que não cansavam de fingir, ano pós ano,
Dia após dia,
Essa mesma repetição infrassenssível-sensorial.
Nas bordas de um papel sulfite, que que há?
Dados em profecia? Loucura? Presunção?
Ou apenas um ou dois ou três ou quatro unidades
De qualquer coisa?
Outras identidades me responderam:
"Sai do mato veiaco", eu, surdo e careca de saber
Respondi, calmo, "joguei com todas as minhas cartas,
Camarada.".
Eu só vou, viu? E só vou voltar, viu? Eu só vou viajar, viu? Eu só vou jogar, viu? Eu já volto, viu?
À glosa, é inevitável dizer: estamos vivos, ao gozo regozijo a minha vontade de gritar e continuar vivendo.
Hoje não, estou cansado
Ou eu desço ou eu subo não tem jeito de sair como dantes
Pontas na rua e o fim do ritmo
Bom nome para um livro.
A lua enveredou para trás do monastério;
Cético como um saci engarrafado,
De olho preso na sola do enquadramento pastel;
E que severa mancha na memória se desagarrou.
Estou perto de me sabotar, isso não está dando certo;
Sonho com poesia todas as noite, porém,
Não me deixam acordar e, tampouco
Lembrar da minha paixão.
Eu estava, estava mesmo, estava apaixonado.
Tudo estava em seu devido lugar, na miríade.
Mas o sonho, de fato, mostrou-se inconclusivo.
Então eu acordei. Mas que importa?
Vaidade, era tudo vaidade
Como uma princesa encantada
Esperando seu príncipe encantado
Voltar da galopada
Austero, empopado,
Com o mormaço atento, me vejo pela rua
Pegando a parca pena à sombra nua,
E que do pecado ao norte, fez-me envenenado
A tratar este céu como um pano bordado
Com o rosto de um vampiro,
Sugando este ar que respiro.
Sua tristeza por certo não é natural.
De fato não é essa sua pujança,
Que não sobrepõe alguma esperança
Sobre a inevitabilidade de se viver no mal!
Então eu percebi que tudo era igual,
E que não havia tempo para erguer-me para a verdade:
Daquele janela tudo aquilo que eu assistia era vaidade...
Há pessoas nessa casa, eu sei!
Pessoas vivas, pessoas mortas,
Sonhando, varrendo, chorando,
Pessoas correndo e passando devagar.
Limpas, sujas, pessoas que nos resumem a todos nós, eu e
Você, nós
Pobres, famintos e dissidentes do futuro.
É, é a mais pura verdade. Há gente nessa casa.
O que há com meu céu?
No meu inferno ele se espalhou, e
eu balancei, e balancei minha
cabeça, e balancei minha cabeça.
Os dias de atuação Eu ouvi meu
inferno Todas as noites e recebi
um suborno de algo grande, eu sou
um inferno, ou eu tive uma
demonstração Eram seus dias
falsos, mas eles foram tocados pelo
frio e pareciam ser os golpes
usados nos dias falsos sob o
suborno em Imadaenya, os dias
falsos. Fui arranhado à noite e
estava sozinho
Mas tinha uma garota loira, olhos azuis
Aonde? Pdm?
Eu acho que ela faz é nutri
É
É que doidera
É a vida
Então estamos de volta à casa
Subindo este pilar
Sem o meu camarada, ele dizia
É, ela nem existe mesmo
Hipnótico potente
Faz inflar o peito
Faz crescer o ego
Faz erguer o braço
Faz bater o carro
Faz abrir a perna
Faz descer a mão
Faz picar o braço
Faz tomar o gole
Faz acordar cedo
Faz matar o véio
Faz descer suave
Faz ficar travado
Faz comer a puta
Faz tomar o remédio
Faz ver papai noel
Faz picar tabaco
Faz rodar no mato
Faz botar o fogo
Faz chutar o prato
Faz cuspir nos outros
Faz cagar no chão
Faz vender a alma
Faz imaginar o eros
Faz virar o outro
Faz dizer o sim
Senhor, sim senhor, sim sim, sim senhor senhor senhor senhor sim sim sim sem problemas senhor sim senhor era sim vaidade senhor, era tudo vaidade
Ah, o Sol está queimando a minha cabeça!
Será que algum dia ele irá deitar-se e gozar de um sono eterno?
É da noite que eu preciso.
Em posições perigosas, em três lances eles conseguem o arremate.
Não acredito que eu caí nessa.
Para de dar voltas. Só quero ir direto ao ponto
Mas faço disso um ponto de virada
Contentar-se com o pouco
E viver à sombra do Louco,
Como num passo de um segundo,
No qual se ergue a alma do Mundo;
Onde piscam por alguns instantes
As incontáveis perdas dos Amantes.
Tolo! Lascivo! conte estrelas à sua própria sorte,
Mova-se, não espere sentado o beijo da Morte,
Haja vista, não tardará vosso Julgamento
Nem a fúria ardente nesse peito escapará desse tormento.
Resolução do tempo, não tardo, entrego, mas, ainda assim
Não adianta, demasiado atarefado e indigno até
De me mostrar. Adiante eu recebo. Para lá,
Eu já não tenho mais
Silêncio.
Ai! chegou a noite, chegou meu Deus, e agora?!
Ali vem vindo a sombra de tudo, e nada
Dela perguntar o que eu penso sobre isso.
Afinal de contas, não era o meu espírito
Tão vaidoso quanto meu coração?
À luz da lua, é temporada de caça.
Sujas ruas cuspidas, oh incautos malfeitos
Que poluem, infames!, o corolário: Idólatras e vaidosos!
Eis o que lhes aguarda:
Meu som e a minha fúria. Perdão,
Isso já foi dito antes. Aconteceu foi que
Eu bebi e violei o chão com pus e sangue.
Ai Senhor, guiai!, guiai a minha mão
E não me deixe errar. O caminho à minha frente
Leva a Ti, Senhor, guiai!
Guiai a minha mão e não me faça
Errar a escrita.
No baricentro ou melhor, na tangente, ou
Sei lá o que, enfim, o exposto do monstro
Saindo do mar
E destruindo o mundo.
Os poucos falando o português não interpretam a vontade:
Ai minha nossa! Que desperdício de tempo foi lê-los em inglês!
Do luso ao africano, todos eles foram deuses
Em matar o tempo, Deus meu, o tempo!
Jesus Homem: meu deus, porquê me abandonastes?!
Jesus Deus: eis aqui o pão do Céu.
Eu vivo estou morrendo pouco a pouco eu,
Me perdendo no limite e então eu
Paro e continuo e não percebo
A linha tênue caminhando, pouco a pouco,
E venho me encontrando.
A verdade: eu sou um homem e é,
Sinto a alma do mundo no encontro do vazio com o pensamento.
De lá não vejo nenhum valor,
Nenhuma memória.
Apenas a transgressão, a morte da ação de Todos.
Acordando nessa torrente colérica de sensações,
O misto do alegre: o vivo e do triste:
Até um oto dia.
Já o é, mas não me escolheram, então eu vou embora.
Vou fumar na casa ao lado.
Pensando bem,
Melhor não. À frente está o anjo do desejo,
Navegante do deserto, cavaleiro de boas almas.
O homem, que esquecido, fê-lo adiante
Pela estrada, até o largo do rio,
Foi deixando pelo caminho um verso de barro
Que é para a gente normal entender,
Rir
E
Compartilhar
Bom, eu não tenho um, tampouco é minha pretensão de encontrar.
A trilha para o Jesus é estreita e traiçoeira,
Faz-me questionar se vale a pena subir, mas já sei:
Na metade eu arrebentei o meu joelho.
Dizem; os enforcados todos eles em dado momento
Parecem dançar: contorcem-se e tentam livrar-se do nó.
"Um espasmo natural, de certo!.", bradou o entendido no assunto,
Ele, que vê o mundo como dizem como é.
Mas, Eu, faço pouco dessa fala e atento "Não é verdade,
O enforcado, ao dançar, quer é fugir dos demônios do inferno,
Que sedentos pela alma, e invisíveis para nós, os lúcidos, agarram suas pernas!". Eu,
Que sou o Poeta, não vejo o mundo tal como o tal esclarecido:
Eu vejo o mundo como Ele é!
O tempo trouxe até a esquina
Uma certa voz dessemelhante,
Das tais fábulas adversas, incontáveis fantasias
Perceba, a estátua mal move,
Mas a sombra cresce todos os dias.
Vaidades:
Considerem o homem, que dá janela vê o mundo.
Considerem o sabor na maresia em seus lábios
Secos, rachados, feridos. O flúor na água
Continua intangível.
Observem o oposto da folha:
Estaria ela riscada? Ou ainda branca?
Ou solta e seca tal qual
Aquela boca que beija?
Observem essa gente que vai passando.
Estariam todos conjugados com a terra?
Ou ainda lúcidos? Talvez, mas ainda
Está cedo para levantar da cama.
Tudo havia sido feito.
O lastimável sorriso se encontra alhures no tempo.
A dança já fora dançada pelo meu pai e avô.
Para hoje, resta-me apenas o dever de cuidá-la
Porém, a vela que acendi está demasiada gasta,
As paredes estão rachadas e desmoronam;
Do chão emerge o rio,
E o rio conduz os corpos ao esquecimento.
E foi embora, como tudo haverá de ir algum dia,
Todavia, perder não constava em meu semblante.
Sentir o perfume da chuva, cai, cai o rochedo
No mar, e o mar, senti esse perfume, semelhantes foram
As voltas e lembretes, não fugai, estava tudo intocado.
Não sinto. Fujo, mas quero novamente
Augusto, um beijo, encontrei um patamar:
Não há o fim, é a lembrança!
Voa, barba branca, até o palácio das areias,
Voltaste com notícias? Não esperava!
Aqui está, novamente, a memória antes esquecida:
Eis as nuvens no céu, eis as estrelas me olhando!
Através de um contato celestial, minha estrela,
Dessemelhança arcaica. Pensei:
Ora, já não está tarde para voltar nisso?
Se eu vivesse no presente
E não no passado,
Talvez eu compreendesse que o meu futuro
Está adiante, aquém de tudo isso.
Eu abro os braços para a Cidade dos Mil Ângulos,
Lugar onde não sou bem-vindo.
Mantenho um Cristo acima dos meus olhos
Para proteger o meu Sonho e
Assegurar que eu me mantenha na mesma estância.
Encontro da natureza com a luz dos homens:
Esta está danada a desmoronar.
Sete povos encontrando
Paz na terra e amor no céu.
Livre salto indecoroso, medalha permanente.
Leite sondado de álcoois indiferentes
Da visão do mar azul.
Bebê-lo-íamos sim, com toda graça e majestade.
Vivê-lo-íamos, sim, mil anos de potestade.
Astrossantos divididos em Alfa-Centauri,
Os cantos acordam em uma quinta-feira
De junho, um anel de prata é irrelevante
Para a boca, ó, vampira de almas!
Dissonando, dissonando, até o fim,
Crescendo-me os poucos amarelos-Sol, no dia
Amanhecido e apaixonado, do lado esquerdo do peito.
Encontram-se quase indiferentes,
Coluna cervical e rocha seca.
Um tetragrama maldesenhado
Ceceia o invento de Jorge de Lima.
Tudo fez parte da criação,
Tão somente os peregrinos foscos e
Espaçamentos vorazes de céu e mar,
Congelando o coração do colibri.
Em meio à rosa de negra face
Tu, ó enfant terrible, me renasce
Num novo tempo, abalroado
Com o cheiro dos deuses dançantes,
Junto à Lua Nova, encobrindo
De negro, à sombra, esse Sol
De um povo mui antigo.
"O navegante atordoado, remando, encontra
"Toscas formas pelo largo da baía celeste.
"Ó pobres funestos, parem de me chamar!"
Não, não era nada. A fonte
Queimou,
O sangue, bela bebida a quem vós
Me oferecestes, travou coagulado
Adjunto ao litoral. Termina por aqui
O fim, de novo, amanhecido.
Ei-los, em busca, miseráveis,
De tudo em todos; intocáveis
Céus, terras e mares.
Perfume das flores pelos ares
Partido e feitos, chorando,
Carregados de mi, tolos, rastejando
De todos, para tudo: intocáveis,
Da terra, em busca, miseráveis!
Navegantes cientes por todos os ares
E cidades voando em insípidos mares,
Partilham em meio ao verme, rastejando,
O triste corpo da criança, chorando.
Dimensão: em posto, então, fora arrancado
Do perto rijo, o sonho, pois, tal atacado
Nas tristes verdes formas inconstantes;
Em lindas verdes formas flamejantes.
Contudo posta a fúria, era então a vaidade
Do peito aberto envolto em pura maldade:
Verdes, nas formas lindas, inconstantes!
Formas, tristes, em verdes flamejantes,
Puro ser! Oh memória querida!
Oh despojo da alma, recanto celeste,
Que vindo e passando, tens pena de mim?
Tens pena de mim, oh, ser adulante?!
quando você quiser me dar um beijo na boca
por favor não me diga nada
sou um astronauta das madrugadas
sob a influência de aquário eu nasci
tenho os mais diferentes conceitos
sei que a terra gira que o vento faz curva
e que as estrelas são psicólogas
dos bêbados e das galinhas
por isso quando você quiser me procurar
me achará dentro de um livro
de rimbaud ou de artes plásticas
ou ainda ouvindo schummann
os meus conceitos as minhas poesias
os meus retratos são fúnebres concertos
de vanguarda e de guarda-chuvas
aliás eu adoro a metafísica de um pé de mamão
sonhos tenho aos milhares de milhões
nas esquinas os meus passos têm o esboço
da via-láctea e a minha poesia dorme de costas
tentando conversar com o futuro
RECÉM-FORMADO EM BOTÂNICA
arrumei cinco folhas era madrugada
na mesa um macarrão fora de moda
agora não posso desistir
os meus óculos passeiam pelo chão
o dia inteiro não foi como uma sinfonia
por ironia não foi como uma de mahler
rasguei a primeira e joguei ao destino
as minhas pupilas declamavam rilke
estava ensaiada toda a obra da minha vida
tudo fantasia do meu retrato que sorria
sem parar gáudios de safo
o pensamento platônico me fazia brincar
com uma borboleta
o tempo não depende das asas de uma borboleta
a segunda tinha um tom meio balzaquiano
rimei em versos dodecassílabos
antes de opugná-la ao lixo
a noite navega como um argonauta apaixonado
o sono toca sua harpa indolentemente
o tempo aterrissa para confidenciar ao crepúsculo
a terceira veio impulsionada pelo concerto de brahms
desta vez o inverno não chegou aos meus ombros
com ela o sincretismo de descartes
sófocles ao piano passa pelo meu subconsciente
estava eu em delírios gregos
a lua começa a bocejar
tudo é sombra e abandono
no meu quarto a vida é insatisfação
de quem nunca viajou por si mesmo
a quarta completa os estágios de mallarmé
não consigo esquecer os versos do sobrinho
neste momento tudo é pausa
o universo é monótono átomos em prosa
o poema flui como galáxias
a madrugada brilha uma vez mais
a quinta está completa
pelos passos prostituídos das outras
o tempo não depende das asas de uma borboleta
COTIDIANO DE UM POETA
acordo às nove e meia da manhã
com os olhos no sol que dormiu
comigo pego um copo com água
olho-me no espelho escovo os dentes
sento-me em uma mesa
como um pão com chocolate frio
aos poucos vou me sentindo no mundo
minuciosamente vou em direção ao quarto
observo a velha máquina de escrever
arrumo algumas folhas e começo a trabalhar
a mesma cor metafísica de sempre
a névoa começa a dançar em meus neurônios
sinto-me como se estivesse com ressaca
tento estralar os dedos como forma de abstração
uma pessoa me telefona está tudo bem
volto para o vazio não sei me convencer
estou perdido nem o noticiário é interessante
a tarde namora meu telhado
estou confuso sai a primeira linha
muito inocente desenho a chuva no campo
a lua para atrás da minha janela
é tão estranho que a noite não me sorria
ouço prelúdios de brisas
aprendo a conviver com a verdade já é tarde
minha cama é o caminho da eternidade
amanhã quem sabe
eu me ouça menos
e a poesia fale
VIOLETAS DANÇAM NO PLAYGROUND
sete e meia da manhã
um menino busca o pão
a família o espera
oito e vinte e cinco
um carro o atropela
doze e quinze
a família fica sabendo
dezesseis e trinta e sete
o seu corpo é sepultado
sete e meia da manhã
do dia seguinte
o pão aumenta
uma família diminui
A PENÚLTIMA CASA
1. eu não lerei o último
poema meu
talvez seja anacrônico
ou até mesmo contrabandista
2. terá por certo a perfeita alusão
de mim
sem me desvendar
3. cicatrizes no peito
olhos bem espantados
2,20 m de curiosidade
4. suave como borboletas
no cio
metade eterno por todo tempo
metade orgasmo por insatisfeito
ETERNIDADE MÍNIMA
estou cego
e a coleção completa dos filmes
de lars von trier ainda não assisti
o gato que antes passeava pela minha
imaginação agora só dorme no tapete
entre todos estes combalidos anos
não encontrei o lado b da vida
que consiga me causar espantos
ou a mulher de beijos estonteantes
que me faça negar meus pedros
estou cego
e a felicidade é só mais um lúdico cartaz
os fantasmas que nunca ousei encarar
riem das minhas fotos de casamento
amigos me culpam pelo crasso silêncio
mesmo a guerra não declarada
do meu comportamento antissocial
é capaz de compreender
os carinhos extremos dos amantes
da ponte neuf
estou cego
e cada vez mais os sorrisos recuam
os amores não mais se reconhecem
o absurdo sepulta em mim seu engano
na incerteza cambaleante de continuar
A DOMÉSTICA CASA DAS INVENÇÕES PARTICULARES
o tempo elege sempre uma vida para levar
mas aprendi que não existe certeza
antes corria dos trilhos incendiados
para compreender a perda que imaginamos
nem todo dia é para comemorarmos
existe uma parada ela estava lá silenciosa
há uma música que sempre ouço pela manhã
faça chuva ou quando lembro de meu pai
estão disfarçados os amantes que mandam flores
sem meus valores não julgo ninguém
meu filho acha engraçado eu dormir de pijama
a vida é uma série de confusos movimentos
escolhi o vazio dos lugares sem nomes
para mutilar lembranças que nunca existiram
RODOPIO
não esperarei mais
que teus beijos encontrem
meus sapatos trocados
nunca ninguém me disse
que eu deveria correr tanto
amar foi para mim
uma estranha maneira
de se comparar amanhãs
sempre segui na contramão
do que eu sentia sem saber
não sei te amar mais
do que uma imagem
desfocada no espelho
OS PÁSSAROS
a cada dia extinto uma dívida
imagens que rangem no espelho
ouso sentir mais que quase tudo
talvez bispo do rosário tivesse olhos
para os infalíveis caos que me perseguem
às vezes desamarro
meus girassóis
cada foda que dermos uma serpente
tigres famintos rodeiam minha solidão
enquanto escuto o sussurrar das coxas
teus olhos parecem se perder em mim
nem mesmo os poemas de hilda hilst possuem
a báquica carne
de tuas ancas
possuídas
MÃOS
as mãos sobre o papel
como se fora um barco
o papel
mas na verdade um branco
que dói
as mãos sobre o papel
como se esperassem um sonho
nascer
mas na verdade é um sino
que nasce
as mãos sobre o papel
como que derrotadas
por hoje
mas na verdade a derrota
não houve
as mãos sobre o papel
como se não tivessem nada
a fazer a vida inteira
mas na verdade o tempo
não importa
ESTUÁRIO
poesia
uma insatisfação
pausa que pulsa por detrás
do mundo lâmina de alta precisão
contraventora de palavras
fuga da minha imaginação
destino que me alucina
rupestre inscrição
incêndio controlado
em minhas mãos
HABITAÇÕES
I)
vague entre estrelas e sóis imaturos pregue a doutrina do beijo
compreenda a dor enamorando-se beba o belo e o feio que são
eternos vista o sonho de realidade ressuscite retratos amarelecidos
com o mesmo ontem solitário experimente novidades sem naufragar
em mares de nunca cruze a saudade velejada nos ombros
II)
fale de ventos e tempestades íntimas dance com ternura a valsa dos
peixes deposite o azul dos céus nos olhos mudos toque em notas nuas
as pausas da solidão cicatrize feridas com um leve silêncio de luas
faça versos em sereno utópico à procura do momento exato anuncie
em prosa amiga a grandeza das trevas brancas
III)
cante para as noites as suítes úmidas do vento busque no horizonte
um sonho de mãos descalças trace o ridículo em carinhos incomuns
acene em gestos simples sem reduzir rostos de papel ultrapasse
mundos vazios sem flagelos de um soprar castanho escute histórias
de atalhos com urgência de nuvens
IV)
suavize as madrugadas num deleite de estrelas trilhe pelos muros do
tempo sem um único sinal de beijo póstumo envolva dores de mães
em dédalos de linho olhe para os homens como palavras rudes resista
calado às dores das cicatrizes amanheça em brumas com sonhos de
distâncias viva à sombra da foice sem massa de cadáveres
V)
pinte de aurora a tela do infinito pacifique cóleras com doações
de simplicidade respire corpos perfeitos sem cansaço de bandeiras
tenha mãos pacíficas e seja poeta até no desalento sorria sem perder
a identidade sonhe transparências sem nitidez de suspiros lute contra
os medos são apenas pensamentos
VI)
reviva a rosa noturna sem cotidianos de sangue dispa destinos
incertos na nua profundeza dos sonhos decifre províncias sem reter
liberdades pese pecados enrolando confissões sopre o perfume
das fêmeas acariciando orgasmos tenha segredos sem se tornar
prisioneiro conforme o pranto com travesseiros de nunca
VII)
abrace o covarde para que ele saiba o que é amar beije a face de
modo elétrico saúde cada momento com exatidão beltrana ore com
olhos sinceros para os de pés cansados procure na dúvida o futuro
embaçado absorva fábulas sem desperdiçar uma borboleta sequer
reduza incertezas em cemitério de comas
VIII)
garanta aos humildes um necessário lugar alegre a mesmice em
infernos de flores roucas dissolva o hálito da ruína percebendo o
silêncio mármore dos girassóis retire do lodo as pessoas puras
procurando a essência dos beijos conviva lúcido em um mundo de
hashtags whatsapps & selfies torne público o que de público não há
IX)
pregue um mundo de perdões de franciscos protestando contra as
mazelas seculares fuja dos intolerantes dos preconceituosos dos
moderadores e se arrependa das amantes que nunca amou acorde
e olhe para o céu para o sol e o mar para as estrelas como símbolos
contínuos do nosso existir sede vós a essência dos mundos
SERENDIPIDADE
quase observo
uma velhinha passear pela rua
do sol com os calcanhares duros
pelas tantas do meio-dia
quase cai e o vento passa
de longe apreensivo
pergunto se não quer ajuda
abre a sombrinha e me dá a mão
lembro do meu avô que morreu
em uma queda de um muro
ou melhor meses depois
de banhar por horas na chuva
abruptamente ela para me olha
até aqui está bom vá com deus
o caminhar impreciso e frágil
flutuava pelos paralelepípedos
como guiados por uma razão maior
LEITO QUATRO
se vai mais um dia entre muitos que pensei viver melhor olhares como
se esperança fosse um entulho de lamentações acelera meus pulmões
ginsberg tece comentários entre a luva indesejada e o prato de comida
que chega como hospitalidade aquele antro de desespero e chagas
destila em meu caos inconformidades com o divino que insiste em me
reter sem qualquer motivo na verdade queria estar em um aeroplano
sobrevoando as praias de humberto de campos ou conversando com
uns amigos na porta do bar do Adalberto
às vezes yeats faz me lembrar da samsara que é um copo de leite gelado
após a bebedeira flanando pela avenida melo e povoas agarrado nas
arrepiadas ancas de uma morena observo o marasmo da calcinha
da mulher que ri ao lado naquele bar entre estrelas descontinuadas
todos os meus provérbios de existir me negam tropeço mais uma vez
na mesmice de acreditar em corações complacentes hainoã quando
me chama de pai caem meus hemisférios sobre a baía de são marcos
há felicidade entre o roer de unhas e a dor da cutícula
na rua do giz minha vertebral luz minha jerusalém estoica meu
gozo sobre o colo de prostitutas noites que como beatnik caminhava
desolado em busca de algo mais que pudesse estancar as interferências
prejudiciais dos versos inacessíveis anti-herói soprava a dualidade
dos anos oitenta/noventa com barba rala & jaqueta desbotada
transpirando revoluta paixão um ser barroco à procura dos
espelhos perdidos com a obscura missão de continuar em precipícios
acreditando que há um verão orgástico no caminho do poeta
a verdade da vida era para ser escrita em forma de poesia pouparia
do desgaste secular de acreditar em são tomás de aquino o amor
só vale a pena se não exigir tíquetes de estacionamento bandeira
da mastercard crediário nas lojas de departamento da magalhães
de almeida agora recluso entre gotas interestelares seringas peidos
fortuitos e azedos o deserto de barreirinhas é o arpoador das minhas
abstrações bundinhas tesas adornadas de branco tangenciam minha
libido meu cacete endurece entre uma e outra troca de antibióticos
o céu mais azul que já havia visto se instala em meu coração do olho
d’água à ponta do farol iemanjá me guia com suas ondas caudalosas
o espírito de meu avô parece dançar entre as pedras de arrebentação
da ponta da areia batuques inebriantes cadenciam aquela noite
enquanto os trinta e nove e meio graus me jogam de um lado para
outro iniciado em rotinas e fast-foods inconformismos parecem me
tragar para o boqueirão se pudesse acenderia velas para os ancestrais
bashô está comigo é o que me deixa calmo pelo menos dessa vez
reviro-me para tentar apaziguar o cansaço do trópico de capricórnio
que há em minhas costas as mulheres da antiga sunset rasgam meus
olhos pela madrugada naquele equinócio de desesperança onde líamos
camus pessoa gullar chopes ecoavam no saloon pronto a explodir a
nudez de uma amistosa moça nem todos se sentiam na primeira fila
do carnegie hall o cobertor florido aquece meus ossos embargados
por um dia quase todo de febre e delírios ao lado da cama minha
mulher ronca baixinho como um poema arisco de alice ruiz
rabolú encontrou as engrenagens simbióticas de jesus maomé
quetzacoaltl pelas ruas desfilou em seu fleetmaster conversível muito
embora a discoteca fosse o religare preterido chove sobre os telhados
do turu e não sinto nada estou vazio como um biscoito ensopado
de café frio aproveito para conferir intempéries não aguento mais
ficar imóvel sobre a esquálida cama apesar de muitos livros ao meu
redor nenhum tem a atmosfera lúdica de peshkov se eu fosse líquido
precipitaria sobre os túmulos carcomidos do cemitério do gavião
queria caminhar pela rua portugal destilar imoralidades com sotero
vital ou ouvir o guriatã cantar que a coroa está no maracanã meu
alento são alguns metros quadrados e a memória profícua e desolada
a contemplar a kalevala entre uvas tangerinas e sorrisos de minha
mãe a conversar há uma catarse de choros e ainda não é sexta-feira
nos corações das pessoas nem mesmo o extremismo fático dos grupos
muçulmanos a cortar gargantas pelo iêmen calará os preciosos traços
dos redatores da charlie hebdo
meus cabelos parecem a décima quinta de shostakovich a antissepsia é
tão complexa quanto as linhas de nazca mamãe me dá uma ajudazinha
e me enche de sândalo barato ouço no rádio que o país não é mais o
mesmo crise à vista salários minguados violência se instalando dentro
das casas a oligarquia baixando a guarda no maranhão o mundo é
uma sobra de falências múltiplas enquanto uma criança vietnamita
chora a perda de seu cão assado em um mercado público a standard
& poor’s rebaixa a nota de investimentos no brasil
RELIGARE
o tempo todo guardou segredo
na noite de núpcias baixou a luz
pediu que eu viesse com calma
abriu o zíper virou-se de costas
beijei-lhe o pescoço as nádegas
a virei de frente desci a calcinha
suguei os seios a batata da perna
quando estava lá pediu que eu
parasse que seguiria ao closet
fechou a porta apagou as luzes
de repente surgiu todinha nua
maluquice da minha mulher
tatuar um buda em sua xoxota
MÍNIMO MÁQUINA
uma pessoa que escreve poesia
não é nenhum pouco diferente
de uma costureira de franzidos
de um instalador de antenas
não difere em nada
de um ostreiro de um pirata
que rouba barcos fundeados
na baía de são marcos
não é nada distante
de copeiros de fast-foods
de acionistas de fundos
de investimentos
pelo contrário
um sujeito como os outros
que desliza seus olhos
pelas cidades de si mesmo
uma pessoa que escreve poesia
de maneira alguma é diferente
a não ser por levar humanidades
dentro do seu hábito de caminhar
TERMOS E CONDIÇÕES
A velhice é a crítica da mocidade
José de Ribamar Brito
sempre quis o futuro todos querem o futuro
mesmo com suas ameaças seus mísseis e guerras
açoitado pela rotina não desnorteio o carinho
por quem um dia foi o meu amor
nunca seremos ideais ou seja lá o que for
nem admitiremos que a morte nos espreita
pelos corredores e filas ou no orgasmo
com sua manta pungente cheia de significados
vivo como se o respirar fosse sempre festa
não minto que já passei por momentos difíceis
me preservo ouço a chuva e preparo o espírito
ninguém nunca duvidará do futuro
nem as tais tecnologias serão capazes
de automatizar o que de humano já fomos
tudo se alinha com o que é certo
todos os contratempos são antíteses
ou então deus ainda insiste em estrelas
ninguém é muito diferente das ruas à noite
não existe futuro o que existe é agonia
lamentável que os sinais da existência
sejam reticentes ou maneiras de otimismo
já deixei você antes agora só quero voar
vou sair
procurar alguém para escolher minhas árvores
ouvir boa música ou mesmo sentar em uma pracinha
de um lugar sem ninguém por perto
pessoas passarão por mim
verão meu carimbado rosto
meu livro de cabeceira
a eternidade há muito deixou de estar
em meu cabide de roupas prediletas
sempre se constrói algo quando se tenta acreditar
vivências me fazem lembrar que pouco mudei
não havia cordas pesadas em meu pescoço
beiramos a estupidez ao pensar em inovações
tudo é complexo para parecer que estamos bem
não ria de mim eu também já me apaixonei
talvez reescreva meu destino na tua porta
ou quem sabe me desespere em fugir de ti
PASTO
quando fernando pessoa
ensaiava o livro do desassossego
minha avó debulhava juçara
nos brejos do interior
quando manuel bandeira
modernizava as cinzas das horas
meu avô galopava cavalos
pelas manhãs infinitas
quando jorge luis borges
ilustrava a história universal da infâmia
meu pai ainda caminhava
dentro da voz do meu avô
quando carlos drummond de andrade
apresentava a rosa do povo
o mundo se diluía entre guerras
meu pai carregava água nos ombros
quando pablo neruda
apaixonava com cem sonetos de amor
minha mãe descascava coco babaçu
para ajudar a renda da família
quando bandeira tribuzi
se mostrava em pele e osso
meus pais se encontravam
nos clubes de dança de são luís
quando cecília meireles
despetalava flor de poemas
eu nascia na benedito leite
com muita gritaria
quando luís augusto cassas
concatenava rosebud
eu nos primeiros versos
tomava um espanto
quando hagamenon de jesus
emplacava the problem
minha poesia começava a trilhar
entre as transições do mundo
quando ricardo leão
palpitava em primeira lição de física
meu combustível se expandia
em anticópias de paixão
quando antonio aílton
fulgurava com cerzir
há tempos já acreditava
na desordem das coisas
poesia essa ponte de significados
que trisca os olhos necessários
como se o tempo fosse incrustado
no penso parâmetro do porvir
A ESPOSA
i)
foi necessário perder a costela
para entender toda sua ontologia
mesmo no desfiladeiro não desisti
aprontei as malas retornei ao círculo
nesta turbulência pude entender
os romances de virginia woolf
ii)
apesar dos filhos da casa mobiliada
só restou o que não me desgastava
esqueci de tudo voltei para casa
abrigo de minha mãe um paraíso
não era para ser este destino
vivíamos em rota estrangeira
iii)
estranho ter que cruzar
com a alma em precipício
desconstruir incertezas
apostar o que não podia
desprender das perdas
estender cálidas feridas
iv)
apaguei os rastros
o caos se equilibrou
fui criando apego
pela paz interior
tudo se cadenciou
o amor revigorado
v)
a vida é o entrelaçar
de aparentes dúvidas
não crio mais expectativas
só com o que me satisfaz
meus olhos agora brincam
como sempre quis
INTERVALOS BURLESCOS
1
ele brinca atirando pedras no rio
enquanto o pai se distrai
com uma mossberg 500
caçando patos selvagens
2
a irmã sem o que fazer
ouve imagine dragons
entre gibis baratos
pede proteção a belzebu
3
a mãe com a boca
entupida de cannabis
descarta bitucas
no vaso sanitário
4
o namorado da irmã
bate na janela do quarto
entre uma transa e outra
faz boquetes inesquecíveis
5
o pai chega com o filho
coloca a arma sobre a mesa
bate na porta do quarto
da filha sem dizer nada
6
o namorado não espera
pula do terceiro andar
a mãe morre
de rir com a cena
CISÃO AMÉM!
aos 50 anos de Antonio Aílton
1.
era uma época de beleza de ignorância lamber os seios de uma mulher um feito merecedor de uma chuva de meteoros quando tocava meu pênis detrás daquele jardim luzes inebriantes solapavam os olhos vermelhos dela que se dizia relâmpago entre meus colhões a verdade é que todo aquele tempo vivíamos uma sinfonia de medos não seguíamos mais os beatles e o que se queria ser era só vanguarda ou rebeldia para agradar um bando de gente com suas interrogações doenças bombardeios ônibus espaciais se desintegrando na hora da sessão da tarde mas sobrevivemos a todos os meandros circunscritos nas calças jeans de nossos pais
2.
há muito estive cansado meus cachorros se jogaram de dentro dos meus olhos e escaparam da comida ruim dos fast-foods baratos é certo e não existe coisa mais desagradável que um punhado de caos no final de uma sexta-feira naquela cidade naqueles degraus da matriz de são josé de ribamar vi os olhos de deus caminhando nos cabelos crespos de uma senhora que vendia potes de barro meus pecados talvez não durem mais que o olhar do bêbado dormindo na porta daquela casa em ruínas a fila é grande para os que desistem de amar durante muito tempo desisti de me contentar com um pouco de sexo vinho e discos de pink floyd
3.
às vezes necessito que teus olhos larguem meus destinos nunca disse que amanhãs estão escritos na parede do quarto na incerteza encontraremos nosso refúgio necessário há um calendário de perdas no desnorteado sentimento tudo conspira e sopra a nosso favor mesmo desiludido encontro suas pegadas na minha sala de estar é a hora que me inflamo e beijo tuas mãos como reverência aquela fogueira não alcança mais minhas dúvidas divide meus vazios as coisas mudaram não são mais como sempre imaginei quando menino sentando em um banco de praça na avenida jerônimo de albuquerque conferia carros e admirava estrelas
4.
hoje passam por um menino na calçada profissionais liberais advogados pessoas comuns casais de namorados desviam do inoperante destino mudam os olhares talvez só o apreciem o sol a chuva ou um amontoado de latinhas descartadas os sentidos de todos estão vidrados mesmo é com o aumento dos seios da filhinha do papai são silêncios que nos perseguem que quebram as asas dos anjos se eu permitir você com suas conchas estarei contribuindo para o eterno marasmo que nos persegue uma esquina é sempre um bom lugar para chorar calma que deus até hoje não desabrigou nenhum filho seu por isso esperemos
5.
em horizontal perspectiva se esconde entre a neblina sugando a metafísica sem estralos da porta que o conduz ao precipício o faro de satã faz habitat na planície da noite é mais belo que o compulsivo sexo da amante amo a noite não me ouve às vezes ninguém me espera há uma chance para abrir a porta me sinto no precipício dentro dos meus olhos a vida basta as pessoas nunca se escutam espio o exercício de cada dia na espiral das escolhas todas as manhãs não tomo café meu vizinho ouve baixinho as notícias dos jornais nem mesmo chuva é ritual nesta existência talvez felicidade seja mais que todas essas coisas juntas
6.
ela desce as escadas do corredor risca as paredes sem motivo inventa caos é estupidez o retrato do que poderia ser estepe diário filosofia esperança e minha debandada ela que retrai sorrisos é luta íntima o olhar nervoso as estrelas o piano e as cordas vocais as rinhas os reinados a bússola a poesia e tudo que inverna e supera a maresia a santidade e a descrença é iemanjá a pausa a alegria dos casais por ela que tudo se acalma tudo se destrói com um gesto põe tudo a ganhar ou a perder é o destino a que todos esperam é o amor é a que se adianta porque nenhum inverno a espera nem a jose cuervo ou o cabaço da mocinha tremendo
7.
naquele tempo tudo era muito impreciso nem imaginávamos como seria nossa atualidade quantos filhos só intentávamos em comer um monte de besteiras já passaram tantas tempestades meio século e ainda corremos para a felicidade a vida anda chata demais nem mesmo jogar futebol ou empinar papagaios nos distraem a vida é um acúmulo de cabelos brancos aos poucos vamos brilhando cada vez menos rugas até nas fotos de infância desesperança e angústia nossos companheiros do andar de cima e saber que um dia não mais estaremos por aqui o mal existe deuses e raparigas lindas sorrindo no sofá de um clube de adultos
bioquemesito@gmail.com
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer
Que dois mais dois são cinco.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer
Que a orelha furou o brinco.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer:
Que a floresta queimou o fogo,
Que as águas do mar são um desafogo,
Que as águas do mar correm para os rios,
Que os trabalhadores são parasitas vadios,
Que o escravo foi o culpado pela escravidão,
Que a mulher estuprada foi a culpada pela violação.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer:
Que brasileiro é pior do que barata
Pode tomar banho no esgoto,
Porque esse escroto,
é um nó que não desata.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer:
Que a calúnia e a difamação são liberdade de expressão,
Que a covid-19 foi só uma gripezinha, não foi nada não,
Que a ditadura militar jamais existiu
E que pagar os juros fortalece o Brasil.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer:
Que a arma de fogo pariu uma vida,
Que a predadora pela presa foi comida,
Que os mais ricos estão iguais a pinto no ovo,
Que as forças armadas defendem os interesses do povo,
Que só passa fome quem não quer comer,
Que o ovo beliscou a galinha até ela morrer.
As criaturas de outro mundo daqui a pouco vão dizer:
Que o infinito é aquilo que se mede,
Que a terra é plana e o plano fede,
Que manipulação não existe, nunca existiu
E que o povo é quem manda no Brasil.
—Ranjan Lekhy
SAJ, Bahia, Brasil
Domingo, 15 de junho de 2025
Era uma vez um jovem professor extremamente educado que embarcou em uma viagem marítima ao redor do mundo. Ele foi o Decano de Ciências Naturais em uma universidade renomada. Antes e depois do seu nome vinha uma longa lista de títulos e diplomas. A sociedade o considerava um grande sábio, um verdadeiro depósito vivo de conhecimento. No entanto, ele quase não tinha experiência real da vida.
Na cabine ao lado da dele viajava um velho. Durante a apresentação, descobriu-se que ele era um pescador que passara a vida a pescar no mar. Agora velho e aposentado, decidira fazer essa viagem marítima para aproveitar a vida. Por causa da pobreza, desde criança fora obrigado a trabalhar na pesca e, por isso, nunca pudera estudar nem aprender a ler. Mas décadas de trabalho lhe tinham dado um conhecimento do mar, do tempo e da própria vida que nenhum livro poderia oferecer. Sua pele estava marcada e endurecida pelo sol forte e pelo vento salgado do oceano; as linhas profundas e ásperas das mãos calejadas contavam histórias de trabalho duro, e os olhos úmidos cantavam em silêncio as incontáveis ondas de lembranças do mar.
Todas as tardes, pouco antes do pôr do sol, o professor subia ao convés, sentava-se numa confortável cadeira de descanso e se deliciava com o espetáculo do sol que se afundava no horizonte. O sol vermelho desaparecia lentamente no céu azul. Embora as cores do céu e do mar mudassem a cada instante por causa dos raios solares, no exato momento do pôr do sol todo o horizonte e a terra se tornavam dourados. O velho pescador também aparecia e, em silêncio, sentava-se na cadeira ao lado do professor.
O professor exibia seu conhecimento. Falava dezesseis línguas e se gabava de que não havia poliglota como ele. O pescador ouvia encantado aquelas conversas sobre céu e terra. Ouvir o professor falar clara e fluentemente em sua própria língua materna deixava o pescador de boca aberta. O pobre velho não sabia nada além de pescar e da sua língua da mãe. Parecia-lhe estar ouvindo algum mistério que só pessoas instruídas poderiam compreender.
Depois de algumas horas de conversa, quando o velho pescador se levantava da cadeira para voltar à sua cabine, o jovem professor lhe perguntou:
— Pescador, você já ouviu falar em geologia?
O velho hesitou um pouco e respondeu:
— O que é isso, senhor?
O professor deu um leve sorriso e disse:
— É a ciência da Terra — essa ciência (chamada de “-logia”), explica como o planeta foi formado, como surgiram o solo, as pedras, as rochas, as montanhas, os rios e os oceanos.
O velho pescador baixou a cabeça, envergonhado, e respondeu:
— Não, senhor. Nunca estudei nada. Nem a porta de uma escola eu vi.
O professor respirou fundo e disse, com gravidade:
— Velho, você vive sobre esta Terra e não conhece geologia. Desperdiçou um quarto da sua vida.
O rosto do pescador desabou. Ele se afastou em silêncio. Seu coração ficou pesado — “Será que realmente desperdicei um quarto da minha vida? Se um sábio tão grande diz isso, deve estar certo.”
No dia seguinte, aconteceu exatamente o mesmo: conversa, exibição de saber científico e, de novo, uma pergunta do jovem professor:
— Pescador, você já estudou oceanologia?
— Oceanologia? — o pescador perguntou, tímido e espantado. — Não, senhor, nunca nem ouvi esse nome.
O professor balançou a cabeça com ar de superioridade e disse:
— Você passou a vida inteira no mar e não conhece oceanologia! Oceanologia é a ciência do oceano. Pescador, você desperdiçou metade da sua vida.
O velho ficou ainda mais triste. “Metade da vida?”, murmurou. “Será que realmente não aprendi nada que valha a pena?”
No dia seguinte, a mesma cena se repetiu. O professor perguntou outra vez:
— Velho, pelo menos você deve conhecer meteorologia, não é?
Mais uma vez o pescador se sentiu envergonhado e respondeu:
— Não, senhor. Como eu já disse, sou analfabeto, não sei de nada.
O professor ficou profundamente decepcionado e disse, com pesar:
— Nem geologia, nem oceanologia, nem meteorologia. Você enfrenta tudo isso todos os dias e não sabe nada a respeito. Me diga, como conseguiu pescar no mar sem conhecer a ciência do tempo? Velho, você desperdiçou três quartos da sua vida.
Agora a cabeça do pescador pendeu ainda mais, cheia de dor e vergonha. Com o coração pesado, voltou para a cabine. Deitado de costas na cama, olhando para o teto, pensava: “Três quartos da vida jogados fora! O que foi que eu fiz até hoje? Pescar, comer, dormir, criar filhos. Só isso. Nem uma gota de conhecimento. O professor tem toda razão.”
Naquela noite ele não conseguiu dormir direito. As palavras do professor rodaram a noite inteira em sua cabeça. Sua própria vida começou a lhe parecer pequena e sem sentido. Pensando assim, acabou adormecendo sem perceber.
Na manhã seguinte, de repente, uma tempestade terrível explodiu sobre o oceano. O céu se encheu de nuvens negras e densas. As ondas ficaram incontroláveis e começaram a rugir como elefantes. O navio de madeira balançava violentamente. Antes que o capitão pudesse recolher as velas, com um estrondo assustador, o navio bateu numa rocha.
O pânico se espalhou por toda parte. Na confusão, muitos passageiros caíram e se feriram; gritos enchiam o ar. O capitão gritou o aviso:
— O navio está afundando! Salvem-se quem puder!
Ao ouvir o tumulto e sentir o impacto, o professor correu da cabine em direção ao convés. No caminho, encontrou o velho pescador vindo na sua direção. O rosto do velho estava sério. Com voz desesperada, perguntou:
— Professor! O senhor sabe Seprotelogia ?
O professor, apavorado, respondeu:
— O que é isso? Nunca ouvi nem li nada sobre Seprotelogia.
Então o velho pescador disse, direto e simples:
— O senhor, sabe como se proteger do afogamento? O navio está afundando.
Ao ouvir isso, o professor, assustado e sem esperança, respondeu:
— Eu li livros sobre técnicas de natação, mas nadar eu não sei.
O coração do pescador se encheu de compaixão. Mesmo assim, sem poder fazer mais, disse com voz grave:
— Professor, o senhor desperdiçou a vida inteira. O navio está afundando. Quem sabe nadar chega a alguma praia e salva a vida. Quem não sabe desaparece no fundo deste oceano imenso. Me dói muito que o senhor tenha aprendido tudo, menos a nadar. Agora o que fazer? Mesmo assim, mexa braços e pernas, tente salvar a vida!
Dito isso, o velho pescador deixou o sábio professor ali parado e, com um grande “plash!”, pulou no mar. Cortando as ondas gigantes, seguiu em frente — em direção à vida. Afinal, era o que ele fazia todos os dias havia décadas: enquanto pescava, rasgava as ondas mortais do oceano dia após dia.
O professor ficou ali, plantado — atônito, envergonhado e aterrorizado. Aos poucos o navio afundava. De tanto medo, nem tentou nadar. Quando começou a submergir, finalmente percebeu que o mais importante na vida não era aprender ciências para circo intelectual — era aprender a ciência de nadar, a ciência de sobreviver.
(Fim)
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