Procurar silencio por favor
93 resultadosTodas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
(...)
O que é bom para o lixo é bom para a poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
— como um homem jogado fora
Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.
2.
Muito coisa se poderia fazer em favor da poesia:
a — Esfregar pedras na paisagem.
b — Perder a inteligência das coisas para vê-las.
(Colhida em Rimbaud)
c — Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d — Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em
Carlitos.
e — Perguntar distraído: — O que há de você na
água?
f — Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas
de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as
crianças e as putas do jardim o entendiam.
g — Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos,
terens de rua e de música, cisco de olho, moscas
de pensão...
h — Aprender a capinar com enxada cega.
i — Nos dias de lazer, compor um muro podre para
caramujos
j — Deixar os substantivos passarem anos no esterco,
deitados de barriga, até que eles possam carrear
para o poema um gosto de chão - como cabelos
desfeitos no chão — ou como o bule de Braque
— áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro
— um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de
folhas.
l — Jogar pedrinhas nim moscas...
(...)
Imagem - 00780001
Publicado no livro Matéria de Poesia (1974).
In: BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Introd. Berta Waldman. Il. Poty. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 199
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz! --- Longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei-de enfim possuir: porém segredo!
Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Quem nem quero que o saiba o pai dos numes:
Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque, se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.
A festa acaba impreterivelmente às 4 da matina,
mas se houver vaia
continuará até as 5.
Wilza Carla de ovos de ouro distribui pintos de prata
à distinta comissão julgadora
indecisa entre Tason, o ídolo de Marfim
e Eleonora de Aquitânia à la tour abolie.
Helena entra a cavalo.
Pode não, pode não, cavalo não é paetê.
Prego! pregou na hora e vez de desfilar.
Minuto de silêncio corta o samba
em duas fatias doloridas de nunca mais.
Naval navega onde que não vejo?
70 PMs, 40 detetives especializados
engrossam o Golden Room do Copa.
Ford e Veruschka, o Poder e a Glória,
dividem entre si o terceiro mundo,
mas resta sempre um quarto, um quinto, um
solivagante Eu Sozinho a carregar
todo o peso da graça antiga na Avenida.
Boneco gigante prende o passarinho na gaiola,
embaixo o letreiro: SOL E ALEGRIA.
Salgueiro ao sol
abafa no atabaque e na harmonia.
A gata de vison arranha a bela
acordada nos bosques de Portela.
Dante já não escreve: assiste
à divina comédia de Bornay.
Machado de Assis segue no encalço
de Capitu metida num enredo
mano a mano com Gabriela amor-amado.
Turistas fantasiados de
turista
em vão tentam galgar o olimpo das bancadas.
Pau comeu.
400 músicas gravadas,
6 ou 7 cantadas,
52 mortos em desastre,
17 homicídios,
suicídios 5,
2 fetos,
355 menores apreendidos,
400 garis a postos
para varrer o lixo da alegria.
É cedo, espera um pouco; Chave de Ouro,
festa depois da festa, enfrenta o gás
e o cassetete.
Júri soberano,
os grandes derrotados te saúdam.
Júri safado,
premiou fantasia do baile de 1920.
Pobre júri de escolas,
20 horas, 20 anos indormidos.
A noite cobre a noite do desfile
interminável qual fio de navalha
e deixa cair a peteca.
Que é que eu vou, que é que eu vou dizer em casa?
Levanta a cabeça,
já não precisas dizer nada.
A moça no pula-pula do salão
perdeu o umbigo.
Quem encontrar favor telefonar,
será gratificado.
Bem disse Nana Caymmi: Carnaval
me dá falta de ar.
E resta um bafo da onça na calçada
junto a um confete roxo e um pareô
sem corpo, nu e só, ô ô ô ô.
23/02/1969
II — CARNAVAL 1970
Quatrocentas mil pessoas fogem do Rio
duzentas mil pessoas correm para o Rio
inclusive travestis, que um vale por dois.
A festa assusta e atrai, a festa é festa
ou um raio caindo na cidade?
Que peste passou no ar e foi matando
formas simples de vida costumeira?
A cidade morreu nos escritórios,
nas indústrias, nas lojas. Bairros inteiros
petrificados em mutismo. Janelas
trancadas em protesto ou submissão.
A cidade explode nos clubes
cantansambando
sambatucando
vociferapulando.
Estoura no asfalto em flores furta-cores girandólias
entre florestas metálicas batendo palmas e vaiando
entre postes fantasiados e vinte mil policiais.
Explode meu Rio e sobe,
até a Lua vai a nave da rua
e sambaluando exala em quatro noitidias
queixumes recalcados o ano inteiro.
A decoração desta cidade
eram mares, montanhas e palmeiras
convivendo com gente.
Acharam pouco. Há muitos anos
acrescentam-se bonecos de plástico, sarrafos
em fila processional sobre as cabeças,
brincando no lugar dos que não brincam
ou mandando brincar, ordem turística.
E meu Rio bordado de palhaço
brincou na pauta, brincou fora da pauta.
Brincar é seu destino, ainda quando
há desrazões de ser feliz,
ou por isso mesmo, quem entende?
(Quem quiser que sofra em meu lugar.)
E repetiu os gestos, renovando-os
um após outro, como se este fosse
o carnaval primeiro sobre a Terra
ou o último carnaval, adeus adeus.
E foram todos
ao primo baile
do Municipal
e os ouropéis
das fantasias
monumentais
ninguém sonhara
tão divinais
e as escolas
de samba autêntico
(menos ou mais)
nunca estiveram,
caros ouvintes,
tão geniais.
Meu Deus, acode,
este samba é demais.
Na tribuna computadores críticos
analistas, objetivos: “Não foi bem assim.
A bateria deixou a desejar.
Aquele prêmio? Plágio de plágio
de 58 (veja nos arquivos).
Faltou isso & aquilo, faltou garra,
faltou carnaval ao carnaval”.
Ah, deixa falar, deixa pra lá.
Deixa o cavo coveiro resmungar
que há longo tempo o grande Pan morreu.
No bafo da festa da onça
na vibração da pluma do cacique
no rebolado de Dodô Crioulo
no treme-treme de bloco frevo rancho
na bandeira branca da paz e mais amor,
todo carnaval
é o bom é o bom é o bom.
E ficou barato o pagode, meu compadre?
Oh, quase nada: todos os enfeites
não chegam a um milhão e meio de cruzeiros
novos: contas radiantes de colar
no colo da cidade à beira-mar.
E quem fez os coretos do subúrbio?
Foi o subúrbio mesmo, na pobreza
sem paetê, que finge de brincar
na distância, no ermo e profundeza
de buracos de estrada por tapar.
Mas deixa pra lá, deixa falar
a voz da Penha, de Madureira e Jacarepaguá.
O carnaval é sempre o mesmo e sempre novo
com turista ou sem turista
com dinheiro ou sem dinheirocom máscara proibida e sonho censurado
máquina de alegria montada desmontada,
sempre o mesmo, sempre novo
no infantasiado coração do povo.
12/02/1970
no plano de outra vida.
Eras vasto vermelho,
em cada quarto havias
um ardiloso espelho.
Nele se refletia
cada figura em trânsito
e o mais que se não lia
nem mesmo pela frincha
da porta: o que um esconde,
polpa do eu, e guincha
sem se fazer ouvir.
E advindo outras faces
em contínuo devir,
o espelho eram mil máscaras
mineiroflumenpau-
listas, boas, más; caras.
50 anos-imagem
e 50 de catre
50 de engrenagem
noturna e confidente
que nos recolhe a úrica
verdade humildemente.
(Pois eras bem longevo, Hotel, e no teu bojo
o que era nojo se sorria, em pó, contigo.)
O tardo e rubro alexandrino decomposto.
Casais entrelaçados no sussurro
do carvão carioca, bondes fagulhando, políticos
politicando em mornos corredores
estrelas italianas, porteiros em êxtase
cabineirosem pânico:
por que tanta suntuosidade se encarcera
entre quatro tabiques de comércio?
A bandeja vai tremulargentina:
desejo café geleia matutinos que sei eu.
A mulher estava nua no centro e recebeu-me
com a gravidade própria aos deuses em viagem:
Stellen Sie es auf den Tisch!
Sim, não fui teu quarteiro, nem ao menos
boy em teu sistema de comunicações louça
a serviço da prandial azáfama diurna.
Como é que vivo então os teus arquivos
e te malsinto em mim que nunca estive
em teu registro como estão os mortos
em seus compartimentos numerados?
Represento os amores que não tive
mas em ti se tiveram foice-coice.
Como escorre
escada serra abaixo a lesma
das memórias
de duzentos mil corpos que abrigaste
ficha ficha ficha ficha ficha
fichchchchch.
O 137 está chamando
depressa que o homem vai morrer
é aspirina? padre que ele quer?
Não, se ele mesmo é padre e está rezando
por conta dos pecados deste hotel
e de quaisquer outros hotéis pelo caminho
que passa de um a outro homem, que em nenhum
ponto tem princípio ou desemboque;
e é apenas caminho e sempre sempre
se povoa de gestos e partidas
e chegadas e fugas e quilômetros.
Ele reza ele morre e solitária
uma torneira
pinga
e o chuveiro
chuvilha
e a chama
azul do gás silva no banho
sobre o Largo da Carioca em flor ao sol.
(Entre tapumes não te vejo
roto desventrado poluído
imagino-te ileso emergindo dos sambas dos dobrados da polícia militar, do coro ululante de torcedores do campeonato mundial pelo rádio
a todos oferecendo, Hotel Avenida,
uma palma de cor nunca esbatida.)
Eras o Tempo e presidias
ao febril reconhecimento de dedos
amor sem pouso certo na cidade
à trama dos vigaristas, à esperança
dos empregos, à ferrugem dos governos,
à vida nacional em termos de indivíduo
e a movimentos de massa que vinham espumar
sob a arcada conventual de teus bondes.
Estavas no centro do Brasil,
nostalgias januárias balouçavam
em teu regaço, capangueiros vinham
confiar-te suas pedras, boiadeiros
pastoreavam rebanhos no terraço
e um açúcar de lágrimas caipiras
era ensacado a todo instante em envelopes
(azuis?) nos escaninhos da gerência
e eras tanto café e alguma promissória.
Que professor professa numa alcova
irreal, Direito das Coisas, doutrinando
a baratas que atarefadas não o escutam?
Que flauta insiste na sonatina sem piano
em hora de silêncio regulamentar?
E as manias de moradores antigos
que recebem à noite a visita do prefeito Passos para discutir novas técnicas urbanísticas?
E teus mortos
incomparavelmente mortos de hotel fraudados
na morte familiar a que aspiramos
como a um não morrer morrido;
mortos que é preciso despachar
rápido, não se contagiem lençóis
e guarda-pires
dessa friúra diversa que os circunda
nem haja nunca memória nesta cama
do que não seja vida na Avenida.
Ouves a ladainha em bolhas intestinas?
Balcão de mensageiros imóveis saveiros
banca de jornais para nunca e mais
alvas lavanderias de que restam estrias
bonbonnières onde o papel de prata
faz serenata em boca de mulheres
central telefônica soturnamente afônica
discos lamentação de partidos meniscos
papelariasconversariaschope da Brahma louco de quem ama
e o Bar Nacional pura afetividade
súbito ressuscita Mário de Andrade.
Que fazer do relógioou fazer de nós mesmossem tempo sem mais pontosem contraponto semmedida de extensãosem sequer necrológioenquanto em cinza foge oimpaciente bisãoa que ninguém os chifressujigou, aflição?Ele marcava mar-cavacava cava cavae eis-nos sós marcadosde todos os falhadosamores recolhidosrelógio que não ouçoe nem me dá ouvidosrobô de puro olfatoa farejar o imensopaís do imóvel tatoas vias que corria teu comando fecham-senas travessas em Inos vagos pesadelosnos sombrios dejetosem que nossos projetosse estratificaram.A ti não te destroemcomo as térmitas papamlivro terra existência.Eles sim teus ponteirosvorazes esfarelama túnica de Vênuso de mais o de menoseste verso tatuadoe tudo que hei andadopor te iludir e tudoque nas arkademiasinstitutos autárquicoshistóricos astutosse ensina com malíciasobre o evolver das coisasó relógio hoteleirodeus do cauto mineiro,silêncio,pudicícia.Mas tudo que moestehoje de ti se vingapor artesde pensada mandinga.Deglutimos teu vidroabafando a linguagemque das próprias estilhasse afadiga em pulsaro minuto de esperaquando cessa na tardea brisa de esperar.Rangido de criança nascendo.
Por favor, senhor poeta Martins Fontes, recite mais baixo suas odes enquanto minha senhora acaba de parir no quarto de cima, e o poeta velou a voz, mas quando o bebê aflorou ao mundo é o pai que faz poesia saltarilha e pede ao poeta que eleve o diapasão para celebrarem todos, hóspedes, camareiros e pardais, o grato alumbramento.
Anoitecias. Na cruz dos quatro caminhos, lá embaixo, apanhadores, ponteiros, engole-listas de sete prêmios repousavam degustando garapa.
Mujer malvada, yo te mataré! artistas ensaiavam nos quartos? I wil grind your bones to dust, and with your blood and it I’ll make a paste. Bagaço de cana, lá embaixo.
Todo hotel é fluir. Uma corrente
atravessa paredes, carreando o homem,
suas exalações de substância. Todo hotel
é morte, nascer de novo; passagem; se pombos
nele fazem estação, habitam o que não é de ser habitado
mas apenas cortado. As outras casas prendem
e se deixam possuir ou tentam fazê-lo, canhestras.
O espaço procura fixar-se. A vida se espacializa,
modela-se em cristais de sentimento.
A porta se fecha toda santa noite.
Tu não se encerras, não podes. A cada instante
alguém se despede de teus armários infiéis
e os que chegam já trazem a volta na maleta.
220 Fremdenzimmer e te vês sempre vazio
e o espelho reflete outro espelho
o corredor cria outro corredor
homem quando nudez indefinidamente.
No centro do Rio de Janeiro
ausênciano curral da manada dos bondes
ausênciano desfile dos sábados
no esfregar no repinicar dos blocos
ausêncianas cavatinas de Palermo
no aboio dos vespertinos
ausência
verme roendo maçã
verme roído por verme
verme autorroído
roer roendo o roer
e a ânsia de acabar, que não espera
o termo veludoso das ruínas
nem a esvoaçante morte de hidrogênio.
Eras solidão tamoia
vir a ser de casa
em vir a ser de cidade onde lagartos.
Vem, ó velho Malta,saca-me uma fotopulvicinza efialtadesse pouso ignoto.Junta-lhe uns quiosquesmil e novecentos,nem iaras nem bosquesmas pobres piolhentos.Põe como legendaQ u e i j o I t a t i a i ae o mais que compreendacondição lacaia.Que estas vias feiasmuito mais que sujassão tortas cadeiasconchas caramujasdo burro sem raboservo que se ignorae de pobre-diabodentro, fome fora.Velho Malta, please,bate-me outra chapa:hotel de marquisemaior que o rio Apa.Lá do acento etéreo,Malta, sub-reptícioinda não te fere osuperedifícioque deste chão surge?Dá-me seu retratofuturo, pois urge
documentar as sucessivas posses da terra até o juízo final e
mesmo depois dele se há como três vezes três confiamos que
haja um supremo ofício de registro imobiliário por cima da
instantaneidade do homem e da pulverização das galáxias.
Já te lembrei bastante sem que amasse
uma pedra sequer de tuas pedras
mas teu nome — A V E N I D A — caminhava
à frente de meu verso e era mais amplo
e mais formas continha que teus cômodos
(o tempo os degradou e a morte os salva),
e onde abate o alicerce ou foge o instante
estou comprometido para sempre.
Estou comprometido para sempre,
eu que moro e desmoro há tantos anos
o Grande Hotel do Mundo sem gerência
em que nada existindo de concreto
— avenida, avenida — tenazmente
de mim mesmo sou hóspede secreto.
estávamos sentados esperando-a.
ela havia ido a alguma exposição de arte ou qualquer outra
maldita coisa inútil.
era uma boa artista
melhor que muitos homens
e esse era O
problema.
"que diabo aconteceu com Helen?"
"onde está Helen?"
o marido de Helen, ex-marido, agora estava sentado no topo de uma
colina em algum lugar com uma nova puta de olhos azuis.
uma puta
muito puta: ela até escrevia
poesia. Vicki era o nome dela. Vicki agora era "Sra."
ela havia trocado um marido rico por outro mais
rico ainda.
"Helen me pediu para não odiar Vicki!", disse minha anfitriã,
"mas que diabo, não consigo gostar de Vicki."
"que diabo", disse meu anfitrião, "você não pode nem
tentar?"
"você gosta de Vicki?", perguntou minha anfitriã.
Vicki me parecia legal. eu não conseguia achar nada de errado
nela.
"onde está Helen?", perguntei de novo. "oh onde oh onde diabos está
Helen?"
"ela vai chegar, ela vai chegar, ela disse que estava
chegando."
Helen apareceu 3 horas mais tarde.
ela parecia uma serpente em um vestido verde, todo fluido,
louco louco, lustroso,
seu colar prateado pulsando
em sua garganta
bem debaixo do meu nariz.
ela era consumida por 3 simples coisas:
bebida, desespero, solidão; e mais 2:
juventude e beleza.
era demais:
eu não podia resistir à força
dela. eu a beijei. eu a beijei
de novo. eu era como um garoto na escola,
toda a minha dureza
tinha desaparecido.
"vamos cair fora daqui!"
eu lhe disse, ignorando nosso anfitrião e nossa anfitriã.
fomos para sua casa logo ao lado
e eu fiquei na cozinha bebendo e
observando-a.
"seu corpo, seu corpo, Jesus!", eu lhe
disse. ela era realmente bela e dava risadas,
como quando você lê a respeito em um romance
só que isso nunca acontece com
ninguém.
ela contorceu seu corpo e enquanto cantarolava
fez uma adorável dança repleta de
insinuações.
"baby, eu te amo", eu disse, "baby, eu te
amo!"
nós descemos para um salão escuro com um crucifixo
na parede e alguns de seus quadros. entramos em
outro quarto grande. continuei no meu
drinque.
"fique aqui", ela disse.
sentei-me em um sofá e bebi. parecia
frio e vazio de repente e eu
me perguntava aonde ela havia ido.
então olhei em volta e ela estava deitada em outro sofá
nua e sorridente
o que foi inesperado
pois estou acostumado a despir minhas
mulheres.
e a visão dela ali nua em pelo me fazia lembrar mais
dos meus dias no matadouro do
que de Mozart,
mas, é claro, quem quer foder
com Mozart?
terminei meu drinque e tirei a roupa e tentei
mas acho que não estava lá essas coisas
foi minha culpa
minha culpa
e ela me empurrou
pra longe.
eu fiz mais algumas tentativas
desanimadas e então ela se levantou e saiu.
também me vesti e depois
não me lembro de muita coisa exceto
de estar um bocado bêbado.
mas quando ela me pôs para fora na chuva
eu ressuscitei.
a chuva estava molhada a chuva estava fria a chuva estava
gelada.
"merda!", eu disse, "merda!" corri de volta para
a porta dela ou a porta que achei que fosse dela
mas parecia haver dúzias de portas,
uma série de apartamentos todos
engatados.
bati na porta que esperava ser a dela:
"baby, baby, eu não quero foder com você! sei que sou
um amante horrível! tudo o que eu quero é sair
desta maldita chuva!"
ela não respondeu. eu desisti. voltei correndo para
o apartamento do meu primeiro anfitrião. bati na porta.
não adiantou. a chuva era como gelo.
olhei para uma garagem aberta mas estava cheia de lama e água;
nenhum lugar para me deitar.
"deixe-me entrar!", eu gritei. "Jesus! misericórdia! o que eu fiz?
em que eu falhei? VOCÊ É O GUARDIÃO DO SEU IRMÃO!"
meu anfitrião apareceu na porta:
"você é um cachorro sujo!"
"eu sei, mas deixe-me entrar,
por favor."
ele abriu a porta e eu o segui pela
sala.
"cara oh cara." ele disse, "você é um filho da puta, você é um
cachorro covarde, você não vale nada!"
"eu sei," eu disse.
"você contou para ela que eu era um ex-condenado?"
"diabos, não, nem estava pensando em
você."
"então que diabo você quer de
mim?"
"nada, você me pagou a passagem de
trem de volta."
"você insultou a nós dois. eu não me importo comigo mas você não pode
insultar minha mulher. você disse para Helen, "vamos eu e você cair
fora daqui, essas outras pessoas não são de nada!"
"foda-se. você ainda tem algum uísque
sobrando?"
"na geladeira."
"obrigado."
ele grunhiu e subiu para a cama ao lado de sua
mulher.
eu peguei a garrafa e a trouxe para minha cama
e beberiquei beberiquei beberiquei e escutei a
chuva. pensei que a noite tivesse
passado mas aí ele começou
outra vez:
"pensei que você fosse um grande escritor
pensei que você fosse um grande homem
foi por isso que paguei sua passagem até aqui
foi por isso que publiquei sua poesia
foi por isso que quis que toda essa gente o
conhecesse!"
"está certo", eu disse tomando goles do bom uísque.
"eu tenho que ir embora de manhã. por que não vamos todos
dormir?"
"você é realmente um filho da puta!
nunca pensei que você fosse um tamanho filho da puta!
por que você fica sempre com seus olhos semicerrados?
por que você não é capaz de encarar um homem?
por que você sempre desvia o olhar?"
"não sei, não sei."
"você é covarde, é isso: COVARDE!"
eu sabia que era verdade
e tomei um gole grande de uísque e
disse:
"você quer ir lá fora para brigar?"
"diabo! você tem dez anos de vantagem sobre mim!"
"eu lhe dou o primeiro
soco!"
"você promete que vai embora de manhã?"
"com certeza."
Helen soube que eu iria embora
através deles eu acho
e ela chegou lá mais cedo na manhã seguinte para saber se
podia me levar até o hotelzinho para pegar o ônibus até
a estação de trem.
ela ainda estava linda
até mais do que antes
vestindo calças justas e mocassins indígenas e
enquanto ninguém estava olhando
eu me estiquei e peguei seu
pé. ela ignorou mas não me mandou
para o inferno
então me senti todo aquecido
por dentro.
"está bem, eu o levo até lá", ela disse a meus
anfitriões.
"obrigado", eles disseram.
entrei para dar uma
cagada.
"detestamos vê-lo ir embora", eu ouvi
meus anfitriões dizerem.
"eu também", ela
disse.
um cagalhão
saiu.
"voltarei às 2h. para apanhá-lo",
ela disse.
"até logo."
"até logo."
quando eu saí havia 2 índios sentados lá
com meus anfitriões.
o Chefe disse: "eu adiantei aquele negro 8 mangos
por 2 sacos de quatro libras de feijão. passaram 2
semanas e ele ainda não voltou. ele trabalhou para alguma companhia de
cimento.
dê-me sua caderneta de telefones, eu vou encontrar aquele
desgraçado!"
apresentaram-me à sua "squaw". eu a beijei no
rosto. ela deu uma risadinha. tinha uns 60 anos e
um defeito nas pernas.
"estou com problemas," disse o Chefe, e
então arrancou o cobertor do meu catre
e o enrolou em volta de si.
"sou grande Chefe", ele disse, "e tudo que preciso é um
bom pedaço de rabo e depois ir pegar aquele negro."
"não olhe para mim", eu lhe disse, "não sou
nem um nem outro."
o Chefe me olhou:
"acho que preciso de um banho",
ele disse.
ele foi lá e entrou em uma das 3 banheiras em um dos
3 banheiros. então a "squaw" resolveu que ela também precisava tomar
um banho. e depois mais alguém resolveu que precisava dar uma
cagada. todos desapareceram. eu tomei meu drinque e voltei a
dormir.
"sentimos muito por vê-lo ir embora", uma
voz disse, me despertando.
os índios haviam ido embora.
"tudo bem", eu
disse.
ninguém discutiu
comigo.
entrei no carro com Helen e a vista de
seus joelhos de nylon fez martelos baterem em meus miolos.
eu estava tão triste por nunca vir a possuir algo de bom,
algo como ela,
que nada de bom nunca viesse a me pertencer
não porque eu estivesse sempre pobre de dólares
mas porque eu era pobre em expressar-me a dois.
eu era tão amarelo de covardia quanto o sol talvez
mas também tão quente e tão verdadeiro quanto o sol
em algum lugar lá dentro de mim
mas nunca ninguém acharia esse lugar.
eu certamente acabaria para sempre chorando os blues em uma
xícara de café em um parque para velhos jogarem
xadrez ou algum outro jogo bobo.
merda! merda!
e então Helen engatou a marcha e rodamos através das
ricas colinas e não havia nada que eu pudesse lhe dizer
sobre sua beleza ou o quanto eu era durão
ou que só ficar sentado e olhá-la por um mês
sem nunca tocá-la de novo
seria meu único desejo
mas como um desgraçado eu provavelmente estava mentindo para mim
mesmo
eu provavelmente queria tudo tudo
mas agora aos 45
tendo vivido com uma dúzia de mulheres e sem amar nenhuma delas
eu agora estava louco, acabado, enquanto ela
me levava através das colinas tudo gritava dentro de
mim, e eu continuava a dizer enquanto seguíamos
(para mim mesmo, é claro)
fodão, vai passar,
tudo passa,
tudo é uma piada
uma piada sobre você,
esqueça, pense em cachorros mortos coisas mortas pense em
você: indesejado, quebrado, simples, um suposto poeta que escreve
coisas profundas, mas você não é capaz de escrever sobre nada exceto
VOCÊ MESMO. não é verdade? não é verdade? você é uma porra,
um trouxa centrado em si mesmo só esperando por alguma saída fácil?
você anseia
por dinheiro, palanques cheios de aplauso, reconhecimento e um livro
de poemas que ainda será admirado no ano de 2179.
você é um impostor de merda covarde que grita: você não vai conseguir
e
é bom você acostumar-se a isso
agora.
nós rodamos até o hotelzinho
e o pobre poeta impostor disse,
"eu posso lhe dizer adeus?" era
como um filme ruim, só que não era um filme:
eu podia entender Crime e Castigo de Dos
eu podia entender a lua inclinando-se sobre um bar no beco
ao pedir um drinque, mas eu não podia entender nada sobre mim mesmo
eu estava assassinado, eu era um merda, eu era uma matilha de cães,
eu era papoulas ceifadas por rajadas de metralhadora
eu era uma vespa presa em uma teia de aranha
eu era cada vez menos e menos e ainda assim tentando alcançar
algo, e eu pensei em seu comentário banal
a noite passada ou algo assim:
"você tem olhos feridos."
piegas, é claro, mas tudo o que vem de uma mulher
de verdade não é piegas
e eu pensei em suas pinturas decentes de pessoas e coisas
chegando lá querendo querendo
e como um japa na trincheira cercado por heroicas
tropas americanas
eu a beijei
em despedida.
"sinto muito por não ter conseguido ser legal com você",
ela disse. "eu não estava pronta, acho."
"não, foi minha culpa",
eu lhe disse.
entrei no hotelzinho daquela
cidadezinha (de onde levavam de ônibus
até o trem) e me perdi, merda, me perdi,
não conseguia achar a bilheteria, degraus para
cima e para baixo
entrar e sair pelas portas
lágrimas de novo finalmente
como um filme ruim de novo, e
finalmente eu achei o vendedor de bilhetes
e consegui fazer o negócio
de comprar um bilhete.
saí e me sentei no saguão e
olhei por cima do meu bilhete
e lá estava ela.
"o que você está fazendo aqui?", eu perguntei.
"vi você todo encurvado e triste e friorento.
não parei de pensar em você."
o ônibus para o trem estava atrasado, tudo estava
atrasado, assim ela me levou de carro até a cidade nesse meio-tempo e
tive que repassar
a coisa toda com ela.
e eu sabia que mesmo as palavras mais apropriadas nunca resolveriam.
eu estava sujo, sujeira, eu parecia sujeira,
eu estava sujo de sujeira suja,
eu só queria entrar nela,
ficar lá, eu não era nada a não ser um comedor de buceta e
eu estava quebrado. eu não sabia soletrar, eu nem sabia como usar
2 ou 3 garfos para jantar, eu não sabia nada sobre Harvard ou
diplomas ou 50 mil por ano, e ela sabia que tudo isso
era verdade: eu havia sido chutado por aí por muito tempo, eu não sabia
mais
o caminho para cima ou para fora ou nem queria saber: eu estava
destinado ao
fracasso.
eu disse adeus de novo
sugando tudo o que havia sido deixado dela dentro do
pouco que foi deixado de
mim. eu disse: "não me procure de novo. foda-se.
nós estamos todos perdidos. adeus, adeus".
ela era grande. ela foi embora. observei o último clarão
dela dobrar a esquina e desaparecer e
então caminhei de volta até o saguão do hotel.
eles eram boa gente, 5 ou 6 bundões sentados quietos
à espera ali.
2 eram médicos. um outro era dono de qualquer coisa grande
e importante. todos tinham esposas. começava a
nevar.
todos subimos no ônibus para seguir até
o trem. eu já estava dormente,
dormente de novo,
dormente
de novo
e mais uma vez e mais uma vez,
torpor e dor crescendo em
mim - assim como nos bons
velhos tempos.
o mexicano dirigiu rodovia abaixo e quase arrebentou a
embreagem.
pessoas confortáveis faziam piadas confortáveis
sobre o tempo e coisas
mas eu fiquei mais em silêncio
dizendo uma palavra ou outra quando necessário
uma palavra ou outra
tentando esconder-me do fato de eu ser um idiota
e sentido-me horrível
e as pequenas colinas começaram a cobrir-se de neve
vagarosamente as coisas tornaram-se brancas
vagarosamente as coisas tornaram-se mais brancas
e eu sabia que tudo finalmente passaria
e graças à boa graça do bom Deus
meus anos e meu tempo estavam acabando;
seguimos em frente e cada vez mais em frente,
por vilarejos e tanto as coisas boas quanto
as coisas más estavam acontecendo às
pessoas naqueles vilarejos também,
mas eu continuava a não ser nada
a não ser braços e orelhas e olhos e talvez ainda houvesse
alguma sorte para mim ou
mais morte amanhã.
onde um de cada três lotes estava desocupado
e era um trajeto curto até as plantações
de laranja –
se você tivesse um carro e
gasolina.
verões escaldantes na metade dos anos 30 em Los Angeles
jovem demais pra ser um homem e velho demais pra ser
um garoto.
tempos difíceis.
um vizinho tentou assaltar nossa
casa, meu pai o pegou
entrando pela
janela,
manteve-o preso ali no escuro
junto ao chão:
“seu filho da puta de
merda!”
“Henry, Henry, me solta,
me solta!”
“seu filho da puta, eu vou
te matar!”
minha mãe ligou para a polícia.
outro vizinho colocou fogo na casa
numa tentativa de receber o
seguro.
acabou sendo investigado e
preso.
verões escaldantes na metade dos anos 30 em Los Angeles,
nada para fazer, nenhum lugar para ir, ouvindo
a conversa assustada de nossos pais
à noite:
“o que vamos fazer? o que vamos
fazer?”
“deus, não faço a menor ideia...”
cachorros famintos pelos becos, a pele tesa
as costelas marcadas, o pelo falhando, as línguas
expostas, aqueles olhos tão tristes, mais tristes que toda a tristeza
da Terra.
verões escaldantes na metade dos anos 30 em Los Angeles
os homens da vizinhança em silêncio
e as mulheres pálidas como
estátuas.
os parques cheios de socialistas,
comunistas, anarquistas, junto aos bancos do
parque, discursando, agitando.
o sol brilhava em meio a um céu aberto e
o oceano estava limpo
e nós não éramos
nem homens nem
garotos.
alimentávamos os cães com restos endurecidos de
pão
pelos quais ficavam muito agradecidos,
os olhos brilhando
maravilhados,
os rabos balançando diante de tanta
sorte
como
a Segunda Guerra Mundial veio em nossa direção,
assim mesmo, durante aqueles
verões escaldantes na metade dos anos 30 em Los Angeles.
Naquele verão, julho de 1934, metralharam John Dillinger na saída de um cinema em Chicago. Ele não teve nenhuma chance. A Dama de Vermelho[5] o alcaguetou. Mais de um ano atrás o sistema bancário havia entrado em colapso. A Lei Seca tinha sido revogada, e meu pai pôde voltar a beber a cerveja Eastside. Mas o pior de tudo foi Dillinger ter sido pego. Muitas pessoas o admiravam, e sua morte causou grande comoção. Roosevelt era o presidente. Ele mantinha um programa no rádio em que conversava informalmente e todos escutavam. Realmente sabia falar. E ele começou a criar programas de trabalho para as pessoas. Mas as coisas continuavam muito ruins. E minhas espinhas pioraram, tornando-se descomunais.
Naquele mês de setembro eu fui designado para a escola de ensino médio Woodheaven, mas meu pai insistiu para que eu fosse para a Chelsey.
– Olhe – eu disse –, Chelsey fica em outro bairro. É muito longe.
– Você vai fazer o que estou mandando. Vai se matricular na Chelsey.
Eu sabia por que meu pai desejava que eu fosse para Chelsey. As famílias ricas botavam seus filhos lá. Meu pai era louco. Continuava com o sonho de ser rico. Quando Carequinha descobriu que eu estava indo para Chelsey, decidiu ir para lá também. Não conseguia me livrar dele nem das minhas espinhas.
No primeiro dia, seguimos de bicicleta até Chelsey e as estacionamos. Era uma sensação horrível. Boa parte dos garotos, pelo menos os mais velhos, tinha seus próprios automóveis, muitos deles conversíveis novinhos, e eles não eram pretos ou azul-marinho como os carros normais, eram de cores vibrantes: amarelo, verde, laranja e vermelho. Os caras sentavam ali, do lado de fora da escola, e as garotas se juntavam ao redor deles, loucas por uma carona. Todos se vestiam bem, os garotos e as garotas, usavam pulôveres, relógios de pulso e sapatos bacanas. Pareciam bastante maduros e tinham um ar de superioridade. E lá estava eu, minha camisa feita em casa, meu único par de calças totalmente surrado, meus sapatos esbodegados e coberto de espinhas. Os caras em seus carros não se preocupavam com acne. Eles eram muito elegantes, altos e limpos, seus dentes brilhavam e seus cabelos não eram lavados com sabonete. Eles pareciam saber algo que me era inacessível. Mais uma vez, eu estava por baixo.
E uma vez que todos os caras tinham carros, Carequinha e eu nos envergonhávamos de nossas bicicletas. Acabamos por deixá-las em casa, indo e voltando a pé da escola, uma distância de quatro quilômetros na ida e outros quatro na volta. Carregávamos lancheiras marrons. Mas a maioria dos estudantes sequer comia na cafeteria da escola. Iam junto com as garotas até alguma lanchonete, colocavam as vitrolas para tocar e riam à vontade. Estavam a caminho da Universidade do Sul da Califórnia.
Eu tinha vergonha das minhas espinhas. Em Chelsey você podia escolher entre fazer educação física ou fazer o R.O.T.C.[6]. Escolhi o R.O.T.C. para não ter que usar um abrigo de ginástica que permitiria que todos vissem as espinhas que me cobriam o corpo. Mas eu odiava o uniforme. A camiseta era de lã, o que irritava minhas feridas. Usávamos o uniforme de segunda a quinta. Na sexta, deixavam que usássemos nossas roupas normais.
Estudávamos o Manual do Exército. Era sobre atividades militares e outras merdas desse tipo. Marchávamos ao redor do campo. Praticávamos o que estava no Manual. Segurar o rifle durante os vários exercícios era terrível para mim. Eu tinha espinhas nos ombros. Algumas vezes, quando batia o rifle contra o meu ombro, uma espinha estourava e escorria pela minha camiseta. Saía sangue, mas como a camiseta era grossa e feita de lã, a mancha não ficava visível e não se parecia com sangue.
Falei para minha mãe o que estava acontecendo. Ela costurou nos ombros um forro com tecido de algodão, mas isso só melhorou um pouquinho minha situação.
Uma vez um oficial veio fazer uma inspeção. Tomou o rifle das minhas mãos e o segurou, examinando o cano à procura de pó na parte interna do calibre. Atirou a arma de volta para mim, e então olhou para uma marca de sangue no meu ombro direito.
– Chinaski! – gritou. – Seu rifle está com um vazamento de óleo.
– Sim, senhor.
Concluí o trimestre, mas minhas espinhas tinham piorado ainda mais. Elas eram do tamanho de nozes e cobriam minha face. Eu sentia muita vergonha. Algumas vezes, em casa, eu parava em frente ao espelho do banheiro e estourava uma das espinhas. Pus amarelo espirrava no espelho. E então saía um pequeno caroço branco. De um ponto de vista escatológico, era fascinante que toda aquela porcaria pudesse caber ali dentro. Mas eu sabia como era difícil para as pessoas terem que me olhar.
A escola deve ter alertado meu pai. Ao final daquele trimestre, fui retirado da escola. Fiquei de cama e meus pais me cobriram de unguentos. Tinha uma pomada marrom que fedia. Era a preferida de meu pai. Queimava. Ele insistia para que eu a mantivesse no corpo, muito tempo além do que a bula indicava. Certa noite ele insistiu para que eu a deixasse agir por horas. Comecei a gritar. Corri para a banheira, enchia-a de água e removi a pomada, com dificuldade. Eu estava queimado no rosto, nas costas e no peito. Naquela noite me sentei na beirada da cama. Eu não conseguia me deitar.
Meu pai entrou no quarto.
– Acho que eu te disse para ficar com a pomada!
– Olhe o que aconteceu – eu falei.
Minha mãe entrou no quarto.
– Esse filho da puta não quer se curar – meu pai disse a ela. – O que foi que eu fiz para merecer um filho como esse?
Minha mãe perdeu o emprego. Meu pai continuava saindo todas as manhãs de carro como se estivesse indo trabalhar.
– Sou engenheiro – ele dizia às pessoas. Seu sonho era ter sido engenheiro.
Deu-se um jeito para que eu fosse internado no Hospital Geral do Condado de Los Angeles. Recebi um cartão branco comprido. Peguei o cartão e tomei o bonde da linha 7. A passagem custava sete centavos (ou quatro passes por um quarto de dólar). Guardei meu passe e fui me sentar no fundo. Tinha uma consulta às oito e meia.
Algumas quadras depois um garotinho e uma mulher entraram no bonde. A mulher era gorda, e o garotinho devia ter uns quatro anos de idade. Sentaram-se no banco atrás de mim. Olhei pela janela. Seguimos. Gostava da linha 7. Ia em alta velocidade e balançava bastante enquanto lá fora o sol brilhava.
– Mamãe – ouvi o garotinho perguntar –, o que há de errado no rosto daquele homem?
A mulher não respondeu.
O garoto voltou a fazer a mesma pergunta.
Ela não respondeu.
Então o garoto gritou:
– Mamãe! O que há de errado no rosto daquele homem?
– Cale a boca! Não sei o que há de errado com o rosto dele.
Dirigi-me à recepção do hospital e eles me encaminharam para o quarto andar. Lá, a enfermeira sentada à mesa anotou meu nome e me disse para eu esperar sentado. Ficávamos em duas longas filas de cadeiras verdes de metal, uma de frente para a outra. Mexicanos, brancos e negros. Não havia orientais. Não havia nada para ler. Alguns dos pacientes tinham jornais velhos. Havia pessoas de todas as idades, magras e gordas, velhas e jovens. Ninguém falava. Todos pareciam cansados. Os auxiliares passavam de lá para cá, de vez em quando se via uma enfermeira, mas nunca um médico. Passou-se uma hora, depois duas. Ninguém havia sido chamado. Levantei-me à procura de um bebedor. Olhei para as pequenas salas onde as pessoas seriam examinadas. Não havia ninguém em nenhuma delas, nem médicos, nem pacientes.
Fui até a mesa da enfermeira. Ela examinava um livro grosso, cheio de nomes escritos a mão. O telefone tocou. Ela atendeu.
– O dr. Menen ainda não chegou – e desligou.
– Com licença – eu disse.
– Sim? – perguntou a enfermeira.
– Os médicos ainda não chegaram. Posso voltar mais tarde?
– Não.
– Mas não há ninguém aqui.
– Os médicos estão atendendo.
– Mas eu tinha uma consulta às oito e meia.
– Todos aqui estão marcados para as oito e meia.
Havia entre 45 e cinquenta pessoas esperando.
– Já que estou na lista de espera, que tal se eu voltar daqui a algumas horas, talvez alguns médicos estejam aqui então.
– Se você sair agora, perderá automaticamente a sua consulta. Terá que retornar amanhã, se ainda quiser receber um tratamento.
Voltei até onde estavam as cadeiras e me sentei. Os outros não protestavam. Havia muito pouco movimento. Vez ou outra, duas ou três enfermeiras passavam caminhando e rindo. Noutra oportunidade, empurravam um homem numa cadeira de rodas. Suas pernas estavam completamente enfaixadas e sua orelha, no lado em que pude ver quando passou, havia sido arrancada. Havia um buraco negro, dividido em pequenas seções, e era como se uma aranha tivesse entrado ali e tecido sua teia. Horas se passaram. A hora do almoço veio e se foi. Outra hora passou. E então mais duas. Nós sentados, esperando. Então alguém disse:
– Lá vem um médico!
O médico entrou numa das salinhas e fechou a porta. Ficamos na expectativa. Nada. Uma enfermeira entrou. Escutamos uma risada. Então ela saiu. Cinco minutos. Dez minutos. O médico saiu com uma prancheta na mão.
– Martinez? – o médico chamou. – José Martinez?
Um mexicano, velho e magro, ficou de pé e caminhou na direção do médico.
– Martinez? Martinez, meu velho, como você está?
– Mal, doutor... Acho que vou morrer...
– Bem, agora... entre aqui...
Martinez ficou muito tempo lá dentro. Peguei um jornal que alguém havia deixado e tentei lê-lo. Mas todos pensávamos no destino de Martinez. Se Martinez chegasse um dia a sair dali, o próximo seria chamado.
Então Martinez gritou.
– AHHHHH! AHHHHH! PARE! PARE! AHHHH! TENHA PIEDADE! POR DEUS! PARE, POR FAVOR!
– Calma, calma, não é para tanto... – disse o médico.
Martinez voltou a gritar. Uma enfermeira entrou na salinha. Houve silêncio. Tudo que podíamos ver era a sombra da porta entreaberta. Então um auxiliar também correu para lá. Martinez emitiu um som que parecia um gorgulho. Foi removido numa cama com rodinhas. A enfermeira e o auxiliar o empurraram pelo corredor, fazendo-o passar por uma porta de vaivém. Martinez estava coberto por um lençol, mas ele não estava morto, pois o tecido não lhe cobria o rosto.
O médico ficou na sua sala por mais uns dez minutos. Então saiu com a prancheta.
– Jeferson Williams? – ele perguntou.
Não houve resposta.
– Jeferson Williams está aí?
Não houve reação.
– Mary Blackthorne?
Não houve resposta.
– Harry Lewis?
– Sim, doutor?
– Venha, por favor...
As consultas progrediam muito devagar. O médico examinou mais cinco pacientes. Então deixou a sala, parou junto à mesa da enfermeira, acendeu um cigarro e falou com ela por uns quinze minutos. Parecia ser um homem muito inteligente. Tinha um tique no lado direito da face, que ficava se contraindo. Seu cabelo era ruivo com algumas mechas grisalhas. Usava óculos que ficava pondo e tirando o tempo todo. Outra enfermeira apareceu e lhe serviu uma xícara de café. Tomou um gole, e então, segurando o café numa das mãos, com a outra empurrou a porta vaivém e desapareceu.
A enfermeira se levantou da mesa com nossos longos cartões brancos e chamou por nossos nomes. À medida que íamos respondendo, ela nos devolvia os cartões.
– O expediente de hoje terminou. Por favor, retornem amanhã, se quiserem. O horário de sua consulta está marcado no cartão.
Olhei para o meu. Estava escrito oito e meia da manhã.
– Misto-quente
Era como uma broca para madeira, poderia ser mesmo uma broca para madeira, eu podia sentir o fedor do óleo queimando, e eles enfiavam aquela coisa na minha cabeça e na minha carne, e a broca perfurava e saía sangue e pus e eu ficava lá sentado, vagando sobre a corda bamba, à beira de um precipício. Eu estava coberto de espinhas monstruosas do tamanho de pequenas maçãs.
Era ridículo e inacreditável.
– O pior caso que já vi – disse um dos médicos, e olha que ele era velho.
Eles se reuniam ao redor de mim como se eu fosse uma aberração.
Eu era uma aberração. Ainda sou uma aberração. Andava de bonde, indo e vindo da ala de caridade do hospital. As crianças no bonde me olhavam e perguntavam a suas mães:
– O que há de errado com aquele homem? Mãe, o que há de errado com a cara daquele homem?
E a mãe fazia:
– PSSSIIIIT!!!
Aquele psit era a pior das condenações, e depois daquilo elas deixavam que os pequenos cretinos e cretininhas me encarassem por sobre os encostos de seus assentos, e eu olhava pela janela e observava os prédios passando e me afogava, eu estava rastejando e me afogando, não havia nada a fazer. Os médicos, por não saberem como chamar o que eu tinha, chamavam de Acne vulgaris. Ficava sentado por horas em um banco de madeira enquanto esperava por minha broca de madeira. Que história triste, né? Lembro-me dos prédios velhos de tijolos, das enfermeiras calmas e descansadas, dos médicos rindo, enquanto faziam aquela coisa. Foi ali que aprendi sobre a falácia dos hospitais... que os médicos eram reis e os pacientes eram merda e os hospitais estavam lá para que os médicos pudessem desfilar toda a sua vigorosa e branca superioridade, além de poderem trepar com as enfermeiras: – Doutor, doutor, doutor, aperta a minha bunda no elevador, esqueça o fedor do câncer, esqueça o fedor da vida. Não somos pobres idiotas, nunca morreremos; bebemos nosso suco de cenoura e, quando nos sentimos mal, podemos tomar um remédio, uma injeção, toda a droga de que precisamos está ao nosso alcance. Pio, pio, pio, a vida cantará para nós, somos as estrelas do momento. Eu entrava e sentava, e eles enfiavam a furadeira em mim. ZIRRRR ZIRRRR ZIRRRR, ZIR, o sol, enquanto isso, cultivando dálias e laranjas e brilhando através dos vestidos das enfermeiras, enlouquecendo ainda mais as pobres aberrações. Zirrrrrrr, zirrrr, zirr.
– Nunca vi ninguém suportar a broca desse jeito!
– Olhem para ele, frio como aço!
Mais uma vez uma reunião de comedores de enfermeiras, uma reunião de homens que tinham casas grandes e tempo para rir e ler e ir ao teatro e comprar pinturas e esquecer como pensar, esquecer como sentir qualquer coisa. Jalecos engomados e a minha derrota. A reunião.
– Como você se sente?
– Maravilhoso.
– Não acha que a agulha machuca um pouco?
– Vá se foder.
– Como?
– Mandei você se foder.
– É apenas um garoto. Um garoto amargo. Não podemos culpá-lo. Quantos anos você tem?
– Catorze.
– Estava apenas elogiando a sua coragem, a forma como suportou a agulha. Você é durão.
– Vá se foder.
– Não pode falar assim comigo.
– Foda-se. Foda-se. Foda-se.
– Você devia se manter mais positivo. Imagina se você fosse cego?
– Então não precisaria olhar para sua cara estúpida.
– O garoto é louco.
– Claro que ele é, deixem-no em paz.
Esse era um hospital qualquer, e não imaginei que voltaria lá vinte anos mais tarde, novamente para a ala de caridade. Hospitais e prisões e prostíbulos: eis as universidades da vida. Eu já recebera vários títulos dessas instituições. Exigia ser tratado por senhor.
– Ao sul de lugar nenhum
A máquina de raios ultravioleta emitiu um clique e se apagou. Eu havia recebido tratamento nos dois lados. Retirei os óculos protetores e comecei a me vestir. A srta. Ackerman entrou na sala.
– Ainda não – ela disse –, fique sem roupa.
O que ela ia fazer comigo?, pensei.
– Sente-se na ponta da mesa.
Sentei-me ali, e ela começou a esfregar um unguento no meu rosto. Era uma substância grossa e com textura semelhante à de manteiga.
– Os médicos decidiram tentar um novo tratamento. Vamos enfaixar seu rosto para tornar a drenagem mais efetiva.
– Srta. Ackerman, o que aconteceu com o homem do nariz grande? O nariz continuou crescendo?
– O sr. Sleeth?
– O homem do narigão.
– Era o sr. Sleeth.
– Não o vejo mais por aqui. Ele conseguiu se curar?
– Morreu.
– Você quer dizer que ele morreu por causa do nariz?
– Suicídio.
A srta. Ackerman continuou a aplicar o unguento.
Então escutei um homem gritar na sala ao lado:
– Joe, cadê você? Joe, você disse que voltaria! Joe, cadê você?
A voz era alta e muito triste, cheia de agonia.
– Ele fez isso durante todas as tardes desta semana – disse a srta. Ackerman – e nada do Joe aparecer para buscá-lo.
– Eles podem ajudá-lo?
– Não sei. Finalmente ficaram quietos. Agora ponha o dedo aqui e segure esta gaze enquanto eu o enfaixo. Isso. Assim. É isso. Pode tirar o dedo. Muito bem.
– Joe, Joe, você disse que ia voltar! Onde você está, Joe?
– Agora segure também esta outra gaze. Isso. Segure bem. Vou enfaixar você bem direitinho! Isso. Falta só fazer os curativos.
Logo seu trabalho estava acabado.
– Ok, ponha suas roupas. Vejo você depois de amanhã. Até mais, Henry.
– Até mais, srta. Ackerman.
Pus uma roupa, deixei o quarto e caminhei pelo corredor. Havia um espelho junto à máquina de cigarros no saguão. Olhei para meu reflexo. Era genial. A minha cabeça estava inteiramente enfaixada. Eu estava todo branco. Não se podia ver nada além de meus olhos, minha boca e minhas orelhas, e alguns tufos de cabelo no topo da minha cabeça. Eu tinha sido ocultado. Era maravilhoso. Fiquei ali e acendi um cigarro, dei uma olhada no saguão. Alguns internos estavam sentados, lendo jornais e revistas. Senti-me extraordinário e também um pouco diabólico. Ninguém tinha a mais vaga ideia do que acontecera comigo. Um acidente de carro. Uma briga até a morte. Um assassinato. Fogo. Ninguém sabia.
Caminhei pelo saguão e para fora do prédio e fiquei plantado na calçada. Ainda podia ouvir:
– Joe! Joe! Cadê você, Joe?
Joe não ia vir. Não valia a pena confiar em nenhum outro ser humano. O que quer que fosse preciso para estabelecer essa confiança não estava presente na humanidade.
Na volta, no bonde, sentei no fundo, fumando cigarros pelo buraco da boca em minha cabeça enfaixada. As pessoas me olhavam, mas eu não dava a mínima. Havia mais medo do que horror em seus olhos. Desejei permanecer assim para sempre.
Segui até o final da linha e desci. A tarde caía e fiquei na esquina da avenida Washington com a Westview, observando as pessoas. Os poucos que tinham emprego voltavam para casa após a jornada de trabalho. Logo meu pai chegaria de carro do seu falso emprego. Eu não tinha emprego nem ia à escola. Eu não fazia nada. Estava enfaixado, parado numa esquina fumando um cigarro. Eu era um cara durão, um cara perigoso. Eu sabia das coisas. Sleeth tinha se suicidado. Eu não iria me suicidar. Preferia matar alguns deles. Levaria quatro ou cinco deles comigo. Ia mostrar para aquela corja o que significava me fazerem de palhaço.
Uma mulher veio andando pela rua em minha direção. Tinha pernas espetaculares. Primeiro, olhei diretamente em seus olhos e então me fixei em suas pernas. Assim que ela passou, fiquei olhando seu rabo, absorvendo cada detalhe daquele rabo maravilhoso, memorizando, guardando inclusive as costuras de suas meias de seda.
Jamais poderia ter feito isso sem minhas bandagens.
As bandagens ajudaram. O Hospital Geral do Condado de Los Angeles finalmente conseguira alguma coisa. As espinhas secaram. Elas não haviam desaparecido, mas diminuíram um pouco de tamanho. Ainda assim, novas surgiriam, erguendo-se outra vez. Novamente me furaram e me enfaixaram.
Minhas sessões de drenagem eram intermináveis. Trinta e duas, 36, 38 vezes. O medo das agulhas se fora, se é que um dia o tivera. Havia apenas a raiva, mas esta também havia desaparecido. Não havia sequer resignação da minha parte, apenas desgosto, um desgosto profundo por isso ter acontecido comigo, e um desgosto com os médicos que não podiam fazer nada a respeito. Estavam impotentes diante das feridas, assim como eu. A diferença é que eu era a vítima. Eles podiam ir para suas casas e viver suas vidas e esquecer, enquanto eu estava condenado a carregar este rosto comigo aonde quer que eu fosse.
Aconteceram, no entanto, mudanças na minha vida. Meu pai arrumou um emprego. Passou no concurso para guarda do Museu do Condado de Los Angeles. Meu pai era bom em concursos. Adorava matemática e história. Passou no concurso e finalmente arrumou um lugar de verdade para ir todas as manhãs. Havia três vagas para guarda e ele conquistou uma delas.
O Hospital Geral do Condado de Los Angeles de alguma forma descobriu sobre meu pai, e a srta. Ackerman me disse um dia:
– Henry, este será seu último tratamento. Vou sentir sua falta.
– Ah, corta essa – eu disse –, pare com essa brincadeira. Você vai sentir a minha falta tanto quanto eu vou sentir falta dessas agulhas elétricas!
Ela, porém, estava bastante estranha naquele dia. Aqueles olhos enormes estavam marejados. Escutei quando assoou o nariz. Uma das enfermeiras lhe perguntou:
– O que há, Janice? O que há de errado com você?
– Nada. Estou bem.
Pobre srta. Ackerman. Eu tinha quinze anos e estava apaixonado por ela e eu estava coberto de espinhas e não havia nada que nós dois pudéssemos fazer.
– Vamos – ela disse –, este vai ser seu último tratamento com os raios ultravioleta. Deite-se de bruços.
– Agora já sei o seu primeiro nome – eu disse. – Janice. É um nome bonito. Assim como você.
– Oh, fique quieto – ela disse.
Ainda a vi mais uma vez quando o primeiro zumbido soou. Eu me virei, Janice reajustou a máquina e deixou a sala. Jamais voltei a vê-la.
Meu pai não acreditava em médicos que não fossem de graça.
– Eles fazem você mijar num tubo, levam seu dinheiro e vão para casa para ficar ao lado de suas esposas em Beverly Hills – ele disse.
Uma vez, contudo, ele me mandou até um. Era um médico com mau hálito e a cabeça redonda como uma bola de basquete. A diferença é que ele tinha dois olhinhos onde uma bola de basquete não teria nenhum. Eu não gostava do meu pai, e o médico não era muito melhor. Ele disse, nada de frituras, e beba suco de cenoura. E foi isso.
Eu retornaria para a escola no próximo trimestre, disse meu pai.
– Estou arriscando meu rabo para evitar que as pessoas roubem. Ontem um negro quebrou o vidro de uma caixa e roubou algumas moedas raras. Peguei o desgraçado. Rolamos juntos escada abaixo. Dei um jeito de segurá-lo até que os outros chegassem. Arrisco minha vida todos os dias. Por que é que você poderia ficar aí sem mexer o seu rabo, deprimido? Quero que você seja um engenheiro. Como, diabos, você vai ser um engenheiro se eu encontro um caderno cheio de desenhos de mulheres com as saias arriadas até a altura da bunda? Isso é tudo o que você é capaz de desenhar? Por que você não desenha flores ou montanhas ou o oceano? Você vai voltar para a escola!
Eu bebia suco de cenoura, esperando pelo momento de ser rematriculado. Eu tinha perdido apenas um trimestre. As espinhas não estavam curadas, mas já não estavam tão terríveis quanto antes.
– Misto-quente
– Droga! – eu disse.
Eu estava sentado sob uma árvore. Morgan e Hass estavam sentados de costas para a garagem.
– O que foi? – perguntou Morgan.
– Temos que pegar aquele filho da puta – eu disse. – Ele é um problema na vizinhança!
– Quem? – perguntou Hass.
– O Simpson – eu disse.
– É mesmo – disse Hass –, ele tem sardas demais. Me irrita.
– Não é isso – eu disse.
– Não? – disse Morgan.
– Não. Aquele filho da puta disse que comeu uma garota debaixo da minha casa semana passada. É uma baita mentira! – eu disse.
– Sem dúvida! – disse Hass.
– Ele nem sabe trepar – disse Morgan.
– O que ele sabe é mentir – eu disse.
– Mentirosos não servem pra nada – Hass disse, soprando um arco de fumaça no ar.
– Eu não gosto de ouvir esse tipo de baboseira de um cara que tem sardas – disse Morgan.
– Bem, então talvez a gente tenha que pegar ele – sugeri.
– Por que não? – perguntou Hass.
– Vamos pegar ele – disse Morgan.
Cruzamos a calçada da casa de Simpson e lá estava ele, jogando bola contra a parede da garagem.
– Ei – eu disse –, olhem só quem está brincando sozinho!
Simpson pegou a bola num salto e se virou para nós.
– Olá, companheiros!
Nós o cercamos.
– Andou comendo alguma garota embaixo de alguma casa nesses últimos dias? – perguntou Morgan.
– Não!
– Como não?
– Ah, sei lá.
– Eu não acredito que você tenha comido alguém a não ser você mesmo! – eu disse.
– Eu vou entrar agora – disse Simpson. – Minha mãe me pediu para lavar a louça.
– Sua mãe mete a louça na buceta? – provocou Morgan.
Nós rimos. Chegamos mais perto de Simpson. De súbito, meti um soco na barriga dele. Ele se curvou para frente, segurando o estômago. Ficou desse jeito durante meio minuto, depois se endireitou.
– Meu pai vai chegar a qualquer momento – ele nos disse.
– Ah é? Seu pai também come menininhas debaixo das casas? – perguntei.
– Não.
Nós rimos.
Simpson não disse nada.
– Olhem pra essas sardas – disse Morgan. – Toda vez que ele come uma menininha embaixo de uma casa nasce uma sarda nova.
Simpson não disse nada. Parecia cada vez mais assustado.
– Eu tenho uma irmã – disse Hass. – Quem me garante que você não vai tentar comer a minha irmã embaixo de uma casa?
– Eu nunca faria isso, Hass, te dou a minha palavra!
– Ah é?
– Sim, de verdade!
– Bem, isso é pra você não mudar de ideia!
Hass meteu um soco na barriga de Simpson. Simpson se curvou de novo. Hass se abaixou, pegou um punhado de terra e enfiou na gola da camiseta de Simpson. Simpson se endireitou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Um veadinho.
– Deixem eu ir, por favor!
– Ir pra onde? – perguntei. – Quer se esconder debaixo da saia da sua mãe para ver a louça sair da buceta dela?
– Você nunca comeu ninguém – disse Morgan –, você não tem nem pau! Você mija pelas orelhas!
– Se um dia eu pegar você olhando pra minha irmã – disse Hass –, vai levar uma surra tão grande que vai virar uma sarda gigante.
– Me deixem ir embora, por favor!
Senti vontade de deixar ele ir. Talvez ele não tivesse comido ninguém. Talvez só estivesse sonhando acordado. Mas eu era o jovem líder. Não podia mostrar compaixão.
– Você vem conosco, Simpson.
– Não!
– Não o caralho! Você vem conosco! Agora, anda!
Caminhei ao redor dele e lhe dei um chute na bunda, bem forte. Ele gritou.
– CALE A BOCA! – berrei. – CALE A BOCA OU VAI SER PIOR! AGORA ANDE!
Nós o conduzimos até a calçada, cruzamos o gramado até a calçada da minha casa e seguimos para o meu quintal.
– Agora se endireite! – eu disse. – Solte as mãos! Vamos organizar um tribunal improvisado!
Eu me virei para Morgan e Hass e perguntei:
– Todos aqueles que acham que este homem é culpado por mentir que comeu uma menininha debaixo da minha casa devem dizer “culpado”.
– Culpado – disse Hass.
– Culpado – disse Morgan.
– Culpado – eu disse.
Eu me virei para o prisioneiro.
– Simpson, você é considerado culpado!
As lágrimas agora escorriam de seus olhos.
– Mas eu não fiz nada – resmungou.
– É disso que você é culpado – disse Hass. – De mentir!
– Mas vocês mentem o tempo todo!
– Não sobre trepar – disse Morgan.
– É sobre isso que vocês mais mentem. Foi com vocês que eu aprendi!
– Sargento – eu me virei para Hass –, amordace o prisioneiro. Estou cansado de suas mentiras de merda!
– Sim, senhor!
Hass correu até o varal. Encontrou um lenço e um pano de prato. Seguramos Simpson, e ele enfiou o lenço em sua boca e amarrou o pano de prato por cima. Simpson emitiu um som abafado e mudou de cor.
– Você acha que ele consegue respirar? – perguntou Morgan.
– Ele pode respirar pelo nariz – eu disse.
– Pois é – concordou Hass.
– O que a gente vai fazer agora? – perguntou Morgan.
– O prisioneiro é culpado, não é? – perguntei.
– Sim.
– Bem, como juiz eu o sentencio a ser enforcado até a morte!
Simpson fez uns barulhos por baixo de sua mordaça. Seus olhos nos encaravam, implorando. Corri até a garagem e peguei a corda. Havia uma, cuidadosamente enrolada, pendurada num grande gancho na parede. Eu não fazia a menor ideia de por que meu pai tinha aquela corda. Até onde eu sabia, ele nunca a havia usado. Agora ela teria uma utilidade.
Saí da garagem levando a corda.
Simpson começou a correr. Hass estava bem atrás dele. Ele pulou em cima de Simpson e o derrubou no chão. Virou-lhe o corpo e começou a dar socos na cara dele. Eu corri até eles e bati forte com a ponta da corda no rosto de Hass. Ele parou com os socos. Olhou para mim.
– Seu filho da puta, eu vou te dar uma surra!
– Como juiz, meu veredicto foi que esse homem seria enforcado. E assim será! SOLTEM O PRISIONEIRO!
– Seu filho da puta, vou te dar uma surra daquelas!
– Primeiro, vamos enforcar o prisioneiro! Depois você e eu resolveremos nossas desavenças.
– Resolveremos mesmo – disse Hass.
– Levante-se, prisioneiro! – eu disse.
Hass se moveu rapidamente e Simpson se ergueu. Seu nariz estava sangrando e havia manchado a parte da frente de sua camiseta. Seu sangue era de um vermelho muito vivo. Mas Simpson parecia resignado. Não estava mais chorando. Seus olhos, porém, revelavam traços de pavor, algo terrível de se ver.
– Me dê um cigarro – eu disse para Morgan.
Ele pôs um na minha boca.
– Acenda – eu disse.
Morgan acendeu o cigarro e eu dei uma tragada, então, segurando o cigarro entre meus lábios, exalei a fumaça pelo nariz enquanto fazia um laço na ponta da corda.
– Levem o prisioneiro para a varanda! – ordenei.
Havia uma varanda nos fundos da casa. Sobre a varanda, havia uma saliência. Lancei a corda sobre uma trave, e então puxei o laço para baixo, em frente à cabeça de Simpson. Eu não queria mais ir adiante com aquilo. Achava que Simpson já havia sofrido o suficiente, mas eu era o líder e ia ter que brigar com Hass depois, assim não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza.
– Talvez a gente não devesse fazer isso – disse Morgan.
– O homem é culpado! – gritei.
– Isso mesmo! – gritou Hass. – Ele deve ser enforcado!
– Olhem, ele se mijou todo – disse Morgan.
De fato, havia uma mancha escura na parte da frente das calças de Simpson, e ela estava aumentando.
– Covarde – eu disse.
Coloquei o laço sobre a cabeça de Simpson. Dei um puxão na corda e levantei Simpson até a ponta dos seus pés. Então, peguei a outra ponta da corda e amarrei numa torneira no lado da casa. Dei um nó bem apertado na corda e gritei:
– Vamos dar o fora daqui!
Olhamos para Simpson, que se equilibrava na ponta dos pés. Ele estava girando um pouco, devagar, parecia já estar morto.
Comecei a correr. Morgan e Hass correram também. Corremos até a calçada e então Morgan e Hass foram embora, cada um para a sua casa. Dei-me conta de que eu não tinha para onde ir. Hass, eu pensei, ou você se esqueceu da briga ou não queria brigar.
Fiquei parado na calçada por alguns instantes, então corri de volta ao pátio. Simpson ainda estava girando. Um pouco, devagar. Tínhamos esquecido de amarrar suas mãos. Ele estava com as mãos erguidas, tentando aliviar a pressão em seu pescoço, mas não estava conseguindo. Corri até a torneira, desatei a corda e a soltei. Simpson bateu na varanda, depois tropeçou e caiu no gramado.
Ele estava de bruços. Virei seu corpo e tirei a mordaça. Ele estava mal. Tinha o aspecto de quem poderia morrer a qualquer momento. Me debrucei sobre ele.
– Ouça bem, seu filho da puta, não morra, eu não queria te matar, de verdade. Se você morrer, vai ser triste. Mas se não morrer e contar isso para alguém, aí você não me escapa. Entendeu?
Simpson não respondeu. Apenas me olhou. Ele estava péssimo. Seu rosto estava roxo e ele tinha marcas de corda no pescoço.
Eu me levantei. Olhei-o por alguns instantes. Ele não se movia. A coisa estava feia. Fiquei tonto. Depois me recompus. Respirei fundo e caminhei até a calçada. Era cerca de quatro da tarde. Comecei a caminhar. Caminhei até a avenida e segui caminhando. Eu estava pensativo. Sentia que minha vida tinha se acabado. Simpson sempre gostara de andar sozinho. Talvez fosse solitário. Nunca se misturava com a gente ou com os outros garotos. Ele era estranho nesse sentido. Talvez fosse isso o que nos incomodava nele. Mesmo assim, ele tinha algo de bom. Eu sentia que havia feito algo muito ruim e, ao mesmo tempo, sentia que não. Na maior parte do tempo eu tinha um sentimento vago, que se centrava no meu estômago. Caminhei e caminhei. Caminhei até a autoestrada e voltei. Meus sapatos machucavam muito meus pés. Meus pais sempre me compravam sapatos vagabundos. Pareciam bons por mais ou menos uma semana, então o couro rachava e as unhas começavam a atravessar a sola. Eu segui caminhando mesmo assim.
Quando voltei para casa já era quase noite. Caminhei vagarosamente pela calçada em direção ao quintal. Simpson não estava lá. Nem a corda. Talvez ele estivesse morto. Talvez ele estivesse em outro lugar. Olhei em volta.
Vi o rosto do meu pai pela porta de tela.
– Venha aqui – ele falou.
Subi as escadas da varanda e passei por ele.
– A sua mãe ainda não chegou. Melhor assim. Vá para o quarto. Quero ter uma conversinha com você.
Avancei até o quarto, sentei na cama e olhei para os meus sapatos vagabundos. Meu pai era um homem grande, mais de um metro e oitenta de altura. Ele tinha uma cabeça grande e olhos que pareciam pendurados sob suas sobrancelhas bagunçadas. Tinha lábios grossos e orelhas grandes. Era másculo sem precisar fazer esforço algum.
– Por onde você andava? – ele perguntou.
– Por aí, caminhando.
– Caminhando? Por quê?
– Gosto de caminhar.
– Desde quando?
– Desde hoje.
Fez-se um longo silêncio. Então ele falou de novo.
– O que aconteceu no nosso quintal hoje à tarde?
– Ele está morto?
– Quem?
– Eu disse pra ele não contar. Se ele contou, é porque não está morto.
– Não, ele não está morto. E os pais dele iam chamar a polícia. Tive que conversar um longo tempo com eles para convencê-los a não fazer isso. Se eles tivessem chamado a polícia, sua mãe teria ficado arrasada! Está entendendo?
Não respondi.
– Sua mãe teria ficado arrasada! Você entende isso?
Não respondi.
– Tive que pagar para que ficassem calados. E, além disso, vou ter que pagar as despesas médicas. Você vai levar a surra da sua vida! Eu vou te dar um corretivo! Não vou criar um filho incapaz de viver em sociedade!
Ele ficou de pé junto à porta, parado. Eu olhei para os seus olhos debaixo daquelas sobrancelhas, para aquele corpo enorme.
– Chame a polícia – eu disse. – Não quero você. Prefiro a polícia.
Ele se aproximou de mim devagar.
– A polícia não entende gente como você.
Levantei da cama e cerrei os pulsos.
– Vamos lá – eu disse –, vou lutar com você!
Com um rápido movimento ele estava em cima de mim. Foi como se um raio de luz me cegasse, uma pancada tão forte que nem cheguei a sentir. Eu estava no chão. Levantei-me.
– É melhor você me matar – eu disse –, porque, quando eu crescer, vou matar você!
A pancada que veio a seguir me arrastou para baixo da cama. Parecia um bom lugar para estar. Olhei para as molas. Eu nunca tinha visto nada mais agradável e maravilhoso que aquelas molas acima de mim. Então eu ri. Foi um riso apavorado, mas eu ri, e ri porque me veio o pensamento de que talvez o Simpson tivesse de fato comido uma garota debaixo da minha casa.
– De que diabos você está rindo? – gritou meu pai. – Você é mesmo o filho do Diabo, você não é meu filho!
Vi sua enorme mão tatear por baixo da cama, procurando por mim. Quando se aproximou, agarrei a sua mão com as minhas e a mordi com toda a força. Ouvi um gemido feroz e a mão se recolheu. Senti o gosto de sangue e carne em minha boca, cuspi fora. Então eu soube que, apesar de Simpson estar vivo, eu poderia estar morto dentro de poucos instantes.
– Muito bem – ouvi meu pai dizer em voz baixa –, agora você pediu e, por Deus, você vai levar.
Eu esperei. E, enquanto esperava, ouvia apenas alguns sons estranhos. Ouvia os pássaros, o som dos carros que passavam, ouvia até mesmo o som do meu coração batendo forte, o som do sangue correndo em minhas veias. Eu ouvia a respiração do meu pai, e me arrastei até a parte do meio da cama e esperei pelo que viria em seguida.
– Septuagenarian Stew
A quinta série era um pouco melhor. Os outros estudantes pareciam menos hostis, e eu crescia fisicamente. Ainda não era escolhido para os times da escola, mas já não sofria ameaças frequentes. David e seu violino tinham partido. Sua família se mudara. Agora eu caminhava sozinho para casa. Muitas vezes, um ou dois caras me seguiam, dentre os quais Juan era o pior, mas não chegavam a me fazer nada. Juan fumava cigarros. Caminhava atrás de mim fumando um cigarro e sempre tinha consigo um parceiro diferente. Jamais me seguia sozinho. Isso me assustava. Queria que eles sumissem. Contudo, por outro lado, eu não dava muita bola. Não gostava de Juan. Não gostava de ninguém naquela escola. Creio que eles sabiam disso. Devia ser por isso que não simpatizavam comigo. Não gostava do jeito que eles caminhavam, de sua aparência, do modo como falavam, mas também não gostava dessas coisas em meu pai e minha mãe. Continuava com a sensação de estar cercado por um grande espaço em branco, um vazio. Havia sempre uma sombra de náusea em meu estômago. Juan tinha a pele morena e usava uma corrente de metal em vez de cinto. As garotas tinham medo dele, assim como os rapazes. Ele e um dos seus capangas me seguiam quase todos os dias. Eu entrava em casa, e eles ficavam parados lá fora. Juan fumaria seu cigarro, bancando o durão, e seu parceiro ficaria ali parado. Eu os observava através das cortinas. Finalmente, depois de um tempo, eles acabavam partindo.
A sra. Fretag era nossa professora de Inglês. No primeiro dia de aula ela perguntou o nome de cada um de nós.
– Quero conhecer cada um de vocês – ela disse.
Sorriu.
– Bem, cada um de vocês tem um pai, estou certa. Penso que seria interessante se descobríssemos o que eles fazem para viver. Começaremos pelo primeiro da fila e iremos adiante, até que todos na sala tenham falado. E então, Marie, o que seu pai faz da vida?
– Ele é jardineiro.
– Ah, mas que legal! Carteira número dois... Andrew, o que seu pai faz?
Foi terrível. Os pais de todos os meus colegas das redondezas tinham perdido seus empregos. Meu pai havia perdido o emprego. O pai de Gene ficava o dia inteiro sentado na varanda. Todos estavam desempregados com exceção do pai de Chuck, que trabalhava num matadouro. Ele dirigia o carro que entregava as carnes, um carro vermelho com o nome do matadouro gravado nos lados.
– Meu pai é bombeiro – disse o número dois.
– Ah, isso é interessante – disse a sra. Fretag. – Carteira número três.
– Meu pai é advogado.
– Carteira quatro.
– Meu pai é... policial...
O que eu iria dizer? Talvez apenas os pais da minha vizinhança estivessem sem emprego. Tinha ouvido falar do crack da bolsa. Significava algo ruim. Talvez o mercado só tivesse entrado em colapso na nossa vizinhança.
– Carteira dezoito.
– Meu pai é ator de cinema...
– Dezenove...
– Meu pai toca violino em concertos...
– Vinte...
– Meu pai trabalha num circo...
– Vinte e um...
– Meu pai é motorista de ônibus...
– Vinte e dois...
– Meu pai é cantor de ópera...
– Vinte e três...
Vinte e três. Era eu.
– Meu pai é dentista – eu disse.
A sra Fretag prosseguiu até que chegou no número 33.
– Meu pai não tem emprego – disse o número 33.
Merda, pensei, queria ter pensado nisso.
Um dia, a sra. Fretag nos passou uma tarefa.
– Nosso ilustríssimo senhor presidente, Herbert Hoover, virá visitar Los Angeles no sábado e fará um discurso. Quero que todos vocês vão até lá ouvir o nosso presidente. E quero que escrevam um ensaio sobre a experiência e sobre o que vocês acharam do discurso do presidente Hoover.
Sábado? Não havia a mínima chance de que eu pudesse ir. Era dia de cortar a grama. Eu tinha que cuidar dos fiapinhos. (Eu nunca conseguia eliminá-los por completo.) Praticamente todos os sábados eu apanhava com o amolador de navalha porque meu pai encontrava um fiapo. (Também apanhava durante a semana, uma ou duas vezes, por outras coisas que eu deixava de fazer ou não fazia corretamente.) Não tinha como dizer a meu pai que eu iria assistir ao presidente Hoover.
Assim, não fui. No dia seguinte, peguei um jornal dominical e me sentei para escrever sobre a aparição do presidente. Seu carro aberto, abrindo caminho entre as bandeiras tremulantes, tinha entrado no estádio de futebol. Um carro, cheio de agentes do serviço secreto, lhe abria caminho, enquanto outros dois seguiam o carro presidencial de perto. Os agentes eram homens de coragem, armados para proteger nosso presidente. A multidão se levantou quando o carro presidencial entrou na arena. Nunca acontecera anteriormente nada parecido. Era o presidente. Era ele. Acenou. Nós aplaudimos. Uma banda começou a tocar. Gaivotas sobrevoavam em círculos, como se soubessem que se tratava do presidente. E havia ainda aviões que escreviam mensagens de fumaça no céu. Escreviam no ar frases como: “A prosperidade está logo ali na esquina”. O presidente se pôs de pé em seu carro, e, assim que ele fez esse movimento, as nuvens se afastaram e os raios de sol incidiram diretamente em seu rosto. Era quase como se Deus também soubesse quem ele era. Então os carros pararam, e nosso grande presidente, rodeado pelos agentes do serviço secreto, caminhou até o palanque. Ao se posicionar junto ao microfone, um pássaro desceu do céu e pousou sobre a bancada em que estava o microfone. O presidente acenou para o pássaro e riu e todos nós rimos com ele. Então ele começou a falar, e as pessoas passaram a ouvi-lo com atenção. Eu quase não conseguia ouvir o discurso porque estava sentado muito próximo a uma máquina de pipocas que fazia muito barulho estourando os grãos, mas creio ter escutado ele falar que os problemas na Manchúria não eram muito sérios e que aqui no país as coisas logo entrariam nos eixos, que não devíamos nos preocupar, tudo o que precisávamos fazer era acreditar na América. Haveria empregos para todo mundo. Haveria bastantes dentistas e dentes suficientes para arrancar, bastantes incêndios e bombeiros bastantes para apagá-los. As fábricas e as indústrias reabririam. Nossos amigos na África do Sul pagariam suas dívidas. Logo todos dormiríamos tranquilamente, com os estômagos cheios e os corações pacificados. Deus e nosso grande país nos envolveriam em seu amor, nos protegendo do mal, dos socialistas, nos despertando de nosso pesadelo nacional, para sempre...
O presidente ouviu os aplausos, acenou, então voltou para o carro, entrou e partiu seguido pelos carros apinhados de agentes do serviço secreto enquanto o sol mergulhava no horizonte e o entardecer se fazia noite, vermelho, dourado e maravilhoso. Havíamos visto e ouvido o presidente Herbert Hoover.
Entreguei meu ensaio na segunda-feira. Na terça, a sra. Fretag se dirigiu à classe:
– Li os ensaios de todos vocês sobre a visita do nosso ilustríssimo presidente a Los Angeles. Eu estava lá. Alguns de vocês, pelo que pude notar, não puderam comparecer ao evento por uma ou outra razão. Para aqueles entre vocês que não puderam estar lá, gostaria de ler o ensaio escrito por Henry Chinaski.
Um terrível silêncio se abateu sobre a turma. Eu era de longe o aluno mais impopular da classe. Era como se todos eles tivessem levado uma facada no coração.
– Este é um texto muito criativo – disse a sra. Fretag e começou a ler meu ensaio.
As palavras me soavam bem. Todos escutavam. Minhas palavras enchiam a sala, corriam de um lado a outro pelo quadro-negro, ricocheteavam no teto e cobriam os sapatos da sra. Fretag, se amontoando no chão. Algumas das garotas mais lindas da classe começaram a me lançar olhares furtivos. Os caras durões estavam putos da cara. Seus ensaios não valiam merda nenhuma. Eu bebia de minhas próprias palavras como se fosse um homem sedento. Comecei, inclusive, a acreditar que elas representassem a verdade. Vi Juan sentado ali como se eu lhe tivesse esmurrado a cara. Estiquei minhas pernas e me recostei na cadeira. Logo, porém, estava tudo terminado.
– Com essa grande redação – disse a sra. Fretag –, encerro a aula...
Todos se levantaram e começaram a guardar seus materiais.
– Você não, Henry.
Sentei-me na cadeira, e a sra. Fretag ficou ali, me encarando. Então disse:
– Henry, você estava lá?
Tentei encontrar uma resposta. Nada me ocorreu. Eu disse:
– Não, eu não estava lá.
Ela sorriu.
– Isso faz com que seu ensaio seja ainda mais notável.
– Sim, madame...
– Você já pode ir, Henry.
Levantei-me e deixei a sala. Fui para casa. Então era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas. Seria fácil para mim. Olhei em volta. Juan e seu comparsa não estavam me seguindo. As coisas estavam melhorando.
– Misto-quente
Esperma?
A mancha azul, ao meio do quadro, no chão, entre aqueles corpos grandes das mulheres.
Que era esperma?
Disse que era esperma ainda vivo.
Disse que ele próprio tinha esperma nas mãos.
Havia esperma por toda a parte.
Terrível.
Sim, terrível.
Um dia agarrou-me na cabeça, passou os dedos pela minha boca e disse: tens esperma na boca.
Já não sabia que fazer, pois encontrava esperma entre as páginas dos livros, nos bolsos, nos cigarros.
Uma vez atirou fora os cigarros e gritou: porque está aqui esperma, nos cigarros?
Nem se pode fumar.
E depois como foi?
Parece que o esperma invadia tudo.
Descobri que ele não imaginava que o esperma era posto aqui e ali pelas pessoas.
O esperma aparecia simplesmente, existia uma força qualquer, uma extraordinária força corruptora, que atingia tudo.
Mas essa ideia não o repugnava e revoltava, unicamente.
Era, para além disso e mais fundo, uma alegria dolorosa, como se o espírito fosse por fim vencido, na sua orgulhosa pureza, pela carne, pelo sangue, pelas fezes, as unhas, os pêlos, o suor, o odor áspero e invencível do corpo, pelo movimento e acção do corpo, pelo esperma, por tudo aquilo que.
Certo angelismo.
Entendes?
Seria isso?
Ele disse-me que estava impotente, mas que eu poderia salvá-lo.
Terrível.
Sim, é claro que era terrível.
Pediu que eu me despisse, para ver o meu corpo que já não via desde a infância, quando tomávamos banho juntos.
Que éramos irmãos, disse eu.
Fui estúpida.
E despiste-te?
Sim, acabei por me despir, mas já era tarde.
Eu estava nua, num canto do quarto, completamente constrangida, sem saber os gestos, se havia de sorrir, dizer qualquer coisa.
Ele olhava-me friamente.
Com uma espécie de frio terror.
E disse-me: tens o corpo todo sujo de esperma.
Ela diz odeio viagens.
Descia-se da camioneta e começava o ritual, as pessoas negras abanando devagar as cabeças e a saberem demais sobre o que ia acontecer.
Eu não.
Ele diz viajava sempre, todos os meses, todas as semanas.
Ao princípio era pelos corredores, durante o dia inteiro.
Eu sabia tudo acerca de corredores.
Então ela diz atravessava um jardim, doce jardim, atravessava uma casa, doce casa, que tinha cortinas no lugar de portas, e via o quintal surpreendido, cheio de flores, florinhas.
Eu entrava em crença, à falta de indícios do mal.
Mais tarde começou o período das escadas diz ele, eu ainda não conhecia as pessoas.
Não tinham cor.
Ensinaram-me aquilo.
Era uma grande paixão, tinha doze andares, e em cima ficava a torre toda envidraçada à volta.
Explicavam-me a cidade.
Eu estava apaixonado.
Diziam vê a cidade, e como as pessoas não tinham cor senão darem-me as escadas e a torre em cima, eu absorvia com a paixão aquela cidade: telhados, parques, caminhos-de-ferro, mar, colinas, e aquilo distante era uma fortaleza com um nome de santo.
De cada vez que eu acreditei diz ela então construí uma cadeira para me sentar, e veio o inesperado movimento bêbedo da mãe e partiu tudo.
Foi assim que construí muitas cadeiras e que perdi a esperança de me sentar.
Depois diz ele.
Depois diz ela vi-me no espelho.
Diz ele depois foi a época dos túneis.
Viajava por um túnel, e numa ponta havia a porta fechada, na outra a poeira quente.
Uma vez gritei.
Sabia o que era — medo, medo.
As pessoas não existiam.
Senti que tinha de procurar, tinha de viajar cada vez mais, e mais depressa.
Não se sabe se uma pessoa desaparecerá depressa do lugar, não se sabe mesmo se o lugar vai desaparecer.
Vi-me diz ela vi-me no espelho, com o meu corpo à superfície — e achava arriscado tê-lo assim.
Falo no imperfeito, porque elas deslizaram já, estas coisas, e o imperfeito é o bom tempo da narração.
Narrava-se.
Anoitecia-se.
Entravam-me pelo quarto.
Era por causa do corpo.
Andava de uma casa para outra, naquela cidade, é o que posso dizer.
À força de conhecer tanta gente, ganhei uma inteligência muito aguda — inteligia as pessoas.
Inteligia que elas nunca estavam lá.
Uma criança não fala sobre o conhecimento, a profundidade.
Ela pensa.
E pensa isto: são inferiores a mim, estas pessoas que estão e que não estão.
É preciso procurar mais.
Esta ideia devorava-me: havia o espaço todo e o tempo todo para percorrer.
Havia um dínamo.
Não julgues que aumento diz ela que aumento as coisas, o espaço que ocupam é mesmo a mais.
Aprendi a desistir de um modo ainda mais sóbrio, isento, que o sóbrio e isento modo masculino de desistir.
Nunca caí em tentação.
Bem, bem, bem.
Diz ele bem.
Depois diz era no que eu caía sempre.
Caía em toda a espécie de tentações, porque eu era um espião.
Estava a espiar os lugares para ver se apareciam as pessoas, espiava as pessoas, alguma coisa poderia passar-me desapercebida.
Estava louco de atenção.
Tinha medo da minha inteligência.
Ela exercia-se apaixonadamente no vácuo.
Dei passeios, fui ver a levada, era uma água completamente branca onde as pessoas iam contrastar.
Gostei.
Também havia o poço dos afogados, mas era escuro, sobrecarregado de historiazinhas de coração.
O jardim estúpido funcionava.
Em casa agitava-se a mãe.
Agitou-se.
Foi um ser com barulho interior.
Mexeu-se demais.
Mexeu demais: nos telefones, nas revistas, na solidão dos outros.
Olha: começaram a dar-me nomes, esperavam coisas de mim, mas eu só pensava nisto: aniquilar-me na impossível decifração do grande espaço desabitado.
Aprendera a viajar tão furiosamente que só podia desejar disse ele desejar morrer.
Sabes como é a morte de uma criança cheia da ira do conhecimento?
Sabes perguntou ele como é o desejo de morte de uma criança que principiou pela ciência dos corredores, e depois caminhou por aí fora, passando pela visão alta de uma cidade, e andando de pessoas para pessoas, a saber cada vez mais, até ao vazio sabes? perguntou.
Tinha também um ferro esquisito para arranjar o cabelo, a mãe.
Punha o ferro na lenha em brasa e ficava a olhar.
Depois cuspia em cima do ferro, e quando já havia sinais de tudo arder ficava extremamente alegre e ia a correr para o espelho enrolar o cabelo sexual.
Decerto, decerto murmurou ele, havia as irmãs.
Eu descobrira essa coisa espantosa da menstruação, via panos sujos de sangue, havia o odor da menstruação, o segredo.
Vi as irmãs nuas.
Como é possível saber tantas coisas?
Mas ninguém estava próximo.
E é assim: saber coisas é ficar só, sobretudo se se não sabe a idade, que é um conhecimento demasiado tardio, e é o que traz a paz.
Apenas a ciência dos cem anos é que tem em si a paz.
Quando se é criança, não se tem cem anos.
Tu existias por longe das pessoas diz ela, mas nunca percebi bem.
Parece que te viram passar no baldio.
Nunca foste para o lado da levada, mas não te pergunto agora porquê.
Eu era uma pessoa negra sim diz ele, mas era outra a treva, e o que eu sabia era outra coisa, e não abanava a cabeça devagar.
Talvez pensasse em ti, pensaria se estivesse mais livre e não houvesse tantas escadas, tantas mudanças de coisa nenhuma para coisa nenhuma.
Fui ao baldio disse ela.
Fui a toda a parte, a ver se havia saída, mas não.
O baldio tinha as amoras silvestres, e havia umas hastes duras que eu enterrava nas amoras, devagar, como se a haste estivesse a fazer amor com as amoras.
Eu tinha a febre de enterrar hastes em amoras e amoras em hastes, e era uma febre quente como não podes supor.
Ele disse só pensava em ir para a cama com as minhas irmãs.
Dia a dia, acrescentava-se a minha ciência.
Examinava a roupa interior delas, as calças, os panos da menstruação.
Punha-me a ouvi-las urinar.
Uma mulher a urinar.
Às vezes as lágrimas desciam-me dos olhos para a boca, e era o gosto exaltante das lágrimas.
Masturbava-me muito depressa, porque era preciso encher o espaço, encontrar alguém, morrer depressa.
Mas nunca te encontrei, a ti.
Daquela terra percebo eu disse ela, tinha um castelo podre, o céu era íngreme, as casas lisas, é tudo muito bonito, tenho o filme disso.
Tu existias no quarto interior, pegado ao meu, mas eu não te via, e a culpa era tua.
À tua volta estavam as coisas, mas não se pode entrar no lugar delas.
E à volta das coisas estavas tu com o teu delírio: nunca chamaste por mim.
Detestava-te.
Sabia porquê.
Sabia que havias de ir para uma cidade distante.
Sabes, olhei tanto tempo para o relógio, que nem sequer estava certo, e pensei: deixo o tempo passar disse ela.
Eu não via nada, nem ouvia, nem falava disse ele, estava ocupado naquela profundidade vazia de saber tantas coisas ao mesmo tempo.
O meu ofício era aquele grande erro que se tinham esquecido de não pôr lá.
Preparava-me ferozmente para a distracção.
Era preciso ser forte disse ele, e isto quer dizer passar depressa.
Eu já nem olhava, pois sabia que não estava ninguém.
Só havia uma coisa: andar, encher o espaço, mexer as mãos e os pés como se isso fosse respiração.
Não havia quartos ao lado.
E ela disse escondi garrafas.
Nunca cortei com elas os pulsos, para espantá-los.
Soube sempre que ninguém era espantável naquela região.
Parece que nas ilhas, por exemplo, já se não passa assim: se acredita no espanto e se pode correr riscos.
Podia dizer-te mais e mais, mas eras capaz de te assustares.
Ele perguntou medo?
Só tenho o meu disse, o meu terror.
Estou sempre ocupado nisso: chegar ao pé de portas, sair de túneis para o meio da poeira, espreitar para os enigmas, andar depressa pelos labirintos, estudar topografias.
Sim tenho disse ele o amor dos mapas.
Parecem reais.
Foi ali fixada qualquer coisa extremamente móvel, fugidia, inexistente: os lugares, e as pessoas nos lugares, mas isso nem nos mapas vem.
Talvez fosse bom parar, mas talvez eu já não saiba.
Não me lembro de ter estado imóvel.
É por causa do medo: é imóvel.
Amo-te disse ela, chamei-te.
Sim, sim, amo-te, talvez eu tivesse querido ouvir, já não sei, talvez eu queira saber foi o que ele disse, sim.
(Eles estavam deitados, e isto pode perceber-se, pode perceber-se tudo.
Pode perceber-se que ela lhe desabotoou a camisa e esfregou o rosto e a boca no peito dele, e esteve assim muito tempo, e nenhum deles falava.
E ela despiu-o, e depois despiu-se, e esfregou de novo a cara e a boca pelo corpo dele, e encostou o rosto ao sexo dele, e sentia-se só no meio das trevas.
Estava cega.
Beijou-lhe o sexo devagar, e a boca tremia, queria desaparecer, morrer, ou queria amar aquele homem como se isso fosse poder amar de repente o mundo todo, parar, parar.
E apertou entre os lábios o pénis, devorou-o lentamente, enchendo a boca com aquela coisa quente e viva, e isso dava-lhe um sombrio e doce desejo de dormir.
E então ficou imóvel, somente a boca tremia, e isso quase que podia ter um nome: paz.
Que eu seja humilhada pensou ela, humilhada.
E fechou os olhos e abriu-os: a treva, sempre.
Então ergueu a cabeça, subiu na cama até junto ao rosto dele e disse-lhe ao ouvido puta, chama-me puta.
E ele disse puta.
E ela voltou-se e pôs-se de joelhos na cama, dobrada, e disse mete no cu.
E, se fechavam ou abriam os olhos, era a treva.
Para ambos e para sempre.
Amavam o terror, um no outro, cada um o seu terror no outro.
Talvez pudessem morrer.)
Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
Era tudo terrivelmente importante.
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
O amado e temível abismo.
Estamos a pensar nos enigmas.
Na cidade, em nós, em todas as leis.
Naquela anarquia que a nossa força e fraqueza introduziram na ordem, para que se possam criar as novas leis — as outras.
Pensamos nos enigmas, e falamos como de outra coisa, fazendo alguns gestos que parecem possuir apenas a intenção prática, a deslocada intenção, agora que se supõe não haver nenhum acto prático a realizar.
Num país estrangeiro, ao norte.
Colocados rigorosamente nesta situação definitiva de duas pessoas com a carga de uma equação.
Ela diz que eu pareço um morto.
Pareces um morto, diz.
E sorri com uma hostilidade distraída.
Encosto-me à parede, erguendo o corpo sobre os lençóis frios.
Peço um cigarro.
E ela estende-me um, aceso.
Merda.
Pareces um morto.
Um decapitado.
Estou atento e nada se perde: decapitado.
Decapitado?
Sim, diz ela, decapitado e descolhoado.
Sem colhões?
Isso: sem tesão, sem força.
Morto.
E sorria sempre, enquanto eu fumava encostado à parede, sobre os lençóis húmidos.
Ela sentara-se no chão com a cabeça debruçada para a cama, por altura dos meus joelhos.
Perguntei: como é?
Sou uma espécie de puta, eu, e não tenho medo, murmurou levemente.
E a frase quase se perdia no rumor, na luz, na noite, na neve, no estrangeiro.
Eu tinha toda a atenção, e a frase foi essa, essa coisa tremenda e quase errada, quase certa.
Contudo, ela não se prostituíra, não, nem eu tinha medo.
E no entanto eu parara, como morto, e alguém, antes da subversão das leis, poderia dizer que ela se prostituíra.
Não é assim.
Inclinei-me mais, e rocei a mão onde tinha o cigarro pela sua cabeça muito viva.
O fumo descia, subia, metia-se-lhe nos cabelos, e eu estremeci, porque de repente aquilo era belo, embora nós talvez estivéssemos perdidos.
Ouve: eu tinha a mão na tua cabeça, e o fumo do cigarro confundia-se com os cabelos.
Não, não chega.
Havia na sua voz uma espécie de maligna exaltação, porque lhe parecera porventura que eu procurava uma fuga.
Ouve: há uma estranha beleza em tudo isto.
E ela então levantou-se, vestiu o velho casaco grosso e saiu, sem me olhar, sem dizer nada.
Eu estava encostado à parede, fumando ainda, e olhava o fogão de granito preto, vazio e retórico.
Ela tinha saído para a cidade, caminhava pela névoa.
Embebia-se da fria luz do norte, sob a qual os cabelos se tornam húmidos e brilhantes.
Vi o quarto horizontalmente, ao clarão geladíssimo da lâmpada.
Malas, roupas, a mesa com bâtons, pontas de cigarro, um frasco de compota vazio, um livro velho.
Estes quartos forrados de papel.
Via o quarto a direito, sob a luz áspera.
Estou num país, estou só.
Desejava pensar bastante nisto.
Completamente só, com alguma fome acumulada, uma certa angústia para definir uma posição pessoal perante não sei que enigmas, que movimentos do tempo.
Só, até que ela voltasse.
Às vezes um de nós saía, andava misteriosamente pela cidade e voltava com cigarros, pão, queijo, café.
Partilhávamos do que um e outro conseguíamos apanhar.
Havia um silêncio quente e aéreo em volta dos cigarros e do café.
Bebíamos, fumávamos.
Uma noite embebedámo-nos com cerveja.
Pusemo-nos em frente do espelho, inteiramente nus, abraçados, e eu perguntei:
O que nos vai acontecer?
E quando ela entrava com a cara vermelha do frio e o ar delicadamente enigmático de quem vinha do meio das noites, de uma zona indevassável, e fora apanhada de repente pelas luzes fortes.
Sorria, tinha segredos.
Dispunha sobre a mesa o que trazia.
A cidade fecha-se, confunde as pistas, lança neve sobre as pegadas — para que fiquemos isolados.
Tudo contra as virtudes do homem: armadilhas, caminhos, muros, luzes ferozes, e o idioma, a base idiomática da emoção e do pensamento.
Eis um homem e uma mulher, e tremem: estão providos de forças, lutam contra a memória, e têm outra memória.
Eles lutam, e vejam: é um sentido, uma medida, uma arma, uma virtude.
Isto é no norte.
Quer dizer: o homem e a mulher são extremos, despiram muitos vestidos, são implacáveis.
E, dentro da sua justa ferocidade, em frente do norte ascético, possuem uma doçura essencial.
Estão acordados.
Há muitas coisas por cima da cabeça deles.
Vejamos: fome?
Sim.
E cansaço?
Sim.
E doença e frio e medo?
Sim, sim.
E ela voltou mais tarde.
Escuta, disse eu, não tenho medo.
Trazia café e cigarros.
Vamos salvar isto, murmurei.
Mas ela sabia tudo.
Tomámos café, fechando as mãos em volta das chávenas quentes, para desentorpecer os dedos.
Se tivéssemos algum dinheiro, podíamo-nos embebedar.
Ela veio, com a sua maneira solitária e profunda de andar, e o seu movimento entre os objectos assumia uma dignidade extrema.
Então, tocou-me com a ponta dos dedos na cara, e os dedos escorregaram com uma subtileza incrível, passando pelos meus lábios.
Depois a mão caiu e fechou-se.
Escreve o teu livro.
Mas qual era o meu livro?
Para que escreveria eu um livro?
Salva tudo isto.
E a mão estava fechada contra a coxa, fortemente.
Saio, não é?, e aparece sempre algum dinheiro.
Tens a certeza de que eu o não arranjo indo para a cama com homens?
E tu sais, e como arranjas algum dinheiro, às vezes?
Não, não tinha importância.
O assunto era este: para quê?
Decerto: para a gente se livrar de tudo, ser cada vez mais rigorosa com as coisas, salvar aquela fonte cujo sussurro se perde entre todas as vozes.
Não te quero ver morto, não quero morrer, oh não.
Escuta, disse eu, não tenho medo.
Não te impacientes.
Foi a última vez que me decapitaram.
Mas eu abaixo-me sempre, e apanho a cabeça que rolou pelo chão.
Coloco-a, cheia de sangue, sobre os ombros.
É um livro?
Ela girou de novo pelo quarto, lenta, densa, e estava na ponta do quarto, junto ao fogão.
Entre nós, a mesa desordenada, as malas, as chávenas sujas.
Percebes?, perguntou, percebes isto?
Não é um livro.
É um acto onde já nada se disperse, e onde tudo esteja contido com rigor.
Aquela beleza na minha cabeça, percebes?
Não é assim, não.
Há uma forma para as coisas, não uma forma para cada coisa, mas uma forma una e pura de todas elas.
Uma única forma.
Devemos estar completamente juntos, percebes?
E nada mais tem importância.
Não estou morto.
Não, tu respiras.
É preciso atenção.
Quando a cidade for pelos ares.
Eu sei, disse eu, nunca mais morreremos.
Depois, ela começou a despir-se, e eu também, e quando estávamos ambos nus fomos para diante do espelho.
Estamos nus, percebes?
E, apesar de eu ser um homem cansado, apesar da minha memória e solidão, disse que percebia.
E percebia.
A luz vinha pelas nossas costas e, no espelho, parecia que os nossos corpos saltavam para diante, como tremendos anjos brancos, cheios de uma violenta anunciação.
Lá atrás, junto à janela, escorregava a neve, e havia ainda a noite, e todas as coisas difíceis.
Os nossos corpos saltavam na luz.
Éramos fortes como o diabo.
Merda, disse ela, temos de salvar tudo.
Também éramos frágeis, no espelho, e tremíamos por causa da nossa força.
Como se fôssemos demasiado frágeis para a nossa força.
Escuta, disse eu, temos uma lei formidável.
Nós somos os anjos.
Ninguém mais sabia disto, porque eles estavam todos distraídos, com a noite deles, a neve e a cidade.
Se soubessem, matavam-nos.
E então a alegria, a nossa, irrompeu da maior profundidade, e os nossos corpos brilhavam terrivelmente no espelho.
Telefono à noite.
Expectativa confusa e sensível que as noites carregam de uma espécie de pendente anunciação ou insuportável subtileza.
A geografia nocturna dos telefones.
Ia por ali, quase com o vício de ganhar e perder lugares, rejeitando uma cabine em favor de nova hipótese, guiado pela cegueira pontilhada de pequeníssimas estrelas.
Breve intuição, momento de fulgor, uma imaginação gasosa.
Mas evoluí.
A idade, a idade interior, a interioridade — limpou-me da retórica.
E o meu estilo das cabines públicas tornou-se ático e centrípeto.
Talvez eu tenha encontrado o classicismo do meu próprio delírio.
O que digo verdadeiramente é que acabara por me fixar numa só cabine.
Era um telefone na esquina de duas avenidas, quase oculto por uma árvore e rodeado de uma grossa cintura de terra, onde floriam furiosamente ininteligíveis corolas: amarelas, brancas, vermelhas, lilases.
A cabine tinha as vantagens incomunicáveis a outrem, as minhas secretas.
E pequenas vantagens de pormenor, que direi:
Por exemplo:
À altura da minha cabeça faltava-lhe um vidro, e por ali, ao mesmo tempo que telefonava (ou antes, ou depois), ouvia o ruído difuso da cidade.
O rodar dos automóveis.
O barulho dos eléctricos.
Um barco que apitasse no porto.
O rangido das gruas trabalhando nos cais.
Um comboio que entrava ou saía de uma estação.
As telefonias.
A música de um bar cuja porta de repente se abria e logo fechava.
Os risos e as vozes humanas.
As pequenas canções humanas — fúteis, comoventes canções trauteadas por um grupo de duas ou três ou quatro pessoas que passavam.
E quando a cidade era atravessada por um desses espantosos silêncios que por vezes as varam como uma queimadura de gelo, eu inclinava a cabeça, afastava de mim o auscultador, e sentia tudo parado.
Não, a terra não se movia, nem a lua, se acaso estivesse lá em cima, nem as nuvens.
Estava tudo suspenso: era uma profunda, terrível ameaça.
Enlouqueceríamos, todos?
E as plantas, os animais, as coisas — tudo, tudo?
Então levantava-se a brisa ligeiríssima, as flores vibravam de leve, caía uma folha de árvore e raspava na cabine, rangiam algures uns sapatos e alguém falava não sei onde.
De novo os sons, os quentes embora distantes, embora alheios sons.
Mas não era essa a minha tarefa.
Tratava-se dos arredores dela, dos meus próprios subúrbios.
O estilo flutuante, a adolescência ambulatória ao longo da solidão.
E eu sei que as lateralidades arborizadas, floridas, sonoras, silenciosas — eram irrelevantes em volta da seca fatalidade dos telefonemas.
Desejava algo mais vasto e fundo, mais glorioso e impiedoso (conforme), nos seus resultados.
Um telefonema somente.
Aquele que iria ou não aparecer numa noite, num momento, no ocasional cruzamento de imperscrutáveis forças.
Isso — periclitante ordem nova no meio da confusão e acaso das linhas, dos poderes sonolentos, da matéria frágil e indecisa das coisas.
O resto era uma técnica: os telefonemas.
Mete-se uma moeda, sai uma pessoa.
A voz de uma pessoa, apenas?
Bem, teríamos de discutir acerca deste novo tema: as vozes.
Os sons calorosamente organizados para transportar a aflita, doce, inteligente, participadora matéria das pessoas.
Ou o contrário, isto é: outros adjectivos.
As pessoas.
A quem telefonava eu?
A ninguém, a um número.
Por detrás do número, de ninguém — deveria aparecer um dia alguém, segundo a própria base da aventura.
Não, eu não pedia.
Não se pode pedir.
Há regras para todas estas coisas.
E que pediria eu?
Tempo, gentileza, nome, conversa, amor?
Sejamos sensatos.
Não é possível meter uma moeda, ouvir uma voz, e dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor.
Seria ridículo.
Aliás, eu próprio me veria embaraçado, se a voz dissesse: peça.
Bem, não pedia.
Eu não pedia.
Não se pode dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor.
Marcava um número ao acaso, com seis algarismos.
Esperava.
Uma voz.
As palavras iniciais não variavam muito.
Está?, quem fala?
Ou: sim.
Ou: alô.
Ou ainda: hum, hum.
E a minha habilidade era extremamente simples, e invariável.
Trocava a ordem de um algarismo ou substituía-o por outro, dentro do contexto do número.
83 46 26 era 83 26 46.
Qualquer coisa como isto.
Não, dizia a voz, aqui fala do 83 46 26.
Foi engano, desculpe.
Não tem importância.
E eu dizia: não?, acha que não tem importância?
Ah, como eu conhecia a zona ainda anódina desse jogo.
Claro que a voz perguntaria, estupefacta: como?
Se acha mesmo que não tem importância?
E a voz: merda.
Ou: é parvo.
Não me chateie, também diziam às vezes.
Ou então desligavam secamente.
Durante um momento, o som do telefone desligado zumbia no meu ouvido, e o velho abismo refazia-se em mim, calmamente tenebroso.
Pousava eu próprio o auscultador e, através dos vidros, as ruas e as praças abriam-se como um deserto, e o céu vazio coroava o silêncio de tudo.
Recomeçava os telefonemas.
Não te entregues ao acaso, dizia-me eu.
Mas eu não me entregava ao acaso.
Trabalhava para ele, isso sim, como humildemente se executa o erro e a emenda, quando se pensa na verdade, ou como em silêncio nos aplicamos na treva em favor da nossa pequena e possível luz futura.
E que podemos fazer nós, não é?, senão amarmos no nosso espírito a possibilidade do acaso?
Merece o acaso de um instante, incitava-me eu, merece-o.
E uma noite apareceu a voz.
Reconheci-a logo.
Reconheci-a naquela espécie de desastre que a atravessava, desde o mais breve som.
Era uma voz lenta e como que vazia, onde cada palavra vacilava, destacada por blocos de silêncio.
E era, no entanto, uma voz muito próxima.
Eu dela apenas sabia que atravessava a cidade, por um milagre espantoso, e que caminhava sobre o tempo, nascida de uma amarga sabedoria ou de um pudor doloroso.
Não sei o que dissemos.
Talvez tivéssemos falado de coisas muito simples, ou de alguma coisa sem sentido.
Não sei.
Estávamos muito próximos.
E era nos grandes silêncios, nas duas pontas do fio, sobretudo aí, com certeza, que se formava aquele novo e insólito calor.
Registei o número do telefone e, durante o resto da noite e todo o dia seguinte, ele foi para mim como que o milagre de uma combinação inédita, o sinal de uma ordem concreta por onde eu entrava no equilíbrio universal.
Quando chegou a noite, fui à cabine e liguei.
Durante muito tempo ouvi o sinal.
O som repetia-se, vindo dos confins da ausência.
Cinco, dez minutos — monotonamente o telefone tocava no outro lado, num quarto vazio que eu não sabia como era.
Um quarto que não existia.
E apercebi-me subitamente de que isso estava certo, embora fosse terrível.
E quando desliguei senti, através do vidro partido da cabine, que esse gelado silêncio trespassava o mundo e que tudo ficava suspenso sobre os abismos.
Hoje sei que os telefones não existem.
Bell, que os inventou, era um homem tão rudimentar que ignorava a realidade do que, em vergonhoso calão, chamamos — alma humana.
O silêncio está nas cidades.
A peste nasce do silêncio.
Os olhos luciferinos dos anjos.
Quero dizer: têm uma luz — possuem a qualidade veemente mas fria da espera, da promessa: sim?, da anunciação.
Penso nas estátuas brancas, com seus olhos desprovidos de pupilas.
Colocadas assim nas trevas, essas estátuas ressaltam com uma doçura dolorosa e intempestiva e parecem indicar outro tempo: a luz, ou a treva maior, aquela que nem somos capazes de presumir.
Deste modo é que ela surgira no pórtico, e havia os pequenos e fortes cornos que irrompiam ao cimo da testa, acompanhando com maligna e rápida subtileza o movimento da cabeleira.
Aérea, a cabeleira.
Existia ainda uma boca para todo o silêncio.
Porque se tratava de silêncio, evidentemente.
Era esse o tema — é esse o tema das aparições.
Além do longo vestido, o tema branco — que obliquamente se insinuava, como se insinuam os múltiplos planos — no tema das trevas.
Ah, sim: era o tema branco, e as mãos não traziam nenhum lírio pictórico, a haste comprida, a corola consagrada à alta e luminosa representação do angelismo.
Os braços caíam ao longo do vestido e as mãos estavam coladas às pernas.
Era quase um emblema ambíguo — sê-lo-ia, se o tempo houvesse parado antes, e eu apenas tivesse ali chegado como se chega à história antiga, ao facto de pedra: um monumento, uma capela, um túmulo, a casa do príncipe que criara a concentração dos seus mitos tumultuosos na matéria adormecida.
Porque andava, eu, andava de um lado para outro, na penumbra em que se erguia a sobreposição de cilindros, de diâmetro cada vez menor, conforme se levantava a vista até ao cimo — e no cimo, no último pequeno cilindro, estava um longo mastro nu, sem bandeira de cidade ou nação.
Era difícil pôr-se a imaginar o serviço de todos os pórticos abertos à roda de cada cilindro — não se esperasse, como seria possível, que em cada pórtico surgisse uma árvore assim direita, uma figura, aquela mensagem silenciosa e vibrante — coisa mineral, vegetal: o coração dos dias desabitados.
Uma diferente figura em cada pórtico, ou a proliferação, num momento inflacionista, de imagens todas iguais, como múltiplos avisos, múltiplos sinais da trepidação interior?
Por quantos lados ressuscita a vida enterrada?
É apenas para que se saiba: há muitos pórticos, e em cada pórtico tu próprio podes aparecer, para o primeiro passo em direcção ao teu lugar de trevas ou à cidade de Deus.
Mas ela era só uma e tinha para si um só pórtico, e ali estava, e a sua beleza contraditória e veloz acabava agora mesmo de ferir-me no que eu andava: porque eu andava de cá para lá, à frente do edifício.
Acorda-se, há um dia em que se acorda — e então a gente põe-se a andar.
Vai-se ser repentinamente surpreendido — não ainda pelo resultado do julgamento que decorre lá dentro, no tribunal sobreposto cilindricamente, não ainda isso — mas por aquilo, aquilo que vem antes: o anjo.
E o anjo olha-te como se olhasse o espaço prometido.
O amor do anjo cerca-te como um anel de prata em brasa, e então tu ficas fascinado pela fascinação que fizeste nascer no anjo.
Vês de novo as hastes curvas no cimo da testa, os cabelos alvoroçados de mulher, e os olhos abertos para o teu movimento de criatura que respira o seu pavor e o seu desejo, e a boca que não é para dizer.
Vês ainda as vestes claras que seriam para o vento, para a condição vital onde as desejarias: vestes brancas agitadas pelas ventanias dos lugares do mundo, onde se ri, e canta, e se fica sufocado pela grandeza exaltante dos júbilos, do júbilo.
Vês ainda as vestes disso, mas ali não: ali são brancas sim, mas imóveis, caídas, hieráticas — vês as mãos tombadas: mortas, mortas, mortas.
E então ficas parado — é quando começas a amar.
E pensava: que estou eu a amar?
E eu amava o amor dela, com os cornos em cima e o vestido branco em baixo, longo, e amava o meu amor pelo seu amor, e amava-a a ela, e a mim, e, mais do que a tudo quanto estava e era, àquilo que estaria e seria — não, não sabia como, nem em que tempo, nem onde.
Talvez tivesse sido muito antes — porque: o que é o tempo, e o lugar o que é?
Pergunto: o que é a realidade?
Amava, mergulhava nesta ciência nova — e vi.
Fala-me disso que é teu — poderia eu pedir à figura que agora avançava para mim, e ela estava a responder avançando dessa maneira, na sua fascinação, e ela poderia pedir-me: fala do que é teu, mas eu avançava para ela e não dizia: vou na minha fascinação, mas era isso — porque eu amava e estava a dizer no meu silêncio, e via.
Víamos.
É como se a gente soubesse tudo, quando o pavor, como uma seiva atormentada e fria, sobe e se espalha por cada ramificação da viva árvore interior.
Eu tremia, era um modo agora de conhecer o meu corpo — e ela, sim, ela incorria nessa ciência de conhecer o corpo, tremia: e o nosso amor estava a ser vermos o corpo tremendo, vendo cada um o seu corpo e o corpo do outro.
Depois ela ergueu os braços e estendeu-mos para eu ver que ela tremia, que tinha um corpo já ciente.
Possuíamos o medo de saber assim: porque tremes? — diria ela, e ficaria aterrorizada.
O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.
E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos — amávamo-nos, amávamo-nos — e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.
Que se amem, e se apavorem um do outro — disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.
Temem a loucura um do outro — disse ele — e é isso que se amam.
Depressa, depressa.
Era um crime.
Os anjos não tocam violino.
Vem das estampas de ouro, o sono encurva-lhe os cabelos, fica branca de andar encostada à noite, e respira, respira,
sim respira, como uma colina tão nua que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada, ou água cruel aberta
por ti, tubarão crepitando pelo índico, entre geladas barragens de sal em rama, com uma garra no ventre, uma síncope, um mergulho como uma flor
que se não chama negra, nem cujo nome pode ser dito assim: aquilo é a paixão,
mas que, tremendo, se pode pronunciar como beleza este espaço, crime esta paisagem, ou então: a lua dança
como um vestido bêbedo — ata lenços de um branco que desfaleça nos dedos, e atira fora esse ramo, e aí verás como é que eu me movo:
sim, eu respiro, estou direita, deixa-me passar — aqui vai uma ilha de pés descalços, aqui é um espelho caminhando como a voz por onde entram e saem imagens cambaleantes,
e tu chamas-te então: como eu vi o tempo, era uma maneira cega de haver junquilhos que giravam até se arrancarem dos terrenos nocturnos
e viverem como crianças ondulantes, esquecidas do seu texto, num exílio de espanto e beleza brusca, de fazer pensar, súbito, na morte prometida a todas as coisas
que se aproximam demasiado do nosso amor, e é então que tu dizes: há casas desabitadas, eu estou nessas casas
que tremem quando movo as mãos, a minha cabeleira palpita: é o sangue que sobe do coração apavorado e se faz dócil, quando o pente arrefece um a um os cabelos,
e então o meu nome é: pimenta, areia sentada, abertura da luz para onde saltam laranjas que pulsam,
ah, deixa-me passar, digo-te baixo como hoje me chamo e como nunca mais me chamarei: loucura,
loucura unida à rítmica matéria das coisas, e se abrires o teu sono, dessa vez única verás o que sou: uma figura
impelida pela vertigem, a inclinação do teu próprio conhecimento sobre a morte iluminada por todos os lados,
depois terei um só nome: revelação, até que os dias arquejantes me sufoquem e, no terror que te atravessa como água dolorosa,
eu seja a tua ilha a prumo, onde habitas, tu próprio uma ilha desabitada,
entre a lua como uma rosa infrene e os peixes frios e selvagens.
Compreenda-se que escrevo para explicar: que se trata de uma tumultuosa, desavinda multidão de metáforas encerradas numa única metáfora.
Que tem, esta, o ar complacente de apresentar uma imagem exemplar do mundo.
Duvido deste mundo, desta imagem — a metáfora que a escrita foi conseguindo no seu dinamismo interno e obscuro.
Alguém falou de duas mulheres realizando a virtude do espaço através de uma peça de roupa, um grande lençol branco, que desdobravam, pegando cada uma delas numa ponta.
Penso no espaço até me doer a cabeça.
É como este papel branco, o lençol idiomático, latejando, tremendo nas intenções das mãos — delas, que tremem das intenções inspiradas na experiência e na aspiração.
Repare-se no espaço.
Eu poderia abandoná-lo, a esse espaço — mas que seria de nós?
Porque os outros talvez esperem numa ponta do espaço.
Observe-se que há luz, e essa luz se moveu de uma treva cujo simples pensamento nos faz estremecer, aos que estiveram à espera, a mim que me tinha de salvar de um crime qualquer, talvez daquele momento anterior às primeiras linhas das cosmogonias — o caos precedente aos livros sagrados, para onde se trasladou a instauração do estilo — a aparição do espaço.
É certo que falo das plantas, dos animais, do homem e da mulher — disso que se conseguiu: a idade.
A sofreguidão, a vigília desesperada, o sono onde o corpo sem defesa é trabalhado pelo sobressalto interior.
Mas explico-me bem?
Temos de recorrer às fábulas laterais, ao que não foi, ou foi por uma razão independente — nota-se que, para a criação do espaço, se fala sobretudo do medo?
Se falo de mim, movendo-me para todos os lados, esperando inspirações, consultando as coisas, inventando espelhos para um rosto que se perdeu em enredos que não podem ser violados — se me engano em pequenos apólogos, pequenas fábulas, registos acessórios — não me terei perdido no espaço?
Porque o labirinto, veja-se, só é espaço para a boa contabilidade das emoções e pensamentos, se se tem a chave dele, se ele deixou de ser um labirinto.
Atente-se nos antigos: apresentavam um espaço.
Havia uma cronologia e hierarquia de seres, coisas, factos — convergiam todos, numa ordem, para a metáfora una, viva e real do mundo, que eles depois percorriam, estendendo lençóis, edificando casas, dizendo: pátria.
Escrevo um livro, estou a falar de nós — nós que nos esperamos, homens, por dilatar, com os poderes da emissão e da receptividade, os pontos imóveis onde apenas estávamos a ter atenção, expectativa.
Acontece-me este espanto: que as paisagens existem e que sou um homem diante de paisagens.
Então, não sei.
Primeiro: porquê, as paisagens?
Depois: porquê, diante?
E como: paisagens e diante?
E isto é que seria o essencial para o espaço.
Afirma-se que se compreende o fragmento, os fragmentos.
Diz-se mesmo: não há fragmentos.
Diz-se: não há tempo.
O que há é um sentido da idade — e diz-se que idade é já um sentido de espaço, de organização, como quem afirmasse que a comunicação estava estabelecida e, com ela, a unidade e o amor.
Sabem? — é bom ver dormir uma pessoa.
Assim, de fora, respirando devagar, os olhos fechados, a cabeça inclinada — tudo nela refluindo para aquele centro único do sono — desapareceu de nós o alarme, a dúvida, a confusão: eis a unidade.
Mas eu não assisto ao meu próprio sono, nem se pode oferecer o nosso próprio sono — ele pode apenas ser colhido por outrem, de passagem, por acaso.
Não é assim que se instaura um espaço.
Devo ter conhecimento da minha unidade.
O que eu percorro são as mortes, levo às costas todos os meus cadáveres.
E o que explico é isto: estamos inquietos, porque atingimos uma verdade insuportável — a metáfora, arquitectada sobre uma higiene dos sentimentos e acontecimentos, já não pode ser erguida para segurança da linguagem, para segurança de pessoas e bens.
Para o espaço.
Temos pequenas metáforas, temos uma colecção.
Tentamos a factura do círculo, com a ideia de que uma identificação do princípio com o fim possa encerrar o cumprimento do ser, a totalidade da vida — a sabedoria.
Em seguida olhamos, como se isso fosse o espaço e pudéssemos ser, nós os vagabundos, o exemplo do nascimento, desenvolvimento e preenchimento.
Ele dizia, Poe, (na Filosofia da Composição?) que só havia poemas curtos, ligados por aplicação, por partes mortas, num poema longo.
É isto.
Depois, ficar numa ilha, assistindo (e participando talvez nela) à acumulação de imagens — significa que se criou um espaço, ganhou uma perspectiva, se estendeu um lençol (essa ideia do Deguy!) sobre uma espécie de vazio, noite, desabitação, de solidão?
Começo a descobrir a verdadeira tristeza.
Tristeza quer dizer: ser obrigado a recorrer a qualquer coisa como a gratuidade, e enchê-la de uma súbita comoção.
Não creiam que alguém se possa salvar.
Não há uma verdadeira metáfora humana — um estilo.
Às vezes não durmo, para poder imaginar o meu sono.
Compreendo então como o destino do espírito é a tristeza.
Mas a tristeza apenas nos dá inteligência.
E então voltamo-nos para a contemplação das imagens do mundo, e ficamos com uma imagem.
Metemo-la numa garrafa e atiramo-la ao mar.
Algures, alguém recolhe a garrafa, lê a imagem e, como tinha feito o mesmo que nós, não entende o nosso conhecimento da tristeza.
Pensa: quem terá recolhido a minha imagem?
E compreende só, e mais uma vez, o seu próprio conhecimento da tristeza.
Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.
As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído.
E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso.
E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas e, neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom.
E então a gente ama as mitologias delas.
À parte isso, o lugar era horrível.
As pessoas chiavam como os ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se.
Diziam: boa tarde, boa noite.
E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam.
Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente.
Tenho medo — diziam.
E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite.
Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.
E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender, claro, etc.
E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam.
Bom dia, bom dia.
E desatavam a correr.
É o meu inferno, é o meu paraíso, vai ser bom, vai ser terrível, está a crescer, faz-se homem.
E a gente então comove-se, e apoia, e ama.
Está mais gordo, mais magro.
E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política.
Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco — e que fizeram da dignidade humana? — as reivindicações são legítimas.
Não queremos este inferno.
Dêem-nos um pequeno paraíso humano.
Bom dia, como está?
Mal, obrigado.
Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta.
E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida.
E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem.
E era horrível.
Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre.
Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico — batiam ali e resvalavam.
E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro, como a luz do deserto, e aquilo não era humano — diziam as pessoas.
E temos medo — pensavam.
E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver.
E havia o progresso.
Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução.
Desejam examinar?
Por este lado, se fazem favor.
Aí à direita.
Muito bem.
Não é uma boa revolução?
Bem, compreende.
Claro, é uma belíssima revolução.
E é barata?
Uma revolução barata!?
Não, senhor, esta é uma verdadeira revolução.
Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas.
É um bocado cara.
Mas de boa qualidade, isso.
E o rosto, que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das cadeiras, o rosto?
Lembra-se?
Como foi que ficou assim?
Não sei: tinha uma luz.
Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente.
Era horrível.
Boa noite.
E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada do sol, e era do signo da Balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se.
Não compreendo.
E julgas tu que eu compreendo?
Quem pode compreender?
Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical…, compreendes?
Sim, sim.
Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se.
Para diante, para diante.
Não se deve parar.
Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros.
Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade.
Por pouco tempo, julgo eu.
Como?
Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente.
Remodelemos o ensino.
Cantemos esta pequena canção que fala da flor da tília.
Bebamos um pouco.
E o outro, o outro, o que viu Deus, quando caminhava para o emprego?!
Isto, imaginem, às 8 h. e 45 m. de uma manhã de março.
Uma partida.
Uma partida de Deus?
Boa piada.
Não amará Deus essas maliciosas surpresas?
Um pequeno Deus folgazão?
Folgazão?!
Ele ficou doido.
Começou a gritar e a fugir.
Que Deus vinha atrás dele.
E depois?
Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar.
Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra.
É belo.
Vamos amar isto?
Vamos, é humano, é do homem.
E então as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam fazendo pela vida — como elas próprias diziam.
E então as condições sociais?
Sim, melhoraram muito.
Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e dela ficou apenas para os outros uma memória incómoda.
Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou.
Era uma criança.
Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia.
Nada mau, para uma antiga criança.
A verdade é que era uma criança, e não se aguentou, quando o médico disse: aguente-se.
E as ruas são tão tristes.
Precisam de mais luz.
Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste.
É até mais triste do que as outras.
Estou tão triste.
Vamos para férias, para o pequeno paraíso.
Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.
Era um ser excepcional.
Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e ele embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele.
E onde está?
Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível.
Partiu.
E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas.
E depois, e depois?
Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se partissem entre os dedos.
Foi-se embora.
A milhares de quilómetros de distância, eu olhava num jornal as mãos do criminoso.
No outro hemisfério — enquanto era outono e o ar muito limpo estava colocado sobre as árvores vazias.
A lisa e fixa luz dava um relevo cruel às mãos brancas.
Acima delas, o rosto virava-se para o lado, e quase que era somente uma nódoa escura.
Mas na América, em volta da prisão, erguia-se uma nova noite — e turnos sucessivos de polícia interrogavam o homem.
No jardim grave, uma folha de plátano caía sobre as mãos assassinas.
Uma folha fria, que afastei com as minhas próprias mãos — e então essas minhas mãos, depois de a folha cair do jornal, tocavam a imagem (unicamente a rígida e branca imagem) das mãos do assassino.
As minhas mãos estavam quentes: eram umas doces mãos humanas — e a fotografia do homem, das suas mãos por baixo da cabeça escamoteada: a fotografia.
Outono: tempo de espera.
Que é que se espera?
As coisas dormem, depois hão-de aparecer em alíneas diferentes, com cem rostos, as coisas talvez todas inúteis.
É um jardim para exemplo, onde seguro um jornal que fala de tudo com uma espécie de turbulenta ignorância.
Bom lugar, bom instrumento para todos os equívocos: os meus, os da América.
Posso estar só, para um grande e tortuoso pacto por cima das leis, dos países, da simples justiça das gentes.
Na América, há uma estupenda ferocidade à volta do criminoso e do seu crime.
Ele está cercado, e as suas mãos cheias de culpa recuam, com o crime, diante da ferocidade americana.
Trata-se afinal, segundo parece, de um problema complicado: política.
Então o assassino revela-se mais patético, ele, com o seu crime tão agudo, procurando defender ainda as mãos carregadas, no meio da gente feroz.
O momento do crime já lá foi — o impulso, o instrumento, o gesto.
E a vítima, também.
Ficaram as mãos.
Afasto o jornal.
Como é?
A pessoa que se assume, com um crime.
E a polícia cheirando, os espertos cães cheios de faro.
As folhas tapam tudo, vedam-me o conhecimento do tempo a trabalhar sobre o mundo.
Talvez aconteça um grande milagre nas nossas vidas.
A terra está sempre a dar bons exemplos.
Alguma gente anda atenta a essas coisas.
Outra gente, porém, está completamente só, sem exemplos — e então procura realizar o exemplo mais extremo.
Quando se pensa nisso, não há nada a fazer.
Merda, diz-se, isto é um grande exemplo.
E a terra está por baixo, com o outono.
A terra vem em todos os manuais, como um acontecimento histórico.
Mas a mim, realmente, só me interessam os crimes.
E então apenas sei que ele está tremendamente só nos Estados Unidos.
Que isto de ser assassino não é brincadeira nenhuma.
Ele foi até ao fim, esse homem de cabeça em forma de nódoa e as mãos em primeiro plano, saturadas de um exemplo desesperadamente decisivo.
Os polícias cercam-no, farejando e abanando a cauda — e ele, só com o crime, vira a cabeça, desenvolve, mostra, recolhe as mãos, fá-las voltar à intimidade do próprio crime.
De modo que tudo aquilo se torna uma só coisa comovente, ameaçada e inexpugnável — a solidão.
Uma consequência, o movimento mesmo do acto — a pessoa com a sua força terrível, para a frente.
Isto, na América, onde os polícias se vão multiplicar em todas as direcções e pessoas.
Depois, no jardim (e ainda suficientemente de dia), a cara aparece melhor na 2.ª edição.
O jornal mostra que o homem tem um ligeiro sorriso ambíguo, que eu acho inteligente bastante para as mãos, estas sempre em bom plano.
Estou com o assassino, e todo o meu calor de homem se insere no problema, e a multidão americana roda um pouco sobre si mesma, sofre uma pequena deslocação e, confusa, esbarra no extraordinário sorriso do assassino, que a minha adesão torna mais sábio ainda.
Tudo isto para proteger as mãos — espantoso sinal, agora, do único acto, aquele pelo qual se ganham toda a culpa e solidão.
Entretanto, foram descobertas mais provas.
E o homem sorri — leve, alto — tremendamente ascético na sua culpa.
O céu vai escurecendo, vê-se menos no jornal a maneira como o sorriso se dirige aos Estados Unidos, e por isso posso supor, ou adivinhar, a sua verdadeira profundeza.
A raiz do sorriso é a mesma raiz das mãos.
É, primeiro, o acto — e, depois, a própria vocação humana (até que enfim aparecida) para realizar um acto espantosamente completo.
E as poucas palavras que se conhecem do criminoso aumentam a sombria gravidade do acto, tornam-no perfeitamente denso, esférico, acabado.
E é quando, ao outro dia, continuando a ser outono e a haver a mesma luz parada e polida para ver as novas fotografias e notícias, é quando o criminoso encontra o seu próprio assassino.
Incrível.
Ao princípio, tomo o caso como um fantástico folhetim.
Foi deste modo: ao transferir-se o criminoso de uma prisão para outra, um homem destacou-se do meio dos jornalistas e, atirando-se para a frente, disparou-lhe um tiro no coração.
Há fotografias.
Vê-se tudo muito bem.
Como direi?
Há na história, evidentemente, certo barroquismo e precipitação que talvez possamos chamar — americanos.
No entanto, não sei de história mais conforme com as leis da excepção.
Com o seu escandaloso imprevisto, está implacavelmente certa, do princípio ao fim.
Pela minha parte, reconheço que as mãos da fotografia prenderam o seu velho acto criminoso e ficaram para sempre com a força enigmática que as inspirou.
Reconheço ainda que o sorriso tocou os limites da significação e que a frase — não fui eu que matei, estou inocente — dita desde o começo e levada, inteira, para dentro do silêncio, pode ficar como o melhor esforço de equívoco.
E vêde como os Estados Unidos se desdobram em todos os sentidos da confusão.
Tenho de afastar do jornal muitas folhas de plátano, enquanto o meu amor abrange crime, solidão e silêncio, como se fossem uma só coisa: um limite, espécie de milagre ou extremo exemplo.
A minha solidão também cresce, à espera do seu crime e da sua heróica (ou irónica) dignidade.
Porque nunca se sabe bem se nos merecemos a nós mesmos.
Levanto-me do banco, atravesso o jardim, e tenho na minha frente uma cidade que desejaria fazer saltar a cargas de dinamite.
Numa noite do mês de março, estava o tempo esplêndido, olhei para as minhas mãos, e vi uma nódoa branca.
Compreendam-me.
Eu era um homem sereno, emocionalmente próspero, digamos, sem entretanto me entregar à dissipação.
Convivia com muita gente e podia fazer com que me amassem.
Claro, não amava ninguém, mas a minha vida era como que atravessada diariamente por um calor tranquilo e ligeiro.
E então vi de repente que tinha uma nódoa branca na mão direita.
Gosto da mão direita um pouco mais que da outra, pois tenho aquela ideia tradicional de que ela é um nobre instrumento da obra e está ligada superiormente ao espírito.
Além desta, eu possuía muitas outras ideias em que o espírito, a serenidade e a sabedoria constituíam uma espécie de centros vitais.
É isso: tinha o meu tempo, a memória e o futuro bem arrumados.
Achava-me, de certo modo, um indivíduo sem culpas, conhecendo algumas leis seguras, amando lentamente a terra e as estações.
Organizara mesmo um conjunto de aforismos, e acreditava na imparcialidade e — quem sabe? — talvez até acreditasse na justiça.
Havia de ter um dia um talhão de rosas e ser-lhes-ia dedicado.
Rosas tornam o espírito condescendente e vagaroso e dão aos gestos uma grave e amável subtileza.
Tinha esse projecto, o das rosas, certamente.
Mas estava sentado a ler, e então vi uma nódoa esbranquiçada na base do polegar da mão direita.
Pensei primeiro que fosse da luz, depois imaginei que alguma substância deixara ali a sua marca.
Mas não era, porque desloquei a mão e a mancha permanecia no mesmo sítio.
E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, não se alterou, nem de leve.
Que pensar?
Devia ser, então, qualquer coisa como irritação de pele, um eczema branco.
Bem.
Eu tinha um grande equilíbrio interior e, embora aquele sinal no meu prezado corpo (na mão direita) me inquietasse um pouco, havia tudo o mais onde a serenidade se me garantira.
O livro era mesmo excelente e o mês de março sem chuva é dos que mais aprecio.
Quanto ao resto, é óbvio que eu desprezava — embora com gentileza e rectidão — as pessoas que estavam, ou entravam, ou saíam da minha vida.
Um homem de certa cultura e inteligência, cepticismo manso, uma esparsa ternura sem compromisso pelos seres e coisas.
Apoiava-me uma grande tradição.
Contudo, mais tarde, quando me fui deitar, ao colocar a mão sobre a cobertura da cama, notei que a mancha crescera.
Abrangia agora toda a base do dedo, fazendo uma espécie de grosseiro anel.
Lembro-me de que levantei a cabeça, um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas estremeciam.
Vinha da rua, de um jardim próximo, um cheiro de cravos, suponho.
Ouvi também a voz de alguém, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas que, de súbito, me pareceram espantosas.
Mas eram palavras banais, talvez sobre o tempo, os cravos, a noite, sei lá.
A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro daquele instante único.
Estive à beira do pânico, mas olhei tudo de novo à minha volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera, e que eu era um homem coordenado com os meus dias, compreendendo bem que a minha força não estava ao alcance da maioria das pessoas.
Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos, ainda que fáceis, os seus rostos e movimentos, e pensei que gostavam de mim, sem me exigirem demasiado.
Depois deitei-me e dormi, tendo decidido ir ao médico um desses dias, a ver do que se tratava aquela pequena mancha.
Durante a noite, tive um sonho incómodo, onde apareciam altas escadas de pedra, do cimo das quais eu fazia um imperceptível sinal de despedida a alguém que se encontrava em baixo, no último degrau.
Atravessei portas que se fechavam depois da minha passagem, sem que lhes tocasse.
Por fim, senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava, fazendo-me rolar até ao beiral.
No fundo, estava um pântano, e eu mergulhei nele.
No sonho, tinha a mão direita presa e fechada como sobre um punhado de brasas.
E então acordei e acendi a luz.
A mancha crescera e uma outra, ainda mais viva, apanhava-me quase toda a palma da mão.
Foi assim que os novos dias invadiram a minha vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas iam cobrindo toda a mão, avançando já pelo pulso acima.
Não era ainda o medo, mas as minhas leis vacilaram e comecei a esconder a mão e a aproximar-me mais das outras pessoas.
Quanto ao médico que pensara consultar, tive de bani-lo, pois cada vez menos desejava saber o que eram precisamente as manchas brancas.
A mão ganhara uma insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível.
Ela, que me dera antes o sentido do exemplo criador, a mão humanista — perdera o seu talento de ser hábil e construtora, e era agora a mão dramática, proibida entre os homens, subversiva.
Sabia que ela se vingava, com a sua anunciação de um inédito sentido trágico, do quanto representara em dignidade plácida e inteligência sobre a desordem.
Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de pelica, caminhava sem jeito, mas intacta, com a sua pureza artificial, nos objectos e movimentos.
Cheguei a possuir um pequeno talento de pelica.
Mas aproximava-me mais e mais das outras pessoas, e tinha com elas conversas ardentes e instáveis.
Começava a amá-las com aflição e a achar tremendamente belos os seus rostos, as palavras, as mãos com que, surpreendidas, tocavam na minha luva.
Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus passos pelos quartos, as frases mais altas, as canções que trauteavam.
Ia para a janela, por detrás das cortinas, e tremia de emoção ao ver o movimento das ruas.
A mancha, porém, alastrava.
Já atingira um terço do antebraço e era cada vez mais branca.
A carne do polegar parecia tornar-se levemente esponjosa.
A mão esquerda principiara também a ser tocada e, uma manhã, descobri no meio da testa uma ligeira mancha circular, do tamanho de uma pequena moeda.
Ah, foi rápida a propagação.
Da raiz dos testículos subia já o florescimento maldito, enquanto nas mãos e no rosto as manchas aumentavam sempre.
Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma coisa para comer.
E o meu amor pelas pessoas também crescia, varado por singular violência e fraqueza, um pânico, uma melancolia enormes.
Um dia comprei uma garrafa de aguardente, e embebedei-me no meu quarto.
Despi-me todo, e eu era branco e repugnante.
Haviam-me caído as sobrancelhas e os pêlos do púbis e, um pouco por toda a parte, a carne tornara-se porosa como sabugo.
E então vi em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma maldição pela qual me apaixonei.
Adormeci nu, sobre o soalho, chorando de tortuosa alegria.
Tornou-se forçoso afastar-me dos outros.
Poderia eu, acaso, meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica, arranjar um talento artificial de pelica com todo o meu tamanho?
Porque era já notório o estado em que me achava.
O meu amor pelos outros, não obstante, desenvolvia-se sempre.
E só de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava os cabelos — as pessoas andavam, corriam, falavam e sorriam e riam — só de imaginá-lo, ficava com os olhos húmidos.
Amava-as, com a maior profundeza, amava-as muito.
Nu, diante do alto espelho, tocava devagar no corpo e sentia vómitos.
Transformara-me num réptil branco e inconsistente.
Contudo, penso às vezes que não era, nem é, uma doença física, algo como lepra ou coisa assim.
Talvez o meu corpo esteja como dantes, limpo e vivo.
Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa zona terrivelmente mais importante.
Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior, onde nem mesmo se espere esquecer ou fugir.
Os poetas interessam-se.
O amor dos mitos, dos lugares sobrecarregados.
O amor das alusões, símbolos e signos.
Os poetas interessam-se pelas crianças.
Isso — aperta a loucura contra ti, debaixo da gabardina — desce.
As cabeças já não são partes nobres das aventuras do corpo, não as envolvem as folhas que brotavam de uma grande tensão — a tremenda voltagem das imaginações.
Desce ao metropolitano — a isto que te é dado como figuração de um inferno sem maravilha.
Os poetas interessam-se pelos rostos.
São rostos esbulhados — os destes habitantes da semana.
Fazem uma vida com boa caligrafia, eles — e acabou-se.
Vão e voltam.
Uma pequena demência nos olhos?
Talvez.
Alguma coisa escapou aos dias — alguma coisa.
O corpo move-se no inferno debaixo.
A ti comove-te o silêncio por onde os corpos se deslocam com os minúsculos olhos intraduzíveis.
O silêncio esmagado pelos comboios, e logo restituído.
Um silêncio móvel, ameaçado, instável.
Aperta a gabardina.
Possuis uma alta voltagem — tu sim, poeta inédito.
Vemos que te interessas.
Lá tens as imagens turbulentas, a vertigem do silêncio interior.
Moves-te, comoves-te, desenvolves-te.
Apertas contra ti a tua loucura — e o olhar é o de um poeta inédito.
Tens uns belos olhos perscrutadores, fixos e aterrorizados.
Andas com uma graça implacável — sim, sim, incómoda.
Sente-se o circuito electromagnético em volta da cabeça.
Não tocar — perigo de morte.
Tal a terrível delicadeza do teu espírito, a força de anjo.
Tens outro ritmo.
Ainda te não calibraram.
És inédito, forte, doloroso.
Interessas-te pelas crianças.
Vemos isso quando os teus olhos tocam no rapazinho de onze anos, no fim da carruagem, e fogem, e voltam de novo para ele.
Interessas-te por onze anos, por essa estranha debilidade que os outros curam, o ritmo secreto da vacilação.
A tua loucura bate de áspero entusiasmo.
Tens uma perigosa ciência — sabes?
É que vês, revês, prevês, tresvês.
Andas para a frente e para trás, páras e corres, e ficas tenso ouvindo e vendo, com a loucura toda a trabalhar.
És sensível — demoníaco.
É quase impossível estares à altura dos teus dons.
Mas esforças-te — vê-se.
Trabalhas, trabalhas.
E de súbito és muito inteligente, alcanças tudo, ficas com o poder de te fascinares de uma ponta à outra do talento.
Um poeta como tu interessa-se pelos onze anos, pela criança.
Vê como o rapazinho sai nesta estação, e atravessa o cais.
Que pensas daquela forma de andar?
Ele oscila, parece um pêndulo, e a sua cara é triste, ele não percebe nada, não percebe a sua dor, e caminha rente às paredes do metro.
Tu percebes.
O teu ofício é perceber.
Amas.
Que pensas daquela forma de andar?
Sim, sim.
Que doçura trágica, não é?
Percebes a ambiguidade?
Se percebes.
Vê: fez qualquer coisa terrível, teve a sua grande força.
Agora está surpreendido.
Não sabia que a tinha, à força, e depois ficou com o medo da sua força maior que ele.
Vai dizer-te isso, aos onze anos, no seu ritmo, na sua linguagem suspensa e atemorizada.
Vai dizer: sabe?
E tu, tu — como tu sabes.
Segue-o.
Vemos como apanhaste o ritmo dele.
Pareces um lobo apaixonado, tens toda a esfaimada doçura de um lobo.
Pisas os passos dele, a pista insegura.
Já andas como ele, andas com onze anos, numa atenção obsessiva.
E a doçura do teu rosto, a sua velocidade amarga e calorosa.
Desce ao inferno, e vê: encontras um rosto tecido de novo, a macia textura de uma matéria quase virgem — encontras o teu enigma.
Nas escadas rolantes, quase sobre ele, aspiras o perfume da sua cabeleira de rapazinho.
Como tu o amas.
O perfume enche o teu silêncio todo.
Não, nem respiras.
Não te mexes.
Ficas cego.
Sabemos como te entregas, tão redescoberto, ao mais profundo terror.
Tens a ciência disso tudo.
É a tua profissão.
Reconhecer, instalar, ligar os contactos, mergulhar na alegria monstruosa.
És diabolicamente inédito.
A vida toda muito devagar.
E quando a boca do metropolitano vos puser — a ele, a esse espectáculo que estiveste prestes a denominar, mas ainda não; e a ti, seguidor trémulo, mestre e discípulo de um «eu» irreparável — quando, quando.
Sim, na praça quando, sob as árvores negras, no meio das temperaturas baixas — tudo construído para o exercício da piedade escandalosa.
Quando o abordares, e ele disser que sim ao magistério da tua idade enganadora, saída do anonimato para a vacilação, o pavor urbano dele.
Estou só, diz ele, mas.
Etc.
Tu compreendes.
Sabes que ele também já tinha o seu silêncio, e do silêncio nascia um incomportável sofrimento, e uma força.
E agora falas muito, e diriges a força dele e a sua fraqueza, e colocas tudo num lugar extraordinariamente seguro, ao que parece, e dizes: vamos tomar outra vez o metro, tenho o meu carro no outro lado da cidade.
Reparaste como os onze anos olharam para ti?
Não sabem que hão-de fazer, os onze anos, com o amor que nasceu neles, agora que saíste completamente do anonimato e és tão real, tão pessoal, tão próximo, tão corrítmico.
Ele vai — estamos mesmo a ver que vai, e o seu modo de andar é curiosamente mais seguro e o teu é menos seguro — vê-se.
Os poetas interessam-se e as crianças interessam-se — e isso é um pacto.
Demasiado pesada, a vossa festa.
Lado a lado pelas ruas, vendo a festa silenciosa, um pouco vergados ao peso de uma alegria tão difícil.
A quatro mãos.
Continua, continua.
Tens uma nova maneira de ver os rostos imóveis sobre os corpos excessivamente móveis, e os olhos ligeiramente alucinados.
Uma nova maneira de conceber a tua própria loucura, de andar com ela, de parar e seguir e respirar com ela.
Sim, um modo especial, nesta tarde, de te aproximares da tua sonâmbula solidão, e encontrares o ponto onde ela de súbito se torna expansiva e ardente, e abrange o ocasional discípulo, o pretexto, o objecto da mais trémula memória.
Cuidado com a memória.
Tu interessas-te.
Ama-la demais.
E a paixão?
És um operário da paixão.
Observamos a demoníaca inteligência de gestos, quando falas ao rapazinho.
O teu amor é lento e veloz — centrípeto, centrífugo.
Como aprendeste.
E que importam os rostos, senão como oscilante fundo para o teu milagroso rosto, esse sensível e atormentado rosto de criança, viajando pelos túneis, de uma ponta à outra da cidade que trabalha noutra coisa, descansa de outro trabalho, ou se prepara para uma estranha musa.
Sabes em que se inspiram eles, os trabalhadores desta cidade?
Nada te importa, a não ser o teu amor — vê-se.
E de novo sobes umas escadas, e a criança sorri, e tu pareces sonhar e vacilas na luz interior, e mais uma vez acreditas, e de repente é como se amasses a tua extensa vida obscura.
E já no carro dizes: vamos pelo meio das árvores.
E guias em direcção ao parque.
Vês tudo muito bem: as árvores negras, o céu brusco e mercurial e a íntima imobilidade do instante.
Sabemos: tremes, quando o rapazinho diz que quer andar sob as árvores, pisando as folhas podres.
Ele sai, caminha, abaixa-se para apanhar uma folha.
E que significa isso, apanhar a folha?
E ergue-se, e continua a andar.
Apanhou a folha como quem encontrou uma coisa perdida, como se tivesse achado a significação de uma palavra confusa no labirinto dos dicionários.
Que tremes e sufocas, sim.
É a embriaguez, o amor lancinante, a memória, a piedade, a sufocação da alegria.
Sim, é a dor — a força da tua presença.
Tens medo.
Interessas-te muito pelas emoções, sabemos.
E vês a solidão impossível da criança apanhando a folha, o distraído empenhamento dela, a frágil nuca.
Repara naquela forma de andar.
Parece que desejarias dizer o que é aquela forma de andar, mas a piedade não tem palavras, a tua piedade.
A loucura dos teus olhos confunde-se com a embriagada piedade dos teus olhos, e tremes.
E então sais do carro e aproximas-te dos onze anos, e vês cada vez mais dolorosamente a forma como eles caminham, os onze anos, sobre as folhas podres, e a imagem violenta da tua obscura vida sobe do fundo — sem perdão, sem nome.
Fechas os olhos — vacilas apavorado.
Páras, o vento refresca a tua cabeça negra, o teu pensamento negro, o teu coração negro.
Páras — maneira única de ficar apenas à porta dos crimes.
Espelho negro.
Vê-se que sabes tudo, que esgotaste a tua difícil ciência.
Há sempre uma cidade onde anoitece.
Mas haverá algum perdão para o homem perdido que a percorre, parando nas praças a decifrar os obeliscos, ou fechando os olhos nos jardins para respirar o perfume confuso e virgem das plantas e da terra húmida, ou ainda estacando na faixa central das avenidas por onde sobem e descem os automóveis e se desenvolve, em cadeia, o jogo obsessivo dos sinais luminosos?
É um homem que caminha até encontrar o rio como algo muito antigo, anterior às vozes e ao trabalho e à cólera e ao amor dos habitantes.
No rio é que vê como há um movimento verdadeiro, e sabe então que ele próprio, perdido por um momento, está muito mais perdido do que supunha: corre também, assim quase imperceptivelmente, reflectindo o que logo se desfaz.
E depois regressa ao centro da capital anoitecida e, erguendo a cabeça, tem a revelação veloz dos enormes edifícios de vidro e metal.
Estou perdido, e as pessoas são de repente arrastadas para os subúrbios, por uma secreta força centrífuga, que o apanha a ele também.
As casas engolem-nas.
Acendem-se e apagam luzes, as cortinas movem-se com a subtileza dos tecidos calmos.
Nas casas, alguém emudece, absorvido por uma lenta domesticidade.
Pensa-se como as cadeiras são inconcebivelmente imóveis e as pessoas se ajustam às cadeiras.
Nunca mais terei paz?, e de súbito a temperatura é baixa, uma árvore tremula na brisa, as casas movem-se subtilmente para uma distância ainda maior: os outros.
E imagina-se isto: estão sentados em volta de uma mesa, as mãos sobem e descem, levanta-se um rosto devagar, e a voz diz: sim, hoje, e o ritmo reorganiza-se em torno desta nova ideia, e o tema destas vidas é esse dia referido — hoje — que se estende para trás e para diante, com as múltiplas imagens rudimentares.
A ele, o que o queima é a inspiração demoníaca.
Talvez espere um dia caminhar sobre as águas, recuperar tudo, chegar junto à esfinge que existe à entrada de todos os lugares e destituí-la de poderes, pela decifração dos enigmas.
Que pode desejar um homem perdido senão ganhar a ciência e a glória?
Para ele, só é possível a salvação completa.
É por isso que este homem caminha sempre e encontra aquele sítio onde o tempo todo se fez espaço: coisa exterior, matéria.
Há uma sinagoga construída e reconstruída desde a fundação da cidade até ao século em que toda a gente está agora a viver, como se viver fosse hoje; e há a ponte romana; a fortaleza árabe; o paço medieval; o palácio renascentista; o convento filipino; o marquês de Pombal; o pequeno teatro arte-nova; a secunda metade do século vinte.
É o tempo.
Mas este tempo é ainda aberto pelos dois lados: e há nele o começo de tudo, e o fim.
Como se subir os degraus de pedra, entrar e sair das ruas estreitas, aparecer nas praças fosse uma aventura não só através do tempo, mas para fora dele: como se fosse consumir o tempo, assumi-lo.
No alto do terrível sentimento de liberdade, o homem pensa que alguém disse: sim, hoje — e é a este tema alheio que ele de repente se devota: ah, uma tarefa simples, uma pessoa, o amor, o comércio, as virtudes e os crimes de todos os dias, do dia de hoje.
Mas sim, sim — existe alguém nesta cidade onde anoiteceu.
Só que é preciso percorrer o pretexto.
São vinte metros talvez, ou trinta, ou o medo que está no fundo da vertigem silenciosa onde a fala se prepara, com as suas quentes e graves curvas, a arguta energia da sedução.
Vamos falar, erguer da treva tumultuosa as nossas antiquíssimas imagens, a espera e a esperança?
Dir-te-ei quem sou, houve um tempo, tive um sonho, lembro-me do teu rosto, a tua voz já existia.
E ele atravessa a rua, passando pelo tempo, de pedra em pedra, com um cigarro na mão para pedir lume ao cigarro alheio, que brilha no outro lado, ao cimo dos três degraus.
Vai ser assim: dá-me lume, por favor?, e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, será sim o dia de hoje.
Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão — é imensa, e apenas um pequeno órgão vivo palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece.
Então, uma vez mais a noite se levanta de nós, e o que estremece é a carne, a nossa, cega e desamparada — mas fremente na sua cegueira e desamparo.
Sabes que estás só? — pergunta a carne à carne —, sabes que a noite se ergueu de ti, como se fosses o seu próprio e único talento, e que esse talento te cerca como uma atmosfera, o morto clima que transportas em ti, de um lado para outro, ao longo das pedras, ao longo de todos os lugares do homem?
Ela sabe, ou pelo menos sabe que sabe.
E é demasiado.
Por isso, olha e espera.
E vê de novo a brasa que estremece na escuridão como uma planta que crescesse e florescesse na terra negra, ou um animal cujo calor abrisse uma brecha no tempo frio.
A carne embriaga-se com imprecisas metáforas de salvação — que salvação?! — com um movimento subterrâneo de analogias, e ele diz: vou pedir-lhe lume.
Vai através do bairro múltiplo, o tempo que o escuro abafou, e então é como se fosse fora do tempo, ou dentro de todo o tempo, à procura do lume para o seu cigarro.
Eles construíram e os anos destruíram, e eles reconstruíram as coisas gastas e construíram outras novas.
Que é isto?
Quer dizer que a carne renasce, e é essa a tarefa?
A noite vem sempre, mas talvez trabalhem também de noite.
Às vezes ouvem-se as picaretas e os martelos, à distância, durante certas noites.
E depois é manhã, e apercebemo-nos de que existe uma coisa nova, um corpo que se organiza para o dia, e isso foi um secreto trabalho nocturno.
Eles acreditam, então — será verdade que ousam acreditar?
Pode-se avançar nas trevas.
Uma, duas vezes, foi-nos indicada uma luz fugitiva — e depois sabemos.
Talvez ainda mais nítida, a topografia marcou-se na nossa cegueira, e então caminhamos, caminha ele com o seu cigarro por acender, a sua perseguição ao fogo.
Não é uma admirável virtude do fogo, não será até um milagroso talento das trevas que, aqui e ali, durante um segundo, o fogo abra a sua pequena rosa trémula, e o homem possa respirar na cega atmosfera dos séculos?
É — eis que ele o diz para si, com uma força maior do que ele próprio, o inventado poder da sua vertiginosa, momentânea fé.
Caminha pelos anos pétreos, com os pés a decifrarem o empedrado e os degraus do bairro.
Ouve os próprios passos, porque sempre ouviu as pancadas do coração — por aí é que reconhece estar vivo, embora isso seja violento demais e demasiado precipitado para a verdadeira harmonia que, possivelmente, seria o estar vivo.
Mas respira, isso sim, o sangue corre pelas veias e artérias, corrompe-se e purifica-se dentro da confusa massa da sua dor de homem, e anda, ele anda, sobe, desce.
Contudo, os passos que ouve, como se fossem as pancadas fortes do seu sangue, parecem distanciar-se.
Pára.
E os passos continuam, afastando-se.
Mais longe, aparece a brasa do cigarro.
O outro foge.
Porque foge?
Que medo inspira assim o desejo do conhecimento, ou o desejo do amor?
É a caça?
Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual — e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?
Porque o amor é mortal (o amor é mortal?).
Talvez se adivinhe que sim, e obscuramente se saiba que é mortal o conhecimento.
Talvez seja isso o que melhor se conheça do conhecimento — a sua natureza mortal.
Os passos do outro fogem pelo tempo fora, ouvem-se — embaraçados e rápidos — perdendo-se nas escadas, pelas ruas ondulantes, sob os arcos.
Um momento ecoam no meio de uma praça, o cigarro brilha, forma-se uma súbita coroa de silêncio.
Haveria palavras para dizer, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
Mas não haveria resposta.
Ou seria: tenho medo, ou então: é o jogo.
Contudo, não se sabe bem o que acontece, por isso não haveria resposta.
Medo?, porquê medo?, dir-se-ia, jogo, que espécie de jogo?
E as palavras nunca mais acabariam.
Não mais existiria este silêncio no qual, ofegantes, sabemos com tanta dor que ainda estamos vivos.
Por isso é que andamos, agora com todas as artes da caça, devagar, depressa, silenciosamente, cercando a presa.
Amo-te — diríamos nós, no exacto instante de lhe cravar o punhal no meio do peito.
E depois desejaríamos que se fizesse luz, uma grande luz branca, o sol, para vermos o sangue correr e, possivelmente, afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo, até ao fundo e até ao fim.
Porque o amor e o conhecimento são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti, diz o amante: são flores venenosas.
Mas toda a gente sabe isto: ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro está escondido na praça, ao meio da qual existe um largo fontanário, com a sua rodada taça de pedra, de onde transborda uma água silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro marca uma curva no ar e cai na água.
É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois tudo será mais difícil.
Porque será a perseguição declarada, sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já a indicação do lume, no meio da noite — o sinal de que ali está a pessoa, viva, fumando, respirando, tremendo.
Porque foges?, e enquanto, no mais secreto da sua aflição, ele o pergunta, corre em direcção ao fontanário e quase esbarra com o outro.
Sentem-se, mútuos, únicos, arfam no escuro da praça, a treva treme levemente na água adormecida.
Mas ele diz (e quem sabe se isso é absurdo?) diz: lume, e o outro escapa-se, e põe-se a correr em volta do fontanário.
Os sapatos chapinham na água e a ele, que já começou a persegui-lo, correndo também em torno da taça de pedra, chapinhando do mesmo modo na água vazada, ocorre-lhe um insólito pensamento: caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida, inclina o corpo para a direita, e mete a mão na água da taça.
É um ruído novo, virgem, e o contacto da sua carne com a água faz nascer em si uma confusa alegria, o sentido de uma festa natural, o desejo de morrer ali, agora, triunfalmente.
E o outro? — o outro foge, e como não abrandou o passo, nem mergulhou a mão na água, nem pensou (supõe-se) na alegria de uma festa mortal, o outro adiantou-se, e já se encontra no lado oposto do fontanário.
E é ágil, essa criatura sem nome, o ser que se ama, aquele que se persegue e a quem se deseja conhecer, para suplicar lume, ou voz, ou vida, ou sangue, ou sabe-se lá o quê.
Corre depressa demais.
E andando em círculo, chapinhando sempre na água, e às vezes pensando ainda: caminhamos sobre as águas, ele sente, súbito, que o outro avançou bastante.
Treme de medo, porque o outro avançou tanto que já ultrapassou o ponto onde, com o ponto onde ele se encontra, formava os extremos do diâmetro do círculo.
E isto significa: o outro é agora o perseguidor.
E, como avança cada vez mais, torna-se cada vez mais no perseguidor, e ele no perseguido.
Talvez o outro pense: porque foges?, e lhe queira pedir a sua voz, o seu amor, o seu sangue.
É quando sente perto da nuca a respiração do outro.
Tem tempo apenas para desviar-se, correr para a esquerda, atravessar a praça e meter por uma ruela negra.
Mas, parando um instante, ouve os passos do outro na sua direcção.
E então foge através do bairro, do tempo, de pedra em pedra, com o seu pavor de animal perseguido, ouvindo o bater implacável dos pés do outro.
Haveria palavras para ouvir, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
E que poderia ele dizer?: tenho medo?
Não se sabe bem o que acontece.
As palavras nunca mais acabariam, enredar-se-iam umas nas outras, seria um jogo mortal.
Não mais haveria a suspensão do irremediável, esta espécie de silêncio na beira do crime, no qual sabemos, com dor, que ainda estamos vivos.
Ele foge.
Quem sabe se a noite terá fim?
supermercados eles são magricelos e
orgulhosos e estão morrendo
passam fome ali de pé e nada
dizem. muito tempo atrás, entre outras mentiras,
lhes ensinaram que o silêncio era uma forma de
bravura. agora, tendo trabalhado uma vida inteira,
foram emboscados pela inflação. olham ao redor
roubam uma uva
mastigam-na. por fim fazem uma
comprinha, para o dia.
outra mentira que lhes ensinaram:
não roubarás.
é melhor morrer de fome que roubar
(uma uva não os salvará)
e em quartos minúsculos
enquanto leem os anúncios no jornal
morrerão de fome
morrerão silenciosos
expulsos das pensões
por jovens loiros e cabeludos
que os farão deslizar para dentro
e se afastarão do meio-fio, esses
jovens
pensando em Vegas e buceta e
vitória.
é a ordem das coisas: cada um
prova o gostinho do mel
e depois a faca.
Vin Marbad vinha altamente recomendado por Michael Huntington, meu fotógrafo oficial. Michael me fotografava constantemente, mas até então não houvera muitos pedidos desses trabalhos.
Marbad era consultor de impostos. Chegou uma noite com sua maleta, um homenzinho moreno. Eu já bebia tranquilamente há algumas horas, sentado com Sarah vendo um filme em minha velha TV preto e branco.
Ele bateu com rápida dignidade e eu o deixei entrar, apresentei-o a Sarah e servi-lhe vinho.
– Obrigado – ele disse, tomando um gole. – Você sabe que, aqui na América, se você não gasta dinheiro, eles tomam.
– Ééé? Que quer que eu faça?
– Dê uma entrada numa casa.
– Hum?
– Os pagamentos das hipotecas são dedutíveis do imposto de renda.
– Ééé, que mais?
– Compre um carro. É dedutível.
– Todo?
– Não, só um pouco. Deixa que eu cuido disso. O que a gente precisa é criar pra você algumas proteções contra os impostos. Veja aqui...
Vin Marbad abriu sua maleta e retirou muitas folhas de papel. Levantou-se e aproximou-se de mim com elas.
– Bens imóveis. Aqui, olhe, eu comprei um pouco de terra no Oregon. Isto é um cancelamento de imposto. Ainda tem alguns hectares à venda. Você pode entrar agora. Esperamos uma valorização de 25% cada ano. Em outras palavras, dentro de quatro anos seu dinheiro dobra...
– Não, não, por favor volte a sentar.
– Que é que há?
– Não quero comprar nada que eu não possa ver, não quero comprar nada que não possa alcançar e tocar.
– Está dizendo que não confia em mim?
– Eu acabo de conhecer você.
– Eu tenho recomendações em todo o mundo!
– Eu sempre confio em meu instinto.
Vin Marbad girou de volta ao sofá onde deixara seu casaco; enfiou-o e lançou-se para a porta com sua maleta, abriu-a, saiu e fechou-a.
– Você ofendeu ele – disse Sarah. – Ele só queria te mostrar algumas maneiras de economizar dinheiro.
– Eu tenho duas regras. Uma delas é: jamais confie num cara que fuma cachimbo. A outra: jamais confie num cara de sapato lustroso.
– Ele não fumava cachimbo.
– Bem, parece um fumador de cachimbo.
– Você ofendeu ele.
– Não se preocupe, ele vai voltar...
A porta escancarou-se, e lá estava Vin Marbad. Cruzou a sala apressado até seu lugar original no sofá, tornou a tirar o casaco, pôs a maleta a seus pés. Olhou-me.
– Michael me disse que você joga nos cavalinhos.
– Bem, ééé...
– Meu primeiro emprego, quando cheguei aqui, da Índia, foi no Hollywood Park. Era faxineiro lá. Sabe as vassouras que eles usam para varrer os bilhetes usados?
– Sei.
– Já notou como são largas?
– Já.
– Bem, isso foi ideia minha. As vassouras eram do tamanho normal. Eu desenhei a nova. Fui ao setor de Operações com ela, e eles aproveitaram. Fui promovido pra Operações e venho subindo desde então.
Servi-lhe outra bebida. Ele tomou um gole.
– Escuta, você bebe quando escreve?
– Sim, um bocado.
– Isso é parte da sua inspiração. Vou fazer com que seja deduzido.
– Pode fazer isso?
– Claro. Sabe, fui eu que comecei a tornar dedutível a gasolina usada no automóvel. Foi ideia minha.
– Filho da puta – eu disse.
– Muito interessante – disse Sarah.
– Dou um jeito de você não pagar imposto nenhum e de modo legal.
– Parece ótimo.
– Michael Huntington não paga impostos. Pergunte pra ele.
– Acredito em você. Abaixo os impostos.
– Tudo bem, mas você tem de fazer o que eu digo. Primeiro, dê entrada numa casa, depois num carro. Dê a largada. Arranje um carro bom. Um novo BMW.
– Tudo bem.
– Em que máquina datilografa? Uma manual?
– É.
– Arranje uma elétrica. É dedutível.
– Eu não sei se consigo escrever numa elétrica.
– Você se acostuma em poucos dias.
– Quer dizer, não sei se consigo criar numa elétrica.
– Quer dizer que tem medo de mudar?
– É, ele tem – disse Sarah. – Veja os escritores do século passado, eles usavam penas de aves. Naquele tempo, ele teria se apegado a essas penas, teria lutado contra qualquer mudança.
– Penso muito em minha maldita alma.
– Você muda suas marcas de bebida, não muda? – perguntou Vin.
– Ééé...
– Tudo bem, então...
Vin ergueu sua taça, esvaziou-a.
Eu servi mais vinho a todos.
– O que a gente precisa é fazer de você uma Corporação, pra conseguir todas as vantagens dos impostos.
– Isso soa terrível.
– Eu disse a você, se não quer pagar imposto tem de fazer como eu digo.
– Eu só quero bater à máquina, não quero andar por aí carregando um fardo enorme.
– Você só tem de nomear um Conselho de Diretores, um Secretário, um Tesoureiro, e por aí além... É fácil.
– Soa horrível. Escuta, tudo isso soa como um monte de merda. Talvez eu me dê melhor simplesmente pagando os impostos. Não quero ninguém me enchendo o saco. Não quero o cara do imposto de renda batendo em minha porta à meia-noite. Pago até mais pra garantir que me deixem em paz.
– Isso é idiotice – disse Vin. – Ninguém deve jamais pagar impostos.
– Por que não dá uma chance a Vin? Ele só está querendo te ajudar – disse Sarah.
– Veja, eu mando pra você pelo correio os documentos da Corporação. É só ler e assinar. Vai ver que não tem nada a temer.
– Essa coisa toda, sabe, atrapalha. Estou trabalhando num argumento e preciso ter as ideias claras.
– Um argumento, hum? Sobre o que é?
– Um bêbado.
– Ah, você, hum?
– Bem, tem outros.
– Consegui fazer ele beber vinho agora – disse Sarah. – Estava quase morto quando conheci ele. Uísque, cerveja, vodca, gim, ale...
– Já sou consultor de Darby Evans há alguns anos. Você sabe, ele é argumentista.
– Eu não vou ao cinema.
– Ele escreveu O Coelho que Saltou no Céu; Waffles com Lulu; Terror no Zoo. Está fácil na casa dos seis dígitos. E é uma Corporação.
Não respondi.
– Não tem pago um vintém de imposto. E é tudo legal...
– Dê uma chance a Vin – disse Sarah.
Ergui minha taça.
– Tudo bem. Merda. A isso!
– Bom garoto – disse Vin.
Esvaziei meu copo e encontrei outra garrafa. Tirei a rolha e servi a todos.
Deixei minha mente ir na coisa; você é um operador esperto. É astuto. Por que pagar bombas que despedaçam crianças indefesas? Dirija um BMW. Tenha uma vista do porto. Vote nos republicanos.
Então me ocorreu outra ideia.
Não estará você se tornando o que sempre odiou?
E veio a resposta:
Merda, você não tem dinheiro de verdade mesmo. Por que não brincar com essa coisa de farra?
Continuamos bebendo, comemorando alguma coisa.
– Hollywood
Setembro é um mês obrigatório.
Chegara para alguém o tempo do conhecimento.
Os ladrões são assim: espreitam, esperam, a ver como é.
Depois, do conhecimento dos outros instituem uma parte do seu conhecimento próprio.
Pode-se pensar que são coleccionadores de selos, acumuladores de riqueza, espíritos vorazes intensamente ocupados na extravagância dos espectáculos.
E emocionam-se, deslumbram-se, sofrem — monstros hábeis metendo tudo nas algibeiras.
Vamos rir: se calhar, aquilo de nada lhes servirá.
Alguém diz: tornam-se maiores as dimensões da realidade.
E o coleccionador, perdido em espaços demasiado grandes para si, diz devagar, muito devagar: merda.
Ninguém ouve, e ele mantém o seu orgulho de guardador de coisas, ele, o das vastas dimensões da realidade.
Porque é que em setembro acontecem coisas?
É por causa da luz.
O terror, por exemplo, é de setembro.
As noites rebentam inesperadamente no que pensamos ser o meio da luz do mês de setembro.
A morte diverte-se muito em setembro.
Vejamos: as pessoas estão a dormir, em setembro, e acordam de súbito, apavoradas.
Tiveram um sonho premonitório.
As pessoas julgam que a vida treme nelas, riem de alegria, têm o corpo bronzeado, cantam, levantam a cabeça para a luz.
É porque se está em setembro.
Então aprendem uma coisa qualquer, roubam-na, coleccionam-na, aumentam as dimensões da realidade.
E mesmo que digam baixinho: merda — não se livram do seu álbum de selos.
Estão tramadas.
Ele sabe isso muito bem.
De setembro, o mês, conhece todas as artimanhas.
Agora ri, quando as pessoas fáceis dizem: no verão, em setembro.
Elas contam as historiazinhas da praia, da alegria de viver junto ao mar, das roupas leves e claras.
Bem: nunca parou de enriquecer, ele, por obrigação.
E então chegou setembro, o obrigatório.
Nessa altura já ele tinha os braços e as pernas muito grandes e tentava metê-los no espaço, ao mesmo tempo que o resto do corpo.
Estava à procura do último ritmo, e as coisas iam menos mal.
Mas a mais nova das irmãs, com a malevolência dos seus doze anos, estava a comer uma ameixa, com os olhos sobre a mesa de estudo.
Setembro já começara a encher-se de assombro, por causa dos doze anos dela.
Embora o mês principiasse por ter uma qualidade especial de expectativa, e os dias se mudassem uns aos outros, mantendo uma subtil tensão — só nesse sábado branco é que o tumulto se levantou no meio da casa.
A irmã levantou os olhos da mesa, deixou cair a ameixa e ficou a olhar com espanto a parede em frente.
Depois, em setembro, o rosto dela correu vertiginosamente em direcção ao pânico, e ela deu um grito.
Tinha chegado o tempo do conhecimento.
Rouba o teu bocado, disse o pequeno monstro.
Vieram pessoas, vieram as mães todas: a velha, a outra a seguir, e a outra, e as novas mas ainda assim mais velhas.
Arrastaram a irmã para um quarto do fundo, e esconderam-na.
O espectador disse: agora é ela a vítima, foi apanhada de súbito pelo conhecimento.
E perguntou: o que é que cresceu nela, a comedora de ameixas aos doze anos?
Os dias de setembro unem-se uns aos outros, sob a enorme luz da tarde.
As mães todas correm pelos corredores, falam baixo, pretendem tornar inalcançável para ele os doze anos da comedora de ameixas.
Porque ele fica junto da mesa, à procura da ameixa mordida que rolou para o soalho.
Mas ele próprio já sabia demais para convencer-se de que procurava no chão ameixas mordidas.
Caberia isso na cabeça de alguém?
Um criminoso de oito anos procura, em setembro, quando a irmã grita e é levada para o inacessível.
Digo: um criminoso de oito anos perde tempo à procura de uma ameixa? quando uma rapariguinha de súbito cai em pleno espaço do sacral e as sacerdotisas se alvoroçam à sua volta, dizendo: chegou o tempo.
Levam-na para o inacessível, para o fundo da casa.
Que procuras tu, farejador?
Comigo foi assim, pensa ele: golpeei o braço, expus-me, criança doce e dramática, em frente do espanto e da comoção das mulheres, caí no abismo, ressuscitei sob a delicadíssima atenção feminina, cresceram-me os braços e as pernas, insinuou-se em mim um novo ritmo, soube que ultrapassei um perigo e fiquei de uma outra maneira diante de tudo.
Depois diz: aconteceu-lhe o mesmo a ela, mas de um modo particular.
Deve existir um sinal.
Havia no soalho, junto da cadeira, uma pequena mancha de sangue.
E ao longo do quarto, até à porta, um rasto de pingos de sangue.
E havia no corredor, ao longo do corredor — havia sangue.
Acerca das ameixas já eu sabia tudo, pensa ele.
Acerca de sangue de golpes no braço, pensa ele, já eu sabia tudo.
Quanto ao sangue de uma irmã de doze anos que de repente pára de comer ameixas e olha a parede e fica em pânico e grita e atrai as mulheres e é arrastada para o fundo da casa — começo a saber uma pequena coisa.
Tenho medo.
Quando uma mulher tiver fluxo de sangue, e o sangue lhe manar do corpo, ficará sete dias em reclusão, na impureza das suas regras.
Todo aquele que a tocar ficará imundo até à tarde.
O leito em que ela se deitar ficará imundo, e o sítio em que se sentar ficará imundo.
Todo aquele que tocar no seu leito deverá limpar as vestes, e lavar-se em água, e ficará imundo até à tarde.
Todo aquele que tocar num móvel, seja qual for, onde ela se tenha sentado, deverá limpar as vestes, e lavar-se-á em água, e ficará imundo até à tarde.
Se um objecto se encontrar no leito ou no sítio onde ela se sentou, aquele que lhe tocar ficará imundo até à tarde.
Se um homem se deitar com ela, atingi-lo-á a impureza das regras.
Ficará imundo durante sete dias.
O leito onde se deitar ficará imundo.
Principiou assim um tempo novo, uma coisa difícil a favor ou contra a qual ele não possuía qualquer arma.
Se se passasse pelos dias brancos e lisos, talvez nada se notasse, mas ao fundo deles vibrava o ambíguo e cerrado transe feminino.
O crescimento dramático e obscuro da irmã perpetuava-se algures, era o intangível e terrível remate desses dias tão planos.
Deve-se acreditar nos arquitectos, na tradição?
É verdade que uma casa se construíra e nela se instalara um campo de forças, de linhas cruzadas e tensas onde assentava o equilíbrio.
Podia-se então, sob a luz peremptória de setembro, averiguar o valor das pequenas coisas, o sentido de algumas transformações e, embora nada disso se fizesse sem alguma surpresa e sofrimento, ah, ressuscitava-se, sim, ressuscitava-se sempre.
Na verdade, não existia mácula nenhuma.
Metamorfoses, se as havia — e havia — davam-se dentro do próprio sistema de que se fazia parte.
Já se falara em terror?
Sim, falara-se na terra que treme debaixo dos pés, no medo e na confusão.
Não se falara contudo em mácula.
O que estava dentro de uma pessoa crescia, era certo, crescia por vezes espectacularmente, tornava estranhos e inóspitos, por um tempo, o lugar e o estilo — mas recuperava-se tudo, e pensava-se depois: descubro novos dons dentro de mim, eu cresço.
Mas que o mundo crescesse, ele, que o mundo fosse tão brutalmente activo, e não matéria apenas expectante à espera do nosso talento que crescia, isso, ah isso.
Isso não, não se sabia.
Tinha-se medo.
Havia sangue — um sangue corruptor.
Afinal, o trabalho das mulheres era o da ocultação da sua mácula.
Não se tratava de uma riqueza que fosse necessário decifrar, fosse difícil pela sua mesma natureza, mas cujo singular valor se relacionava obscuramente com o crescimento de uma criança.
As mulheres eram secretamente impuras, inspiravam o terror.
Eis que ela grita, aquela que agora se inicia, mas que em si trazia os húmidos e soturnos germens do mal, todas as virtualidades demoníacas.
E se olhares para o alvoroço feminino, com o teu coração tão acessível ao patético, onde o gesto e o movimento curvo se gravam pela impressividade da graça e da inspirada reticência — se olhares assim, aprendiz, ficas a saber que as mulheres continuam o seu trabalho de surpreendentes tecedeiras do milagre.
Mas descobriste outra coisa: que há uma mentira.
Descobriste isto: as mulheres nem roçam por ti.
Nunca soubeste nada, não decifraste o menor sinal, elas sempre estiveram a uma inimaginável distância.
Se perguntasses: o que há em setembro?, apareceriam todas as mentiras.
Maria: a roupa seca mais depressa; Francisca: é o melhor tempo de praia; Filipa: a luz estonteia; Luísa: pode-se dormir ao ar livre; Merícia: custa a adormecer.
Mas em setembro aparece a menstruação.
E ele anda pela casa, em volta daquele círculo de treva ardente, rondando a sagrada vileza das mulheres.
Mas há nessa espécie de desavinda sede de conhecimento, ou nessa angustiosa fascinação, uma repugnância e um medo próximos do amor, um silêncio crispado e atento que quase se abre num louvor incoerente.
Todo aquele… todo aquele que tocar… ficará imundo…
Sim, arrebatam-na, e ela cresce, cresce.
Que é isso de pernas e braços que se põem ridiculamente a sair do seu tamanho, como tomados de um ímpeto próprio, comparado com aquilo que nem se nomeia, não se pode ver, e é sagrado e intocável pelo poder da sua própria maldição?
Uma irmã come ameixas, e isso é mentira.
Ele olhou-a, a ela, e olhou as outras raparigas, e a mãe, e a avó.
Aprendia, pensava ele, aprendia.
Tocava-lhes nos vestidos, via-as pentear-se, andar, falar, calarem-se.
O grito, sim, o grito era o limiar: a primeira e última verdade.
Depois, a treva.
E a irmã estava de repente no seu lugar — a ausência perfeita.
Em setembro, as crianças não dormem.
São rapazinhos de rosto atemorizado, o olhar aberto e imóvel, as mãos espalmadas sobre a colcha.
Talvez pudessem ficar assim, até serem homens, e o que cresceria então neles?
Quem sabe se apenas os cabelos e as unhas?
Mas ele levanta-se no meio da sua noite, um destes rapazinhos, porque afinal existe a força do amor.
Levanta-se para novos corredores e escadas — e anda como um sonâmbulo comido pela febre.
Que o crime é uma vocação — sim, diga-se dessa maneira; diga-se que o crime é uma vocação, do mesmo modo que o conhecimento.
Que são uma só coisa, isso; que o crime e o conhecimento são uma só coisa: uma vocação.
Ele levanta-se na sua noite, cheio de confuso amor, e precipita-se na sua silenciosa vocação: o crime do conhecimento.
E assim se aproxima, tacteando, com as mãos trementes de febre, dos lugares sagrados.
Bem pode ser que haja setembro, luz, coisas aparentemente fáceis, nenhuma dúvida.
Mas agora é sempre noite, sempre um fervor culpado, a descoberta da violação.
Pode-se falar de alegria?
Pode.
É disso mesmo, é de uma monstruosa alegria aquilo de que se fala.
Assim se caminha pelos corredores e quartos, pelo equívoco das velhas arquitecturas, e a inspiração é esta: uma alegria cujas dimensões são ainda imperscrutáveis.
Não se conte isto em tempo: foi muito tempo, ou foi muito pouco.
Não há tempo.
Porque esta alegria, este amor, este medo que anda, esta violação servida por minúcias mesquinhas, estão prontos para o muito ou o pouco tempo.
Exerce-se, e nisso se basta.
É uma aranha, tem as virtudes inteligentes, miúdas e tenazes da aranha.
Aquele rapazinho que fora apanhado pelo espanto e o terror, que se deitara de mãos abertas como fulminado, e estava pálido e já não sabia nada, esse, sim, esse.
É desse que se fala.
Pois levantou-se, e agora procura, cada vez mais perto, mais perto.
É ele.
E um dia então descobre um pano manchado de sangue menstrual e mete-o debaixo da camisa, contra a sua própria carne.
Parece que não chegou a deixar a cama, porque podemos encontrá-lo tal como estava: deitado de mãos estendidas, respirando com a boca entreaberta, e o olhar fixo no tecto.
Talvez um resto de sorriso fugindo dos lábios, ou o princípio de um sorriso.
Mas agora é ele que desaparece, cerra-se, corta todas as pontes que poderiam conduzir ao seu segredo.
Fica só.
Não atravessem corredores, nem subam ou desçam escadas.
Nunca o encontrarão.
Lentamente, a mão que talvez se julgasse adormecida sobe da colcha.
Nunca esteve tão acordada, nunca foi tão forte — aquela mão de rapazinho deitado.
Desabotoa a camisa — ela, a mão, a mão que sabe — e tira o pano para fora.
É sobre um rosto de olhos fechados que essa mão parece voar docemente, com o pano vermelho bem agarrado.
A mão desce sobre o rosto, e o que se poderia ver seria um fremir de narinas, e um tremer de lábios.
O odor tão vivo daquele sangue morto enche-o, passa pelo olfacto e enche-o turvamente.
Sim, sim, também isso, também isso é verdade: um beijo — o beijo do amor.
E, pelas pálpebras fechadas, lágrimas para que não há nome.
Quando ele abre os olhos, talvez ninguém saiba, mas abre-os para a alegria — a mais terrível das alegrias.
A atual poesia cearense é importante, muito importante, pela contribuição que traz à nossa mais válida literatura, aquela que se quer e se faz contra esses aparentemente desvairados cultos da irracionalidade, pregados pelos que se dizem "rebeldes sem causa", e que, por isso mesmo, servem apenas de vaso para o modismo das "vanguardas" conservadoramente aplaudidas pelo poder, por interesses e medos da classe dominante.
A atual poesia cearense, no seu aspecto mais significativo, deixa evidente que vê a literatura como a arte da palavra posta filosoficamente – ou seja, sem simplificações a aleijar as móveis espessuras do real – a serviço das idéias e dos sentimentos que se realizam nas lutas contra as alienações que dolorosamente deformam os sentidos da existência humana. É uma poesia de pé, não há dúvida, uma poesia contra o que oprime e a favor do que liberta, uma poesia dos que sentem na pele dos seus corpos e das suas calçadas o baque das horas sujas e quebradas pela miséria e pela ignorância.
As matrizes da divulgação literária no Rio e em São Paulo, sobretudo, e em outras importantes cidades do Sul e do Centro do nosso país, cercam com uma pesada cortina de silêncio os muitos livros desses poetas editados em Fortaleza.
Para ser reconhecido ou lido nacionalmente, tem-se que ir, pelo menos, ao Rio ou a São Paulo, e ali buscar relacionar-se com os "donos do poder cultural", ou, pelo menos, com os seus parentes e subaltaernos, freqüentar suas casas, levar cartões de visitas sob os olhos das secretárias, alisar com o traseiro as poltronas das editoras, fazer reverências nas redações, encher a todo momento a boca de elogios aos chamados "vencedores da vida", etc., etc. E agora – Deus meu! – é a hora de lembrar o quanto vem sendo badalado, no Rio e em São Paulo, aquele amontoado de ignorância e de imposturas que fez Carlos Drummond de Andrade morrer denunciando o alastramento: da poluição cultural, que consiste na divulgação estonteante de valores intelectuais e artísticos da pior qualidade, absorvidos com avidez por consumidores despreparados e alienados da realidade brasileira.
Por mais que para a imprensa e os escritores daqui fossem enviados, que escritor ou jornal deu cobertura a iniciativas como, por exemplo, a de imprimir e lançar Nação Cariry, uma revista de qualidades bem mais altas do que as babaquices das revistecas e jornalecos em que aqui bailam reunidas a mediocridade e a leviandade?! E se voltarmos atrás, o que dizer da nenhuma esquálida, quando não envenenada, repercussão de movimentos importantes da poesia que foram Clã, na década de 40, o Sin na de 60, O Saco, na de 70?! E isso não é por acaso: o Nordeste – sofrido e ferido sob um regime econômico que já fez por merecer a alcunha de "capitalismo selvagem" – se encontra em autores como os dessa poesia de rebeldes com causa; e se à sua gente fosse dado o mínimo poder de comprar e ler os seus livros, o grito do colonizado se levantaria contra o colonizador.
E é nesse grito, portanto, que a dor mais funda do povo brasileiro, como um todo, encontra o seu verdadeiro eco, aquele cuja história é a do ser contrário aos sons cosmopolitas com que somos vendidos às matrizes do capitalismo financeiro internacional. Matrizes que são as mesmas que dão corda e limite às matrizes da orientação fundamental dos nossos mais potentes meios de comunicação.
E aqui fico pensando em alguns dos mais significativos poetas vivos que hoje o Ceará nos oferece, cada um senhor das técnicas do verso com que vão abrindo – ora com sucesso, ora com fracasso – as muitas janelas da vida que se acha e que se perde no exterior interiorizado do ser humano.
Sem esquecer o relevo dos mortos como Jáder de Carvalho e Aluízio Medeiros, ou o já celebrado em vida Gerardo de Melo Mourão, vale citar, entre os mais velhos, Francisco Carvalho, Alcides Pinto, Arthur Eduardo Benevides e Caetano Ximenes Aragão; e entre os mais moços, além de Luciano Maia e Rosemberg Cariry, vale destacar também Oswald Barroso, Adriano Espínola, Airton Monte, Pedro Lyra, Carlos Augusto Viana, Rogaciano Leite Filho e o digno de ser muito estudado popular poeta Patativa do Assaré. E entre esses, e com o devido destaque, é de incluir-se o nome do autor deste Verbo Encarnado.
Desde as leituras de Contracanto, Lições de Espaço e Memória Corporal, ou seja, há muitos anos, conheci e me fiz amigo pessoal de Roberto Pontes, essa musical figura humana que sabe se fazer tão parte das ruas da cidade em que se orquestra. Da sua ternura guevarina, como indivíduo e poeta, é que ele fez a sombra e o vazio de que também são feitos os atos da vida dos homens. Porque em 1970 ela já escrevia em "Raízes", um poema publicado no número 5 de O Saco, que:
As raízes explicam sempre as folhas
adidas aos ramos projetados
e nelas a essência bruxuleia.
Da sua duração subterrânea
vem o vago e o complexo das plantas
onde apanho o real pelos cabelos.
E assim ele caminha desde os becos escuros ou as praias esverdeadas pelas ondas que levam os perfis da sua Fortaleza até o jogo da luz e da treva nos fatos e nas figuras da nossa história contemporânea que mais o tocaram. O mundo, o nosso mundo e este país dentro dele – esse o barco dos seus pensamentos; o povo, todos os povos, e a singularidade do ser individual neles imerso, esses os tripulantes do seu barco. Aqui o verbo se encarna na dança linotípica das escrituras de significados e significantes; e é uma recusa de todas as ditaduras que levam ao sectarismo e ao dogmatismo, a tudo que prende numa conceitual camisa-de-força os inconceituáveis e quase infinitos tons pesados no olho das velocidades em que giram, se acendendo e se apagando, as contradições de cada ser humano. Aqui, neste livro, o chão de todo verdadeiro poeta, o chão em que cada poeta escolhe a sua singularíssima viagem, o chão em que Roberto Pontes realiza os melhores poemas deste livro. E aqui pinço, como exemplificação, o poema dedicado a Tatá, a negra retinta que foi mãe dos princípios do poeta, a que, no dia da notícia da morte de Stalin, deu-lhe o quefoi a primeira lição de liberdade.
Eu tinha nove anos e sorria
apenas nove anos e sonhava.
Tudo formando a descrição do momento do quanto aprendera, desde então, que a existência humana é maior do que qualquer esquematismo político:
As flores transpiravam mil segredos
elas eram brancas, roxas, e teimavam.
Aqui vemos o que aparecerá várias vezes neste livro: o fato mais individual a servir de eixo para a definição de fatos da grande história dos homens, o próximo e o singular mostrando seu rosto do distante e do plural.
E por issso – ora aplaudindo e abraçamdo, ora condenado e vergastando – o poeta vai costurando, em torno da sua noção de liberdade, a evocação de nomes de tiranias e tiranos – como Stalin, Salazar, e o golpe militar em 64 – com os nomes de Neruda, Ho Chi Minh, Frei Tito, José Genoíno, Luther King e outros.
Roberto Pontes está convencido de que a fala insubmissa do poeta não deve ser concebida "apenas como resitência" e sim "muito mais como incitação das consciências". E a partir dessas idéias estrutura neste livro uma verdadeira lição do que deve ser verdadeiramente uma poética: lutando para não se aprisionar nos dogmatismos e sectarismos contrários à complexidade da existência, aberto aos infinitos que ainda não sabemos, o poeta colhe a poesia no que vê e sente como o não-ser do que foi ou que não pôde ser sob os golpes do destino e da história; e em nome disso faz da Liberdade a porta e o caminho e o horizonte para o verbo com que intenta dar fala ao ser que nele move idéias e sentimentos:
A noite será feia
enquanto houver uma cadeia.
O poeta não abre exceções, não as admite; a liberdade é indivisível e para todos, ou não é liberdade. Ela é o fundamento de todos os atos do s
— a sexta! — no Brasil. Torna-se pública
a panqueca do novo Ministério,
que vamos, a sorrir, levando a sério…
Entre os nomes procuro, olho, joeiro
e não encontro o de Darcy Ribeiro.
Provara bem demais como ministro?
No Torto alguém comenta e aqui registro:
“Dava cartilha a todos… Que perigo!
Era amigo da onça ou nosso amigo?”
O fato é que, se existe homem sem fila
à sua austera porta, é Raul Pila,
tanto maior em seu isolamento,
quanto mais vário e louco sopra o vento.
Mas não é vento, é gente da polícia
— sadismo, horror —, que após muita sevícia
vai jogando mendigos desgraçados
à correnteza, e, tendo-os bem lavados,
outorga-lhes por fim a liberdade
no regaço abissal da eternidade.
Turvo Rio da Guarda, que carreias
culpas medonhas entre lodo e areias!
(A condição humana sai vencida
nesta peleja entre a polícia e a vida.)
Quem é esse que cumpre o seu destino
em barro e volta ao barro? Vitalino.
Depois de modelar o seu Nordeste
em formas gráceis que a poesia veste
de candura primeva, ei-lo deitado,
ele próprio em silêncio modelado.
Olha o boizinho e mais o cangaceiro!
Olha a noiva montada no sendeiro!
Olha o doutor, o padre, a bicharada,
tudo em volta, fitando a mão parada…
Vamos cortar o Rio em mil pedaços
ou deixá-lo perfeito nos seus traços?
Se o dividem, requeiro, por favor,
o azúleo município do Arpoador.
Lá, prefeito da espuma e do biquíni,
ante os jardins onde a cigarra zine,
o pasto da gaivota, o verso da onda,
e belas vereadoras numa ronda
— orçamentos, posturas e outras leis
farei melhores que os melhores reis…
Mas, se me negam essa sesmaria
que o PTB cobiça — ave, Maria! —,
então sou contra, e quero a Guanabara
una, indivisa, em sua forma rara.
27/01/1963
O caso do Inglês espírito
Ou melhor: do morto vivo.
Diz que mesmo sucedeu
E a dona protagonista
Se quiser pode ser vista
No hospício mais relativo
Ao sítio onde isso se deu.
Diz também que é muito raro
Que por mais cético o ouvinte
Não passe uma noite em claro:
Sendo assim, por conseguinte
Se quiser diga que eu paro.
Se achar que é mentira minha
Olhe só para essa pele
Feito pele de galinha...
Dou início: foi nos faustos
Da borracha do Amazonas.
Às margens do Rio Negro
Sobre uma balsa habitável
Um dia um casal surgiu
Ela chamada Lunalva
Formosa mulher de cor
Ele por alcunha Bill
Um Inglês comercial
Agente da “Rubber Co.”
Mas o fato é que talvez
Por ter nascido na Escócia
E ser portanto escocês
Ninguém de Bill o chamava
Com exceção de Lunalva
Mas simplesmente de Inglês.
Toda manhã que Deus dava
Lunalva com muito amor
Fazia um café bem quente
Depois o Inglês acordava
E o homem saía contente
Fumegando o seu cachimbo
Na sua lancha a vapor.
Toda a manhã que Deus dava.
Somente com o sol-das-almas
O Inglês à casa voltava.
Que coisa engraçada: espia
Como só de pensar nisso
Meu cabelo se arrepia...
Um dia o Inglês não voltou.
A janta posta, Lunalva
Até o cerne da noite
Em pé na porta esperou.
Uma eu lhe digo, Tatiana:
A lua tinha enloucado
Nesse dia da semana...
Era uma lua tão alva
Era uma lua tão fria
Que até mais frio fazia
No coração de Lunalva.
No rio negroluzente
As árvores balouçantes
Pareciam que falavam
Com seus ramos tateantes
Tatiana, do incidente.
Um constante balbucio
Como o de alguém muito em mágoa
Parecia vir do rio.
Lunalva, num desvario
Não tirava os olhos da água.
Às vezes, dos igapós
Subia o berro animal
De algum jacaré feroz
Praticando o amor carnal
Depois caía o silêncio...
E então voltava o cochicho
Da floresta, entrecortado
Pelo rir mal-assombrado
De algum mocho excomungado
Ou pelo uivo de algum bicho.
Na porta em luzcancarada
Só Lunalva lunalvada.
Súbito, ó Deus justiceiro!
Que é esse estranho ruído?
Que é esse escuro rumor?
Será um sapo-ferreiro
Ou é o moço meu marido
Na sua lancha a vapor?
Na treva sonda Lunalva...
Graças, meu Pai! Graças mil!
Aquele vulto... era o Bill
A lancha... era a Arimedalva!
“Ah, meu senhor, que desejo
De rever-te em casa em paz...
Que frio que está teu beijo!
Que pálido, amor, que estás!”
Efetivamente o Bill
Talvez devido à friagem
Que crepitava do rio
V oltara dessa viagem
Muito branco e muito frio.
“Tenho nada, minha nega
Senão fome e amor ardente
Dá-me um trago de aguardente
Traz o pão, passa manteiga!
E aproveitando do ensejo
Me apaga esse lampião
Estou morrendo de desejo
Amemos na escuridão!”
Embora estranhando um pouco
A atitude do marido
Lunalva tira o vestido
Semilouca de paixão.
Tatiana, naquele instante
Deitada naquela cama
Lunalva se surpreendeu
Não foi mulher, foi amante
Agiu que nem mulher-dama
Tudo o que tinha lhe deu.
No outro dia, manhãzinha
Acordando estremunhada
Lunalva soltou risada
Ao ver que não estava o Bill.
Muito Lunalva se riu
Vendo a mesa por tirar.
Indo se mirar ao espelho
Lunalva mal pôde andar
De fraqueza no joelho.
E que olhos pisados tinha!
Não rias, pobre Lunalva
Não rias, morena flor
Que a tua agora alegria
Traz a semente do horror!
Eis senão quando, no rio
Um barulho de motor.
À porta Lunalva voa
A tempo de ver chegando
Um bando de montarias
E uns cabras dentro remando
Tudo isso acompanhando
A lancha a vapor do Bill
Com um corpo estirado à proa.
Tatiana, põe só a mão:
Escuta como dispara
De medo o meu coração.
E frente da balsa para
A lancha com o corpo em cima
Os caboclos se descobrem
Lunalva que se aproxima
Levanta o pano, olha a cara
E dá um medonho grito.
“Meu Deus, o meu Bill morreu!
Por favor me diga, mestre
O que foi que aconteceu?”
E o mestre contou contado:
O Inglês caíra no rio
Tinha morrido afogado.
Quando foi?... ontem de tarde.
Diz — que ninguém esqueceu
A gargalhada de louca
Que a pobre Lunalva deu.
Isso não é nada, Tatiana:
Ao cabo de nove luas
Um filho varão nasceu.
O filho que ela pariu
Diz-que, Tatiana, diz-que era
A cara escrita do Bill:
A cara escrita e escarrada...
Diz-que até hoje se escuta
O riso da louca insana
No hospício, de madrugada.
É o que lhe digo, Tatiana...
da imagem
entre a anca e a face
a turva
forma
que não atinge ainda a folha clara
Não escuto Nem sei nesta folhagem
qual o rosto É incerto
este trabalho num buraco
como um insecto
sem delicadas forças sem o jacto
que estilhace o vidro e abra a pedra
Mas trabalho estes sinais
de ausência
e de tremor na pedra do vazio
Tenho o silêncio do campo a meu favor
tenho várias pedras vários odores
Construo os meus sulcos
avanço com o alento
atento ao silêncio e ao ardor
Chegarei a formar um rosto
nesta folha
árida?
o sobrevivente.
Não por longo tempo, é claro.
Tranquilizem-se.
Mas devo confessar, reconhecer
que sou sobrevivente.
Se é triste/cômico
ficar sentado na platéia
quando o espetáculo acabou
e fecha-se o teatro,
mais triste/grotesco é permanecer no palco,
ator único, sem papel,
quando o público já virou as costas
e somente baratas
circulam no farelo.
Reparem: não tenho culpa.
Não fiz nada para ser
sobrevivente.
Não roguei aos altos poderes
que me conservassem tanto tempo.
Não matei nenhum dos companheiros.
Se não saí violentamente,
se me deixei ficar ficar ficar,
foi sem segunda intenção.
Largaram-me aqui, eis tudo,
e lá se foram todos, um a um,
sem prevenir, sem me acenar,
sem dizer adeus, todos se foram.
(Houve os que requintaram no silêncio.)
Não me queixo. Nem os censuro.
Decerto não houve propósito
de me deixar entregue a mim mesmo,
perplexo,
desentranhado.
Não cuidaram de que um sobraria.
Foi isso. Tornei, tornaram-me
sobre-vivente.
Se se admiram de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projeto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto, à espera,
contraditória e simplesmente,
de chegar a hora de também
viver.
Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
sorria longe, indecifrável.
Desisti. Recolhi-me
cada vez mais, concha, à concha. Agora
sou sobrevivente.
Sobrevivente incomoda
mais que fantasma. Sei: a mim mesmo
incomodo-me. O reflexo é uma prova feroz.
Por mais que me esconda, projeto-me,
devolvo-me, provoco-me.
Não adianta ameaçar-me. Volto sempre,
todas as manhãs me volto, viravolto
com exatidão de carteiro que distribui más notícias.
O dia todo é dia
de verificar o meu fenômeno.
Estou onde não estão
minhas raízes, meu caminho:
onde sobrei,
insistente, reiterado, aflitivo
sobrevivente
da vida que ainda
não vivi, juro por Deus e o Diabo, não vivi.
Tudo confessado, que pena
me será aplicada, ou perdão?
Desconfio nada pode ser feito
a meu favor ou contra.
Nem há técnica
de fazer, desfazer
o infeito infazível.
Se sou sobrevivente, sou sobrevivente.
Cumpre reconhecer-me esta qualidade
que finalmente o é. Sou o único, entendem?
de um grupo muito antigo
de que não há memória nas calçadas
e nos vídeos.
Único a permanecer, a dormir,
a jantar, a urinar,
a tropeçar, até mesmo a sorrir
em rápidas ocasiões, mas garanto que sorrio,
como neste momento estou sorrindo
de ser — delícia? — sobrevivente
É esperar apenas, está bem?
que passe o tempo de sobrevivência
e tudo se resolva sem escândalo
ante a justiça indiferente.
Acabo de notar, e sem surpresa:
não me ouvem no sentido de entender,
nem importa que um sobrevivente
venha contar seu caso, defender-se
ou acusar-se, é tudo a mesma
nenhuma coisa, e branca.
Randall era conhecido por ser um solitário convicto, um bêbado, um homem bruto e amargo, mas seus poemas eram crus, crus e honestos, simples e selvagens. Estava escrevendo como ninguém mais fazia naquela época. Ele trabalhava como despachante em um depósito de autopeças.
Sentei de frente para Randall e Margie. Eram sete e quinze da noite e Harris já estava bêbado de cerveja. Pôs uma garrafa na minha frente. Eu tinha ouvido falar de Margie Thompson. Ela era uma comunista das antigas, uma salvadora do mundo, uma benfeitora. Alguém poderia se perguntar o que ela estava fazendo ao lado de Randall, que não se importava com nada e não fazia questão de escondê-lo.
– Gosto de fotografar merda – ele me disse –, essa é a minha arte.
Randall começou a escrever com 38 anos. Com 42, depois de três pequenos livros de contos (A morte é uma cadela mais suja que o meu país, Minha mãe trepou com um anjo e Os cavalos desenfreados da loucura), estava começando a receber o que se pode chamar de reconhecimento da crítica. Mas não ganhava grana com seus textos e disse:
– Não sou nada além de um despachante com uma depressão profunda.
Vivia em um velho casarão em Hollywood com Margie, e ele era estranho, de verdade.
– Apenas não gosto de gente – ele disse. – Sabe, Will Rogers disse uma vez: “Nunca encontrei um homem de quem não gostasse”. Comigo é o contrário, nunca encontrei um homem de quem gostasse.
Mas Randall tinha senso de humor, uma capacidade de rir da dor e de si mesmo. Não havia como não gostar dele. Era um homem feio com um cabeção e uma cara amassada... apenas o nariz parecia ter escapado do achatamento generalizado.
– Não tenho osso suficiente em meu nariz, é como se fosse de borracha – ele explicava. Seu nariz era longo e muito vermelho.
Eu já ouvira histórias sobre Randall. Dizia-se que era de quebrar janelas e jogar garrafas contra as paredes. Era um bêbado terrível. Também tinha períodos em que não atendia à porta nem ao telefone. Não tinha televisão, apenas um radinho e somente ouvia música sinfônica... algo estranho para um sujeito bruto como ele.
Randall também tinha períodos em que tirava a parte de baixo do telefone e enchia com papel higiênico ao redor da campainha para que não soasse. Ficava assim por meses. Alguém poderia se perguntar por que ele tinha um telefone, afinal. Sua educação era precária, mas ele evidentemente lia boa parte dos melhores escritores.
– Bem, seu merda – ele me disse –, imagino que você esteja se perguntando o que faço ao lado dela? – e apontou para Margie.
Não respondi.
– Ela é boa de cama – ele disse – e me dá as melhores fodas a oeste de Saint Louis.
Esse era o mesmo sujeito que tinha escrito quatro ou cinco excelentes poemas de amor para uma mulher chamada Annie. Era de se pensar como tudo isso funcionava.
Margie apenas ficava sentada ali, mostrando os dentes. Ela também escrevia poesia, mas não era muito boa. Frequentava dois workshops por semana, o que não ajudava muito.
– Então você quer alguns poemas? – ele me perguntou.
– Sim, gostaria de olhar alguns.
Harris foi até o armário, abriu a porta e pegou alguns papéis amassados e rasgados do fundo. Entregou-os para mim.
– Escrevi esses aí na noite passada.
Então ele foi até a cozinha e voltou com mais duas cervejas. Margie não bebia.
Comecei a ler os poemas. Eram todos poderosos. Ele datilografava com a mão muito pesada, e as palavras pareciam cinzeladas no papel. A força de sua escrita sempre me surpreendia. Parecia estar dizendo todas as coisas que deveríamos dizer, mas que nunca teríamos coragem de pronunciar.
– Vou levar esses poemas – eu disse.
– Ok – ele disse. – Beba.
Quando se visitava Harris, beber era uma obrigação. Ele fumava um cigarro atrás do outro. Usava calças marrons de algodão, folgadas, dois número acima do que seria o correto, e camisas velhas que estavam sempre em frangalhos. Tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura e pesava uns cem quilos, em grande parte decorrentes da cerveja. Tinha os ombros caídos e nos espiava por trás das pálpebras semicerradas. Bebemos por cerca de duas horas e meia, o ar estava saturado pela fumaça. Subitamente Harris se levantou e disse:
– Dê o fora daqui, seu escroto, você me dá nojo!
– Calma, Harris, calma...
– Eu disse AGORA! Escroto!
Levantei e parti com os poemas.
Voltei àquele casarão dois meses mais tarde para entregar algumas cópias da Mad Fly para Harris. Tinha publicado todos os dez poemas dele. Margie me deixou entrar. Randall não estava lá.
– Ele está em Nova Orleans – disse Margie –, acho que ele está tirando uma folga. Jack Teller quer publicar seu próximo livro, mas ele quer conhecer Randall antes. Teller diz que não pode editar ninguém de quem não goste. Pagou a passagem área de ida e volta.
– Randall não é o que se poderia chamar de um sujeito cativante – eu disse.
– Veremos – disse Margie. – Teller é um bêbado e um ex-presidiário. Talvez formem uma bela dupla.
Teller publicava a revista Riftraff e tinha seu próprio prelo. Fazia um belo trabalho. A última edição de Riftraff tinha a cara feia de Harris na capa mamando em uma garrafa de cerveja e trazia alguns de seus poemas.
Riftraff era amplamente reconhecida como a revista literária número um da época. Harris estava começando a ganhar mais e mais destaque. Isso acabaria se tornando uma boa chance para ele, se não a estragasse com sua língua pérfida e seus modos de bêbado. Antes de partir, Margie me disse que estava grávida... de Harris. Como eu disse, ela tinha 45 anos.
– O que ele disse quando você lhe contou?
– Pareceu indiferente.
Parti.
O livro realmente foi publicado em uma edição de dois mil exemplares, muito bem impressos. A capa era feita de cortiça importada da Irlanda. As páginas eram multicoloridas e de um papel extremamente bom, impressas em um tipo exótico e entremeadas com alguns desenhos em nanquim que o próprio Harris havia feito. A edição foi aclamada, tanto pelo livro em si quanto pelo conteúdo. Mas Teller não podia pagar os royalties. Ele e sua esposa viviam com uma margem de lucro muito pequena. Em dez anos o livro passou a custar 75 dólares no mercado de livros raros. Enquanto isso Harris voltou para seu emprego de despachante no armazém de autopeças.
Quando fui visitá-lo novamente, quatro ou cinco meses depois, Margie se fora.
– Ela partiu há muito tempo – disse Harris. – Beba uma cerveja.
– O que aconteceu?
– Bem, depois que voltei de Nova Orleans, escrevi alguns contos. Enquanto eu estava no trabalho, ela revirou minhas gavetas. Leu algumas das minhas histórias e ficou alterada com o conteúdo delas.
– Sobre o que eram?
– Ah, sobre as minhas aventuras amorosas com algumas mulheres em Nova Orleans.
– As histórias eram verdadeiras? – perguntei.
– Como vai a Mad Fly? – perguntou.
A criança nasceu, uma menina, Naomi Louise Harris. Ela e a mãe viviam em Santa Mônica, e Harris dirigia até lá uma vez por semana para vê-las. Pagava pensão alimentícia e continuava bebendo sua cerveja. Depois disso, soube que ele mantinha uma coluna semanal no jornal de vanguarda Los Angeles Lifeline. Chamava suas colunas de Impressões de um Maníaco de Primeira Classe. Sua prosa era como sua poesia: indisciplinada, antissocial e preguiçosa.
Harris deixou crescer um cavanhaque e deixou seu cabelo mais comprido. Na próxima vez que o vi, estava vivendo com uma garota de 35 anos, uma ruiva bonita chamada Susan. Susan trabalhava em uma loja de material de desenho, pintava e tocava violão razoavelmente. Também bebia ocasionalmente uma cerveja com Randall, que era mais do que Margie fazia. O casarão parecia mais limpo. Quando Harris acabava uma garrafa, atirava-a numa sacola de papel, em vez de atirá-la no chão. Mas, ainda assim, era um bêbado terrível.
– Estou escrevendo um romance – ele me disse – e às vezes arranjo alguma leitura de poesia nas universidades da região. Também tenho uma leitura marcada em Michigan e outra no Novo México. As ofertas são bem boas. Não sinto vontade de ler, mas sou um bom leitor. Dou a eles um show e um pouco de boa poesia.
Harris também estava começando a pintar. Não pintava muito bem. Pintava como uma criança de cinco anos que tivesse enchido a cara de vodca, mas dava um jeito de vender um ou dois quadros por quarenta ou cinquenta dólares. Contou-me que estava pensando em abandonar seu emprego. Três semanas depois ele realmente largou o emprego para fazer a leitura em Michigan. Já tinha usado as férias a que tinha direto para fazer a viagem a Nova Orleans.
Lembrei de uma vez que em que ele me havia prometido:
– Jamais lerei diante daqueles sanguessugas, Chinaski. Vou pra cova sem nunca fazer uma leitura pública. É pura vaidade, é se vender.
Não o lembrei dessa afirmação.
Seu romance A morte na vida de todos os olhos sobre a face da Terra foi publicado por uma pequena porém prestigiada editora que pagava royalties regularmente. As críticas foram boas, incluindo uma na New York Review of Books. Mas ele ainda era um bêbado terrível e brigava constantemente com Susan por causa da bebida.
Finalmente, depois de um porre homérico, em que ele se enfureceu, amaldiçoou e gritou a noite toda, Susan o deixou. Vi Randall vários dias depois que ela partira. Harris estava estranhamente quieto, quase normal.
– Eu a amava, Chinaski – ele me disse. – Não vou conseguir superar essa, meu chapa.
– Você vai conseguir, Randall. Você vai ver. Vai conseguir. O ser humano é muito mais resistente do que você pensa.
– Merda – ele disse –, espero que você esteja certo. Estou com um buraco danado no peito. As mulheres já colocaram muitos homens bons embaixo da ponte. Elas não sentem isso da forma que nós sentimos.
– Elas sentem, sim. Ela só não conseguia mais suportar as suas bebedeiras.
– Porra, homem, escrevo a maioria dos meus textos quando estou bêbado.
– É esse o segredo?
– Merda, claro que é. Sóbrio, sou apenas um despachante, e não dos melhores...
Deixei-o lá agarrado em sua cerveja.
Voltei a visitá-lo três meses mais tarde. Harris ainda estava em seu casarão. Ele me apresentou Sandra, uma loira bonita de 27 anos. Seu pai era um juiz da Suprema Corte, e ela era uma estudante de graduação na Universidade do Sul da Califórnia. Além de ter um corpo bem-torneado, tinha certa sofisticação e classe, algo que faltara às outras mulheres de Randall. Estava bebendo uma garrafa de vinho italiano.
O cavanhaque de Randall tinha se transformado em uma barba e seu cabelo estava ainda mais comprido. Suas roupas eram novas e da última moda. Estava usando sapados de quarenta dólares, um relógio de pulso novo e seu rosto parecia mais magro, suas unhas, limpas... mas seu nariz ainda enrubescia à medida que ia bebendo o vinho.
– Randall e eu vamos nos mudar para West L.A. Este fim de semana – ela me disse. – Esse lugar é imundo.
– Escrevi muitas coisas boas aqui – ele disse.
– Randall, querido – ela disse –, não é o lugar que escreve, é você. Acho que podemos lhe arranjar um emprego de professor para lecionar três dias por semana.
– Não sei ensinar.
– Querido, você pode lhes ensinar tudo.
– Merda – ele disse.
– Estão pensando em fazer um filme baseado no livro de Randall. Vimos o roteiro. É um belo roteiro.
– Um filme? – perguntei.
– A probabilidade é baixa – disse Harris.
– Querido, estão trabalhando nele. Tenha um pouco de fé.
Bebi outro cálice de vinho com eles e então parti. Sandra era uma garota bonita.
Não recebi o endereço de Randall em West L.A. E não fiz nenhuma tentativa de localizá-lo. Cerca de um ano depois, li uma resenha do filme Flor no cu do inferno. Era baseado em seu romance. Era uma crítica favorável e Harris chegou mesmo a atuar em um pequeno papel.
Fui assistir. Tinham feito um bom trabalho em cima do livro. Harris parecia um pouco mais austero do que quando o havia visto pela última vez. Decidi encontrá-lo. Depois de um tempo dando uma de detetive, bati à porta de sua cabana em Malibu uma noite por volta das nove. Randall atendeu.
– Chinaski, seu cachorro velho – ele disse. – Entre.
Uma bela garota estava sentada no sofá. Parecia ter aproximadamente dezenove anos, simplesmente irradiava uma beleza natural.
– Essa é Karilla – ele disse.
Eles estavam bebendo uma garrafa de vinho francês, dos caros. Sentei com eles e bebi um cálice. Tomei vários cálices. Outra garrafa apareceu e conversamos calmamente. Harris não ficou bêbado e inoportuno e não pareceu fumar muito.
– Estou trabalhando numa peça para a Broadway – ele me disse. – Dizem que o teatro está morrendo, mas eu tenho algo para eles. Um dos principais produtores está interessado. Estou finalizando o último ato agora. É um gênero interessante. Sempre fui craque nos diálogos, você sabe.
– Sim – eu disse.
Fui embora lá pelas onze e meia naquela noite. A conversa tinha sido agradável... As têmporas de Harris começavam a exibir um respeitável tom grisalho, e ele não disse “merda” mais do que quatro ou cinco vezes.
A peça Atire em seu pai, atire em seu Deus, livre-se do desembaraço era um sucesso. Estava entre as peças recordistas em tempo de exibição na Broadway. Tinha de tudo: algo para os revolucionários, algo para os reacionários, algo para os que amavam comédia, para os que amavam drama, tinha até mesmo algo para os intelectuais e, ainda assim, fazia sentido. Randall Harris se mudou de Malibu para uma casa maior em Hollywood Hills. Agora é possível saber notícias dele pelos tabloides.
Após algumas dificuldades, encontrei a localização de sua casa em Hollywood Hills, uma mansão de três andares com vista para as luzes de Los Angeles e Hollywood.
Estacionei, saí do carro e caminhei pela passagem que levava até a porta da frente. Era perto das oito e meia da noite, a temperatura estava baixa, quase fazia frio; a lua estava cheia e o ar fresco e limpo.
Toquei a campainha. Pareceu-me uma longa espera. Finalmente a porta se abriu. Era o mordomo.
– Sim, senhor? – me perguntou.
– Vim para ver Randall Harris, da parte de Henry Chinaski – eu disse.
– Um momento, por favor, senhor.
Ele fechou a porta em silêncio e esperei. Mais uma vez, um longo intervalo. Então o mordomo voltou.
– Sinto muito, senhor, mas o sr. Harris não pode ser perturbado neste momento.
– Oh, tudo bem.
– Gostaria de deixar uma mensagem, senhor?
– Uma mensagem? Sim, dê-lhe os meus “parabéns”.
– “Parabéns”? Isso é tudo?
– Sim, isso é tudo.
– Boa noite, senhor.
– Boa noite.
Voltei para o meu carro, entrei. Dei a partida e comecei a longa viagem descendo as colinas. Tinha comigo aquela antiga cópia da Mad Fly que queria que ele autografasse. Era a cópia com dez poemas de Randall Harris. Ele provavelmente estava ocupado. Talvez, pensei, se eu mandasse pelo correio a revista com um envelope selado de resposta, ele assinasse.
Eram apenas nove da noite. Havia tempo para ir a um outro lugar.
– Ao sul de lugar nenhum
cortinas cerradas
não quer ver mais ninguém
não quer escrever mais nada
não quer tentar mais nada;
os editores e donos de editora se admiram:
alguns dizem que ele está louco
alguns dizem que ele morreu;
sua mulher agora responde a toda a correspondência:
"ele não quer..."
e alguns outros até dão voltas
pelo lado de fora da sua casa
olham para as cortinas
cerradas;
alguns até sobem e tocam a
campainha.
ninguém responde.
o grande escritor não quer ser
incomodado. será que o grande escritor não está
em casa? será que o grande escritor foi
embora?
mas todos querem saber a verdade,
ouvir sua voz, ficar sabendo de algum bom
motivo para tudo isso.
se ele tem um motivo
não o revela.
talvez não haja nenhum
motivo?
estranhos e perturbadores acertos são
feitos; seus livros e quadros são silenciosamente
leiloados;
nenhum trabalho novo apareceu em
anos.
no entanto, o público não quer aceitar seu
silêncio -
se ele está morto
eles querem saber; se ele está
louco eles querem saber; se ele tem um
motivo, por favor, nos conte!
eles passam por sua casa
escrevem cartas
tocam a campainha
eles não podem entender e não irão
aceitar
O jeito como as coisas são.
eu prefiro
assim.
“suicídio”
a bater com os nós dos dedos pelas paredes a abrir e fechar
as mãos para que o ar saltasse
como “modeladas” (“moduladas”) aparas de “som”
um poeta nos limites da “consumação” à procura
de um “ponto de apoio” apenas levemente “perceptível”
para a terrífica massa de “silêncio” que lhe cabia
a ele que procurara sob as ameaças da confusão
“estabelecer as vozes”
uma vez pensara: “que o corpo permitisse o corpo”
e fora para diante com essa ideia
era decerto uma decisão “explosiva”
ele estava sentado a fazer aquilo “por dentro”
e foi-se vendo pelo seu “rosto” que não era fácil tomar a cargo
a coruscante “caligrafia do mundo”
mas ele tomou-a até onde pôde e o “corpo” era já
o outro lado da “agonia” um “texto monstruoso” que se “decifrava”
apenas “a si próprio”
depois veio o toque no estuque e nas portas que finalmente
não davam nenhuma saída ao excesso “corporal”
de tanto “trabalho” tanta “poética transgressora” tanto
“nome” abusivamente “físico”
veio o ar espadanando à passagem da “natação”
desesperada
avisos de um nó de som a ainda ingénua “vacilação de planos”
quando a vozearia criara por fim a “distância”
uma “fractura no espaço” a “virgula” a fremir
na “ausência” isso o “sitio” onde apoiar a “alavanca”
porque essa “energia do silêncio” já atingira
algumas partes da “biografia” dele do “sono” de tudo quanto
fizera seu ou lhe viera
enfaixado no “sangue” e o que pretendia era só
colocar a “música extrema” ao alcance dos “ouvidos”
referir a uma “pauta” o silêncio em toda a parte
estivera como tanta gente a “ressuscitar”
metade do tempo e metade dele a “morrer” muito e muito
achava então que tudo deveria ser levado
até à “decifração”
por fim havia isso de estuque e dedos para tentar saber
e o ar como deserto a ver se dele irrompia
“o princípio da fertilidade”
do rosto não sei se era “a luz” que o alagava
ou “a noite de tantas noites”
enquanto o “suicídio” se acercava não como uma espécie
de “regra final de ouro”
acercava-se apenas e os dedos a baterem sempre na madeira
e o ar fendendo-se enquanto fremiam ainda
as barbatanas a ver se havia alguma coisa a seu favor
no mundo que não havia
1971
põe aqui uma descontente atenção e é quanto basta “aqui”
o único problema é encontrar essa se possível dizer
como que “clareira obscura” aqui onde existem “áscuas de ouro”
o silêncio ex.: “não se precisa sair do silêncio”
por favor eu quero dizer que “é preciso entrar nele”
no silêncio das clareiras obscuras das áscuas de ouro
ficar como um cavalo no campo
e não decerto por acaso falo de um cavalo no campo
uma coisa completamente viva e completamente distante
“que está”
notável que se estabeleça um cerco de cabeças com apenas
“um toque de lume” veja-se uma expressão
tudo a fazer força de dentro no escuro um só “lampejo”
tudo para fora uma víscera brilhando “para ver”
uma tensão
“como se comessem bananas”
os intestinos a arderem pelo poder dos alimentos
coisa sibilina essa afinal sempre a mesma
o toque áspero na raiz dos cabelos “eles eriçam-se”
o medo de saber alguma coisa quando se vê o campo
o cavalo tudo vivo e longínquo
“trouxeram fotografias onde estava o silêncio
ainda todo molhado e atravessaram-no
parando aqui escrutando”
o gosto era já algo tão puro como uma vocação
há “aí” uma bruta elegância uma coisa fugitivamente louca
“uma devassidão” que é como uma referência às “palavras”
mas tinham medo de dormir o sono traz
uma gentileza perigosa e também porque “no sono se revela o rosto"
bem sei forçoso é colocar os dedos lá no fundo
“queima” dizem e “pois é verdade que queima”
ora não havia de queimar “que pensam eles?”
é o silêncio
ainda têm uma certa leviandade porque examinam tudo
como se se destinasse a “uma paisagem interrompida pelo frio”
em termos despropositados “uma pontuação coerente”
precisava-se de “um pintor de cavalos”
um homem que abandonasse a família apenas
para ser um obscuríssimo “pintor de cavalos”
uma criatura viva de dedos vivos longínqua de coração longínquo
nada menos que um selvagem que viu “monstros dourados”
e a si mesmo dissesse “entrega-te ao que melhor te pode esquecer”
ou “dez dedos ainda assim é extenso para quem tem uma vida”
animais blocos de ouro uma energia inexplicável
toda a luz sugeria nele uma pulsação nocturna
uma leveza indomável uma leveza
ele entrava na posse de uma “visão” uma herança de ritmos
então poderia destruir tudo numa “devassidão aracnídea”
o perto e o longe “o cavalo no campo” ele “o bárbaro”
apenas um pintor de cavalos “o impossível”
Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida - Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.
Há o silêncio dos que se encontram.
Há o silêncio dos que se afastam
Não, por favor, nada digas...
Se chegas, não preciso de palavras...
Se partes...
de que me servem as palavras?
IN: Para Ti
Caminhando a passos lentos, voltando do trabalho muito mais tarde do que eu queria, senti a garganta arranhar, estava muito frio e eu parecia que adoeceria muito em breve. "Mais essa agora!" Pensei. Como se já não bastasse as pilhas de relatorios para revisar inadiavelmente, eu ficaria doente e dolorido. Meus resfriados sempre eram fortes e me deixam muito mal.
As ruas da minha cidade são muito escuras e eu ando sempre a pé. Meu dinheiro é curto e eu tenho que sustentar a mim e ao meu filho, o Felipe. Felipe tem só cinco anos e sente muito a falta da mãe. Minha querida e amada Julia, que Deus a tenha.
Chegando perto de casa eu sempre vejo a luzinha da Tv ligada da janela, já passam das nove e meia da noite e Felipe sabe que já devia estar dormindo. A babá só fica até as oito então ele aproveita pra fazer suas travessuras quando ela sai. Sempre que ele ouve o barulho do velho portão de metal rangir eu vejo a luzinha da TV apagar, e como num passe de magica, quando eu entro em casa ele deita na cama e finge estar dormindo.
Menino travesso,o meu, mas eu prefiro que seja assim, pelo menos não é uma criança triste.
Esta noite em especial eu cheguei e o Felipe não fingiu dormir, ao invez disso ele desligou a TV e me esperou na porta. Parecia chateado.
- Papai! Eu fiquei com medo.
Ele abraçou minhas pernas com força e pareceu choramingar.
Meu coração estava partido, o que tinha feito meu garotinho levado chorar?
Eu acariciei seus cabelos escuros e me pareceram suados e oleosos. Afastei-o devagar e com delicadeza e me agachei para nivelar a altura.
-Do que você teve medo filho? Aconteceu alguma coisa?
Ele esfregou os olhinhos molhados e avermelhados de sono. Seus olhos eram verdes, iguais os da Julia, lembrava muito a mãe.
-A Bárbara, foi embora muito cedo, eu não gosto de ficar sozinho aqui.
Eu fiquei confuso, Bárbara era a babá, sempre foi muito confiável, e ela sempre me avisava quando tinha de sair antes do horário, não me lembrava dela ter dito nada a mim hoje.
-Como assim filho? A Bárbara sempre sai ás oito, quando a lua começa a aparecer lembra? E minutinhos depois o papai chega, só hoje que eu me atrasei um pouquinho.
-Sim Papai! Mas hoje ela saiu quando ainda tinha sol, fiquei muito tempo sozinho, você não chegava nunca mais, achei que você tivesse ido embora.
Felipinho desabou a chorar, e aquilo deixou meu coração em frangalhos, ao mesmo tempo que me deixou enfurecido. Como a Bárbara pode fazer isso sem avisar, deixar meu pequeno sozinho sem mais nem menos.A que horas ela saiu?
-Filho, calma, você já tomou banho?
-Não. Ela saiu sem me dar banho.
Ela sempre da banho no Felipe por volta das seis, antes de ele fazer a lição, jantar e ir pra cama, se ela saiu sem dar banho nele, significava que ela havia saído no meio da tarde. Eu fiquei extremamente zangado. Respirei fundo, não podia transparecer minha fúria a uma criança.
-Vamos para o banheiro, papai vai te dar banho e aí a gente vai dormir, ta bom?
- Ta bom, mas eu posso dormir com você hoje pai? Só hoje!
Tinha um nó na minha garganta. Engoli meu choro.
-Pode sim meu anjo.
Dei um banho no Felipe, ele estava bem sujinho, talvez de tanto brincar, ele pareceu mais alegre naquela hora, fazia muito tempo que eu não dava banho nele e ele gargalhava fazendo espuma pra todo lado. Coloquei ele na cama e acho que não demorou nem cinco minutos para que ele pegasse no sono, o pobrezinho parecia exausto.
Deitei na cama ao lado dele, mas não podia dormir, não sem uma explicação, Levantei e sai do quarto silenciosamente, encostei a porta.
Fui até a cozinha e peguei meu celular. Liguei pra Bárbara. Ela atendeu ao terceiro toque.
-Alô.
-Alô, Bárbara, aqui é o Gregório.
-Ah, seu Gregório, oi.
-Bárbara, o Felipe me disse que você saiu mais cedo hoje, o que foi isso? Aconteceu alguma coisa? Não me lembro de você ter dito nada.
-Não. É que na verdade eu não vou mais.
-Como assim não vem mais? E o nosso contrato? O que aconteceu?
-Eu não posso é que .... Não consigo, não da.
- Como assim? Por que não?
-Essas pessoas estranhas paradas aí na frente da casa o dia todo, é perturbador, eu não posso com isso, to muito apavorada e .... Não vou, não mesmo.
Eu não conseguia processar o que ela estava falando, não estava entendendo bulhufas.
- Que pessoas, menina? Não tem ninguem aqui, do que você ta falando?
- Desculpa, seu Gregório, me desculpa mesmo, manda o Beijo pro Felipinho, fala que eu adoro ele tá?
- O que? Não, espera, como assim?
Ela desligou.
Que porra Bárbara!
Joguei o celular no chão. Estava desamparado. E agora o que eu iria fazer? Ela esteve cuidando do Felipinho por dois anos, como eu iria achar uma substituta tão em cima da hora?
Sentei na cadeira e dei uma respirada. Pequei meu notebook e mandei um e-mail pro meu chefe, não poderia ir trabalhar no dia seguinte, ficaria cuidando do meu filho.
As palavras dela não me saiam da cabeça. De que pessoas ela estava falando?
Levantei e fui até a janela da cozinha, abri só uma pequena fenda da cortina, do outro lado da rua quatro figuras encapuzadas estavam paradas olhando pra casa, quando me perceberam espiar, acenaram pra mim.
Acordei meio suado, parecia já ser tarde, só me lembrava de ter ido me deitar ao lado do meu filho, eu estava apavorado e me perguntando quem seriam aquelas pessoas estranhas em frente à minha casa. Esfreguei os olhos tentando despertar, rolei para o lado e a cama meio bagunçada estava vazia. O Felipe não estava ali.
Levantei de supetão, estava tremendo, não sei se de frio ou de nervoso. Talvez fosse os dois. Procurei no banheiro, nada. Chamei meu filho e não houve resposta.
Estava atordoado, meu deus, meu filho. Fui correndo até a varanda dos fundos e vi o Bolinha, nosso cachorro comendo um pedaço enorme de carne. Estranhei aquilo, eu não havia dado nada a ele, tinha acabado de acordar. Não dei muita importância, precisava achar meu filho.
Corri para a sala, estava vazia, da forma que estava na noite anterior. Estava ofegante, parecia que eu ia desmaiar quando ouvi um barulho de talher na cozinha.
Corri até lá desesperado, entrei pela porta escorregando no piso por causa das meias, e vi meu filho, sentado à mesa, que estava farta, cheia de frutas e doces caseiros. Foi um alivio enorme, tão grande que minhas pernas amoleceram, soltei todo o ar dos pulmões.
-Filho! Não ouviu o papai te chamar?
Ele com toda a sua tranquilidade de criança, balançando as perninhas na cadeira terminou de mastigar uma colherada de cereal com fruta.
-Não ouvi papai, desculpe.
Eu não sabia o que dizer, estava ficando paranoico, dei um beijo na testa dele e fui pegar uma xícara de café, estava aliviado. Enchi uma xícara bem cheia de café e me escorei no balcão, fui dar um gole e me virei para mesa e só então me dei conta. Quem havia preparado aquilo tudo?
Meus olhos arregalaram, meu coração palpitou, me senti tremer novamente, coloquei de vagar a xícara em cima do bancão e vagarosamente me aproximei do Felipe, meu corpo em choque tentando entender, olhei para ele e perguntei pausadamente, engolindo em seco.
-Felipe.
-hum?
-Quem preparou isso tudo pra você?
Ele me olhou confuso.
-Você?
Eu esfreguei a mão na testa, não estava conseguindo conter meu nervosismo.
-Não filho, o pai tava dormindo.
Ele fez uma expressão pensativa, entendo que pra ele deveria estar ainda mais difícil de compreender.
-humm, a Bárbara?
Ele estava tentando adivinhar.
-Não querido, a Bárbara não veio hoje. Você viu alguém aqui hoje cedo? Quero dizer, fazendo alguma coisa?
-Não. Já tava aqui. Ah! Você deixou a porta aberta ontem pai. tava tudo frio aqui.
Eu senti tontura, parecia que eu ia enfartar. "não eu não deixei". Pensei. Me apoiei na mesa para me manter de pé.
-Sim, claro, me esqueci, Obrigado.
Fui até a porta da frente, andando meio duro, parecia um robô inexpressivo, em choque. Olhei para fora com medo do que eu veria, mas para minha surpresa não havia nada estranho, aquelas pessoas da noite passada não estavam mais lá, olhei para a rua cima a baixo, procurando nem eu sei o que, e não vi absolutamente nada fora do normal. Quando já estava quase fechando a porta vi no chão um papel meio amassado, resolvi desamassar para ver o que tinha ali, e para meu espanto, desenhado à lápis havia um símbolo estranho, um pentágono com uma estrela de seis pontas no meio, e quatro assustadores olhos desenhados no centro da estrela, havia também outro pedaço de papel colado no canto da folha com o carimbo de um ponto de interrogação.
O que essas aberrações estavam querendo me dizer? Eu estava surtando, guardei o papel no bolso do pijama, dei mais uma olhada para fora e fechei a porta. Tranquei.
Coloquei um agasalho no Felipe e me aprontei para pegar o ônibus rumo a biblioteca municipal, eu vou scannear essa porcaria e fazer uma busca na internet para ver se eu acho alguma coisa que faça sentido, se eu tiver sorte pode ser que seja alguma piada de mal gosto que se tornou viral.
Estávamos aguardando no ponto quando eu vejo de longe um golzinho velho vermelho se aproximando e parando bem perto de nós, a janela do carro se abriu devagar e fazendo um rangido estranho.
-Falaa Greg!
Era o Barba, meu amigo do trabalho, o apelido dele é esse por causa da barba comprida que ele mantem e cuida igual cabelo de mulher. A maioria do pessoal até já esqueceu o nome dele de verdade, eu mesmo que o conheço desde que entramos juntos na empresa me esqueço as vezes, O nome dele é Jurandir, então Barba, pega mais fácil.
-Eae Barba!-Respondi.
Ele olhou para o Felipe, que estava distraído.
-Oi Felipinho, como você ta campeão?
O Felipe adora o Barba, ao perceber que era ele ficou todo agitado.
-Oi Tio Barba! Eu cresci um tanto assim - Ele fez um sinal exagerado de tamanho com os braços.-
-Tudo isso rapaz? desse jeito vai bater a cabeça nas nuvens eim.
-Uau! Eu acho que eu vou sim, dai eu vou comer um pedaço delas, porque elas são de algodão doce, só que branco.
Levei a mão na testa, que imaginação era aquela, rimos muito.
-Mas eai Senhor Gregório, pra onde você ta indo? Fiquei sabendo do que a Barbara fez, ela não é disso cara, que foda.
-Eu to indo na biblioteca agora. Pois é cara, sacanagem, acontece que ...
-Não, não, me conta no caminho, vou dar uma carona pra vocês entra aí.
Ele jogou umas tralhas pro canto do banco de trás e eu acomodei o Felipe no assento. No caminho até a biblioteca contei tudo o que tinha acontecido pro Barba, ele não falou nada até eu terminar, só balançava a cabeça.
-Uff. - ele soltou o ar como se fosse algo pesado.- Mano, que porra de história bizarra que tu acabou de me contar. Verídico mesmo?
-É claro que é caramba! Da onde que eu ia inventar um troço desse? Você me conhece, sou quadradão demais pra isso de inventar coisa.
-Mas assim, os caras, deixaram o desenho e PUFF desapareceram no ar?
-O que? Não! -Eu estava frustrado, ela não estava me levando a sério-. Eles só deixaram lá e foram embora, seja lá pra onde gente estranha mora.
-Eu vou te ajudar a resolver essa fita aí.
-Não precisa, deve ser bobeira.
-E daí se for bobeira? Agora eu quero saber, sou doido nesse negócio de teoria da conspiração, meu sonho investigar essas paradas.
-Cara, não é teoria da conspiração.
-Não corta o meu barato, falou? Pra mim é sim, esses negócios existem em toda parte irmão, ou você acha que o homem foi mesmo pra lua? Não se iluda!
-Ta bom. -Ri-. Mas eai, porque você não foi trabalhar hoje?
-Peguei atestado, doido.
-Você ta doente?
-To, doente daquele monte de relatório, deus me livre.
-Não acredito, O Marcelo vai ter que fazer tudo sozinho?
-Vai. - Ele me deu um olhar maléfico e demos uma gargalhada juntos.- Aquele mala vive puxando o saco do Afonso, ele que se vire, não é o senhor prestativo, senso de dono da empresa? Se vi-re.
-Bem feito.
Chegamos em nosso destino, eu já mais descontraído por causa da conversa com o Barba. A biblioteca municipal é um lugar enorme, deve ter sido construído lá por mil oitocentos e pouco, porque tem um aspecto bem antigo. Estacionamos o carro e subimos a longa escadaria até a porta. Chegando lá me virei pro meu filho.
-Filho, o papai vi ter que procurar umas coisas e pode ser que demore um pouquinho, lá dentro tem uma sala de joguinhos e uma tia bem simpática que vai cuidar de você, você promete que vai se comportar?
Ele balançou a cabeça em sinal de sim e saiu correndo para a entrada da sala de jogos.
Me aproximei da moça da recepção. Era uma mulher bonita, cerca de 30 anos, morena.
-Quanto tá a hora da salinha? - Perguntei pra ela-.
-São 20 reais, senhor.
Meu bolso doeu, aqueles homens misteriosos estavam me custando os olhos da cara.
-Me ve 1 hora então, por favor.
-Nome?
-Gregório Aparecido Boulevard.
-Nome da criança?
-Felipe de Alcântara Boulevard.
-Vamos anotar o telefone do senhor para contato.
Ela retirou uma fitinha com o nome do meu filho, amarrou no pulso dele e girou a catraca, Felipe saiu correndo feito um doido e sumiu no meio das crianças e dos brinquedos.
Não pude conter minha preocupação, não gostava de deixa-lo sozinho assim, mas desta vez foi preciso. Parece que transpareci demais, o Barba percebeu.
-Relaxa, a recepcionista bonitona vai cuidar dele.
Eu ri.
-Deixa só a Cristina ouvir isso.
-Deus o livre, ela arranca meu couro.
Adentramos a imensa biblioteca e fomos confiantes rumo a nossa caçada ao desconhecido.
Digitalizei o pedaço de papel e fiz uma busca rápida na internet. Nada.
Olhei para o Barba que assim como eu se sentiu frustrado. Resolvi fazer uma busca em livros de papel. Imprimi uma cópia do símbolo para o barba e pedi para ele seguir pelo lado esquerdo da biblioteca e procurar por livros de simbologia ou qualquer coisa que remetesse ainda que vagamente aquilo. Eu segui pelo lado direito.
Voltamos minutos depois, ambos com os braços cheios de livros pesados, colocamos sobre a bancada.
Depois de quase uma hora folheando páginas e mais páginas e sem sucesso algum, me senti exausto, estava quase na hora do Felipe sair da salinha de jogos e eu decidi fazer uma última busca desesperada. Sai entremeio as imensas prateleiras lendo os títulos nas bordas dos livros o mais rápido quanto podia, quando um deles em especial chamou minha atenção, era um livro velho de capa de couro cujo título era "Os lugares mais misteriosos do Brasil e suas histórias".
Me aproximei dele, e retirei da prateleira pela borda, analisei a capa em busca de algo que indicasse se aquilo tinha alguma relação ainda que mínima com meu símbolo misterioso, como não encontrei nada concreto olhei novamente para prateleira na intenção de colocá-lo no lugar, mas o que vi, me fez tremer os ossos. Do outro lado, no espaço vazio que o livro deixara havia um homem parado, cujo o olho estava posicionado perfeitamente na brecha, um homem de pele escura e olhos verdes como folha.
Eu travei, não sabia mais falar, gritar nem me mover, com muito custo consegui chamar o Barba que estava apenas a alguns passos de mim.
Ele parou ao meu lado confuso e olhou para prateleira, ao perceber aquele homem ali, ele entendeu o motivo do meu pavor. Barba sempre foi mais destemido que eu, e resolveu enfrentar a figura que viamos.
-Ei! Ei cara, o que você ta querendo, meu irmão?
O homem moveu-se saiu do nosso campo de visão, mas ouvimos sua voz grave e calma quando ele disse do outro lado:
-Aquele que com aplicação procura, sempre acha.
Barba puxou meu braço, me tirando do meu estado de choque.
-Vamos Greg! Vamos caramba. Vamos pegar esse cara.
Caminhamos a passos rápidos até o fim do corredor para dar a volta e nos encontrarmos com nosso colega misterioso, mas quando dobramos a esquina não encontramos nada incomum. Do outro lado só havia um grupo de estudantes de cerca de vinte anos sentados em volta de uma grande mesa.
Barba se aproximou de um deles e questionou:
-Desculpa interromper, pessoal, mas vocês viram um cara grandão, pele escura, olhos verdes por aqui?
O garoto olhou para os colegas como quem refazia a pergunta a todos e como ninguém se manifestou, respondeu:
-Foi mal, não prestamos atenção não.
Barba deu dois tapinhas no ombro do rapaz como quem diz um obrigado silencioso.
Nos afastamos andando lentamente, confusos e decepcionados. Peguei o Felipe na saída da salinha e só então me dei conta que ainda estava com o livro na mão. Dei meia volta, na intenção de retornar à prateleira para devolve-lo quando ouvi um grito e um alarme soou. No alto falante um rapaz repetia freneticamente. "incêndio na sessão 7, incêndio na sessão 7. Repito. Isso não é um teste, incêndio na sessão 7. Todos os leitores e funcionários favor dirijam-se para a saída mais próxima. Repito(...)"
Coloquei o livro dentro do meu casaco, pequei meu filho no colo e fomos até a saída principal. Atrás de nós um caos de pessoas saindo apressadas e desnorteadas.
Em silencio andamos até o estacionamento e entramos no carro.
Barba suspirou forte, e soltou um palavrão em tom animado e incrédulo.
-Que merda foi essa meu amigo? Caraaaaalho, que isso? Mano, sessão sete não era a que a gente estava? Caraaaalho, isso foi insano.
Eu estava com o olhar fixo a minha frente, era muito para processar, estava nervoso.
-Barba, e-eu roubei um livro da biblioteca municipal!
-O que
-E-eu nunca roubei nada na vida, nem bala, uma vez a moça me deu um real a mais no supermercado e eu devolvi. Eu roubei um livro da caralha da biblioteca municipal!
-Você ta fumado Gregório? Me atualiza aí que eu não to entendendo porcaria nenhuma do que você ta falando.
Abri o casaco, retirei o livro de dentro dele e apontei para o Barba. Estava eufórico.
O Barba olhou pra ele, processou por alguns segundos. Soltou uma gargalhada e ligou o carro.
-Ora, ora, parece que temos um grande ladrão entre nós. Próxima parada, Banco Central.
-Cala sua boca!- Ri.
O transito naquela área estava péssimo por conta do fuzuê do incêndio. Caminhões de bombeiro pra todo lado, curiosos dirigindo devagar e policiais isolando a área. Pedi pro barba ligar o rádio do carro pra gente saber o que os repórteres estavam falando sobre o acontecido.
Em várias estações de rádio, ouvimos notícias de que o incêndio fora criminoso, estavam analisando as câmeras de segurança para identificar o culpado. Chamaram o ato de terrorismo.
Naquele momento estávamos tensos. Aquilo tinha tomado proporções muito maiores do que jamais pudemos imaginar. Não eram apenas caras estranhos querendo fazer uma pegadinha de mal gosto, era algo muito sério, e o pior de tudo é que eu estava envolvido.
-Mano. -Eu disse tentando não parecer nervoso-. O que eu vou fazer agora?
Barba me olhou por uns instantes.
-Você? Você nada. NÓS vamos dar um jeito nesses caras. Vamos na polícia, talvez eles nos ajudem em algo.
Me exaltei.
-Policia? Você ta locão? Eu não posso ir na polícia! E-eu, eu roubei a merda de um livro!
-Ta bom, ta bom! Calma! Vamos resolver nós dois então. Eu e você. Sem polícia.
-Melhor assim.- Esfreguei as mãos no rosto tentando aliviar a tensão e pensar lucidamente-. Mas o que nós dois contadores de uma empresa furreca podemos fazer? Estamos fu...- Lembrei que meu filho de 5 anos de idade estava no banco de trás ouvindo todos aqueles palavrões. Me senti um péssimo pai.- Estamos lascados!
Barba me deixou na porta de casa, tudo parecia estranho ali, segurando a mãozinha gelada do meu filho tudo que eu conseguia sentir era medo. Eu havia passado o dia todo correndo atrás de mistérios e me esqueci completamente que, apesar das minhas horríveis aventuras eu ainda era um pobretão que por acaso trabalharia na manhã seguinte e não tinha nenhuma babá.
Barba já estava saindo quando pedi para que esperasse um pouco e abaixasse os vidros. Precisava fazer um pedido a ele:
-Mano, tem como você me arrumar um desses seus atestados aí? Ainda to sem babá cara.
Barba fez uma expressão malandra.
-É claro que eu consigo, Brother! Peguei um de 7 dias pra mim. Te arranjo um igual, até você acertar essas paradas suas aí com os iluminatti.
Não acreditava que tinha escutado aquilo. Barba era mesmo muito doidão. Ri muito.
-Sim claro! E com os Maçons também.
Barba riu, mas depois fez uma expressão pensativa.
-Mano! Será que eles são Maçons?!
Não podia acreditar naquilo. Bati a mão na testa.
-Vai pra casa, Barba.
Ele arrancou com o carro em alta velocidade e saiu fazendo uma barulheira pelo bairro todo.
Aquele velho golzinho deve estar todo ferrado com as loucuras que o Barba apronta com ele. O que se pode fazer? O cara vive intensamente. Eu, por outro lado, não passo de um pamonha.
Destranquei a porta e logo que ela abril Felipe saiu correndo pra dentro, imaginei o quão cansado das aventuras de hoje ele deveria estar, correu pra geladeira e pegou um pedaço enorme de chocolate que estava lá esquecido. Pensei em repreende-lo por comer doces àquela hora, mas não o fiz, só desta fez não faria mal algum.
Comecei a dar uma organizada na casa, quando fui procurar o Felipe para organizar os brinquedos da sala o encontrei jogado na minha cama dormindo ainda com o chocolate lhe lambuzando as mãozinhas. O cobri e voltei aos meus afazeres domésticos.
Pensei em abandonar toda aquela loucura, aqueles homens de capuz e o episódio todo da biblioteca, não era nenhum agente secreto para ficar resolvendo mistérios, mas era um pai que precisava tomar conta de seu filho pequeno. Decidi que no dia seguinte devolveria o livro à biblioteca e diria que na correria o levei por engano e se acaso aqueles homens aparecessem novamente eu chamaria a polícia. Era o mais sensato a se fazer.
Estava perdido em meus pensamentos quando ouvi uma batida na porta, dei um pulo do susto que levei, não estava esperando ninguém, provavelmente o Barba havia esquecido algo e voltou para dizer.
Abri a porta calmamente, mas não foi o Barba que vi, na verdade era uma figura completamente diferente, uma moça loira, não mais que quarenta anos, trajando um vestido fino vermelho, parecia uma celebridade. O único pensamento que me passava pela cabeça era o que um ser tão deslumbrante fazia à minha porta no subúrbio do mundo. Quase não consegui dizer nada.
-Senhor Boulevard? -Ela perguntou com um sotaque russo-.
Balancei a cabeça como que para desfazer minha cara de bocó.
-Eu mesmo, pois não?
Ela me entregou um envelope igualmente vermelho com meu nome escrito em letra cursiva.
-Compareça neste endereço hoje ás 20:00 horas.
Não entendi porcaria nenhuma, percebi naquele momento que de uns dias para ali eu não entendia nada de porcaria nenhuma. Tentei parecer educado.
-Perdão Senhorita, do que se trata?
Ela não tinha expressão alguma.
-Posso lhe dizer que não se trata de um convite.
Fiquei atônito e com um pouco de raiva também, eu agora seria forçado a ir a lugares.
Abri a boca para protestar, mas ela não permaneceu para me escutar, virou as costas e andou até um enorme carro preto que estava parado em meu portão, sentou no banco de trás e saiu sem nem se quer olhar novamente para mim.
Pronto! Pensei. Mais essa agora! Eu já tinha decido não entrar nessa loucura.
Passei a tarde tentando ignorar aquele envelope maldito, mas eu sofria de um mal incurável, a curiosidade.
Abri o envelope e dentro dele só havia um bilhete simples escrito à mão com um endereço. Naquele momento eu entendi o que me forçaria a ir até lá. Eu mesmo.
Liguei pro Barba e pedi pra ele cuidar do Felipe naquela noite. fucei o guarda roupas em busca do meu terno de casamento, me pareceu pela aparência da moça que eram pessoas poderosas com a qual iria lidar, então precisava me misturar. Ao retirar meu velho paletó empoeirado no cabide, meu coração apertou. "Que saudades Julia, meu amor. Se ao menos você estivesse aqui".
Afastei meus pensamentos tristonhos e me trajei a rigor.Escutei alguém bater à porta, era o Barba, finalmente.
Estava com um cigarro de seda na boca.
-Que porra é essa aí,Barba?
Ele soltou a fumaça e me respondeu com a voz rouca:
-Maconha.
-Eu sei que é maconha seu animal. Eu quero dizer.. cara tem uma criança aqui, você sabe né.
- Ou, eu sei ta. -Jogou o cigarro no chão e pisou em cima-. aí, pronto já joguei fora.
-ah, sim agora ta melhor mesmo. - Estava nervoso, passei a mão pela cabeça-. Deus, eu vou deixar o meu filho com um drogado!
- Cara não surta, relaxa, vai lá encontrar a loira gostosona.
-Eu não ... olha, só não deixa ele sair de casa ta? Ele se vira.
-Ta bom.
Eu não sabia que rumo aquilo estava tomando, peguei as chaves do carro do Barba emprestado e saí sem ter a mínima ideia do que me aguardava.
Dirigi uns vinte minutos pela rodovia, o endereço que a moça me deu era de uma zona rural, não sabia ao certo qual entrada lateral tomar, então parei no acostamento e peguei o bilhete novamente. No final da descrição do endereço estava descrito "Fazenda Escorpião". Dirigi mais uns quinhentos metros e encontrei a entrada com esse nome.
Parado ali na entrada de uma longa estrada de terra eu refleti se eu realmente estava fazendo uma boa escolha, e se me fizessem algum mal, como ficaria meu filho? Ele já não tinha mais a mãe e por conta de uma besteira perderia o pai também?
Pensei em dar meia volta e acabar com aquilo, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude alguém bateu no vidro da janela. Quase morri de susto, do lado de fora um homem alto, trajado de segurança, usando terno e aqueles comunicadores de ouvido, pedia para que abrisse a janela:
-Boa Noite senhor. Preciso dos seus documentos de identidade e bilhete de convocação.
Eu ainda estava me recuperando do susto, não sabia como lidar com aquilo, com as mãos tremulas e ansioso abri o porta-luvas e entreguei o que ele me pediu. Minha testa suava, eu estava realmente nervoso.
Ele deu uma olhada, falou alguma coisa no comunicador em uma língua que eu não consegui compreender e me devolveu a documentação.
-Siga em frente por mais cem metros, há uma vaga no estacionamento reservada para o senhor após o portão principal. Tenha uma boa noite.
Acenei com a cabeça para identificar que tinha entendido.
-Obrigado.
Era isso, a partir dali não tinha mais volta, se alguma coisa parecesse fugir do controle eu planejava sair de lá o mais rápido possível, dirigi mais um pouco a frente quando avistei um enorme portão branco perolado, era magnifico, digno da realeza.
Ao ultrapassar o portão havia uma vaga logo a frente, no meio de vários carrões de luxo com o meu sobrenome escrito em uma placa. Estacionei o golzinho, que parecia tímido e ofuscado em meio a tantas maquinas milionárias.
Subi uma pequena escadaria de mármore e parei frente a uma enorme porta branca. Toquei a campainha.
Segundo depois a porta se abriu, e lá estava novamente a minha frente aquela mulher deslumbrante, trajando um vestido de veludo preto, igualmente charmosa e fina.
-Por favor entre, estávamos te aguardando. Madame Nikole Ivanov, ao seu dispor.
Entrei meio desconfiado a casa mais parecia um palácio, escadarias enormes de mármore se elevavam em espiral até um segundo piso com pequenas salinhas como em um teatro.
Entramos em uma enorme sala redonda com várias cadeiras organizadas em um semicírculo, contei pelo menos umas vinte, mas sei que haviam mais. Sentados uma em cada cadeira estavam pessoas poderosas, vi alguns vereadores a até mesmo o prefeito em uma delas, o restante deveria ser empresários ou celebridades, não sabia dizer, só conseguia ver a riqueza e o poder em suas faces pomposas.
No meio deles havia apenas uma cadeira vazia, imaginei que seria a minha então tomei-a e me sentei. Ainda estava nervoso com aquela situação, minhas mãos me entregavam e eu batia os dedos no apoio ansiosamente.
Minutos após a minha chegada, Madame Ivanov, que havia se retirado, voltou a sala empurrando uma cadeira de rodas com um senhor muito idoso sentado nela. Colocou a cadeira o centro da sala, para que todos nós o víssemos. Apesar da idade avançada o senhor estava finamente trajado, e tossia em intervalos muito pequenos.
Ivanov parou ao seu lado e começou a discursar:
-Sejam bem-vindos a nossa trigésima sessão de sucessão. Como muitos de vocês já sabem, meu pai, Dom Dimitri Ivanov, está muito doente. Após a sua partida, eu, tomarei o seu lugar como suprema mestre da fraternidade brasileira.
Fiquei confuso e agitado, aquilo era o que? Algum tipo de seita? Estava perdido, mal sabia como me comportar. Ela continuou:
-No entanto, para tomar o meu lugar como governador geral da fraternidade, meu pai escolherá um de seus herdeiros. Eu já tenho o nome de cada um de seus filhos, e ele, junto aos supremos mestres de cada país fará a melhor escolha.
Minha cabeça rodava, governador geral? Nossos filhos? Eu não envolveria o Felipe nessa loucura, eu nem mesmo fazia parte daquilo tudo, não tinha a mínima ideia do porque havia sido levado até aquilo. Protestei.
-Perdão, Madame Ivanov, mas receio que meu filho não fará parte desta votação, eu nem mesmo faço parte disso.
Todos na sala voltaram suas atenções para mim. Me senti suar. A face da mulher era inexpressiva, não poderia dizer de forma alguma como ela sentiu diante da minha objeção. Só depois de alguns segundos me analisando ela exclamou:
-Não. O senhor certamente não, Senhor Boulevard. No entanto a Senhora Julia, era uma de nossas mestras. Você é o representante dela como esposo, devido a infortuna circunstância de sua ausência, nada mais.
Me senti amolecer, tontear, tamanho o meu choque. Julia? Não, não poderia ser. Como? A Julia fazia parte dessa bizarrice. Como eu nunca soube de nada? Porque ele envolveu nosso filho nisso? Eu estava com raiva, como a mulher que eu amava era membro de uma fraternidade louca e eu não sabia? Ivanov continuava a falar.
-Nesse momento faremos uma pausa de quinze minutos para a tomada de decisão dos supremos mestres. Aguardem, por favor.
Ivanov saiu da sala empurrando a cadeira de seu pai. Eu ainda sentado na cadeira, suava frio. Não conseguia processar aquilo, minhas mãos tremiam e ninguém ao meu redor parecia estar preocupado. Quinze minutos pareceram ser horas até que Nikole e o velho senhor retornaram:
-A decisão foi tomada.
Ela tinha um envelope vermelho em mãos. Eu só conseguia pensar. "Que não seja o meu filho, por favor, que não seja o meu filho".
Ela abriu o envelope e leu o cartão que estava dentro dele. Ela soltou um risinho irônico, pareceu sair involuntariamente, só então exclamou:
-Felipe de Alcântara Boulevard.
Meu mundo caiu, naquele momento, eu senti vontade de vomitar, mas não pude, estava paralisado. As pessoas ao redor sussurravam umas com as outras, incrédulas. Meu coração acelerava cada vez mais. Parecia que eu iria explodir. Escutei uma voz masculina vindo do outro lado da sala em tom alto. Era o prefeito.
-Governadora, isso é inconcebível! O garoto é uma criança!
Nikole deu com os ombros como quem diz que não há o que fazer. Pediu silencio a todos.
-Devido a esse atípico fato, declaro que o senhor Gregório será o Mentor de Felipe até que ele alcance a maior idade. Isso não indica a detenção do poder a ele, O cargo é de Felipe por direito, ele só responderá por ele até que o menino alcance a maior idade.
Os cochichos retornaram, os participantes pareciam não aceitar a decisão. Ouvi alguém gritar no meio deles.
-Isso é um absurdo!
Madame Ivanov levantou a voz.
-Absurdo ou não, é a decisão dos supremos. Esta sessão está encerrada! Há um coquetel na sala ao lado, aproveitem.
Ela saiu, soltando o ar de stress. Todos levantaram e se dirigiram para a sala indicada ainda cochichando indignados. Fui atrás de Ivanov.
-Madame Ivanov por favor espere! Nikole!
Ela se virou para mim, também não parecia muito satisfeita.
-Precisa de alguma coisa Senhor Boulevard?
Eu ainda estava muito nervoso, não sabia como começar.
-Olha, eu sei que eu não faço parte disso, a Julia nunca me disse nada sobre vocês, eu realmente não sei o que fazer.
Eu estava desesperado. Ela cerrou os olhos, parecia surpresa.
-Não? Interessante.
-Não, não, não, nada de interessante, olha você não entende, aqueles caras de capuz assustaram minha babá, eu não tenho ninguém, não sou esses ricaços aí, preciso trabalhar, não da.
Ela arregalou os olhos, pareceu assustada.
-O que você disse?
Fiquei confuso, o que eu disse que a assustou?
-Eu não sou rico?
-Não isso, idiota, os caras de capuz, o que você disse sobre os caras de capuz?
-Bom, eles ficam me observando em frente à minha casa, deixam bilhetes.
Ela pareceu ficar nervosa, passou a mão na testa tentando se recompor.
-Quatro caras de capuz, é isso?
Eu não estava entendendo, o que havia de errado.
-Sim, quatro deles, eles não são dos seus?
Ela se apoiou na parede, parecia apavorada, e eu me apavorava mais ainda vendo aquilo.
-Não, não são dos nossos. Isso é ruim, muito ruim. Já estão aqui.
Madame Ivanov me deixou sozinho na sala, saiu rápidamente batendo o salto alto no piso de mármore fazendo ecoar um som seco de trote pelo grande salão. Eu fiquei ali parado, confuso, nervoso e ávido por respostas. Levei as mãos à cabeça e dei aguns passos desnorteados pelo salão até decidir sair dali e ir para casa.
Cruzei o salão até a porta principal andando tão rápido que se alguém me observasse de longe poderia até mesmo dizer que eu estava correndo, entrei no carro e me sentei no banco do motorista sem saber ao certo ainda o que fazer, e foi ali, no silêncio e na solidão que tudo finalmente pesou.
Pensei naquelas pessoas, na votação, na minha esposa. Desferi socos desesperados contra o volante e me peguei chorando. Lembrei do meu filho, me recompus, limpei o rosto na manga do terno e girei a chave.
Não me lembro muito bem de como cheguei em casa, mas cheguei inteiro, estacionei o carro e olhei para a casa. Dela podia se ver apenas uma janela iluminada, era a luz da sala de estar. Entrei ainda amargurado, deixei as chaves na mesa da cozinha e fui até a sala. A cena que encontrei me fez dar o primeiro sorriso do dia, Barba e Felipinho estavam apagados, babando no sofá abraçados, ambos fantasiados de pirata com objetos improvisados. Aquilo aqueceu meu coração. Apesar de toda a loucura eu ainda tinha pessoas que me amavam acima de tudo.
Apaguei a luz da sala e deixei os dois dormindo lá, do jeitinho que estavam, não me atreveria a acorda-los. Entrei no quarto e me despi do meu traje de gala. Estava quase me deitando quando observei o livro que roubei da biblioteca, abandonado no criado mudo. Me peguei pensando no porquê diabos eu tinha me interessado por aquele livro tão aleatório e sem sentido.
Fui até ele e o encarei por um tempo, enquanto minha mente vagava buscando uma explicação, me lembrei da Julia, viva e linda. Amava ver a maneira como ele erguia seus cachos escuros em um coque para ler livros malucos para o nosso pequeno bebê.
Enquanto me deliciava em minhas memórias, por um instante pareci me recordar da minha esposa carregando um livro muito parecido com aquele que eu agora estava segurando, forcei a memória por alguns instantes até me dar conta de que com toda a certeza era o mesmo livro.
Folheei o livro desesperadamente tentando encontrar qualquer coisa fora do comum. depois de muito tempo e sem sucesso, esbravegei e soquei-o contra a madeira do criado mudo. O barulho que aquilo fez fi estranho, oco. Peguei a rapidamente o exemplar de volta e analisei com todo o cuidado a capa grossa que o revestia, até que percebi um relevo quase imperceptível que surgia na contra capa. Com um pedaço de clip de papel consegui desgrudar a parte em relevo da capa. Dentro do buraco, havia um fino medalhão prateado com um entalhe muito peculiar. Um circulo, uma estrela e quatro olhos sinistros. As palavras pularam da minha boca:
- Mas que merda, Julia!
Acordei energizado, tomei um banho rápido, peguei o celular e liguei para o Barba.
-Barba?
- Oi? Greg? Ta tão cedo cara, aconteceu alguma coisa?
- Eu tenho uma ideia, preciso da sua ajuda.
- Chego aí em dez minutos.
Deixei o Felipe com a Cristina, esposa do Barba, expliquei sobre o medalhão para ele. Tirei uma foto do objeto e imprimi o maior que pude. Colei na minha porta da frente, abri duas cervejas e sentamo-nos no sofá.
Barba me olhou com expectativa, algo em seus olhos indicava animação e adrenalina, características as quais eu invejava imensamente. Cansado do meu silencio ele questionou.
-E agora?
-Agora esperamos.
Dei uma golada na minha bebida e permaneci frígido. Estava decidido a obter todas as respostas ali.
O dia se desenrolou sem grandes emoções e a noite já quase caía enquanto eu e Barba permanecíamos jogados no sofá da sala, sem esperança alguma e assistindo um programa de culinária da tevê local.
Barba me dirigiu um olhar cansado e levantou para despedir-se, nesse exato momento ouvimos alguém bater à porta. Levantei de supetão e parei por um momento hesitante frente ao trinco, respirei fundo e abri.
Parado de frente para mim com uma postura invejável, completamente ereta e trajando uma farda muito bem alinhada, estava um homem de meia idade muito provavelmente militar. Sua expressão estava séria e seus duros olhos me encaravam com repreensão.
-Boa noite, Boulevard. O senhor tem a mais vaga noção da origem completamente sigilosa do símbolo que ostenta de forma tão vulgar em sua porta da frente?
O sangue me inundou os olhos, a petulância que me saltava à boca ignorava completamente a figura intimidadora daquele oficial.
-Na verdade, não tenho mesmo. Sou completamente leigo a respeito dessa coisa que vocês chamam de sigilosa e que por motivos que eu nem mesmo sei dizer acabou em minhas mãos civis. A imagem continuará aí até que essa merda toda me seja esclarecida.
Me arrependi de ter aberto a boca no pontual momento em que a fechei, mas já era tarde, tudo já havia sido dito e eu esperava qualquer que fosse a consequência agressiva que provavelmente sofreria.
Contradizendo todos os meus temores e instintos, o homem virou as costas e saiu, dirigiu-se à um carro preto e antigo que estava estacionado próximo ao meu portão. Quando pensei que havia sido deixado falando sozinho, a porta traseira do veículo se abriu, e de dentro dele surgiu o que julguei ser um homem muito robusto trajando uma roupa completamente preta e com o rosto coberto por um capuz.
Meu coração palpitou forte e a minha mente já estava a planejar um plano de fuga, eu queria correr, me esconder. A única frase que eu pude formar naquele momento e que saltaram dos meus lábios mais rápidos do que poderia pensar foi: "Fodeu! ".
Ei! Eu também sou bacana, só não sei como se faz para que vocês percebam isso;
Ei! Também há calor em meus braços. E eu sei que você está com frio agora. Por isso, converse comigo, assim sei que você eu poderemos nos acertar;
Ei! se me acharem aqui atrás deste disfarce e se me descobrirem após esta camuflagem que estou, eu garanto que vocês não irão se arrepender;
Ei! O mundo é triste sim, mas eu tenho sido muito mais triste e, tudo isso em silencio! Mas agora quero curar essas dores, quero falar pra esse silêncio - quem pode me escutar?
Ei! Eu só preciso de um tempo e uma mão amiga e de também um grande sorriso pra mim, não para a minha fraqueza, porque sou fraco agora e ainda não sei me livrar;
Ei! Por um momento eu preciso de um abraço... Depois o resto se vier;
Ei! Antes eu acreditava no 'pra sempre' e ate sonha sonhava com ele, mas agora sei que para que o aja, primeiro, ele tem de acontecer. Ou posso ser como vocês quererem também - tudo pelo hoje! E que o amanhã apenas venha! E se sobrevivermos a ele - deixe-me pedir uma chance para outro amanhã - porque a humildade é o meu jeito de fazer o 'pra sempre' acontecer;
Ei! O ruim do diálogo, para mim, é só quando eu tenho que falar. Por isso, guardo no silêncio a minha própria confissão e no olhar....ainda muito mais do que posso falar;
Ei! Pouco para mim é tanto e tudo para mim tem tanto sentido que às vezes não parece ter lógica alguma nisso! Por isso é que, às vezes, tenho me guardado. Mas hoje peço - achem-me...!
Ei! Desfeita para mim não tem gosto e exclusão para mim não se aplica. Pois, foi justamente a sobra disso todo que fez de mim a palavra obrigada e também a palavra Saudade. E ainda muito mais que isso me deu também:
Ei! Eu guardo um presente o qual ainda não tenho a quem dá. Porém, guardo como uma peça de museu, no meu baú de lembrar, desejos e olhares e sorrisos e momentos que morrerão comigo. Porque não tive como dá - e também não quiseram - a quem seria para dá. Posso ate mesmo dá o que não tenho, mas nunca darei o mesmo brilho que eu fiz brilhar por um sol à lua que ainda farei , mas os dois sempre brilharão no mesmo céu. E sempre haverá céu em mim... - sempre!
Como farelos lançados ao vento
Ouve-se o nosso silêncio que carregamos pelas mãos
Perfumadas e tatuadas no nosso corpo, na nossa pele
Esquecermos o amor que nos une
É impossível de conseguir-se
A distância pode separar os nossos corpos
Mas não separa as nossas lembranças
A paixão louca que sentimos um pelo outro
A saudade fala sempre mais alto, do que mil gritos de dor
Não acordes o silêncio, que murmura a nosso favor, amor.

O QUE ME FALTA É FORÇA DE CORAGEM! Não coragem ou força; simplesmente força de coragem. Faltam-me essas duas grandezas unidas assim como os irmãos siameses, como a vida e a morte, Como a alma e a literatura, o rio e o mar.
Ah! triste de mim, pois tenho tanta coragem... Exageradamente um mol de coragem para levar a vida assim como levo: Ter asas pra voar e escolher rastejar, mas sem ter aonde enfiar a cara.
Ai de mim! que tenho danadamente tamanha força Para suportar o inexorável peso da cotidianidade dos meus tormentos. O que me falta e força de coragem, exageradamente força de coragem, danadamente força de coragem! Mas como conseguir? Será que chamando vem:
_ Dona força, seu coragem..., vocês se vêem há tanto tempo, a muito se cruzam nas ruas de meus pensamentos, dividem a mesma ira de morar dentro de mim; já estão desbotando de raiva da minha moleza ,e estão cansadas das correntes que eu os ponho ,e vivem brigando para unissem, Por favor, será que vocês poderiam casar-se e viver em paz dentro de mim? Humildemente lhes peço! O que me diz dona coragem? "Posso sim, mas é claro que sim!" E o senhor, aceita sou coragem? "Ah, mas é claro que sim. Há muito tempo quero isso!...".
Hahah...! Mas é mesmo um caso para rir... Imagine se vou ter coragem para enfrentar a minha força e, força para encarar minha coragem, ainda mais as duas de vez? Só mesmo em sonho... Só em sonho mesmo! Mas... Com o que eu sonhava agora mesmo? Ah! Em ter força de coragem!
Matutando em O que poderei fazer para ter força de coragem...,... Poderei fazer tudo, pois tudo esta ao meu alcance! Mas só isso não bastaria. Certamente digo a mim mesmo asneiras, reflito sobre frases de alto ajuda que só ajudam os que não passam o que nelas dizem. _ Enquanto estou tecendo a bola de neve que vai me matar, alimentando o fogo que ira me queimar, crio eu mesmo frases inúteis de alto impacto: Força de coragem! Essa expressão existe... ?
Força de coragem, o que vem a ser isso: força de coragem...? Nada. Apenas duas coisas que preciso ter! E resolvi chamar a minha própria atenção com uma mera, imbecil e inútil frase de auto-impacto!( FOR-ÇA -DE- CO-RA-GEM)
Força de coragem...
Na verdade o que sou é um mero escravo do medo, um morto vivo afogado na lagoa dos meus propósitos, uma bactéria sugando minha própria força, treva apagando a minha própria luz, uma borracha apagando a minha própria existência, uma vida em chagas que desistiu de encontrar a cura. Não chego a ser nem um pássaro com medo de voar, mas sim um voo que chegou ao um pássaro que nunca existiu! Não chego a ser nem a vida correndo da morte! Não sei se morro logo de uma vez ou se continuo nunca existindo._ e enquanto isso a vida passa.
Poderia dizer o motivo pelo qual quero ter essa tal "força de coragem"..., E adiantando o futuro ou voltando ao passando, não me surpreendo em saber que não tenho coragem para dizer! Enfim sou muito bom naquilo que de pior faço. Mas entre outras palavras, foi abundantemente infeliz numa escolha de muito tempo atrás... Qualquer um faria uma escolha daquela, no entanto, duvido que passem fome para alimentá-la como eu passo: fome de alegria, paz interior, vitória, liberdade... Ah passado infeliz! ô presente manchado! ai que dó do meu futuro de cartas marcadas!-Coitado dele, as mãos cansadas de dar três tapinhas nas costas do meu passando dizendo que "isso vai passar"; já estão aqui cansadas esperando por ele; até as lágrimas já foram choradas por ele, só falta ele chegar parar rolarem.
Na escada da fuga fui ate o ultimo degrau, chegando lá no alto, onde já era impossível voltar atrás, construir com lágrimas de sangue, sonhos mortos e inúmeras chagas no coração mais degraus para continua a subir, subir e subir.
A alavanca que uso para fugir de situações bastante normais a qualquer um e tão poderosa que levantaria até o mundo se quisesse me esconder em baixo dele, mas situações normais a qualquer um são esmagadoras para mim. Basta uma simples ideia de vivê-las e logo a mão soa, a alma gela e inutilmente fujo, casando de fugir, da ideia, sem ao menos dar um chance para a situação acontecer. Fujo... Como alguém que fura os próprios olhos por puro temor do que irá enxergar, como alguém que se afoga por medo de morrer afogado.
Quem poderá... ! Quem poderá me explicar tanta vida perdida, tanto receio, tanto orgulho em uma só pessoa?
Tragam-me a foice, quero decepar o pescoço da minha própria vida, tragam- me a caneta da renuncia, quero riscar a minha própria historia!
Quem poderá me ajudar se renego a mim mesmo? Tragam-me, e traga logo, o relógio da morte, quero adianta os banais minutos de minha existência.
Esse momento e de pura dor, raiva, pesado; enjoado, duro: Todas as minhas derrotas e fugas atravessando o tempo e o espaço, vieram rir de mim, por outro lado todo o meu passado e futuro estão de mãos dadas enxugando as lágrimas do meu presente.
Ó vida piedade! Não vês o mar de lágrimas que já chorei por feristes assim, não vês como extrapolo meus limites por perde-te assim_ E o nojo que tudo isso me dá? Será que não te importas as florestas que queimo com o fogo da minha farsa, e os reis que poderia ter sido nos palácios da minha felicidade? Porque ficas em silencio enquanto em meu peito um coração bate, enquanto a morte roça-me o congote?...,... Não vai se manifesta? Olha que eu estou... Olha que eu estou desesperado e a primeira pessoa que passa pedirei ajuda! E isso mesmo! Vou PE-DIR -A-JU-DA. Contarei sim, ao primeiro avistado_ Se de longe gritarei bem auto para me escutar, como você joga na cara a minha felicidade frustrada, meus sonhos roubados e não sonhados; toda a sua falta de amor, como tem sido a e sinto monótona, que tenho pena de você, que desejo seu fim...
...OPA! Mas e a tal ajuda que pediria? Esquece! Não tenho coragem, ou melhor, seria dizer: FORÇA DE CORAGEM, porém diria essas poucas e boa de você, sim, mesmo que disfarçadamente._Coitada de você além de ser limitada pela a morte é limitada em mim!
A vida se pudesse sair de dentro de mim, e que contaria como sou mole, como eu a aprisiono com a corrente do medo, a maltrato enchendo o seu celeiro de frustrações as mais bizarras possíveis; todo meu descaso com ela e com o tempo que são curtíssimos, toda a minha aceitação da derrota, falta de bom censo, me tacharia ate de... Nem sei o que, mas, com certeza, bem abaixo dos vermes!
Acordei hoje com muita pena de mim... Olhei-me no espelho e vi um semblante casando..., triste; uns olhos mudos, uma boca cega, vir cicatrizes ocultas no corpo, vida e alma de aço que moldei com o tempo, sentir lamentos falar auto... No final do dia sentir-me como uma planta qualquer dentro de um vaso reles com água poluída ou vice-versa!
De repente de dentro do ultimo espaço da minha alma, sentir uma enorme aflição, ouvir gritos agudíssimos de dor, compreendi sem poder compreender o caos da minha vida, e de modo que esse fosse o ultimo momento de dela, veio como de uma pena intercalada de incógnita a pergunta: por quê? _
Não sei, sinceramente não sei!
Não sei o porquê que sempre empurrei as dificuldades com a vida ao invés de com a barriga.
Não sei o porquê que continuamente matei todos meus sonhos e desejos e seguir desejando e sonhando como aquele que mata e vai o enterro da própria vitima.
Não sei o porquê que aceitei medir foca com a covardia._ Ela honrou seu nome até o ultimo momento da batalha.
Não sei o porquê que escolhe ininterruptamente fugir e mentir ao invés de aparecer e agir.
Não sei o porquê que não ambicionei nada da vida do que não ambicionar
Não sei o porquê que pari com o meu próprio medo o filho que em tudo superaria o pai.
Não sei o porquê que cavei conscientemente sem saber o túmulo de meus propósitos.
Não sei o porquê que tudo passou e não aproveitei.
Não sei o porquê que aceito sem aceita o dilema em que estou
Não sei o porquê que corro para trás querendo ao menos andar para frente_, E entre outras citações e situações nem sei por que não sei por que, que não sei por quê.
Houve um tempo em que tudo veio assim como um rio que correi para o mar. Mentira! desde que dei conta da batalha oculta e silenciosa travada por mim comigo mesmo, sempre houve oportunidades para derrotá-la, tudo foi sempre um rio que vai para o mar_,E mesmo em plana a batalha deixei para lutar depois.
O tempo foi passando, derrotando em mim tudo que via pela frente, o inimigo avançando vida adentra, e ao invés de ir buscar reforços e derrota-lo me perdi entre o caminha do querer e agir! Às vezes deixava de ir ao campo de batalha, adiando sem querer adiar a lutar, e ficava em casa sentindo, pecada por pancada, a dor dos golpes que o inimigo me dava._ O meu agir estava, sem que eu soubesse, no campo de batalha perdi igual cego em tiroteio.
Um dia o inimigo estava tão casado de me bater, de vencer nas batalhas, e eu, inconscientemente sem querer, descansava em meio ao caos, aconteceu, depois de pouco mais de sete anos_ não sei ao certo,- a minha primeira vitória. Afinal "água mole e pedra dura tanto batem ate que fura", mas ainda bem que o tiro saiu pela culatra. Não foi fácil. Foi preciso ser derrotado como em um jogo de onze jogadores normais por 3 jogadores aleijados de uma das pernas em duas "batalhas" durante mais ou menos 3 anos cada, e entender que há vitórias que vem para a derrota e existem derrotas que vem para a vitória._Inconscientemente lutava!
Reinei durante gloriosos 96 dias, de peito aberto, no campo de batalhas. Todo eram flores, todo estava resolvido e curado. Só me esqueci que esquecia: há vitórias que vem para a derrota e existem derrotas que vem para a vitória.
Mas ai... Sem mais nem porque diante dos meus olhos feridos e de um eu abalado, todo o inimigo derrotado levantou-se e se triplicou. A força com a qual empurrei o mundo de cima de mim esvaeceu. cai ao chão, como um corpo abandona pela alma, com montanhas nos olhas chorando lágrimas de pedras. Para aonde foi àquela incalculável força que tive para lutar, aquela coragem surpreendentemente infinita que tive para lutar?_ Alguém, mesmo que fora do tempo ou espaço, pode-me dizer aonde encontrá-las que eu, mesmo depois da morte, irei buscá-las?!?
Já faz 5 anos que o inimigo é rei absoluto de minhas forças._ Estou amarrado a ele igual um elefante a uma cadeira, e ao mesmo tempo sei que não existe inimigo algum.
Existem batalhas, como a que enfrento agora, que não há batalha, campo de batalhas nem inimigos, mais o resultado dessa soma de algarismos imaginários é uma derrota real, e estou tão a mercê do inimigo, das batalhas e das derrotas, que sem medo nem um, mas com muita pena de mim, já me vejo derrotado assim por mais 5 anos, 10, 20 anos_ e assim ate a vida escapar toda de minha alma
No meio de uma mata
Havia um enorme buraco
Uma grande população de escorpiões,
E todos assassinos natos
Porém, um deles,
Não tinha a índole para matar,
Foi expulso por seus companheiros,
E pelo mundo foi a vagar.
E ao vagar pelo mundo,
Passou tempos ao pensar,
Descobriu que queria uma família,
Ser amado e também amar.
Mas sempre que se aproximava,
Todos corriam desesperados,
Com medo que aquele “terrível monstro”
Causasse algum estrago.
Triste, sozinho e cansado,
Encontrou uma Baratinha,
E docemente perguntou:
Por acaso estás sozinha?
Certa que iria morrer,
Ela suplicou aflita:
Por favor, Sr. Escorpião,
Não acabe com minha vida!
Ele suspirou baixinho,
Revelando toda a verdade,
Falou que era do bem,
E só buscava a felicidade.
A Baratinha olhou com temor,
E não escondeu a desconfiança,
Mas abriu um lindo sorriso,
Dando-lhe um voto de confiança.
Começaram a conversar,
E ficaram muito amigos,
E de repente ela indagou:
Quer vir morar comigo?
Chegando a sua toca,
As baratas se desesperaram,
A Baratinha anunciou
Um escorpião como namorado.
E assim foram vivendo,
As baratas e o Escorpião,
Que conquistou o amor de todos
Com seu enorme coração.
O Escorpião estava completo
Tinha tudo que queria,
Não precisou matar ninguém,
E era amado por sua família.
Mas nem tudo sai como esperamos,
E alguém viu o Escorpião,
E com medo de um ataque,
Organizaram um mutirão.
Muita gente juntou...
Cercaram a toca,
Queriam matar o Escorpião,
Pondo veneno em sua porta.
O Escorpião se desesperou,
Viu sua família em perigo,
Buscou uma solução,
Para tirar todos do risco.
Olhou para todos com amor
E imponente saiu da toca correndo,
Cravou seu ferrão nas costas
E matou-se com seu veneno.
As pessoas foram saindo,
E a todas as baratas salvas,
Mas elas o amavam tanto,
Que não admitiam sua falta.
Em um momento de silêncio,
Viu-se um clarão na mata,
Era o espírito do Escorpião,
Falando com as baratas...
“Eu nunca matei ninguém,
E só vivi para amar,
Por isso a minha arma,
Por ironia foi para salvar.
Não importa de onde vens,
E sim seu coração,
O amor é capaz de tudo,
Até dar alma a um Escorpião!
Gi Amor
"FilosoSilas"
Cem "Bijutelíricas" do Livre Pensador Humanista Silas Corrêa Leite
(Perguntamentos, Desesespelhos, Desabandonos e Alucilâminas)
Almanaque de Cem Doses de LactobaSilas e suas "siladas"
..........................................................................
"Adquirimos sabedoria? Eis um belo paradoxo,
já que a sabedoria é fruto das perdas
e não das aquisições." (Alma Welt)
01.Quem tem uma só breve e inócua razão para querer continuar existindo, é doido de parafuso solto e da pá virada e da pá varrida...
02.O destino da existência do chamado "humanus" no telúrico inferno humanizado é a nossa cruz adâmica ancestral e ainda corrompida
03.A natureza nos protege de nós, porque quando nos sentimos superiores por ela somos derrubados como árvores podres
04.Só os imbecis são felizes
05.Nossa infância é o nosso maior tesouro
06.O silêncio é a maior prece de uma ser "almando" uma outra superior alma na placa mãe sideral
07.Nosso fim revelará nossa honra ou nosso horror no verdor da existencialização
08.O homem que se proclama bom, não é realista, é um mero burro de carga amoral
09.Algumas pessoas com peçonhas conversam só para fugirem de ser o que pensam que são
10.Não podemos amar o outrem, se não toleramos nosso próprio reduto intimo, sendo perversos e egoístas na nossa mais secreta interioridade recalcada
11.Só quem ergueu sozinho, com luta, fibra, sangue, choro e ranger de dentes, seu futuro limpo, é que tem direito a arguir alguma coisa de um lado ou de outro
12.Amigos mesmo cabem na palma da mão, mas sobram dedos na hora de contá-los no frigir dos problemas e enfrentamentos
13.Pelos nossos inimigos nos conhecerão e nos reconhecerão em honra, glória e respeito
14.O tal do bendito sucesso é só uma mentira de ocasião
15.O homem é o estrume no esgoto da terra, o aterro depositado do espaço, onde estão depositados todos os vermes
16.Quem muito de si mesmo fala, um jumento presencial embala
17.Virtutes, acertos e erros, afinam prudências ressentidas
18.O tal dos reinos dos céus começa a ser assentado depois de uma nossa particular e infinito mea-culpa
19.O homem é antes de tudo, acima e sobre todas as coisas, apenas um mero eco à beira do abismo
20.A melhor arma contra um inimigo é um currículo espetacular, portentoso, excepcional, fora de série
21.Os nossos maiores êxitos são desaforos obscuros, oportunismos sórdidos de mal- feitos, aproveitamentos escusos de ocasião, como indecências que resignamos e contamos palha com um papo furado que fura o olho da verdadeira verdade em nome de uma falsa meritocracia de ocasião, do rastilho do ocaso, do cardume do acaso e de um nefasto percurso maquiavélico...
22.Ser você mesmo faz parte de seu verdadeiro caráter. As vezes dói a portabilidade de se ser, mas, mesmo doendo, não queira parecer ser o que não é, nem pensando que pensa, pois fingir mostra a escurez da falta de escrúpulos assentando tijolos de vaidades customizadas com chiquezas espúrias de pústulas
23.Na verdade, o melhor do sumo de nós mesmos, aprendemos sozinhos e em enfrentações com sequelas de dor em neuras, mas nos cabendo em nós, desfrutamos o fortalecimento depois de erros, acertos, apreendências
24.Nossas opiniões só fazem bem para a nossa pose
25.Feridos venceremos
26.Toda razão perfeita e acabada de quem veio do pó começa a esvair-se quando vamos ao banheiro soltar um barro
27.O futuro sempre começa a ser construído bem lá atrás, com nossas ações contínuas de perdas de lastros setoriais ou customizados de clã e meio. Só assim nos livramos de nós e de ranços, e ergueremos nossa própria sombra, muro e pódio
28.As pedras rolam em artes. Que pedra polida queremos ser, parados, em mesmices e achismos, criando limo e húmus vegetativo?
29.A melhor lição de vida é um exemplo limpo de vitória em campo minado
30.Toda reclamação deveria vir precedida de uma bela ideia de conserto, solução ou refinamento para uma purgação evolutiva
31.No amor sempre existe um pouco de enlevo circunstancial, de devaneio residual, e de submissão unilateral
32.O dia de aprender voar, não é o dia de se atirar no abismo com paraquedas de ego doentio superestimado
33.Quem vê muitos monstros habita o surto circuito do miolo mole de um deles feito espectro
34.Se falamos de verdades olhando no espelho, fugimos do medo-rabo de nós mesmos
35.O ser humano mais do que um acidente criacional, é um embuste e uma mentira da conspiradora natureza corporativa
36.O dia que não lemos alguma coisa, não existimos
37.A alma tem sabedoria toda peculiar e inerente, que até a lucidez desconhece
38.Algumas pessoas com peçonhas deveriam vir ao mundo com tarja preta na fronte
39.Extremismos são impotências sublimadas
40.A solidão do homem no espaço é o cadáver insepulto de si mesmo que ele leva no lombo de sua mediocridade
41.Amar é despertencer-se
42.A meritocracia é uma enganação assistida, um erro
43.Todos os grandes pensamentos e as grandes ideias, foram produzidas na intimidade privada de um banheiro, como contrapartida para um descarregamento de intimo transido.
44.Todos os cadáveres deveriam ser congelados, desde o surgimento e evolução do homem na tábua de carne da terra, porque no futural vai faltar alimento e nutrientes básicos
45.Só tragédias curam paixões impossíveis
46.Quem acha alguns idiotas, deve estar procurando sustentação e companhia para sua tacanha mediocridade
47.Algumas pessoas sabem ser confidentes, e sacam o que deve ser isso, não tentam ser extintores de incêndios
48.Pessoa que repete que lê, como papagaios de piratas, é entidade vazia de si mesma
49.Estar só é um colírio, se você sozinho consegue ser um vencedor limpo em teoria e prática, você merece companhia qualificada para se reproduzir, não fazer parte do sistema
50.O humano que é um sofredor bem resolvido, tem em sua sapiência espiritual de recolhes ascendentes um ótimo butim
51.Gosto de brigões. Não gosto de cagões. Nessa vida é mesmo assim: ou você é um Nerd, ou você é um merd.
52.Quem não gosta de animais, não se enxerga.
53.Querer tentar ser sábio, significa porões, tormentas, sequelas descompensadas, não vitória boba com mãos sujas
54.O cérebro faz parte do kit básico da evolução necessária. Todos deveriam usar um
55.Quem não ergue, não constrói seu dia, cava seu poço de mediocridade. Deveria tentar arte como libertação. Quem não trabalha, não estuda e não lê, é parte da escoria tangida pela mediocridade.
56.Pessoas confusas, inseguras e fracas, fazem mal pra cadeia residual da civilização. Deveria haver um mosteiro para ateus, cegos e frustrados?
57.O homem que nunca deixou de ser criança, é que nesse conhecimento adquirido potencializa o DNA quântico do evoluído humanus em si
58.Ninguém é louco sozinho. Deus é o maior louco e solitário do universo multipangalaxial, e ergueu todo esse Big Bang que virou orquestral Big Band espacial, já que do jazz nasce a luz
59.Opinião é como fralda geriátrica: cada um preenche seu vazio dogmático com o que acha que fez de si e na verdade não fez
60.Para os animais, o homem é um deus. Para Deus, o homem para chegar a ser animal ainda tem que sair do lugar que está, pois está no átomo sem cachorro
61.Casar é humor a dois. Ou é tédio, rotina, apropriação, iniquidade, dezelo intimo e parcimônia com a infelicidade conjugal reciproca
62.Todo homem é um ignorante na sua essência
63.O melhor pensador é aquele que reflete com realismo sobra a sua sentição e o seu próprio lado sentidor enquanto neura, fuga, tentativa de achismo
64.Poeta que não lê o defeito de si, não sabe o que de per-si é, não sabe o que é uma coisa ou outra.
65.A vida é rotina cruel, tédio. Viver é plágio. Morrer é pós pago?
- O homem é um câncer historial.
67.Nossos maiores bens são nossas estadias de severos estudos
68.Quem não sabe se doar, não faz parte de um todo sagracial ético-plural comunitário
69.A ilusão consentida e alumbrada alimenta e amola a faca cega da esperança
70.A arte tende a ser a libertação do ser de si
71.Somos todos meras cópias. Alguns, nem isso
72.Quem não ama seus pais, e quer julgá-los sem estar a altura, nunca será nada na vida e na morte também
73.Nas profundezas da alma acesa em lume neutro, estão todos os tipos de tições de monstros que afinal nos restamos
74.Viver intensamente é tribunal, alga, palco, iluminura e refinamento com o qual cerzimos a pele arisca do dia
75.Algumas almas bobamente boas, habitam corpos parasitas
76.Odiar deveria ser proibido. O ódio enfeza o odiador, e só faz bem pras fezes.
- A vida inteirinha tentamos ser o tempo todo o mais distante e diferente possível do que realmente e na verdade somos
78.Numa guerra todos perdem. Até os vencedores
79.Um mestre que não tem um aluno muito melhor do que ele, não foi um bom mestre
80.O mundo da imaginação coletiva é que permite uma realidade substituta, com todas as suas lonjuras, pompas de podres poderes e sofisticadas mentiras com significados libertários pífios, ignóbeis e rasos
81.Perdoar é divino. Tirar lições de errações é que fortificam nossas muletas de prosseguimentos
82.A esperança é a inteligência da vida
83.O que nos mata, nos leva consigo
84.Quem mal vê, mal ouve, mal sabe, mal capta. Aprender é sempre um curtume de aproximação com o diferenciado de nós
85.Todas as vezes que levantamos a voz, perdemos o conteúdo, a razão, a ética
86.Todo idealismo é chulo, farpa, nonsense, um verdadeiro chute na sombra
87.Todo caminho é corrente, vazão e hangar
88.Toda certeza é esgoto de esgotamento neural martirizado nas aparências
89.Não vivemos por nós, mas pela manada com grife
90.Nossos erros de escolhas e situações, nos acompanharão por toda a corda esticada da eternidade
91.Fórmula de felicidade: olaria, silo, salina, embarcadouro, biblioteca
92.Ser feliz é fazer alguém feliz
93.A grandeza da vida é a belezura de ser simples
94.A vida é muito curta para ficarmos preenchendo questionários de renúncias e de perguntamentos
95.Nossa força pode ser nosso algoz
96.Nossos pecados são nossos professores
97.Quem remói muito um osso duro de ruir, é animal de sua própria insignificância
98.O amor é eixo e farol. Quem não se desarma, não ama
99.Somos o nosso próprio capital. As ações que somamos é o árduo trabalho, muitos estudos, leituras a todo e pleno vapor, e assim erguemos um castelo com a cara e coragem de nosso encantário vivencial, feito documento de presença, de passagem e de estadia nesse plano dimensional de uma dobra do espaço
- Tudo o que você fizer no calado da viagem e no dizer nas honras, feito desaceleração de partículas, será usado a favor de você, ou contra você, em sua acusação, naquele bendito final feliz em que todos morrem, e todas as páginas do livro aberto de sua vida regurgitarão além de sua retina como um ácido nucleico da barriga dos céus gerando uma evolução, ou uma volta ao estado primevo dos perdedores e infelizes, para uma nova tentativa...
Silas Corrêa Leite - Texto da Série Assim Falou Silas e suas Culatras
E-mail:
www.artistasdeitarare.blogspot.com/
O que é que estou fazendo aqui?
Imediatamente uma sensação de clareza, pareceu abocanhar aquela pergunta.
Clareza... Sem limites.
Tão imensa quanto a liberdade.
O inicio de pânico, dissolveu por completo a resposta, como... Tudo. Clareza é luz sem padrão.
A lógica, ganhava consistência. A lógica, conformava as crenças. Sentiu uma espécie de elasticidade em recolhimento. Sensação de apreensão e encolhimento. Sentia ela no momento. Agora!
Em seu próprio universo... Algo nascido... Morreria. Findaria em um átmo de tempo...Uma reação... Um movimento.
O tal Agora! Se escapulindo dela, seguindo rumo a uma conclusão... Algo passado, concluído como ponto final.
Há final quando há, repouso. Quem movimenta o fazer? Ela sentia que sabia!
Uma possibilidade causativa, repousava!
Dentro dela, sentia que tinha que escolher fazer algo. Fazer o quê?Mesmo que ainda incerta... Mal Informada.
O agora, findo... passara a bola da vez, para ela!
Que fazer?
Sim, era apenas um sonho, diferente - Teve consciência disso.
A tranquilidade pareceu querer reinar... Vinha do arraigado conceituar, in memoria dos passados como apenas lembranças.
Então, um novo pensamento lhe ocorreu. Não é um sonho, qualquer. É... Sonho real! Sei. Sei... Que estou aqui e viva!
- Mas se estou sonhando...
Encontrou sem esforço, no bau de suas memórias, uma resposta explicativa para a situação presente.
Sabia... Que já lera em livros, aquele tipo de experiência...
Estava em plena viagem astral.
Muitas vezes ao deitar-se, depois de rezar e meditar algum tempo, ficava imaginando... Querendo. Que ao dormir, acordasse da noite. E ela, sairia em uma viagem astral.
Como ela sabia... Sabia que... Que isso era bem possível, de estar acontecendo agora.
Lena, assistira inúmeras vezes o filme da atriz Shirley MacLaine. Que descrevia seu adentrar no mundo espiritual, e sua busca de grandes respostas. Numa das cenas, Shirley sai de seu corpo físico e conhece o universo, tal qual astronauta sem nave a guiar-se pelos pensares e perguntares.
Lembrou-se da cena em que Shirley, vagava sozinha.
E sentiu, mais um friozinho de medo.
Entrou num pequeno conflito... E tentando acalmar-se, criava suas próprias respostas. Justificando com sua razão os motivos e a confusão. Tinha motivos de sobra, para estar e sentir-se com medo e com insegurança. Justificava-se divagando, murmurando seu dialogo... Monologado.
Chico Xavier tinha um anjo sempre com ele. Um tal de Emanuel...
Antes que o desconforto tomasse vulto...
Onde estaria o meu?
Sempre sonhara com a tal viagem do tipo Shirley, mas nem de longe pediu em oração, para sair em viagem, sozinha. E justificava, tentando explicar e convencer-se de que havia uma falha. Buscava ela, a resposta para o fato muito vívido e... Inexplicável. Ela não desistia.
Chico e Emanuel, estavam sempre juntos. Dormindo ou acordado, Chico Xavier, estava sempre escudado por seu fiel anjo!
Certo é que, o filme provocou lhe uma certa gotinha de compreensão...
E com sua habilidade e capacidade imaginativa, buscava melhorar e esclarecer o que de fato... Pedira. Alguém entendera mal, os seus pedidos orados.
Relembrava-se. Puxava pela memória as palavras usadas, tal como pedira em muitas das noites, aquele tipo de aventura. Conversa dela, com ela.
Deus... Que o meu anjo da guarda, venha esta noite me buscar, para um fantástico passeio com meu corpo astral.
E quando essa noite chegasse e ele aparecesse, pensava ela em pedir-lhe, que a levasse a voar pelos céus da, Índia.
Sentia que queria muito entrar no castelo Taj Mahal e meditar ali.
Queria ir também ao Ashram do Osho. E se possível, fazer-lhe uma única perguntinha. Ao escutá-lo respondendo-lhe a pequenina pergunta, ela se iluminaria.
Via-se agradecendo, mãos unidas em sinal de Namastê. Dois iluminados... Entre si ligados, a sorrir com o coração. Se separavam, como duas unidades com aparências, distintas.
Mas...
Ela se dava conta agora, que esta experiência quase palpável, não vinha do mundo dos sonhos planejados com tanto esmero e desejo.
Estava realmente acontecendo com ela algo. E ela sabia... Que não sabia... Nada sobre isso, fora quisá descrito! Não. Não era um simples sonho.
Via que, não havia cordão de prata coisa alguma...
E nem coisa alguma, visível.
Era um sonho nunca sequer imaginado por ela. Era algo bem vivo, bem real!
Lena estava pela primeira vez, consciente de sua “Expansão”. Como chama de uma vela que envolve todo o pavio.
Lena, saíra do centro, sem abandona-lo a deriva. Do pavio se fez pavio. E uma luz ascendeu, expandiu-se e envolveu o que antes era apenas breu.
Saíra de seu corpo, de sua mente lógica e não conseguia ver sem o uso dos olhos carnais.
Já... A mente, pouco a pouco ela sentia, ir ganhando um crescente, porém tímido controle.
Olhou no entorno, tentando se situar e nada viu. Nem sabia onde era o entorno. Percebeu que mesmo não vendo o entorno...
Sabia que lembrava... A sensação de olhar em torno. O corpo parecia buscar o que ver... O que sentir. O corpo tinha... Ela sentia, mas não conseguia descrever.
O corpo erriçava uma espécie de bilhões de olhos. Era sabia ela dentro dela... Era uma questão de dominar o Zoom.
Olhe em torno, Lena.
Pensava-se ela. Mesmo sabendo que não sabia onde começava ou terminava.
Perguntou-se então...
Onde sinto que sou mais eu?
Nada...
Onde sinto que sou... Sendo eu, eu mesma? Não era coisa fácil de se compreender, muito menos fazer ou controlar.
Mas, Lena sabia que! Tinha que fazer algo! Intuía que esse era o caminho para ver. Querer... Querer muito ver.
Ver-se vendo-se a ver.
Seja o que fosse esse querer ver...
Viu seu corpo deitado na cama.
Nossa! Estou ali, dormindo.
Isto é... Meu corpo está dormindo.
Não teve medo... Sentiu-se instigada a querer ver mais um pouco.
Olha ele ali. Eu me lembro disso...
E viu seu livro. Estava ali ao lado da cama. Viu a cama, o livro e até a toalhinha sob o livro. Viu a pequena mesinha, muito antiga, que ela mesma havia restaurado. Viu. Viu tudo... Ou quase tudo.
Então, já mais centrada, sentindo certo auto controle. Lembra-se...
Está faltando o tal anjo da Guarda.
Perguntou-se a si mesma ainda que timidamente, pois sussurrava em em seus pensamentos.
- Ei... Anjo da guarda! Onde você está?
Nada aconteceu.
- Ei...Senhor anjo, me escuta. Se a noite da minha viagem astral, é hoje, onde o Senhor, Senhor Anjo, está?
E nada...
- Eu acho que fui muito clara nas orações. Queria ir... Mas com meu anjo! Será que... Será que eu cheguei primeiro? E arrematou pensando...
-Nunca vi um anjo,se atrasar!
Ouviu então uma resposta. De um jeito diferente, assim como uma intuição que se escuta
- Nem nunca viste um anjo, ora pois!
Sentiu um estremecimento. Muito diferente de um simples friozinho na barriga. Era algo imenso, do tipo que arrepia os pelos, mas... Lena, não se intimidou. Estava disposta a enfrentar esse tremendo, momento desconhecido, pensou...
- Então... Isso significa que, Anjo não tem forma?
- E nem mesmo atrasa, repito-lhe. Ora pois!
- Como assim?
- Prestes bem atenção, anjo da guarda não se atrasa, porque está sempre presente! Compreendeste agora?
- Ah! E faz sentido... Mas anjo tem forma ou adquire uma? Pergunto porque não compreendo totalmente. Pensa comigo...
Vos, do além...
Parou sua fala pensada bruscamente.
Sentia-se confusa, pois estava em duvida se seria compreendida.
Continuou então.
Vos, do além, que tem voz. E que a tua voz, eu escuto bem...
Já ia entrar no mais confuso, quando a voz, interrompeu-a
- Senhora Lena, perdoe-me interrompe-la, mas eu, tenho a forma que sempre tive... Desde sempre sou assim.
Sempre fostes desta maneira... ?
Valha-me Deus!!! Havia ironia no pensamento. Seu pensar tinha um leve sotaque português.
Quero ver sua cara de anjo. Me entendes, ou cousa que o valha?
- Fique calma... Serena. Estou aqui, junto a ti minha Senhora.
-Aqui onde?– Vós, que é só uma voz. Pensas que não sei que tens um sotaque de português! Mas onde, de onde sai este sotaque?Essa voz tem ao menos uma boca? Onde... Onde?
Não vejo nada de você, além de... Algumas outras partes.
-Se me permites, Senhora Lena. Que partes de algumas partes a Senhora vê? Explico-lhe minha pergunta. Estamos certamente com nossas linhas de comunicação atrapalhadas. Diga-me lá, Senhora Lena, explique-me melhor. Se vês algumas partes, então me vês em partes. Pois estou, em toda e qualquer parte.
Com uma ligeira irritação, que revelava o seu pavio curto, completou, sem hesitação e sendo muito incisiva.
- Escolha uma parte desse todo lugar... Uma entre todas. Uma e a particularize! Quero ver você, voz do além.
Materialize-se... Ou pouse na minha frente.
- Senhora és de fato, muito inteligente, saabes?
- Sei! Mas apesar disso não consigo vê-lo. Então, de que me adianta ser inteligente? Preciso saltar para o nível de vidente. E isto é bem evidente. Não acha?
- Tu és muito perspicaz! Tem muita lógica, o que me pedes. Estás a ouvir-me, mas não podes me ver.
- Que bom que me compreendeu. Gosto de clareza nas conversa. Apareça vós do além, pois gosto como disse de transparência.
- Já estou transparente, Senhora. Mais do que isso, impossível.
Lena... pensa até 10, sem pressa.
- Transparente é transparente, claro... Entendi. Estamos com problemas de comunicação mesmo, concordo voz portuguesa. Melhor dizendo... Seja então, menos transparente e mais aparente. Compreendeu?
- Pois é claro que sim, Senhora Lena. Compreendi-a desde o princípio. Mas confesso que, ficou muito melhor o enunciado. Não achas?
- Sim, concordo.
- Pois então. Pudeste notar que a escolhas das palavras, são deverás importantes. Transparente e aparente...
Lena não esperou a voz,completar a frase.
- Onde você está? Quero imediatamente vê-lo. Não gosto de falar sozinha...
- Não falas só. Pois, estás a falar comigo, Senhora Lena.
- Estás pois sim, oh voz, de portuga e duma figa, a torturar-me as ideias, isso sim.
Mesmo um anjo tem que ter uma forma... No meu entendimento, é claro.
Assisti semana passada, o filme do Anjo Micael, com o Travolta. Anjo tem forma e asa, se não...
- Estás a assistir muitos filmes, Senhora Lena. Estás, fascinada eu diria. E é com todo respeito, que vos digo isso.
- Por favor, me entenda bem, vos que sois, voz do além. Tem que ter uma forma. Que seja a forma de um santinho. Do tipo Santo Expedito.
Senão... Senão, não é anjo, guru e muito menos Santo. Falo com quem? Pois, ora pois, isso está começando a não me cheirar muito bem.
- Permita-me interrompe-la. Já viste então Senhora Lena, o seu nariz? Pois diz-me que algo começa a lhe cheirar não muito bem... Sente-se resfriada, Senhora? Ou seria apenas um chiste, de nossa comunicação em língua portuguesa?
Lhe parecendo coisa do... Do, Tinhoso! A indescritível cena. Lena era só uma coisa... Duvida! Um grande ponto de interrogação.
-Eu, tenho certeza. Eu, não tô louca, não!
Enorme silêncio...
- Ou estou? Alguém por favor, me da um beliscão! Deus, meu !!!
- Ah, achaste o corpo então? Onde queres Senhora, levar o tal belisco? No braço ou no rosto?
teka barreto (2008)
(fim da parte 3)
Quando o vento te tocar no rosto
- E brincar com os teus cabelos
Por favor não te assustes
-É a minha saudade, o meu amor
Que te quer beijar em silêncio.
me perder em ti menina
não para ficar na tua memória
mas sim para refazer a história
que tem ofuscado a nossa amizade.
Beijar mesmo de verdade,
espantar o manto da saudade,
ouvir as línguas do teu silêncio,
sugar o mel dos teus lábios
e navegar no mar da tua boca
Aceita por favor é urgente
senão ainda beijo toda gente
a procura da tua boca quente
na qual quero navegar perdidamente.
Por Narciso Baloi
Corra para fora de Si.
Tente pensar por si próprio, sem ouvir a voz do alheio,
cuidado para não entrar num estranho devaneio
Idéias solidas podem de confundir,
ai então é hora de parar e agir.
Parar de pensar e agir é cair no modismo,
é olhar para baixo e enxergar um profundo abismo.
Idéias aqui e ali não param de se fundir,
corra para algum lugar talvez irá conseguir....
Conseguir o que , não adianta fugir,
fugir com artifícios que a lei não cansa de proibir.
Felicidade aparente
se estas linhas fixou em sua mente
Tu fazes parte desta gente.
rogerioalcolea@gmail.com
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Morri
Aqui gostaria de estar,
Neste globo terrestre já não posso mais pisar
Estou só,
minh'alma sofre como as provações de Jó.
Somente minh'alma é que pode se pronunciar,
o meu corpo num lindo jardim f lorido
eternamente a descansar.
Neste mundo já não faço parte,
o meu nome está gravado na sepultura
como se fosse arte.
Sentimentos ainda posso sentir,
lembranças da minha via terrestre,
se fosse pintar um quadro não conseguiria colorir.
O meu cadáver duro e frio,
fechado numa caixa que alguém um dia esculpiu.
Um conselho eu dou para os que possuem um tabernáculo carnal
Procure praticar o bem
evite certamente o mal.
rogerioalcolea@gmail.com
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Autopia de ser um Servidor Linux
Bytes e bytes de vivências,
Gravadas num enorme hard disk.
Às vezes buscando na memória cachê
Pequenas idéias, pequenas lembranças.
Talvez com bad block devido ao stress,
corriqueiro do dia a dia.
De tempos em tempos um descanso na fazenda,
Ouvir os sons dos pássaros, estágios de uma desfragmentação,
E estar pronto novamente para produzir e produzir.
Os anos se passaram é a hora de upgrade,
Apagam-se memórias permanentes e pequenas recordações,
restam apenas um gabinete , um flopy
e um cd-rom que raramente consegue ler algo.
Ou melhor, não resta, lá no fundo de uma prateleira
A fim de ser reutilizada partes de seu conteúdo.
Quem sabe uma nova existência na louca utopia de ser
Over clockizado com um software revolucionário,
Rodar linux e virar um servidor.
Rogério Thiago Alcoléa- Aprendiz de Poeta
rogerioalcolea@gmail.com
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Desempregado.
Estamos ai, a escolha é sua
bem vindo a vida, bem-vindo a rua.
Para expressar o que sinto de parábola usarei.
Minha carreira, uma viagem
para que lugar não sei.
Vi muito da janela deste trem,
belas paisagens, belas ruínas.
Pessoas gritando,
outras falando amem.
Desta viagem apesar dos pesares,
As paisagens pretendo levar,
As ruínas, muito obrigado aqui irei deixar.
A bagagem me desculpe por direito levarei,
Dentro dela todo conhecimento e amor que cultivei.
Me perdoe.. se magoa um dia deixei,
é para você essa linha com carinho dediquei.
O trem continua, minha parada é aqui,
como tudo na vida, hoje tenho que parti.
A uma nova viagem, buscando seguir,
com ética e dignidade usando o que aprendi.
rogerioalcolea@gmail.com
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Oh! Elipse que me inspira.
Traz-me enfastia não poder observá-la de perto
Es tão linda Oh! Elipse incandescente
Deretes o calor desta escuridão.
Não temo o breu que te circunda.
Olha a orbe e não te encalistra
Antes só do que cheia de indivíduos,
pavoneando suas pequenas conquistas.
Solidão não, aqui no planeta azul,
um panegírico incessante a tua perfeição.
Ingênua quem sabe, olho límpido,
não conheces a maldade dos seres,
que a louvam.
Talvez seus dias contados,
Como formigas que descobrem o doce,
hão de descobrir algo para sugar sua alma,
e ofuscar seu brilho.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sistema
Reprodutores de um sistema falido,
Que não nos leva alugar nenhum.
O ideal é a revolução ,
Para chegarmos num bem comum.
O que fazer para mudar?
Se a massa acomodada com suas idéias
nos deixa a desejar.
Capitalismo a elite sustentando o egoísmo,
miseráveis procurando no lixo dos ricos
algo para saciar a fome.
Pessoas matam para adquirir
o dinheiro fabricado pelo homem.
A elite esbanjando seus bens
que foram adquiridos sem sacrifícios.
Seres lutando para ganhar um salário
só para sustentar seus vícios.
Ingratidão
pessoas vendendo o corpo para ganhar o pão.
rogerioalcolea@gmail.com
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Mundo medíocre.
A lucidez me padroniza a mediocridade deste mundo.
A embriaguez me abre uma única janela que me faz sair deste mundo medíocre.
A confusão de sentimentos em sintonia com o sorriso de um alcoólatra transmite para os seres que os observam uma certa felicidade disfarçada de angustias reprimidas.
Tudo para sair do mundo real, ou apenas para esquecer as punhaladas provinda da ganancia que nos rodeia
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PENSAMENTOS NA ESTRADA
Sozinho nesta longa estrada,
tento mas não consigo pensar em nada
Turbilhões de pensamentos nesta caminhada,
cumprirei esta jornada
Sorri sozinho com meus próprios pensamentos,
são estes blocos de idéias
que vão e voltam com o vento.
Parece que penso ainda como criança,
com mais experiência
mas sem muita confiança.
A brisa levemente fria
paira sobre meu corpo e me arrepia.
O cheiro da natureza
me faz entrar em sintonia
com esta magnifica leveza
A beleza da natureza
entra em extremo contraste
com idéias e incertezas
Questões não respondidas
mesmo assim não deixo de apreciar
esta linda vida.
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Capas Negras
Não sei porque insisto em viver,
o mundo não e mais aquele
quando buscava crescer
Poeiras sobre pessoas desmerecem
a raça humana
Capas negras envaidecem
camuflando o bacana
Desaparece entre muitos
a igualdade desigual
Faz com que leve a vida
magoando atrás do mal
Objetivos traçados
doa a quem doer
Capas negras vai sangrando
até a alma morrer
Gostaria de voltar, a infância sem igual
Onde sorria puramente
onde não enxergava o mal.
Fecharei este baú,
lançarei a chave ao abismo,
deixarei dentro dele todo ódio e egoísmo.
Mas também não sorrirei
não tenho razão para tanto
Talvez um dia rindo,
embaixo de um manto,
deixarei me levar pelo ultimo canto.
O azul do arco íris serei.
Quando olhares para cima
meu sinal deixarei.
Serei o símbolo da Alegria, Paz e Amor
Não haverás capas negras , não haverás dor
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Numa praça em Piracicaba.
Problemas sentimentais
visão a escurecer
de pé não estava mais
sem muito saber.
Sentado ali estava
vários seres ao seu redor,
e querem saber...
- Família?
- Alguém morreu?
- Fez por merecer?
Com a visão ainda
escura
Sua pronuncia calada
seres desconfiam que se foi
sua verdadeira amada.
Enquanto um evangélico
grita em seu sermão
ao olhar aquele ser
vou-lhe fazer uma oração.
Sobre a cabeça sua mão
palavras fortes e de consolação
Perguntas ainda são feitas
respostas ainda não
O guarda que ali estava disse:
- Cumpri minha missão.
Ao levantar o indivíduo que tinha
caido no chão.
O pregador despediu-se
até logo meu irmão.
E eu que ali observava
Voltei para o serviço
Sei lá porque escrevo
Não tinha nada a haver com isto.
rogerioalcolea@gmail.com
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Reflexão do viver.( a pintura é a mesma de sempre )
Um ano se finda nada se muda,
pessoas eufóricas, outras pedindo ajuda.
O que terá de tão especial
na entrada do novo milênio ?
Evolução, nada estagnado ,
Para compreender esta transformação
não precisa ser intelecto nem um gênio .
O que diz respeito ao ser humano,
muitos regridem e muitos evoluem na arte da vida.
Enquanto uma família feliz enriquece,
milhares de pessoas se sacrificam em sua vida sofrida.
A vida é um quadro cravado na parede
que algum dia alguém quis pintar.
A pintura é a mesma de sempre
só muda a forma de pensar.
Pessoas sacrificam outras,
até fazem pôr merecer ...
Se buscas a felicidade, cultive o amor
E verás que a alegria está dentro de cada ser ...
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A felicidade nas pequenas coisas.
A massa cinzenta entra em erupção,
a alma vaga sobre as nuvens.;
Saltará lá de cima, melhor não .
Reflito na minha vida terrestre,
valores, tabus, bloqueios metais,
recordo nos conselhos do mestre.
Como é bom o agora,
momentos que não voltam jamais.
A brisa passa e leva-o embora.
No meu ser habita uma extrema felicidade,
gostaria de fazer feliz toda a humanidade.
Recordações passam sobre minha mente,
Coisas , cores, lugares, sons e gentes.
Um flash do meu passado ,
uma infância bonita e alegre,
fraternidade e amor sempre ao meu lado.
O tempo apaga a minha vida.
Infância , adolescência não serão mais vivida.
Temos que viver sempre com emoções ,
são gestos simples que marcam nossos corações.
Um sorriso, um olhar, se tu deres valor ,
significará mais que uma noite de amor.
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A Tristeza em teus olhos.
Tio me dá um trocado,
seus olhos descrevem a tristeza
de um garoto mal tratado.
"Deus" lhe pague , muito obrigado
as vezes para comer o pão
as vezes para sustentar viciados.
Sua mão é estendida , tristeza em seu semblante
irmãos passando fome, drogas , misérias
mesmo com tudo isto a vida leva avante. .
Imagine o coração deste ser machucar,
ao ver você o vidro de seu carro fechar.
Se tu não pode ajudar ,
de apenas amor.
Fale uma palavra amiga
com certeza darás valor
Não quer apenas seu dinheiro
que tu gastas em abundância
Quer Ter uma vida digna
E aos seus irmãozinhos
dar uma boa infância.
Seus olhinhos encheram de lágrimas
ao escutar uma engratidão. . .
Ao pedir ajuda no semáforo :
- Vai trabalhar vagabundo
- Para mim você é ladrão.
Do mesmo jeitinho que estes garotos pedem
Peço para ti agora :
Faça o bem enquanto é tempo pois um dia
Desta vida irás embora.
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Sonhos.
Sonhos se confundem com a realidade,
Sonhos bons , sonhos ruins,
sonhos que expressam desejos que estão dentro de mim.
Sonhos sem pré conceitos, sonhos que
expressam nossas verdadeiras essências.
Sonhos que representam nossos íntimos
que nos mostra nossas carências
As vezes me pego sonhando acordado,
sonhando sobre meu futuro ,
tentando enxergar por detrás de um enorme muro.
Quem somos nós para sonhar ?
almas fracas, praticamos injustiças
e temos intenções ingratas.
Mas não podemos deixar de sonhar ,
pois sonhar nos trás bem perto
desejos e conquistas difíceis de se concretizar.
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Tua alma Transparente
A transparência de tua alma
em teus olhos não cessam de cintilar
Meu ser procura em teus lábios
saciar a minha sede de amar.
Tua pele aveludada
com sinceros toques, por mim é acariciada
Se pudesse congelar,
congelaria os teus beijos e abraços,
nestes momentos magníficos atariam
em nós eternos laços.
Não consigo deslizar em tais linhas
A magestosidade do que estou sentindo
Sinto o meu coração pulsar,
entoando um lindo hino
e a cada sorriso teu sobre o horizonte
este hino vai fluindo.
Em teus braços me acalmo do mundo moderno
Minh'alma a levitar gostaria de ser eterno.
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O ritmo do amor..
As pálpebras se fecharam
O ritmo do coração se eleva
Como naquele instante mágico
Retratado por Adão e Eva.
O sangue se flui , de uma forma jamais fluida
Sobre o corpo deitado que ali estava
Arrebatados para a dimensão do amor
Ali nada nos faltava.
Sobre uma sinueta uma escultura divina e macia.
Com os olhos abertos desacreditava
Na magnificência do que via.
Meus lábios sobre teu corpo
Deslizavam em demonstração
das grandezas de sentimentos
que detenho em meu coração.
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Sinto Saudades
O antes sempre será
Melhor do que o agora.
Momentos atrás maravilhosos
Outrora , foram embora.
Loucuras insanas
Êxtases de sensações
Talvez ilusões
O que já foram emoções
Lições,
Escorregões,
Regressaria?
Com certeza,
Impares gozaria
O meu ser invade,
Saudade
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Verdade?
A verdade não existe.
Existem mentes doutrinadas a pensar
Da mesma forma causando sensações
Disfarçadas de uma veracidade coletiva
Vida , Grande Mentira
A cada verdade , duas mentiras se cultivam
O que colhera?
Regresse no hoje
Começaste a mentir para ti mesmo
Ao levantar , reproduzindo mentiras alheias
Maltratando seu próprio ser
Colherás o que plantaste
Talvez sem merecer.
Sofrerás muito
Quem sabe
Estágios do aprender.
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Euforia Musical
Angustia no ser
Talvez merecer
crescer, status
aparecer.
Vocação presente
Pulsar ,
ritmo ausente.
Querendo sair , sons,
claves, musicas, tons.
Vozes gritantes, fãs
Criticas e jogos, clãs.
Alegria fantasiosa
Dar o que está guardado
Sair da alma.
Sem ser crucificado.
Mostrar todo talento
Cantar, pular ao relento
Lual , flauta , violão
Guitarra ,Baixo, Bateria
Euforia, Euforia , Euforia
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Sede de Paz.
Acordei de um sono profundo,
deparei com o mundo real
era bom quando eu sonhava,
ter acordado foi o meu mal.
Agora sofro pôr almas alheias,
No meu corpo circula um sangue
Frio que pulsa sobre minhas veias.
Sensível com tanta destruição,
Posso lutar contra " isto " mas lutarei em vão.
Fico olhando para o relógio
vendo os segundos se movimentar,
a cada movimento do ponteiro
um corpo estendido no chão
que não para de sangrar.
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Dê graças ao divino.
Olho para cima e observo o caminhar das nuvens,
lindo magnifico todos temos o direito de apreciar
Seres, montes e montanhas, brisa pássaros a cantar.
Pare um instante e valoriza a visão que tu tens ....
A felicidade se valoriza na simplicidade,
se tu quiseres muito enfeitar,
pelos vão de teus dedos a mesma irá escapar.
Tolos são aqueles que buscam alegria nos bens materiais ..
Um dia todos partiram, restará nada mais do que uma vaga lembrança, e nossos corpos serão consumidos pelos animais.
Escrevo em vão, coisas minha,
feche os olhos e graças a luz divina,
de estar podendo ler e decifrar tais linhas.
Nos momentos difíceis da vida temos que manter a calma
Isto fará que preservemos a saúde da alma.
O melhor remédio para canseira é o descanso
para a raiva um coração manso.
Para o ciúmes a confiança
Para o ódio a tolerância.
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Eis que levitava..
Eis que levitava
com os olhos fechados enxergava
algo que a principio desacreditava
No mundo não mais estava
Minha vida terrestre ali se findava
Maravilhoso o que contemplava
o mundo em forma de miniatura eu observava.
Assim pude entender a essência de quem liderava.
Pude compreender a divindade do criador
que tanto nos amava
Muitos seres pude ver
Alguns praticando o bem
outros não fazendo por merecer.
Alguns preocupados com o porquê da existência......
Outros imitando o alheio sem querer saber de suas essências.
Outros pensando apenas em trabalhar ,em dinheiro ganhar
Esquecendo as maravilhas que estão ai para contemplar.
Triste fiquei .....
Os seres humanos não valorizam o Redentor
Fanatismo ,rituais sem valor.
Em busca da ganância, almas sacrificadas
Não foi em vão que seus pés e suas mãos na cruz foram cravadas
Agora pare e viva!
A vida é uma só , não seja digno de dó.
Valorize cada ser,
cada pôr do sol e cada nascer,
Valorize uma flor.
Dê para receber amor..........
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Dispersão Mental.
A vista enubada
Vozes, múrmuros, tons
Frases pronunciadas que entram e saem
Sem nenhuma edificação
Sem artifícios , sobriedade total,
apenas cansaço e stress do mundo atual
Apenas o corpo
a alma está muito longe daqui.
Aonde será que ela estará?
Tentando fugir?
Assunto interessante ,
atenção nula,
viagem ao além do inexistente.
Mente vazia
A emissão de um eco no horizonte
Que se perde na minha insignificãncia.
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Amor turbulento
Promessas impossíveis prometi
Era sincero não fingi
Me entreguei
meu coração e meu corpo te dei
Não pensava
que este amor se minguaria e se acabava
Eu agora sofro
neste barco já não embarco mais, e nem em outro
Talvez momentâneo seja
E com o passar do tempo o meu coração te deseje
Nunca mais amarei
no meu coração, devido a desi lusão
espaço jamais abrirei
Me martirizo por momentos lindos não aproveitar
jamais pensava que este amor ia se acabar.
Não posso pensar em tua ausência
sentimentos ruins tocam o meu coração
deixa transmitir a minha carência.
Uma incógnita no ar
Para não sofrer com esta desilusão
procuro nisto não pensar.
O amor é mais forte que isto,
se tu insistir
terei que desistir
e meu rumo prosseguir.
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Absurdo Môr.
Absurdo o que sinto pôr t i
Não esperava sentir o que sinto
a primeira vez que te vi
Algo não palpável
,¨sentimentos¨, a vida é inexplicável .
Se tivesse poderes guardaria
meus sentimentos e os teus
numa caixinha fecharia.
O que sinto pôr ti é muito bom
Jamais negaria.
É mais do que amor
não tinha mais esperança
que isto aconteceria.
Agora paro e reflito
nosso amor tem que ser infinito.
Se nós agirmos sempre corretamente
outros seres não terão nosso corpo nossa mente.
"Deus" valoriza a sinceridade e o respeito ,
se tu continuar a me amar e a me respeitar
te amarei sempre ficarás no meu peito.
A prudência e a base da inteligência ,
Somos e seremos felizes , basta ter paciência .
Imagine nós dois flutuando
altura as poucos alcançando.
Observaremos o mundo lá de cima,
veremos muito mais do que é visto,
Verás que o mundo é mal que não fazemos
parte disto.
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Acorde para a Natureza.
Temos que refletir no futuro de nossa nação
O que será de nós com tanta poluição
A hora é esta
Vamos salvar nossas florestas
Conhecemos a mãe natureza
Sabemos de suas maravilhas
e de tuas belezas
Preserve o que resta desta riqueza.
Para ver o que está acontecendo
com a nossa natureza, não precisa ter vivência .
Pessoas desmatam, poluem ,
acabam com nossa fauna com tanta imprudência .
Temos que fazer um minuto de silencio pôr dia
é nossa vida que está morrendo.
Haja paciência......
Com tanta destruição
não há como haver compreensão
Tem que haver conscientização.
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Degustação da liberdade.
No teu coração ,na tua mente não posso entrar
Se pudesse voltarei a te apaixonar
Nada é mais forte que o amor
por isto que sinto tanta dor
Que motivo tão forte
Te levaria a pensar na morte?
O meu coração morreu
O brilho dos teus olhos tu não devolveu.
Se tu pensas em amar outro ser
ódio fará o meu coração ter
Sentimentos ruins me domina
Na minha mente teu sorriso ainda me fascina.
Talvez aprenda a degustar a liberdade
sem amor apenas com amizade.
Sorrisos para manter as aparências
com as dificuldades é que adquirimos vivências.
Não sei mais sobre o amor
para mim estou fazendo um favor.
Para sair desta depressão lutarei com vigor,
é lutando que nos damos valor.
A muitos anos não me expressei
os sentimentos falaram mais alto e chorei
Se fosse nascer de novo muitas coisas não faria
curtiria bastante a vida e jamais me apaixonaria.
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Foi um Pesadelo.
Durmi ,
O relógio tocou e eu não acordava.
A paixão falou mais alto e por anos,
achava que te amava
Sonolento eu estava
Não sabia ao certo se meus atos te agradava
Deitado num colchão macio e aconchegante,
a rotina passou a ser um fato relevante.
Se não fugia se entregava ,
ai então o mundo para ti acabava.
Visões do mundo diferentes,
corações opostos, duas mentes.
Ninguém foi o dono da razão,
me feriu , partiu meu coração.
Já era tarde , então acordei
muito tempo perdi.
Refleti e conclui
Não foi bom
Apenas me iludi,
sofri.
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Reconquista
Queria também parar e pensar,
se tento refletir começo a viajar.
Não consigo finjo que não amo
e nem ligo.
A aparência pode enganar
Mas não cessarei de te amar.
Não me acanho de expressar o que sinto,
escrevo linhas sinceras e não minto.
Acho que assim simplesmente
Não irá acabar
Moverei montes e montanhas para te reconquistar.
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Frases fictícias .
A relação espaço e tempo,
nos obriga regras cumprir
Deixamos a essência
Alheios servir
Nunca chegamos ?
Aonde estaremos?
Nunca chegaremos..
O homem contra si mesmo.
Olhos medíocres
Cameras que perseguem
Em busca da verdade
Mentira de alguém.
Privacidade
nem nas profundezas do oceano.
Tua mente estará lá
acusando teu engano.
Não se deixe levar
Encare
Frases fictícias
Algo para se pensar.
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|
El espectáculo de la vida. |
|
No meio da peça, aplausos e reconhecimento do publico |
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|
Acorde para a Natureza |
|
Temos que refletir no futuro de nossa nação |
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|
Verdade? |
|
A verdade não existe. |
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|
|
O antes sempre será |
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|
Cidade Maravilhosa |
|
Oh! Titulo absoleto. |
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|
Lagrimas de sangue |
|
Lagrimas de sangue |
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|
Cidade Maravilhosa |
|
Oh! Titulo absoleto. |
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|
Asas a um pássaro cego. |
|
Do que adianta voar, |
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|
"Deus Escreve" |
|
" Deus Escreveu". |
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|
Semeando a Poesia |
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Escrevem pouco e dizem muito. |
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Vertentes Musicais
A arte da combinação do som,
Suavidade, e ternura harmônica.
sucessões de sons agradáveis a audição.
Musicas das esferas,
capazes de vibrar constelações,
esferas celestes, estrelas e planetas.
Musicas, patrimônio de um povo, ritos e sons
remetem a focloridade.
Musicas sem destinos religiosos,
Profaníssimo.
Musica celestial, musica sacra dos Deuses,
Voltada a alcança-los.
Grandes peças sinfônicas,
centenas de instrumentos em sincronia,
em cima do que foi escrito.
A que sai da alma,
musica vocálica.
A quem se destina a tal,
musicante.
Quem musicocrafou, sons da natureza ?
Musicocrafar sons de um sentimento,
a tristeza de uma opera,
a alegria de um Axé.
Musicista todos nós,
Musicofilia a maioria,
Musicofobia, como pode existir!!!!!
Sem musica, sem essência,
Buscamos a perfeição,
Hiper-sensibilidade da audição,
Sermos sensíveis a diferença de um bemol,
a um sustenido.
Ao tempo de uma oitava de nota.
Musicalizar sentimentos?
Musica é arte, quadros abstratos que transmitem
Em cima de uma bagagem individual de cada ouvinte.
O que me deixa feliz talvez lhe trará tristeza.
Rogério Thiago Alcoléa)
rogerioalcolea@gmail.com
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Semeando a Poesia
Escrevem pouco e dizem muito.
Poetas são como o semeador que
plantam árvores sem saber que vai
descansar em suas sombras.
Sombras que aliviam o calor, sombras
que trazem sombras.
Poetas não possuem almas, são a própria
alma, são os próprios sentimentos,
buscam o porque daquela brisa,
o porque de tal sorriso,
o porque de tanta desarmonia.
Poetam não vivem!
Apenas descrevem vidas alheias, sentem
o imperceptível.
Poetas não choram, engolem seco, cristalizam
suas lágrimas, e as transformam em linhas.
Missão árdua, descrever o indescritível,
buscar a essência de sentimento de outrem,
talvez nunca sentido, talvez nunca vivido.
Poetas não envelhecem, petrificam,
imortalizam seus nomes e vivem para sempre,
deixam o que foi sentido,
e em cada leitura, um novo sentimento,
que fortalecem sua imortalidade.
rogerioalcolea@gmail.com
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Que venha a dor e anestesie tal sofrimento !!!!!
Íncola desta cápsula incolora,
Degustando o amargo de gariroba,
Furente pôr Ter que Ter, para ser
Minguando neste invólucro,
Encalistrado pôr estar ali.
Face para baixo, como quem observa
vermes embraseado,
horizonte solidão,
sem visão,
anelídeos na terra batida.
Difícil libertar-se,
embalsamado em plantas
leguminosas papilionáceas.
Contas de A até x,(dzeta)
para virar fagulha de um explosão,
Oferecer o corpo ao leu íntomo,
para que suguem seu sangue.
Quem sabe com tal moléstias a dor seja,
o anestésico para mingúes enraizada.
Sábado, 26 de setembro de 2015
Meu velho,
Existe um caminho ao longe que poderia te levar ao paraíso dos campos férteis. Esse caminho poderia torna-lo menos triste, menos desatento para o viver a vida, menos indiferente. Veja, essa é uma geração de pervertidos e quando falo pervertido não estou a falar só na perversão do sexo em si, mas na perversão a tecnologia, ao dinheiro, ao insano e miserável, você é um estranho entre todos esses pervertidos, eu sei. Me falaste de amor alguma vez? Não carrego em minhas lembranças se quer uma unica menção tua aos sentimentos humanos mais intensos. Falas muito pouco, o teu silêncio é um deus dentro de ti e esse deus construiu paredes resistentes e dessa resistência nasceu o congelamento para a vida, para tua vida cinzaescurecida, para o vegetar dos sentimentos estranhos. Onde estão tuas lembranças agora? Porque não me contas das tuas magoas passadas, sei do teu sentir latente, sei das tuas fraquezas que habitam as entranhas do teu lapidar o tempo inconscientemente. Revela-me as tuas dores, liberta por definitivo essas amarras falsas de um existir sem fundamento. Permita-me alcançar as tuas náuseas diárias e sentir o teu sentir para poder compreende-lo sem imaginar o que eu não posso imaginar. Sabe? Vejo-te como um ser intocável, não intocável no sentido de palpável, mas intocável no sentido de alcançar desde teu sentimento mais brando ao mais escuro, adentrar a tua cabeça e conhece-lo sem meio termo seria pra mim um privilegio. A tua face me agrada, ela disfarça um sofrimento de muitos anos, ela é pesada como o passado, na verdade ela carrega um passado mal compreendido é isso que sinto, desculpe-me se estou sendo inconveniente aos teus hábitos, mas penso que me deste liberdade de falar tudo depois que trocamos algumas palavras, confesso que não teria coragem de falar tudo isso pessoalmente, porque como é de costuma você encontraria um jeito de terminar o mais rápido a conversa para poder se desfazer de minhas bobagens. Essa acabou sendo a unica maneira de falar o que penso de ti. Es resistente porque luta contra um inimigo que nunca mostrara a cara. Se esconder do mundo talvez não seja a melhor maneira de vencer as angustias, esquecer o outro não passa de desculpas para não firmar sentimentos incompatíveis a sua forma de existir. Considero-te como a nenhum outro ser na face da terra, mas por favor a indiferença para com o outro é desleal. Peço-te meu velho algo mais em prol da nossa amizade: não me esqueça amanhã.
de todo meu coração
Poeta das montanhas
Somos tão diferentes, somos completamente diferentes...eu sou a dor você e a alegria, eu sou as lágrimas,você os sorrisos, eu sou
o grito, você o silencio, eu sou o frio e você o calor.Eu sou o "não" e você o "sim"...sou a ferida e você a cura, eu sou a queda e você a mão que me segura, eu sou a rejeição, você o porto seguro, eu vivo a morte e tu morres por mim...eu sou o coração frio,tremulo você o carinho, eu te nego, te esnobo, você abre seus braços para mim e me protege, eu lhe digo :"você não é nada" e você me responde "você é tudo para mim" eu não sei o que sou, Você me conhece e sabe tudo sobre mim, sabe o que me abala
eu não sei viver sem tristeza, Você não sabe viver sem a felicidade, eu estrago a vida das pessoas ,você muda a vida das pessoas, eu posso acabar com sua vida, você: "Não, eu entregarei ela a você".
Somos tão diferentes quanto um anjo e um dêmonio...
O que esta acontecendo comigo,o que você esta fazendo comigo?eu não quero chorar, não o que é isso ?não eu não gosto de sorrir..Para não me abrace, detesto carinho, pare...não me diga coisas bonitas.
Pare de me olhar assim, eu não quero me aproximar de você não...me..beije..., o que esta havendo ? O que e essa sensação estranha dentro de mim ?É como se estivesse passando em meu corpo descargas elétricas... e este frio e estas lágrimas....não eu não sou assim, você esta me destruindo, você vai acabar comigo ,eu não quero me transformar em uma miserável simples criatura, não quero sentimentos ... não...
Pare com isso, por favor não podemos ficar juntos por que eu sou o "ódio" e você é o "amor" eu sou a "morte" e você a "vida".
Amor: "eu te amo, você é minha vida"
Ódio: "não eu sou a morte...Não eu não posso, ficar com você entenda isso...
Amor: "Eu sei que esta mentindo, seus olhos dizem a verdade, sua boca mente, e seu coração bate, lutando,se dilacerando contra o seu desespero, contra sua raiva. ele já me aceitou,sua alma já me ama..."
Ódio: "Não, Amor estou lhe falando a verdade...eu proíbo você de se aproximar de mim".
Amor: "Impossível, por que somos um só, somos um mesmo caminho..".
Ódio: "Louco isto que você é... eu não sou o caminho ,e sim o fim..."
Amor: "Você é o caminho que leva a mim, você é a máscara de quem ama mas não pode falar ou que tem medo de falar."
Ódio: "Amor, eu já não tenho forças para rejeitar você eu....eu...eu te amo."
Amor: " Eu te amarei em todos os dias para sempre e cuidarei de você.."
Ódio: "E se eu lhe trair ?"
Amor: "Eu te perdoarei, pois viver em amor é viver com o perdão com a verdade." "Kelly Cordeiro..."
O sol temia a me queimar
Mas não doía
E eu estava parado
Depois de uma conversa incerta
É uma troca de olhares que muda tudo
Mas foi você que deu as costas
E eu fiquei ali parado
Nem sei se era novembro
Porém as folhas cobriam aquele chão
Eu estava com frio e você vestia um blusão
E minhas mãos nervosas tremiam nos meus bolsos
Livrei do medo o teu coração com o meu forte e sincero abraço,
Neguei o meu merecido sono só pra te ver dormir,
Um dia até me machuquei só pra te ver sorrir.
Depois de uma longa conversa um olhar muda tudo
Eu, ... Já não consigo segurar o choro...
Eu estou rodeado de medo
Não tenho ninguém.
Fiquei só...
Daqui eu não consigo ver você
Me encontro agora desesperado mentalmente
Estou sem ar
Alguém me ajude por favor
Agora sem destino eu dou as minhas costas. Piso numa areia fria e molhada onde sinto um cheiro forte de peixe.
Continuo andando e andando e nadando e me perdendo e em silêncio continuo gritando.
Porém no meio da minha cura alguém me puxou
Alguém sugou a elixir do meu pulmão
Alguém fez massagem no meu inimigo
Inimigo esse que bateu em mim...
Depois de ter me iludido
De ter me cegado.
Ainda estou aqui esperando morrer o que faz tanto mal a mim!
Qualquer dia desses eu perco essa vontade estranha de querer amar e nao ser amado.
a história acabou.
O último que sair,
por favor, apague a luz.
Sim, sei, não
houve motim
e todas as ordens
foram seguidas à risca.
Mas é algo que não
dá para mudar.
A história acabou,
e ninguém furou
os próprios olhos
ou disse
“o resto é silêncio”.
Não, não há nenhuma
“waste land”
ou comédia
para alegrar os tolos.
Evitem fazer perguntas
tão maldosas.
As tvs continuam
ligadas. Então por que
o desespero?
Esqueceram, sim,
corpos
ao longo da praia.
Talvez quisessem
deixar algum sinal
ou enigma
para aqueles que nunca
passaram por aqui.
O latido dos cães
continua a incomodar?
Mas isso não é
nenhum enigma.
Há sempre alguém
que se distrai
com o latido de cães,
quando nada existe
para se escutar.
Cuidado, fizeram
um longo desvio à frente
e dizem que depois
da última curva
há um grande abismo.
Não, não e não.
Quantas vezes já disse:
não podemos olhar
para dentro dele.
Em breve chegaremos
lá, não no abismo, mas
depois dele, onde teremos
todo o tempo
do mundo e se acaso
nos cansarmos de fazer
nada, aí, sim,
poderemos ao menos
nos espancar
Não faça barulho
A minha dor adormeceu
Não quero despertá-la
A saudade foi na esquina
Enquanto a alma repousa
O coração serenou
E ouço a chuva que cai
Pise bem de mansinho
Minha noite está tranquila
O amanhã...não sei
Faça silêncio, por favor
Minha dor adormeceu...
(Nane-06/11/2014)
ho.mem: s. m. 1. BIOL. Mamífero da ordem dos primatas, do gênero Homo, da espécie Homo sapiens, de posição ereta e mãos preênseis, com atividade cerebral inteligente, e programado para produzir linguagem articulada. [http:// michaelis.uol.com.br]
ti.ju.bi.na: s. f. || (Bras.) nome vulgar de umapequena lagartixa. || (Ceará) (pop.) O mesmo que lambedeira. [http://www. aulete.com.br/tijubina]; etimologia: tupi: teiu-ombý [http:// michaelis.uol.com.br].
I.
o homem-tijubina tem um paladar exigente. não digere o ovo do óbvio. somente silêncios de pássaros lhe passam pelos gorgomilos. quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso. não tem idade, apenas caminha. às vezes para frente quase sempre para o fundo do poço que guarda as lágrimas dos seus ancestrais. é um composto de cortes de unhas-de-gato e incoerências.
II.
o homem-tijubina vive, se dobra, (des)dobra e recorta como um zine. camelô do calçadão da afonso cunha, pede esmolas como um poeta, é este azulejo quebrado nas tuas mãos. usa colar de hippie, pulseira de sementes antiquebranto, antiódio e antiamor ao mesmo passo e no mesmo cortar de pulso. é poeira invisível nos escombros do cassino caxiense, fôlego e asfixia nos vivemorres do rio itapecuru. na esperança de novos dilúvios, ele recita cecília: a chuva é a música de um poema de verlaine.
III.
para o homem-tijubina a infância é como uma ferida sem costura. diz que carrega suas corcundas hereditárias pela força das ladeiras de pedras brancas em que um dia correu com os bolsos cheios de pitombas, penas de passarinhos e sonhos acesos dentro de lampiões improvisados. quando tomado de ira do mundo, enfia o dedo no cu das não levezas do cotidiano e brada contra a apatia dos fantasmas bípedes.
IV.
as pernas do homem-tijubina têm o fracasso como farinha, como a massa de araruta que o alimenta no íntimo. − sem uma pedra na testa, quem pode fazer um bom festejo? ri das próprias perturbações com a dentada suja e incompleta sem muito se preocupar em entender os tipos híbridos que lhe compõem a natureza.
V.
o homem-tijubina descansa as dores no silêncio da caieira quando opera o carvão guardador dos suspiros do babaçu que desintegra os rancores no lábio do machado. como um índio, busca remédio nas ervas naturais do seu chão e na fé que se agarra como um ímã na moeda. balança a cabaça da paciência e se benze/cura pelo rabo da mucura, pelos tutanos das lendas que o ninam com uma voz de mãe.
VI.
rá. o homem-tijubina é um bicho-papão. rá. o homem-tijubina parece a velha iaiá. rá. o homem-tijubina não sabe assustar. sobrevive de soluços e atravessamentos debaixo da ponte caída que dá acesso a lugar nenhum. um gole humilhado de cachaça cuspida foi o que de melhor lhe aconteceu na última noite. para quem tem quase nada para viver um pedaço sovinado de qualquer morte já é um favor.
VII.
o homem-tijubina não confia na polícia. nos ladrões de meio de rua talvez um pouco de vez em quando com os olhos bem vivos. sobre aqueles moços(as) dos cartazes e santinhos diz que são moscas varejeiras prestadoras de culto às grandes merdas que fabricam nos gabinetes. tossir é tudo o que ainda pode este velho metade humano, metade lagarto colorido de meninice. aquela ternura escondida dentro do baú do arco-íris talvez até o melhore, mas a tosse do homem- tijubina de tão braba não cura nem com leite de uma jumenta dourada.
VIII.
o homem-tijubina é um poema desprezado, por todas as almas viventes e vegetativas, resistente às chuvas e às ferrugens que lhe explodem a pele. um dia ele nasce alguma coisa diferente e deverá outra vez aprender a viver com a indiferença dos homens, dos répteis e de todas as (sub) espécies por um ou vários deuses, darwins ou big-bangs inventados.
IX.
não pense no fim, pelo amor da essência divina dos jenipapos, palmitos e sapucaias. o homem-tijubina não morre nem com a faca treinada da dona lourdes fateira que talha, sem perdão, até mesmo os peixes nas paredes que o delírio humano-tijubínico sopra. sobrevive ao tempo como o grito de tiêta, como os desenhos e estátuas de areia de andré valente. enquanto mãe bida movimenta o quibano ao som dos capotes e bodes & outros cantores do sertão artesanal das malícias e gameleiras, o homem-tijubina renasce, reconstrói-se e abraça as suas raízes mais uma vez montado em um cavalo-de-palha.
X.
quando o homem-tijubina estende as chagas sobre a música das folhas, preenche-se de fôlego para seguir com o cabresto aramado da sandália bailarina de cipó, improvisando [à sombra das quatetês sibilinas] o escorpião de higuita. o sol lhe doura a tatuagem leite castanha de caju com o nome de uma lepidóptera mítica. um talo de coco numa mão, uma xícara de café de tucum na outra e cismas incontáveis sob o cofo sarapintado da pele.
XI.
de peito lagartístico e calangnóstico, vagamundeia o homem- tijubina com uma reza inaudível no meio da roça. avança sobre as bitolas do chão regado de urucum e comemora a luz que lhe atinge de prazer o seio mais delicado dos abrigos de sua fauna interior. o chicote de um sorriso cintila e brinca com os dados de mallarmé nos aclives/declives do mundo novo da sua teia enrodilhada de pedras.
*Texto vertido para o espanhol por Antonio Torres. Poema do livro homônimo O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia, Editora Patuá, 2019.
Navegar a minha alma errante.
Deixa-me em teus braços dourados
Fazer sorrir meu coração ferido.
Deixa-me teus lábios beijar
Para jamais os meus dentes alvejar.
Ao teu amor hei-de persistir,
Porque sei que um dia haverei de conseguir.
Deixa-me,
Deixa me sonhar, cantar e poder falar,
Deixa-me ao menos fotografar-te em silêncio
E dizer sem manha o que sinto perdidamente…
Deixa-me,
Deixa-me tocar-te sem desdenho
E mostrar como é o meu empenho
E a luta desenfreada para te conquistar.
Deixa-me,
Deixa-me levar-te á boda da morte
Para afogarmos juntos neste alvéolo sem sorte
O nosso sentimento sem norte…
Nos teus braços de amor
Quero sentir teu calor.
Emenda por favor
teu amor
E livra-me desta dor.
Avô eh! eh....
Avô eh! eh! eh!
Quando lá chegar...
Por favor de nos escrever
Quando lá chegar...
Por favor de nos escrever
Desde que partiste
A tua carta nunca chega
Nossa alma triste
Tanta dor carrega
Escreva nos por favor
Diz no com é por lá
Vivemos de tanto pavor
Embora um dia havemos de nos encontrar.
Mas aqui...
Aqui...
Ja nada é como era antes
Os galos ja não cantam na madrugada
Ja não há sentada familiar
Mussequês, ficou distante...
Avô eh! eh....
Avô eh! eh! eh!
Quando lá chegar...
Por favor de nos escrever
Quando lá chegar...
Por favor de nos escrever
Semana atras de semanas
Vou ao correios de Angola
abro todos os dias outlook
Vou se ver se alguma coisa mandas
E todos dias a mesma coisa nada!
Por favor abra uma conta no facebook!
Será!?
Será!?
Será que onde estas
Não tem nenhum programador?
Queria eu deixar te em paz
Mas Jura mesmo é tanta saudade e dor.
Mas aqui!
Aqui...
O legado continua
Formamos família
Como um dia formaste
Ensinamos os mais novos
Como um dia ensinaste
Mas a verdade...
A verdade é que...
Nada é mais, como era no seu tempo
O Cuanza reajustado
Perdeu o seu peso
E o dólar ingrato
Nos assediou e saiu ileso
Embora o seu silêncio perdura
Mas vive o seu amor vive em nós
Mesmo com tanta amargura
Nunca!
Mas nunca te vamos esquecer
Mas quando ao seu destino chegar...
Mas quando ao seu destino chegar...
Por favor de nos escrever...
By: Da Silva Engenheiro Poeta Pessoa in " A última Carta de Romeo para Julieta" aos 08/06/2019
Tempo é o que você tem de sobra
Com esse vagabundo interior
Que à parte do tempo vagueia
Ainda não entendo… Qual é a desse tempo?
Não fazes nada, e ainda quer mais um momento?
Eu que deveria clamar por isso!
Não você, que não sabe pelo que eu passo
Nessa vida lotada de risco!
Por que está sofrendo? Ainda não conseguiu seu falso tempo?
Aprenda a viver, gaste todos esses minutos
Gaste tudo, como se não lhe restasse mais segundos
Para pensar em ter esse tempo bobo, ou se afogar em lamento
Hey, já parou de falar de tempo?
Vamos lá, temos mais o que fazer
Recomponha seu senso
Espera, por quê não está se movendo?
Por favor, fale comigo
Nem que seja por um momento
Rápido, estou sem tempo
O que aconteceu? Está doendo?
Deixe dessa loucura
Não vê que está tomando meu tempo?
Ficando ai parado, no mais irritante silêncio
Meu deus, não sei mais se aguento
Ainda não entendeu? Já deu meu prazo!
Decepcionante esse seu amargo
Espero que tenha conseguido aquilo
Longe desse mundo em que se oferece ensejo
Longe disso tudo, junto com seu odiável tempo
Abro com a célebre frase de um autor bem mais conhecido do que eu certamente, terei a arte, não a sorte nem o sonho, de todavia o ser:
- "O amor,(o sal) o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte", assim é também a cultura gastronómica, um modelo aditivo básico, embora incontornável de sabores e criatividade, pedra, tesoura ou vulgar papel.
Sanciona-me na acção, a falta desta, a inalação controla-se facilmente, a inacção controla-me quotidianamente, a vulgaridade do sabor a chocolate mentolado e os olhos fechados da multidão que passa ao lado como se fosse peste ou eu posasse junto a um canário moribundo, que ninguém quer ver, com a possibilidade de estarmos mortos numa mesma gaiola onde passámos a juventude, condenados à prisão perpétua, sabe-se lá porquê ou porquanto, pedra, papel ou vidro martelado.
Enquanto e quando como, experimento diferentes tipos de sabores e alimentos, visito lugares que nunca antes visitei, assim como um cigarro javanês fumado sem nunca ter visitado Java.
Assim como um ensaísta publicitário, num ensaio clínico culinário e numa tentativa cíclica de aumentar o gosto argumentativo de um caldo insonso e duvidoso o qual designo de "Ratatui-Miscelânico", venho frequentemente sonhar e melhorar "a-gosto" o guisado da minha redacção, quiçá insossa, (pedra, tesoura ou papelão), num sótão em forma de lua meia ou caixa cheia de peixe de leilão, no mercado da lota.
Encontro-me amiúde, comigo próprio no primeiro piso da morada habitual, forrado a madeira e onde me sinto mais tranquilo e livre para confeccionar uma caldeirada de ideias como se fossem enguias frescas, talvez porque tenha os pés mais afastados da terra e da rua, do ruído e deixem assim pois, que lhes diga acerca do dia seguinte, nos meus condimentados sonhos de sonolento meio-acordado, meio adormecido.
De entrada principal ou como primeira prato da uma ementa de habituais opiniões e usando para a infusão um simples filtro de papel, o das antigas máquinas de café, lhes digo que o meu sonhar não é cego nem azedo, agridoce não é o caso e nem precisa de trela, apenas de estrelas-guias, deixai-o solto e ele voltará célebre, amanhã ou noutro dia, no meu caso a inspiração criativa volta normalmente dia a dia e sem eu dar por isso, depois da primeira ou das primeiras frases, não precisam ser minhas, mas sim de serem sentidas, podem ser de um jornal diário, um poema de outra qualquer pessoa ou desse mesmo“Pessoa” o qual me inspira incomensuravelmente, como podem ver.
Já não posso dizer o mesmo, "apenas por gozo", do prazer não intelectual mas físico, esse pode não voltar de igual forma e feitio quando é de sobremaneira intenso, então neste caso pode-se pegar, agarrar pela raiz do pelo ou pelos cornos e cotovelos ou então nos arrependeremos redondamente de não o voltar a sentir, imenso, intenso, do casaco ao colarinho, de o deixar escapulir, diluir, acabar, partir, mas na arte livramos-mos de sentir pequenos sentires, detalhados e infectos, como vis escaravelhos, pois se, até o príncipe da Dinamarca coxeava, era manco, maneta e velho, segundo o injurioso Hamlet, pedra, tesoura ou papel e o prazer que me dá ter uma real casa de noz numa árvore com casca grossa, como Reino o apelido de Helsinore Horácio, dito na íntegra e quase se parecendo com o cubículo onde habito, pedra-tesoura ou papel de jornal.
Também vos digo que não, não somos todos integrais, radicais primos, nem números inteiros, racionais como pode parecer, não pretendo dizer com isto que não sou um, dos inúmeros peixe do mar, não sou uma Perca ou um Cherne, não é preciso conseguir falar apenas por não possuir guelras, mas vontade para dizer que sou peixe da pior espécie, esquilo terrestre ou esqualo gigante marítimo, ingrato, pedante, monótono, desintegrado dos cardumes de galgos marítimos, desinteressante como o sabor a gasto ou Tainha, pois de que lhe serve a glória, inútil, feia Imperatriz dos vencidos peixe, segundo o discurso do Salmão aos domingos na missa-metade dos graduados Safios.
Pedra, papel.…ou tesoura, recomeço onde deixei e onde falo, sem limite, de mim para mim, seremos nós, os tolos e eu, neste mundo, as duas Mós, as mãos a tender o grão do trigo, a do Norte e a do Sul, nem razão têm Este e Oeste, Oriente e Ocidente, pedra… papel …acerca de tocar o céu-da-boca, isso não significa senti-lo, a crença lúcida é apenas uma espécie de especulo, assim um céu íntimo em si, o contorno dos limites e o fim do mundo.
Olho pela centésima vez na janela do sótão e sinto-me tão melancólico quanto é o sol no ocaso, aluviões e tormentas, adormecem os sonhos, esperança que ora acena e parte para parte incerta, ora me alicia nas sombras da floresta, ora desencadeia o que suponho vir do meu pretérito, alcançá-lo-ei enfim, em nova manhã encoberta, ao meio da vida, vivida incompleta, pedra, tesoura ou papel.
Os vizinhos recolhem-se, como habitualmente no interior das casas, outono é sinónimo de mudez e meditação e o silêncio é mestre a ensinar o calado e no contorno do limite da boca e dos olhos estão os sorrisos e é o que devemos aos outros, mesmo que franca seja a emoção do retorno e embora todos eles mereçam a nossa sincera simpatia, manifesta numa ubíqua, oblíqua face, mesmo os mais detestados das orelhas, os da outra casta mais ou menos pura, ou os da lua, os amordaçados na garganta, os postiços de cabelo e os de voz cheia de granadas, os da santa Tumba e Adão merecem a nossa especial atenção e crédito, embora possa ser duvidoso este, pedra, tesoura ou papel.
Acredito no silencio e no amor quando posso, pois, que na posse não há amor, nem silencio, impor é para o amor como o azeite para a água ou o vinho na comunhão das almas pouco puras, falso e vicioso, o som que faz um padre se o vaso é apenas vaso e a água apenas água e fraude, saque, cheque sem provisão e crédito mal parado, mau hálito a sardinha.
Sendo assim, bem melhor é imitar-me a mim, eu próprio, elevando a dois, multiplicado pelo melhor exponencial, o conhecimento que tenho a menos, eu mesmo, da minha genérica conta em acções fiduciárias, pedra, tesoura ou papel.
Acabei por descobrir, na melhor formula aritmética, que os poemas são o mais parecido com as tabelas periódicas, jamais estão completas, haverá sempre um elemento em falta, mais uma orbita complementar e um planeta, uma nova crença, será alcunha de átomo ao falar-se de “carência molecular” e uma falácia a escrita quando esta não é tão pura quanto os elementos, terra, ar ou água, pedra, tesoura ou papel.
O despojo, nas palavras pode ter reflexos por vezes anárquicos e complicados, a vontade de ter alma, o preço e peso certos, a má vontade expressiva, parece uma sucessora e não a precursora do apego e do excesso, a que se chama criação criativa e criatividade expressiva.
Olhos - tubarões, palavras - pescada, postas no prato e na mesa, talheres, copos em plástico.
pode ser dito assim, pedra, tesoura ou papel, mas também de outra estranha forma porque nada mais descabido, embora esclarecedor, o que o cabide diz para o juízo ou então, dito de forma diferente e assim, eu trago em mim, nas costas, um cabide em forma de outro e do que falta nesse, o juízo doado de um argonauta tirano de lata, podem ser expressões plásticas, elásticas e poéticas rotas, rasas ou apenas opiniões, nada mais que isso, apenas diferentes.
Considero-me o pior critico de mim próprio e sinto um desejo imediato de apagar e reescrever que não concretizo de cada vez que volto a ler e reler o que escrevo, apenas acrescento um aponto ou uma linha a uma opinião e assim penso que se torna mais fácil para outros deglutirem e continuar eu mastigando por simples habito embora não me agrade muito o sabor daquilo que disse e do que escrevo neste sótão de luz ténue, ao domingo .
Seja como for, sentado confortavelmente no pequeno salão superior, faço o que quero da vida e algo que a ciência ainda não provou possível, reduzo os tolos sorrisos doutros, nas expressões das silabas e nos modos com que descobrirão mil dos meus segredos, Mações livres e as cinzas às cinzas nos sagrados mortos, consequentemente invejo nos pássaros, comuns nos ares, o voar, aos sociais chãos desta feira bera na Terra, desprezo e digo de novo, pedra, tesoura, papel e vidro.
É através do tempo e vice-versa que se viaja no sonhar, como se fosse um diaporama, nas bainhas da visão e nas vagens da propulsão, o gosto é um detalhe generoso, fantasia de feijão frade verde…se a palavra em brasa não o queimar, sem se impor na cozinha, só tirar do fogão a tempo, e basta o dedal ideal, meio de sal a gosto para que não seja tão mau o discurso do Santo António aos peixinhos da horta, pedra, tesoura ou papel.
Somos de uma caricatura demasiado simples e ridícula de se ver, apegados ao querer profundo, dois em um, que não podem viver isolados, sob pena de nos tornarmos desinteressantes, empolgados ,assim como num guisado com falta de apuro, sem o necessário condimento e a audiência sentada à mesa, faminta supérflua, na mesa ou távola redonda, o poeta é o infinito em falta, finito mais o tolo que escreve, que a França, pedra, tesoura ou o papel da conta.
Reconhecer-me limitado, igual a actor pouco falado representando sempre a mesma face, é a melhor forma de me “ilimitar” para sempre já que a minha ambição maior é amanhecer na lua ou lá perto, no lado longo, magro, até lá cerro e estalo os dedos, vivo querendo e vou celebrando a sós cada momento, enquanto me lembro e enquanto relembrar meu rosto ao espelho e que é a mim que me revejo na lua ou no engano que deu erro, convenço-me que vejo convexo meu reflexo côncavo no espelho, pedra, tesoura ou papel.
Sociedade de falsos docentes, discípulos reprováveis, doentes e dementes, decentes falsos, pedantes... xeno-frásicos, é o dia da poesia, odeiem-na tanto agora que está morta, quanto a adorava outrora qualquer outro poeta vivo, no entanto não a leiam, por favor, a poesia vai nua em pleno sol do meio-dia, na rua …pobre denegrida e mal-entendida, pedra, tesoura ou papel.
A bem dizer, tudo o mais era cabido ser dito foi escrito(...) excepto a interrupção de facto do que digo, apenas por dizer como por exemplo, que acabou de me ser diagnosticada - chuva severa, quando afinal era seca, cronica e forte a minha tosse, não consigo fazer uma frase inteira sem convulsões nem diarreia, o terceiro estado da matéria…
A vida é uma serie de enganos à “Bollywood”, agora sim, sei o que é ser, enfim nada, o que supunha ser a lua sobre o ombro, apenas a sobra do mundo, apenso ao corpo.
Pois bem, sejamos inadequados a bem de todos, anormais quanto "pasta" picante, mas não nos odiemos uns aos outros, nem andemos de "candeias-às-avessas", emoção e idealismo andaram sempre juntos, tiraram-nos do escuro e do breu, o espaço é a nossa face final e não permitirá reduzirmos-nos à Terra negra mas reproduzir-nos-emos no universo à nossa frente, não nos odiemos uns aos outros, nem adiemos os astros no espaço, pois a nossa semelhança com ele é real, natural e antiga, ele cresce no que digo no que penso, embora a estupidez humana actual tenha atingido níveis considerados inultrapassáveis, pedra, tesoura ou papel.
O ser humano é tal como um amante estrábico, pois vê desigual para ambos os lados, mas pensa no que sente, pela raiz do cabelo, não a singularidade presente e frente a ele, junto ao nariz e ao queixo, nua e em pelo…pedra, tesoura ou normal papel.
Mas o derradeiro sábio será sempre aquele homem que, não sendo o meu caso, acorda já acordado, não havendo nenhum outro ou na falta de acordo entre todos os outros membros da academia do desassossego ...pedra, tesoura ou papel de jornal diário.
(excerto de "Do que era certo")
Jorge Santos 11/2019
http://namastibetpoems.blogspot.com
Ainda que não seja o último
Dê-me agora.
Entenda minha vontade
Por favor, não demora.
Dê-me você neste momento,
O horizonte nos contempla.
Faremos tudo muito intenso.
Beijo amor e sentimento.
Tenho em você mais do que um par.
Mais do que o silêncio no olhar.
Dê-me, pois tenho e não nego,
Um jeito único de te amar.
Dê-me, não quero mais esperar.
Dê-me teu olhar.
Dê-me o sonho.
Dê-me a vida e aceite tudo o que tenho pra te dar.
Dê-me teu amor pra eu te amar.
só por ora,
não,
Ouça essa música, é uma canção tão triste, mas pode se sentir protegida em meus braços, durma.
Sua respiração esta pesada, não chore, não derrame uma lágrima se quer, te ver triste me faz triste, mas essa noite serei forte por você.
Você me machuca com o jeito que trata a si mesma, você me faz mal com suas atitudes impulsivas, mas sei que te faço bem e curo suas feridas.
Então se acalme, apenas ouça o pulsar desse meu peito toda vez que me pede para que lhe faça bem enquanto eu não sei o que meu eu singular se refere quando olha pra nós no plural, mas depois vai embora por favor, não volte com sua confusão e com sua alma quebrada para minha casa pedir por socorro eu me cansei dessas noites.
Eu nunca quis te machucar, eu nunca quis me machucar. Mas por alguma razão, aconteceu isso tudo. Pensei que a nossa história seria diferente. Pra mim você era como uma luz que roubou minha atenção. Eu quero te abraçar, quero te segurar, quero te tocar. Por mais que eu queira ouvir a sua voz, por mais que eu queira que você fale comigo, você está sempre me olhando em silêncio. Isso me deixa feliz e ao mesmo tempo triste. Por que ainda te amo? Por que não consigo seguir em frente?
Aproxime-se de mim, por favor. Eu quero sentir o seu amor mais uma vez. Eu ainda quero te ver. Mas sei que a sua mente se nega de fazer isso. Ele fala para você se afastar de mim. Eu não posso ver os seus sentimentos. Não posso ler os seus pensamentos, mas sei que você está confuso. Se vai seguir de acordo com o seu coração ou com a sua mente.
Por favor, me deixa ficar perto de você. Quanto mais eu te quero, mais dói. Houve tudo entre nós. Erros, acusações, ciúmes, brigas e intrigas. Mesmo assim, eu não poderia te odiar. Eu queria te tocar gentilmente no seu rosto tão lindo. Eu posso escrever várias histórias e poesias sobre nós. Eu poderia compor várias músicas sobre você. Tudo por você. Se eu pudesse te observar o dia inteiro, todo dia, toda noite, seria ótimo. Eu poderia morrer feliz.
Mas sei que não posso fazer isso. Muitas coisas e muitas pessoas nos impedem de realizar nossos desejos. A questão é que não posso te segurar mais. Você está tão perto de mim e ao mesmo tempo tão longe. Não posso te alcançar e isso dói tanto em mim. Não posso segurar o seu coração. Não posso cuidar de você como antes. Essas coisas que surgem da minha cabeça, esses incômodos, esses pensamentos e as coisas que eu vejo todo dia. Quero chorar quando me sinto dessa forma. Sozinha, sentindo falta do seu amor, do seu abraço que me deixava segura e me deixava boa em questões de segundos.
Mas agora os nossos sentimentos não podem se tornar o mesmo. Eu ainda quero te ver. Ainda te quero, mas não consigo te tocar. Por que ainda te amo? Eis a questão. Tudo está se tornando impossível pra nós. Será que entende a minha agonia? Eu não me sinto bem sem você. Nunca mais vou me sentir bem.
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