Procurar tem que ser por amor letra

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Os Libertadores
Aqui vem a árvore, a árvore
da tormenta, a árvore do povo.

Da terra sobem os heróis
como as folhas pela seiva
e o vento despedaça as folhagens
de multidão rumorosa,
até que cai a semente
do pão outra vez na terra.


Aqui vem a árvore, a árvore
nutrida por mortos desnudos,
mortos açoitados e feridos,
mortos de rostos impossíveis,
empalados sobre uma lança,
esfarelados na fogueira,
decapitados pela acha,
esquartejados a cavalo,
crucificador na igreja.


Aqui vem a árvore, a árvore
cujas raízes estão vivas,
tirou salitre do martírio,
suas raízes comeram sangue,
extraiu lágrimas do céu:
elevou-as por suas ramagens,
repartiu-as em sua arquitetura.

Foram flores invisíveis,
às vezes flores enterradas,
outras vezes iluminaram
suas pétalas, como planetas.


E o homem recolheu nos ramos
as corolas endurecidas,
entregando-as de mão em mão
como magnólias ou romãs
e logo abriram a terra,
cresceram até as estrelas.


Esta é a árvore dos livres.

A árvore terra, a árvore nuvem.

A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.

Afoga-a a água tempestuosa
de nossa época noturna,
mas seu mastro faz balançar
o círculo de seu poder.


Outras vezes de novo tombam
os ramos partidos pela cólera,
e uma cinza ameaçadora
cobre a sua antiga majestade:
foi assim desde outros tempos,
assim saiu da agonia,
até que uma secreta razão,
uns braços inumeráveis,
o povo, guardou os fragmentos,
escondeu troncos invariáveis,
e seus lábios eram as folhas
de imensa árvore repartida,
disseminada em todas as partes,
caminhando com suas raízes.

Esta é a árvore, a árvore
do povo, de todos os povos
da liberdade, da luta.


Assoma-te a sua cabeleira:
toca seus raios renovados:
mergulha a não nas usinas
de onde seu fruto palpitante
propaga a sua luz de cada dia.

Levanta esta terra em tuas mãos,
participa deste esplendor,
toma o teu pão e a tua maçã,
teu coração e teu cavalo
e monta guarda na fronteira,
no limite de suas folhas.


Defende o fim de suas coroas,
comparte as noite hostis,
vigia o ciclo da aurora,
respira a altura estrelada,
amparando a árvore, a árvore
que cresce no meio da terra.



I
Cuahtémoc (1520)

Jovem irmão há tempos e tempos
nunca dormido, nunca consolado,
jovem estremecido nas trevas
metálicas do México, em tua mão
recebo o dom de tua pátria nua.


Nela nasce e cresce o teu sorriso,
uma linha entre a luz e o ouro.


São os teus lábios unidos pela morte
o mais puro silêncio sepultado.


O manancial submerso
sob todas as bocas da terra.


Ouviste, ouviste, acaso,
no Anáhuac longínquo,
um rumo de água, um vento
de primavera destroçada?
Era talvez a palavra do cedro.

Era uma onda branca de Acapulco.


Porém na noite fugia
teu coração como um cervo
até as fronteiras, confuso,
entre os monumentos sanguinários,
sob a lua soçobrante.


Toda a sombra preparava sombra.

Era a terra uma escura cozinha,
pedra e caldeira, vapor negro,
muro sem nome, injúria
que te chamava dos noturnos
metais de tua pátria.


Mas não há sombra em teu estandarte.


Chegou a hora assinalada
e ao meio de teu povo
és pão e raiz, lança e estrela.

O invasor sustou o passo.

Não é Moctezuma extinto
como taça morta,
é o relâmpago e sua armadura,
a pluma de Quetzal, a flor do povo,
o elmo aceso entre as naus.


Mas a mão dura como séculos de pedra
apertou a tua garganta.
Não fecharam
o teu sorriso, não fizeram
tombar os grãos do milho
secreto, e te arrastaram,
vencedor cativo,
pelas distâncias de teu reino,
entre cascatas e cadeias,
sobre areais e aguilhões,
como uma coluna incessante,

como testemunha dolorosa,
até que uma corda enredou
a coluna da pureza
e dependurou o corpo suspenso
sobre a terra desgraçada.




II
Frei Bartolomé de las Casas

A gente pensa, ao chegar a casa, à noite, cansado,
entre a névoa fria de maio, à saída
do sindicato (na esmiuçada
luta de cada dia, a estação
chuvosa que goteja do beiral, o surdo
latejar do constante sofrimento),
esta ressurreição mascarada,
astuta, envilecida,
do encadeador, da cadeia,
e quando sobe a angústia
até a fechadura para entrar contigo,
surge uma luz antiga, suave e dura
como um metal, como um astro enterrado.

Padre Bartolomé, obrigado por esta
dádiva da crua meia-noite,
graças porque teu fio foi invencível:
pôde morrer massacrado, comido
pelo cão de fauces iracundas,
pôde ficar na cinza
da casa incendiada,
pôde cortá-lo a lâmina fria
do assassino inumerável
ou o ódio administrado com sorrisos
(a traição do próximo cruzado),
a mentira arremessada na janela.

Pôde morrer o fio cristalino,
a irredutível transparência
convertida em ação, em combatente
e despenhado aço de cascata.

Poucas vidas dá o homem como a tua, poucas
sombras há na árvore como a tua sombra, nela
todas as brasas vivas do continente acodem,
todas as arrasadas condições, a ferida
do mutilado, as aldeias
exterminadas, tudo sob a tua sombra
renasce, do limite
da agonia fundas a esperança.

Padre, foi sorte para o homem e sua espécie
que tivesses chegado à plantação,
que mordesses os negros cereais
do crime, que bebesses cada dia a taça da cólera.

Quem te pôs, mortal despido,
entre os dentes da fúria?
Como assomaram outros olhos,
de outro metal, quando nascias?

Como se cruzam os fermentos
na oculta farinha humana
para que o teu grão imutável
se amassasse no pão do mundo?

Eras a realidade entre fantasmas
encarniçados, eras
a eternidade da ternura
sobre a rajada do castigo.

De combate em combate a tua esperança
converteu-se em precisas ferramentas:
a solitária luta fez-se um ramo,
o pranto inútil agrupou-se em partido.


Não valeu a piedade.
Quando mostravas
tuas colunas, tua nave amparadora,
tua mão para abençoar, teu manto,
o inimigo pisoteou as lágrimas,
e violou a cor da açucena.

Não valeu a piedade alta e vazia
como uma catedral abandonada.

Foi a tua invencível decisão, a ativa
resistência, o coração armado.


Foi a razão o teu material titânico.


Foi flor organizada a tua estrutura.


De cima quiseram contemplar-te
(de sua altura) os conquistadores,
apoiando-se como sombras de pedra
sobre seus espadões, esmagando
com os seus sarcásticos escarros
as terras de tua iniciativa,
dizendo: “Ali vai o agitador”,
mentindo: “Foi pago
pelos estrangeiros”,
“Não tem pátria”, “Traidor”,
mas a tua prédica não era
frágil minuto, peregrina
pauta, relógio do passageiro.

Tua madeira era bosque combatido,
ferro em sua cepa natural, oculto
a toda luz pela terra florida,
e ainda mais, era mais fundo:
na unidade do tempo, no transcurso
da vida, era a tua mão antecipada
estrela zodiacal, signo do povo.

Hoje, padre, entra nesta casa comigo.


Vou mostrar-te as cartas, o tormento
de meu povo, do homem perseguido.

Vou mostrar-te as dores antigas.

E para não tombar, para firmar-me
sobre a terra, continuar lutando,
deixa em meu coração o vinho errante
e o pão implacável de tua doçura.




III
Avançando nas trevas do Chile

Espanha entrou até o sul do mundo.
Opressos
exploraram a neve os altos espanhóis.

O Bío-Bío, grave rio,
disse à Espanha: “Pára”,
o bosque de maitenes cujos fios
verdes pendem como um tremor de chuva
disse à Espanha: “Não prossigas”.
O lariço,
titã das fronteiras silenciosas,
disse em um trovão a sua palavra.

Mas até o fundo da pátria minha,
punho e punhal, o invasor chegava.

Pelo rio Imperial, em cuja margem
meu coração amanheceu no trevo,
entrava o furacão pela manhã.

O largo leito das garças seguia
das ilhas para o mar furioso,
cheio como taça interminável,
entre as margens do cristal sombrio.

Em suas barrancas eriçava o pólen
uma alfombra de estames turbulentos
e desde o mar a brisa comovia
todas as sílabas da primavera.

A aveleira da Araucania
embandeirava fogueiras e racimos
lá onde a chuva deslizava
sobre o agrupamento da pureza.

Tudo estava enredado de fragrâncias,
empapado de luz verde e chuvosa,
e cada matagal de odor amargo
era um ramo profundo do inverno
ou uma extraviada formação marinha
ainda cheia do orvalho oceânico.

Dos barrancos se erguiam
torres de pássaros e plumas
e um ventarrão de solidão sonora,
enquanto na molhada intimidade
entre as cabeleiras encrespadas
do feto gigante, era a topa-topa florescida
um rosário de beijos amarelos.




IV
Surgem os homens
Ali germinavam os toquis.

Daquelas negras umidades,
daquela chuva fermentada
na taça dos vulcões
saíram os peitos augustos,
as claras flechas vegetais,
os dentes de pedra selvagem,
os pés de estaca inapelável,
a glacial unidade da água.


O Arauco foi um útero frio,
feito de feridas, massacrado
pelo ultraje, concebido
entre os ásperos espinhos,
arranhado nos montões de neve,
protegido pelas serpentes.


Assim a terra extraiu o homem.


Cresceu como fortaleza.

Nasceu do sangue agredido, eriçou a cabeleira
como um pequeno puma rubro
e os olhos de pedra dura
brilhavam na matéria
como fulgores implacáveis
saídos da caçada.




V
Toqui Caupolicán

Na cepa secreta do raulí
cresceu Caupolicán, torso e tormenta,
e quando contra as armas invasoras
seu povo dirigiu,
andou a árvore,
andou a árvore dura da pátria.

Os invasores viram a folhagem
mover-se ao meio da bruma verde,
os grossos ramos e as vestimentas
de inumeráveis folhas e ameaças,
o tronco terrenal fazer-se povo,
as raízes saírem do território.


Souberam que a hora havia soado
para o relógio da vida e da morte.


Outras árvores vieram com ele.


Toda a raça de ramagens rubras,
todas as tranças da dor silvestre,
todo o nó do ódio da madeira.

Caupolicán, sua máscara de lianas
defronta o invasor perdido:
não é a pintada pluma imperadora,
não é o trono das plantas olorosas,
não é o reluzente colar do sacerdote,
não é a luva nem o príncipe dourado:
um é o rosto da mata,
uma carranca de acácias arrasadas,
uma figura ferida pela chuva,
uma cabeça com trepadeiras.


De Caupolicán, o toqui, é o olhar
fundido, de universo montanhoso,
os olhos implacáveis da terra,
e as faces do titã são muros
escalados por raios e raízes.




VI
A Guerra Pátria

A Araucania estrangulou o cantar
da rosa no cântaro, cortou
os fios
no tear da noiva de prata.

Desceu a ilustre Machi de sua escada,
e nos rios dispersos, na argila,
sob a copa hirsuta
das araucárias guerreiras,
foi nascendo o clamor dos sinos
enterrados.
A mãe da guerra
saltou as pedras doces do arroio,
deu asilo à família pescadora,
e o noivo lavrador beijou as pedras
antes que voassem à ferida.


Atrás do rosto florestal do toqui
Arauco amontoava a sua defesa:
eram olhos e lanças, multidões
espessas de silêncio e ameaça,
cinturas indeléveis, altaneiras
mãos escuras, punhos congregados.


Atrás do alto toqui, a montanha,
e na montanha, o inumerável Arauco.


Arauco era o rumor da água errante.


Arauco era o silêncio tenebroso.


O mensageiro em sua mão cortada
ia juntando as gotas de Arauco.


Arauco foi a onda da guerra.

Arauco os incêdios da noite.


Tudo fervia atrás do toqui augusto,
e quando ele avançou, foram trevas,
areias, bosques, terras,
unânimes fogueiras, furacões,
aparição fosfórica de pumas.




VII
O empalado

Caupolicán porém chegou ao tormento.


Ensartado na lança do suplício,
entrou na morte lenta das árvores.


Arauco redobrou o seu ataque verde,
sentiu nas sombras o calafrio,
cravou na terra a cabeça,
ocultou-se com as suas dores.

O toqui dormia na morte.

Um ruído de ferro chegava
do acampamento, uma coroa
de gargalhadas estrangeiras,
e junto aos bosques enlutados
somente a noite palpitava.


Não era a dor, a dentada
do vulcão aberto nas vísceras,
era só um sonho da mata,
a árvore que sangrava.


Nas entranhas de minha pátria
entrava a ponta assassina
ferindo as terras sagradas.

O sangue queimante tombava
de silêncio em silêncio, abaixo,
até onde a semente está
à espera da primavera.


Mais fundo tombava este sangue.


Caía sobre as raízes.


Caía sobre os mortos.


Sobre os que iam nascer.



VIII
Lautaro (1550)

O sangue toca um corredor de quartzo.

A pedra cresce onde a gota tomba.

Assim nasce Lautaro da pedra.




IX
Educação do cacique

Lautaro era uma flecha delgada.

Elástico e azul foi o nosso pai.

Foi sua primeira idade só silêncio.

Sua adolescência foi domínio.

Sua juventude foi um vento dirigido.

Preparou-se como uma longa lança.

Acostumou os pés nas cachoeiras.

Educou a cabeça nos espinhos.

Executou as provas do guanaco.

Viveu pelos covis da neve.

Espreitou as águias comendo.

Arranhou os segredos do penhasco.

Entreteve as pétalas do fogo.

Amamentou-se de primavera fria.

Queimou-se nas gargantas infernais.

Foi caçador entre as aves cruéis.

Tingiram-se de vitórias as suas mãos.

Leu as agressões da noite.


Amparou o desmoronamento do enxofre.


Se fez velocidade, luz repentina.


Tomou as vagarezas do outono.

Trabalhou nas guaridas invisíveis.

Dormiu sobre os lençóis da nevasca.

Igualou-se à conduta das flechas.

Bebeu o sangue agreste dos caminhos.

Arrebatou o tesouro das ondas.

Se fez ameaça como um deus sombrio.

Comeu em cada cozinha de seu povo.

Aprendeu o alfabeto do relâmpago.

Farejou as cinzas espalhadas.

Envolveu o coração de peles negras.

Decifrou o fio espiral do fumo.

Construiu-se de fibras taciturnas.

Azeitou-se como a alma da azeitona.

Fez-se cristal de transparência dura.

Estudou para vento furacão.

Combateu-se até apagar o sangue.


E só então foi digno de seu povo.




X
Lautaro entre invasores

Entrou na casa de Valdivia.

Acompanhou-o como a luz.

Dormiu coberto de punhais.

Viu seu próprio sangue derramado,
seus próprios olhos esmagados,
e dormindo nos pesebres
acumulou o seu poderio.

Não se mexiam os seus cabelos
examinando os tormentos:
olhava para além do ar
para a sua raça debulhada.


Velou aos pés de Valdivia.


Ouviu o seu sonho carniceiro
crescer na noite sombria
como uma coluna implacável.

Adivinhou esses sonhos.

Pôde levantar a dourada
barba do capitão adormecido,
cortar o sonho na garganta,
mas aprendeu - velando sombras -
a lei noturna do horário.


Marchou de dia acariciando
os cavalos de pele molhada
que se iam afundando em sua pátria.

Adivinhou esses cavalos.

Marchou com os deuses fechados.

Adivinhou as armaduras.

Foi testemunha das batalhas,
enquanto entrava passo a passo
no fogo da Araucania.




XI
Lautaro contra o Centauro (1554)

Atacou então Lautaro de onda em onda.

Disciplinou as sombras araucanas:
antes entrou o punhal castelhano
em pleno peito da massa vermelha.

Hoje foi semeada a guerrilha
sob todas as alas florestais,
de pedra em pedra e de vau em vau,
olhando dos copihues,
espreitando sob as rochas.

Valdivia quis voltar.

Era tarde.

Chegou Lautaro com traje de relâmpago.

Seguiu o conquistador aflito.

Abriu caminho nas úmidas brenhas
do crepúsculo austral.

Chegou Lautaro
num galope negro de cavalos.


A fadiga e a morte conduziam
a tropa de Valdivia na folhagem.


Aproximavam-se as lanças de Lautaro.

Entre os mortos e as folhas ia
como em um túnel Pedro de Valdivia.


Nas trevas chegava Lautaro.


Pensou na Extremadura pedregosa,
o dourado azeite, a cozinha,
o jasmim deixados em ultramar.


Reconheceu o uivo de Lautaro.


As ovelhas, as duras granjas,
os muros brancos, a tarde extremenha.


Sobreveio a noite de Lautaro.


Seus capitães cambaleavam ébrios
de sangue, noite e chuva para o regresso.


Palpitavam as flechas de Lautaro.


De queda em queda a capitania
ia retrocedendo dessangrada.


Já se tocava o peito de Lautaro.


Valdivia viu chegar a luz, a aurora,
talvez a vida, o mar.

Era Lautaro.




XII
O coração de Pedro de Valdivia

Levamos Valdivia para debaixo da árvore.


Era um azul de chuva, a manhã com frios
filamentos de sol desfiado.


Toda a glória, o trovão,
turbulentos jaziam
num montão de aço ferido.

A caneleira erguia a sua linguagem
num fulgor de vaga-lume molhado
em toda a sua pomposa monarquia.


Trouxemos pano e cântaro, tecidos
grossos como as tranças conjugais,
jóias como amêndoas da lua,
e os tambores que encheram
a Araucania com sua luz de couro.

Enchemos as vasilhas de doçura
e dançamos calcando os torrões
feitos da nossa própria estirpe escura.


Depois calcamos o rosto inimigo.

Depois cortamos o valente pescoço.


Que bonito foi o sangue do verdugo
repartido entre nós como romã
enquanto ainda vivo ardia.

Depois, no peito enfiamos uma lança
e o coração alado como os pássaros
entregamos à árvore araucana.

Subiu um rumor de sangue até a copa.


Então, da terra
feita de nossos corpos, nasceu o canto
da guerra, do sol, das colheitas.

Então repartimos o coração sangrento.

Eu meti os dentes naquela corola
cumprindo o rito da terra:
“Dá-me o teu frio, estrangeiro malvado.

Dá-me o teu valor de grande tigre.

Dá-me em teu sangue a tua cólera.

Dá-me a tua morte para que me siga
e leve o espanto até os teus.

Dá-me a guerra que trouxeste.

Dá-me o teu cavalo e os teus olhos.

Dá-me a treva retorcida.

Dá-me a mãe do milho.

Dá-me a pátria sem espinhos.

Dá-me a paz vencedora.

Dá-me o ar onde respira
a caneleira, senhora florida”.




XIII
A dilatada guerra

Depois, terra e oceanos, cidades,
naves e livros, conheceis a história
que desde o território rude
como uma pedra lançada
encheu de pétalas azuis
as profundezas do tempo.

Três séculos esteve lutando
a raça guerreira do carvalho,
trezentos anos a centelha
de Arauco povoou de cinzas
as cavidades imperiais.

Três séculos tombaram feridas
as camisas do capitão,
trezentos anos despovoaram
os arados e as colméias,
trezentos anos açoitaram
cada nome de invasor,
três séculos rasgaram a pele
das águias agressoras,
trezentos anos enterraram
como a boca do oceano
tetos e ossos, armaduras,
torres e títulos dourados.

Às esporas iracundas
das guitarras adornadas
chegou um galope de cavalos
e uma tormenta de cinza.

As naus voltaram ao duro
território, nasceram espigas,
cresceram olhos espanhóis
no reinado da chuva,
mas Arauco desceu as telhas,
moeu as pedras, abateu
os paredões e as vides,
as vontades e as roupas.

Vede como tombam na terra
os filhos ásperos do ódio,
Villagras, Mendozas, Reinosos,
Reyes, Morales, Alderetes,
rolaram para o fundo branco
das Américas glaciais.

E na noite do tempo augusto
caiu Imperial, caiu Santiago,
caiu Villarrica na neve,
rolou Valdivia pelo rio,
até que o reinado fluvial
do Bío-Bío se deteve
sobre os séculos do sangue
e estabeleceu a liberdade
nas areias dessangradas.




XIV
(Intermédio)
A Colônia cobre nossas terras (1)

Quando a espada descansou e os filhos
da Espanha dura, como espectros,
dos reinos e das selvas, até o trono,
montanhas de papel com uivos
enviaram ao monarca ensimesmado:
depois que na viela de Toledo
nu do Guadalquivir na esquina,
toda a história passou de mão em mão,
e pela boca dos portos andou
a mecha esfarrapada
dos conquistadores espectrais,
e os últimos mortos foram postos
dentro do ataúde, com procissões,
nas igrejas construídas com sangue,
a lei chegou ao mundo dos rios
e vejo o mercador com a sua bolsinha.


Ficou escura a extensão matutina,
roupas e teias de aranha propagaram
a escuridão, a tentação, o fogo
do diabo nas habitações.

Uma vela iluminou a vasta América
cheia de nevadas e favos de mel,
e por séculos falou ao homem em voz baixa,
tossiu trotando pelas ruazinhas,
persignou-se perseguindo centavos.

Chegou o nativo às ruas do mundo,
extenuado, levando as valas,
suspirando de amor entre as cruzes,
buscando o escondido
caminho da vida
sob a mesa da sacristia.

A cidade no esperma do cerol
fermentou, sob os panos negros,
e das raspaduras da cera
elaborou maçãs infernais.


América, a copa de acaju,
foi então um crepúsculo de chagas,
um lazareto alagado de sombras,
e no antigo espaço do frescor
cresceu a reverência do verme.

O ouro ergueu sobre as pústulas
maciças flores, heras silenciosas,
edifícios de sombra submersa.


Uma mulher coletava pus,
e o copo de substância
bebeu em honra do céu cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos.


Nas sombras do dia tenebroso
o mercador fez o seu reino
apenas iluminado pela fogueira
em que o herege, retorcido,
feito fagulhas, recebia
sua colheradazinha de Cristo.


No dia seguinte as senhoras,
ajeitando as entretelas,
relembravam o corpo enlouquecido,
atacado e devorado pelo jogo,
enquanto o aguazil examinava
a minúscula mancha do queimado,
graxa, cinza, sangue,
que os cachorros lambiam.




XV
As fazendas (2)

A terra andava entre os morgadios
de dobrão em dobrão, desconhecida,
massa de aparições e conventos,
até que toda a azul geografia
dividiu-se em fazendas e encomiendas.

Pela espaço morto andava a chaga
do mestiço e o chicote
do reinol e do negreiro.

O nativo era um espectro dessangrado
que recolhia as migalhas,
até que estas reunidas
dessem para comprar um título
pintado de letras douradas.


E no carnaval tenebroso
saía vestido de conde,
orgulhoso entre outros mendigos,
com um bastãozinho de prata.




XVI
Os novos proprietários (3)

Estancou-se assim o tempo na cisterna.

O homem dominado nas vazias
encruzilhadas, pedra do castelo,
tinta do tribunal, povoou de bocas
a cerrada cidade americana.

Quando já era a paz e a concórdia,
hospital e vice-rei, quando Arellano,
Rojas, Tapia, Castillo, Núnez, Pérez,
Rosales, López, Jorquera, Bermúdez,
os últimos soldados de Castela,
envelheceram atrás da Audiência,
tombaram.
mortos debaixo do cartapácio,
foram com os seus piolhos para a tumba
onde fiaram sonho
das adegas imperiais, quando
era a ratazana o único perigo
das terras encarniçadas,
assomou-se o biscainho com um saco,
o Errázuriz com suas alpargatas,
o Fernández Larraín a vender vedas,
o Aldunate da baeta,
o Eyzaguirre, rei das meias.


Entraram todos como povo faminto,
fugindo das pancadas, do policia.

Logo, de camiseta em camiseta,
expulsaram o conquistador
e estabeleceram a conquista
do armazém de importados.

Aí adquiriram o orgulho
comprado no mercado negro.

Apropriaram-se
das fazendas, chicotes, escravos,
catecismos, camisarias,
cepos, cortiços, bordéis,
e a tudo isto denominaram
santa cultura ocidental.




XVII
Comuneiros do Socorro (1781)

Foi Manuela Beltrán (quando rasgou os bandos
do opressor e gritou: “Morram os déspotas”)
quem derramou os novos cereais
por nossa terra.

Foi em Nova Granada, na Vila
do Socorro.
Os comuneiros
balançaram o vice-reinado
num eclipse precursor.


Uniram-se contra os estancos,
contra o sujo privilégio,
e levantaram a cartilha
das petições foreiras.

Uniram-se com armas e pedras,
milícia e mulheres, o povo, ordem e fúria, encaminhados
para Bogotá e sua linhagem.


Aí desceu o arcebispo.

“Tereis todos os vossos direitos,
em nome de Deus vos, prometo.


O povo juntou-se na praça.


O arcebispo celebrou
uma missa e um juramento.


Ele era a paz justiceira.


“Guardai as armas.
Cada um
em sua casa”, sentenciou.


Os comuneiros entregaram
as armas.
Em Bogotá
festejaram o arcebispo,
celebraram a sua traição,
seu perjúrio, na missa pérfida,
e negaram pão e direito.


Fuzilaram os caudilhos,
repartiram entre os povoados
suas cabeças recém-cortadas,
com as bênçãos do prelado
e os bailes do vice-reinado.


Primeiras, pesadas sementes
lançadas às regiões,
permaneceis, cegas estátuas,
chocando na noite hostil
a insurreição das espigas.




XVIII Tupac-Amaru (1781)

Condorcanqui Tupac-Amaru,
sábio senhor, pai justo,
viste subir a Tungasuca
a primavera desolada
dos patamares andinos
e, com ela, sal e desdita,
iniqüidades e tormentos.


Senhor Inca, pai cacique,
tudo em teus olhos se guardava
como num cofre calcinado
pelo amor e pela tristeza.

O índio te mostrou o ombro
no qual as novas mordidas
brilhavam nas cicatrizes
de outros castigos apagados,
e era um ombro e outro ombro,
todas as alturas sacudidas
pelas cascatas do soluço.


Era um soluço e outro soluço.

Até que armaste a jornada
dos povos cor de terra,
recolheste o pranto em tua taça
e endureceste as veredas.


Chegou o pai das montanhas,
a pólvora levantou caminhos,
e às aldeias humilhadas
chegou o pai da batalha.

Jogaram a manta na poeira,
uniram-se os velhos punhais,
e o búzio matinho
chamou os vínculos dispersos.

Contra a pedra sanguinária,
contra a inércia desgraçada,
contra o metal das correntes.

Porém dividiram o teu povo,
e irmão contra o irmão
mandaram, até que tombaram
as pedras da tua fortaleza.

Ataram os teus membros cansados
a quatro cavalos raivosos
e esquartejaram a luz
do amanhecer implacável.


Tupac-Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o sol do mar
uma luz desaparecida.

As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac germina na terra.




XIX
América insurrecta (1800)

Nossa terra, vasta terra, soledades,
povoou-se de rumores, braços, bocas.

Uma calada sílaba ia ardendo,
congregando a rosa clandestina,
até as campinas trepidarem
recobertas de metais e galopes.


Foi dura a verdade como um arado.


Rompeu a terra, estabeleceu o desejo,
mergulhou suas propagandas germinais
e nasceu na secreta primavera.

Foi silenciada a sua flor, foi rechaçada
sua reunião de luz, foi combatido
o fermento coletivo, o beijo
das bandeiras escondidas,
porém surgiu derrubando as paredes,
apartando os cárceres do chão.


O povo escuro foi a sua taça,
recebeu a substância rechaçada,
propagando-a aos limites marítimos,
repisando-a em almofarizes indomáveis.

E saiu com as páginas feridas
e com a primavera do caminho.

Hora de ontem, hora do meio-dia,
hora de hoje outra vez, hora esperada
entre o minuto morto e o que nasce
na eriçada idade da mentira.


Pátria, nasceste dos lenhadores,
de filhos sem batizar, de carpinteiros,
dos que deram qual uma ave estranha
uma gota de sangue voador
e hoje duramente nascerás de novo,
lá onde o traidor e o carcereiro
te acreditam submersa para sempre.


Hoje do povo nascerás como outrora.


Hoje sairás do carvão e do orvalho.

Hoje chegarás a sacudir as portas
com mãos maltratadas, com pedaços
de alma sobrevivente, com racimos
de olhares que a morte não extinguiu,
com ferramentas agrestes
armadas entre farrapos.




XX
Bernardo O'Higgins Riquelme (1810)

O'Higgins, para celebrar-te
à meia-luz há que iluminar a sala.

À meia-luz do sul no outono
com tremor infinito de álamos.


És o Chile, entre patriarca e cavaleiro,
és um poncho de província, um menino
que ainda não sabe o seu nome,
um menino férreo e tímido na escola,
um rapazinho triste de província.

Em Santiago te sentes mal, te espiam
a roupa negra que te sobra,
e ao cruzar-te a fita, a bandeira
da pátria que nos fizeste,
tinha um cheiro de joio matutino
para o teu peito de estátua campestre.


Jovem, teu professor Inverno te acostumou à chuva
e na universidade das ruas de Londres
a névoa e a pobreza te outorgaram seus títulos
e um elegante pobre, errante incêndio
da nossa liberdade,
te deu conselhos de águia prudente
e te embarcou na história.


“Como se chama o senhor?”, riam
os “cavalheiros” de Santiago:
filho de amor, de uma noite de inverno,
a tua condição de abandonado
te construiu com argamassa agreste,
com seriedade de casa ou de madeira
trabalhada no sul, definitiva,
Tudo o tempo muda, menos o teu rosto.


És, O'Higgins, relógio invariável
com uma só hora em tua cândida esfera:
a hora do Chile, o único minuto
que permanece no horário vermelho
da dignidade combatente.

Assim o mesmo estarás entre os móveis
de goiabeira e as filhas de Santiago
ou em Rancagua rodeado de morte e pólvora.


És o mesmo sólido retrato
de quem não tem pai, só tem a pátria
de quem não tem noiva, só tem aquela
terra de flor de laranjeira
que te conquistará a artilharia.


Te vejo no Peru escrevendo cartas.

Não há desterrado igual, maior exílio.

É toda a província desterrada.


O Chile iluminou-se como um salão
quando não estavas.
Em dissipação
um rigodão de ricos substitui
a tua disciplina de soldado ascético,
e a pátria ganhada pelo teu sangue
sem ti foi governada como um baile
que o povo faminto espia de fora.


Já não podias entrar na festa
com suor, sangue e pó de Rancagua.

Não teria sido de bom-tom
para os cavalheiros capitais.

Teria contigo entrado o caminho,
um cheiro de suor de cavalos,
o cheiro da pátria na primavera.


Não podias estar neste baile.

A tua festa foi um castelo de explosões.

O teu baile desgrenhado é a contenda.


Teu fim de festa foi a sacudidela
da derrota, o porvir aziago
para Mendoza, com a pátria nos braços.


Olha agora no mapa para baixo,
para o delgado cinturão do Chile
e coloca na neve soldadinhos,
jovens pensativos na areia,
sapadores que brilham e se apagam.


Fecha os olhos, dorme, sonha um pouco,
o único sonho, o único que volta
a teu coração: uma bandeira
de três cores no sul, a chuva
caindo, o sol rural sobre a tua terra,
os disparos do povo em rebeldia
e duas ou três palavras tuas quando
fossem estritamente necessárias.

Se sonhas, o teu sonho hoje está cumprido.

Sonha-o, pelo menos, em teu túmulo.

Nada mais saibas porque, como antes,
depois das batalhas vitoriosas,
dançam os señoritos no palácio
e o mesmo rosto faminto
espia da sombra das ruas.


Porém herdamos a tua firmeza,
o teu inalterável coração calado,
a tua indestrutível posição paterna,
e tu, entre a avalancha cegadora
de hussardos do passado, entre os ágeis
uniformes azuis e dourados,
estás hoje conosco, és nosso,
pai do povo, imutável soldado.




XXI
San Martín (1810)

Andei, San Martín, tanto e de lugar em lugar,
que descartei o teu traje, tuas esporas, sabia
que algum dia, andando pelos caminhos
feitos para voltar, nos finais
de cordilheira, na pureza
da intempérie que de ti herdamos,
acabaríamos nos vendo de um dia para outro.


Custa distinguir entre os nós
de ceibo, entre raízes,
entre veredas assinalar o teu rosto,
entre as aves distinguir o teu olhar,
encontrar no ar a tua existência.


És a terra que nos deste, um ramo
de cedrón que fere com o seu aroma,
que não sabemos onde está, de onde
chega o seu odor de pátria às pradarias.

Te galopamos, San Martín, saímos
amanhecendo a percorrer o teu corpo,
respiramos hectares de tua sombra,
fazemos fogo sobre a tua estatura.


És extenso entre todos os heróis.


Outros foram de planície em planície,
de encruzilhada em torvelinho,
tu foste construído de confins
e começamos a ver a tua geografia,
tua planície final, teu território.


Enquanto amadurecido o tempo dissemina
como água eterna os torrões
do rancor, os afiados
abraços da fogueira,
mais terreno compreendes, mais sementes
de tua tranqüilidade povoam os montes,
mais extensão dás à primavera.


O homem que constrói é logo o fumo
do que construiu, ninguém renasce
de seu próprio braseiro consumido:
de sua diminuição fez estoque, caiu quando somente teve o pó.


Tu abarcaste na morte mais espaço.


Tua morte foi um silêncio de celeiro.

Passou a vida tua, e outras vidas,
portas se abriram, muros se ergueram,
e a espiga saiu para ser derramada.


San Martín, outros capitães
fulguram mais do que tu, levam bordados
seus pâmpanos de sol fosforescente,
outros ainda falam como cachoeiras,
mas não há nenhum como tu, vestido
de terra e solidão, de neve e trevo.

Te encontramos no retorno do rio,
te saudamos na forma agrária
da Tucumania florida,
e nos caminhos, a cavalo,
te cruzamos correndo e levantando
a tua vestimenta, pai poeirento.


Hoje o sol e a lua, o vento grande
maduram a tua estirpe, a tua singela
composição: a tua verdade era
verdade de terra, arenoso amassilho,
estável como o pão, lâmina fresca
de argila e cereais, pampa puro.


E assim és até hoje, lua e galope,
estação de soldados, intempérie,
por onde vamos mais uma vez guerreando,
caminhando entre vilas e planuras,
instituindo a tua verdade terrestre,
esparzindo o teu germe espaçoso,
abanando as páginas do trigo.


Assim seja, e que não nos acompanhe
a paz até que entremos
depois dos combates em teu corpo
e durma a medida que tivemos
em tua extensão de paz germinadora.




XXII
Mina (1817)

Mina, das vertentes montanhosas
chegaste como um fio de água dura.

Espanha clara, Espanha transparente
te pariu entre dores, indomável,
e tens a dureza luminosa
da água torrencial da montanha.


Longamente, nos séculos e nas terras,
sombra e fulgor em teu berço lutaram,
unhas rampantes degolavam
a claridade do povo,
e os antigos falcoeiros,
em suas ameias eclesiásticas,
espreitavam o pão, negavam
entrada ao rio dos pobres.


Mas sempre na torre impiedosa,
Espanha, existe um espaço
para o diamante rebelde e sua estirpe
de luz agonizante e renascente.


Não em vão o estandarte de Castela
tem a cor do vento comuneiro,
não em vão por teus vales de granito
corre a luz azul de Garcilaso,
não em vão em Córdoba, entre aranhas
sacerdotais, deixa Góngora
as suas bandejas de pedrarias
aljofaradas pelo gelo.


Espanha, entre as tuas garras
de cruel antigüidade, o teu povo puro
sacudiu as raízes do tormento,
sufragou as azêmolas feudais
com invencível sangue derramado,
e em ti a luz, como a sombra, é velha,
gastada em devorantes cicatrizes.

Junto à paz do pedreiro cruzada
pela respiração dos carvalhos,
junto aos mananciais estrelados
nos quais fitas e sílabas reluzem,
sobre a tua idade, como um tremor sombrio,
vive em sua escalinata um gerifalte.


Fome e dor foram a sílica
de tuas areias ancestrais
e um tumulto surdo, enredado
às raízes de teus povos,
deu à liberdade do mundo
uma eternidade de relâmpagos,
de cantos e de guerrilheiros.


As ribanceiras de Navarra
guardaram o raio recente.

Mina arrancou do precipício
o colar de seus guerrilheiros:
das aldeias invadidas,
das povoações noturnas
extraiu o fogo, alimentou
a abrasadora resistência,
atravessou fontes nevadas,
atacou em rápidas voltas,
surgiu dos desfiladeiros,
brotou das pradarias.


Foi sepultado em prisões,
e ao alto vento da serra
retornou, revolto e sonoro,
seu manancial intransigente.


À América o leva o vento
da liberdade espanhola,
e de novo atravessa bosques
e fertiliza as campinas
seu coração inesgotável.


Em nossa luta, em nossa terra
se sangraram seus cristais,
lutando pela liberdade
indivisível e desterrada.


No México ataram a água
das vertentes espanholas.

E ficou imóvel e calada
a sua transparência caudalosa.




XXIII
Miranda morre na névoa (1816)

Se entrais na Europa tarde com cartola
no jardim condecorado
por mais de um outono junto ao mármore
da fonte enquanto caem folhas
de ouro andrajoso no Império
se a porta recorta uma figura
sobre a noite de São Petersburgo
tremem os cascavéis do trenó
e alguém na soledade branca alguém
o mesmo tempo a mesma pergunta
se sais pela florida porta
da Europa um cavalheiro sombra traje
inteligência signo cordão de ouro
Liberdade Igualdade olha seu rosto
entre a artilharia que troveja
se nas ilhas a alfombra o conhece
a que recebe oceanos Passe o Senhor Já o creio
Quantas embarcações E a névoa
seguindo passo a passo a sua jornada
se nas cavidades de lojas livrarias
há alguém luva espada com um mapa
com a pasta petulante cheia
de povoações de navios de ar
se em Trinidad pela costa o fumo
de um combate e de outro o mar de novo
e outra vez a escada de Bay Street a atmosfera
que o recebe impenetrável
como um compacto interior de maçã
e outra vez esta mão patrícia este azulado
guante guerreiro na ante-sala
longos caminhos guerras e jardins
a derrota em seus lábios outro sal
outro sal outro vinagre ardente
se em Cádiz amarrado ao muro
pela grossa corrente seu pensamento o frio
horror de espada o tempo o cativeiro
se baixas a subterrâneos entre ratazanas
e a alvenaria leprosa outro ferrolho
num caixão de enforcado o velho rosto
onde morreu afogada uma palavra
uma palavra nosso nome a terra
aonde queriam ir seus passos
a liberdade para seu fogo errante
o descem com cordéis à molhada
terra inimiga ninguém saúda faz frio
faz frio de tumba na Europa.




XXIV
José Miguel Carrera (1810)


EPISÓDIO Disseste Liberdade antes de ninguém,
quando o sussurro ia de pedra em pedra,
escondido nos pátios, humilhado.


Disseste Liberdade antes de ninguém.

Libertaste o filho do escravo.

Iam como as sombras mercadores
vendendo o sangue de mares estranhos.

Libertaste o filho do escravo.


Fundaste a primeira imprensa.

Chegou a letra ao povo obscurecido,
a notícia secreta abriu os lábios.

Fundaste a primeira imprensa.

Implantaste a escola no convento.


Retrocedeu a gorda teia de aranha
e o rincão dos dízimos sufocantes.

Implantaste a escola no convento.



CORO
Conheça-se a tua condição altiva,
senhor cintilante e aguerrido.

Conheça-se o que tombou brilhando
de tua velocidade sobre a pátria.

Vôo bravio, coração de púrpura.


Conheçam-se as tuas chaves desbeiçadas
abrindo os ferrolhos da noite.

Ginete verde, raio tempestuoso.


Conheça-se o teu amor de mãos cheias,
a tua lâmpada de luz vertiginosa.

Racimo de uma cepa transbordante.

Conheça-se o teu esplendor instantâneo,
o teu errante coração, o teu fogo diurno.


Ferro iracundo, pétala patrícia.

Conheça-se o teu raio de ameaça
destroçando as cúpulas covardes.

Torre de tempestade, ramo de acácia.

Conheça-se a tua espada vigilante,
a tua fundação de força e meteoro.

Conheça-se a tua rápida grandeza.

Conheça-se a tua indomável compostura.



EPISÓDIO Vai pelos mares, entre idiomas,
vestidos, aves estrangeiras,
traz naves libertadoras,
escreve fogo, ordena nuvens,
desentranha sol e soldados,
cruza a névoa em Baltimore
consumindo-se de porta em porta,
créditos e homens o desbordam,
todas as ondas o acompanham.

Junto ao mar de Montevidéu,
em sua casa desterrada,
abre uma oficina, imprime balas.

Rumo ao Chile vive a flecha
de sua direção insurgente,
arde a fúria cristalina
que o conduz, e endereça
a cavalgada do resgate
montado nas crinas ciclônicas
de sua despenhada agonia.

Seus irmãos aniquilados
gritam para ele do paredão
da vingança.
Sangue seu
tinge como labareda
nos adobes de Mendoza
seu trágico trono vazio.

Sacode a paz planetária
do pampa como um circuito
de vaga-lumes infernais.

Açoita as cidadelas
com o uivo das tribos.

Enfeixa as cabeças cativas
no furacão das lanças.

Seu poncho desatado
relampeja na fumarada
e na morte dos cavalos.


Jovem Pueyrredón, não relates
o desolado calafrio
de seu final, não me atormentes
com a noite do abandono,
quando o levam a Mendoza
mostrando o marfim de sua máscara
a solidão de sua agonia.



CORO Pátria, preserva-o em teu manto,
acolhe este amor peregrino:
não o deixes rolar para o fundo
de sua tenebrosa desgraça:
ergue a teu rosto este fulgor,
esta lâmpada inolvidável,
prega de novo esta renda frenética,
chama esta pálpebra estrelada,
guarda o novelo deste sangue
para as tuas teias orgulhosas.

Pátria, recolhe esta carreira,
a luz, a gota malferida,
este cristal agonizante,
este vulcânico anel.

Pátria, galopa para defendê-lo,
galopa, corre, corre, corre.



ÊXODO Levam-no até os muros de Mendoza,
à árvore cruel, à vertente
de sangue inaugurado, ao solitário
tormento, ao final frio da estrela.

Vai pelos caminhos inconclusos,
sarça e taipais desdentados,
álamos que lhe atiram ouro morto,
rodeado por seu orgulho inútil
como por uma túnica andrajosa
a que o pó da morte chega.

Pensa em sua dessangrada dinastia,
na luta inicial sobre os carvalhos
desgarradores da infância,
a escola castelhana e o escudo
rubro e viril da milícia hispânica,
sua tribo assassinada, a doçura
do matrimônio, entre as flores de laranjeira,
o desterro, as lutas pelo mundo,
O'Higgins enigma embandeirado,
Javiera sem saber nos remotos
jardins de Santiago.

Mendoza insulta sua linhagem negra,
ataca a sua vencida investidura,
e entre as pedras lançadas sobe
para a morte.


Nunca um homem teve
um final mais exato.
Das ásperas
investidas, entre vento e animais,
até a azinhaga onde sangraram
todos os de seu sangue.

Cada degrau
do cadafalso o ajusta ao seu destino.

Já ninguém pode continuar a cólera.

A vingança, o amor fecham as portas.

Os caminhos amarraram o errante.

E quando disparam, e através
de seu pano de príncipe do povo
assoma sangue, é sangue que conhece
a tetra infame, sangue que chegou
aonde tinha de chegar, ao chão
de lagares sedentos que esperavam
as uvas derrotadas de sua morte.

Indagou pela neve da pátria.

Tudo era névoa nos eriçados altos.


Viu os fuzis cujo ferro
fez nascer o seu amor desmoronado,
sentiu-se sem raízes, passageiro
do fumo, na batalha solitária,
e caiu envolto em pó e sangue
como em dois braços de bandeira.



CORO Hussardo infortunado, jóia ardente,
sarça acesa na pátria nevada.

Chorai por ele, chorai até que molhem,
mulheres, as vossas lágrimas a terra,
a terra que ele amou, a sua idolatria.

Chorai, guerreiros ásperos do Chile,
acostumados à montanha e à onda,
este vazio é qual uma nevada,
esta morte é o mar que nos atinge.

Não pergunteis por quê, ninguém diria
a verdade destroçada pela pólvora.

Não pergunteis quem foi, ninguém arrebata
o crescimento da primavera,
ninguém matou a rosa do irmão.

Guardemos cólera, dor e lágrimas,
enchamos o vazio desolado
e que recorde a fogueira na noite
a luz das estrelas falecidas.

Irmã, guarda o teu rancor sagrado.

A vitória do povo necessita
a voz de tua ternura triturada.

Estendei mantos em sua ausência
para que possa - frio e enterrado -
com o seu silêncio sustentar a pátria.


Mais de uma vida foi a sua vida.

Buscou a integridade como uma chama.

A morte foi com ele até deixá-lo
para sempre completo e consumido.



ANTÍSTROFE Guarde o loureiro doloroso a sua extrema substância de inverno.

A sua coroa de espinhos levemos areia radiante,
fios de estirpe araucana resguardem a lua mortuária,
folhas de boldo fragrante resolvam a paz de sua tumba,
neve nutrida nas águas imensas e escuras do Chile,
plantas que amou, melissas em xícaras de argila silvestre,
ásperas plantas amadas pelo amarelo centauro,
negros racimos transbordantes de elétrico outono na terra,
olhos sombrios que arderam sob os seus beijos terrestres.

Levante a pátria as suas aves, suas asas injustas, suas pálpebras rubras,
voe até o hussardo ferido a voz do queltehue na água,
sangre a loica a sua mancha de aroma escarlate rendendo tributo
àquele cujo vôo estendera a noite nupcial da pátria
e o condor suspenso na altura imutável coroe com plumas sangrentas
o peito adormecido, a fogueira que jaz nos degraus da cordilheira,
parta o soldado a rosa iracunda esmagada no muro esmagado,
pule o camponês ao cavalo de negra montaria e focinho de espuma,
volte ao escravo do campo a sua paz de raízes, o seu escudo enlutado,
levante o mecânico a sua pálida torre tecida de estanho noturno:
o povo que nasce no berço torcido de vimes e mãos de herói,
o povo que sobe de negros adobes de minas e bocas sulfúricas,
o povo levante o martírio e a urna e envolva a lembrança
com a sua ferroviária grandeza e a sua eterna balança de pedras e feridas
até que a terra fragrante decrete copihues molhados e livros abertos,
ao menino invencível, à lufada insigne, ao terno temível e acerbo soldado.

E guarde seu nome o duro domínio do povo em sua luta,
como o nome da nave resiste ao combate marinho:
a pátria em sua proa o inscreva e o beije o relâmpago
porque assim foi a sua livre e delgada e ardente matéria.




XXV
Manuel Rodríguez

CUECA Senhora, dizem que onde,
minha mãe dizem, disseram,
a água e o vento dizem
que viram o guerrilheiro.



Vida
Pode ser um bispo,
pode e não pode,
pode ser só o vento
sobre a neve:
sobre a neve, sim,
mãe, não olhes,
que chega a galope
Manuel Rodríguez.

Já vem o guerrilheiro
pelo ribeiro.



CUECA Saindo de Melipilla,
correndo por Talagante,
cruzando por San Fernando,
amanhecendo em Pomaire.



Paixão
Passando por Rancagua,
por San Rosendo,
por Cauquenes, por Chena,
por Nacimiento:
por Nacimiento, sim,
desde Chiñigüe,
por toda parte vem
Manuel Rodríguez.

Este cravo lhe damos,
com ele vamos.


CUECA Que se apague a guitarra,
que a pátria está de luto.

Nossa terra fica escura.

Mataram o guerrilheiro.



E Morte
Em Til-Til foi morto
por assassinos,
suas costas sangram
pelo caminho:
pelo caminho, sim.


Quem o diria,
ele que era o nosso sangue,
nossa alegria.


A terra está chorando.

Vamos nos calando.




XXVI
Artigas

(I)
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuosa
a sua passagem porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do ermo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaiano rocio.



(II)
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves tagarelas, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavalheiros amargos
que pela fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota,
estende-se o uníssono nome de pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.



(III)
Ó Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
o teu poncho estrelado de constelações que conhecias,
até que o sangue corrompesse e redimisse a aurora, e acordassem teus homens
marchando vergados pelos poeirentos entrançados do dia.

Ó pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!


(IV)
Passaram os dias de um século e seguiram as horas atrás de teu exílio:
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro:
atrás do silêncio no qual só tombavam os frutos apodrecidos sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desatada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do chicote, os cepos, os corpos roídos de escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com os seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.



(V)
“Amargo trabalha o exílio”, escreveu esse irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
opresso no imóvel olhar de vidro de um déspota num reino vazio.



(VI)
A América tua tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus, corriam até o [sacrifício:
morriam, nasciam, caíam: os olhos do cego matavam: a voz dos mudos
falava.
Os mortos, por fim, encontraram partido,
por fim conheceram o seu bando patrício na morte.

E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fileira: a terra não tem adversários.



(VII)
Uruguai é palavra de pássaro, o idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques na máscara azul do Atlântico.

Uruguai é a roupa estendida no ouro dum dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.



(VIII)
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas, te devia,
[Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta,
[recolhi os herbários do rio,
afundei a minha cabeça em tua areia e na prata dos peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desarrumados mercados
me purifiquei, até sentir-me devedor de teu olor e teu amor.

E talvez esteja escrito o rumor que teu amor e teu olor me conferiram
nestas palavras obscuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.




XXVII
Guayaquil (1822)

Quando entrou San Martín, algo noturno
de caminho impalpável, sombra, couro,
entrou na sala.


Bolívar esperava.

Bolívar farejou o que chegava.

Era aéreo, rápido, metálico,
todo antecipação, ciência do vôo,
seu contido ser tremulava
ali, no quarto imobilizado
na escuridão da história.


Vinha das alturas indizíveis
da atmosfera constelada,
ia seu exército em frente
quebrando noite e distância,
capitão de um corpo invisível,
da neve que o seguia.

A lâmpada tremeu, a porta
atrás de San Martin manteve
a noite, seus ladridos, seu tumor
tíbio de desembocadura.


As palavras abriram uma trilha
que neles mesmos ia e vinha.

Aqueles dois corpos se falavam,
se rechaçavam, se escondiam,
se incomunicavam, se fugiam.


San Martín trazia do sul
um saco de números cinzentos,
a solidão das montarias
infatigáveis, os cavalos
batendo terras, agregando-se
a sua fortaleza arenária.

Entraram com ele os ásperos
arrieiros do Chile, um lento
exército ferruginoso,
o espaço preparatório,
as bandeiras com apelidos
envelhecidos no pampa.


O quanto falaram caiu de corpo a corpo
no silêncio, no fundo interstício.

Não eram palavras, era a profunda
emanação das terras adversas,
da pedra humana que toca
outro metal inacessível.

As palavras voltaram a seus lugares.


Cada um, diante de seus olhos
via as suas bandeiras.

Um, o tempo com flores deslumbrantes,
outro, o roído passado,
os farrapos da tropa.


Junto a Bolívar uma mão branca
o esperava, o despedia,
acumulava o seu acicate ardente,
estendia o linho no tálamo.

San Martín era fiel a seus prados.

Seu sonho era um galope,
uma rede de correias e perigos.

Sua liberdade era um pampa unânime.

Uma ordem cereal foi a sua vitória.


Bolívar construía um sonho,
uma ignorada dimensão, um fogo
de velocidade duradoura,
tão incomunicável que o fazia
prisioneiro, entregue à sua substância.


Caíram as palavras e o silêncio.


Abriu-se outra vez a porta, outra vez toda
a noite americana, o largo rio
de muitos lábios palpitou um segundo.


San Martín regressou daquela noite
às soledades e ao trigo.

Bolívar continuou só.




XXVIII
Sucre

Sucre nas altas terras desbordando
o amarelo perfil dos montes,
Hidalgo tomba, Morelos recolhe
o ruído, o tremor de um sino
propagado na terra e no sangue.


Páez percorre os caminhos repartindo o ar conquistado,
cai o orvalho em Cundinamarca
sobre a fraternidade das feridas,
o povo insurge inquieto
desde a latitude à secreta
célula, emerge um mundo
de despedidas e galopes,
nasce a cada minuto uma bandeira
qual uma flor antecipada:
bandeiras feitas de lenços
sangrentos e de livros livres,
bandeiras arrastadas pelo pó
dos caminhos, destroçadas
pela cavalaria, abertas
por estampidos e relâmpagos.



As bandeiras
Nossas bandeiras daquele tempo
fragrante, bordadas apenas,
nascidas apenas, secretas
como um profundo amor, de súbito
encarniçadas ao vento
azul da pólvora amada.


América, extenso berço, espaço
de estrela, romã madura,
de súbito encheu-se de abelhas
a tua geografia, de sussurros
conduzidos pelos adobes
e pelas pedras, de mão em mão,
encheram-se de roupas as ruas
como colméia atordoada.


Na noite dos disparos
v baile brilhava nos olhos,
subia como uma laranja a flor de laranjeira pelas muralhas,
beijos de adeus, beijos de farinha,
o amor amarrava beijos,
e a guerra cantava com
a sua guitarra pelos caminhos.




XXIX
Castro Alves do Brasil

Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?
Para a flor cantaste? Para a água
cuja formosura diz palavras às pedras?
Cantaste para os olhos, para o perfil recortado
da que então amaste? Para a primavera?

Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho,
aquelas águas negras não tinham palavras,
aqueles olhos eram os que viram a morte,
ardiam ainda os martírios por detrás do amor,
a primavera estava salpicada de sangue.


- Cantei para os escravos, eles sobre os navios,
como um cacho escuro da árvore da ira
viajaram, e no porto se dessangrou o navio
deixando-nos o peso de um sangue roubado.


- Cantei naqueles dias contra o inferno,
contra as afiadas línguas da cobiça,
contra o ouro empapado de tormento,
contra a mão que empunhava o chicote,
contra os dirigentes de trevas.


- Cada rosa tinha um morto nas raízes.

A luz a noite, o céu, cobriam-se de pranto,
os olhos apartavam-se das mãos feridas
e era a minha voz a única que enchia o silêncio.


- Eu quis que do homem nos salvássemos,
eu cria que a rota passasse pelo homem,
e que daí tinha de sair o destino.

Cantei para aqueles que não tinham voz.

Minha voz bateu em portas até então fechadas
para que, combatendo, a liberdade entrasse.


Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro
torna a nascer para a terra livre,
deixa-me a mim, poeta da nossa América,
coroar a tua cabeça com os louros do povo.

Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens.

Cantaste bem.
Cantaste como se deve cantar.




XXX
Toussaint L'Ouverture

Haiti, de sua doçura emaranhada,
extrai pétalas patéticas,
retitude de jardins, edifícios
de grandeza, arrulha
o mar como um avô escuro
sua velha dignidade de pele e espaço.


Toussaint L'Ouverture ata
a vegetal soberania,
a majestade acorrentada,
a surda voz dos tambores,
e ataca, cerra o passo, sobe,
ordena, expulsa, desafia
como um monarca natural,
até que cai na rede tenebrosa
e o levam pelos mares
arrastado e atropelado
como o regresso de sua raça,
atirando à morte secreta
das sentinas e dos sótãos.


Mas na ilha ardem as penhas,
falam os ramos escondidos,
se transmitem as esperanças,
surgem os muros do baluarte.

A liberdade é o bosque teu,
escuro irmão, preserva
a tua memória de sofrimentos
e que os heróis passados
custodiem a tua mágica espuma.




XXXI
Morazán (1842)

Alta noite e Morazán vela.

É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.

Fita central, América angustura que os golpes azuis de dois mares
foram fazendo, levantando no ar
cordilheiras e plumas de esmeralda:
território, unidade, delgada deusa
nascida no combate da espuma.


Desmoronam-se filhos e vermes,
estendem-se sobre ti as alimárias
e uma tenaz te arrebata o sonho
e um punhal com teu sangue te salpica
enquanto se despedaça o teu estandarte.


Alta é a noite e Morazán vela,

Já vem o tigre brandindo um machado.

Vêm para devorar-te as entranhas.

Vêm para dividir as estrelas.

Vêm,
pequena América olorosa,
para cravar-te na cruz, para desolar-te,
para derrubar o metal de tua bandeira.


Alta é a noite e Morazán vela.


Invasores encheram a tua casa.

E te partiram como fruta morta,
e outros carimbaram em tuas costas
os dentes de uma estirpe sanguinária,
e outros te saquearam nos portos
carregando sangue sobre as tuas dores.


É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.


Irmãos, amanhece.
(E Morazán vela.
)



XXXII
Viagem pela noite de Juárez

Juárez, se recolhêssemos
o íntimo estrato, a matéria
da profundidade, se cavando tocássemos
o profundo metal das repúblicas,
esta unidade seria a tua estrutura,
a tua impassível bondade, a tua mão teimosa.


Quem olha a tua sobrecasaca,
a tua parca cerimônia, o teu silêncio,
o teu rosto feito de tetra americana,
se não é daqui, se não nasceu nestas
planícies, na argila montanhosa
de nossas soledades, não entende.

Te falarão divisando uma pedreira.

Te passarão como se passa um rio.

Darão a mão a uma árvore, a um sarmento,
a um sombrio caminho da terra.


Para nós és pão e pedra,
forno e produto da estirpe escura.

Teu rosto foi nascido em nosso barro.

Tua majestade é a minha região nevada,
teus olhos a enterrada olaria.


Outros terão o átomo e a gota
do elétrico fulgor, de brasa inquieta:
tu és muro feito de nosso sangue,
tua retidão impenetrável
sai de nossa dura geologia.


Nada tens para dizer ao ar,
ao vento de ouro que vem de longe,
que o diga a terra ensimesmada,
a cal, o mineral, a levedura.


Visitei eu os muros de Querétaro,
toquei cada penhasco na colina,
a distância, a cicatriz e a cratera,
o cacto de ramagens espinhosas:
ninguém persiste ali, foi o fantasma,
ninguém ficou dormido na dureza:
só existem a luz e os aguilhões
do matagal, e uma presença pura:
Juárez, a tua paz de noite justiceira,
definitiva, férrea e estrelada.




XXXIII
O vento sobre Lincoln

À s vezes o vento do sul resvala
sobre a sepultura de Lincoln trazendo
vozes e brisas de cidades e árvores
nada se passa em sua tumba as letras não se mexem
o mármore se suaviza com a lentidão de séculos
o velho cavaleiro já não vive
não existe o buraco de sua antiga camisa
se mesclaram as fibras do tempo e o pó humano
que a vida tão realizada diz uma tremelicante
senhora da Virgínia uma escola que canta
mais de uma escola canta pensando em outras coisas
mas o vento do sul a emanação de terras
de caminhos às vezes se detém na tumba
sua transparência é um periódico moderno
chegam surdos rancores lamentos como aqueles
o sonho imóvel vencedor jazia
sob os pés cheios de barro que passaram
cantando e arrastando fadiga e sangue
pois bem nesta manhã volta ao mármore o ódio
0 ódio do sul branco pelo velho adormecido
nas igrejas os negros estão sozinhos com Deus
com Deus conforme acreditam nas praças
nos trens o mundo tem certos letreiros
que dividem o céu a água o ar
que vida mais perfeita diz a delicada
senhorita e na Geórgia matam a pau
todas as semanas um jovem negro
enquanto Paul Robeson canta como a terra
como o começo do mar e da vida
canta sobre a crueldade e os anúncios
de coca-cola canta para os irmãos
de mundo a mundo entre os castigos
canta para os novos filhos para
que o homem ouça e suste o seu chicote
a mão cruel a mão que Lincoln abatera
a mão que ressurge como branca víbora
o vento passa o vento sobre a tumba traz
conversações restos de juramentos algo
que chora sobre o mármore como chuva fina
de antigas e esquecidas dores insepultas
o Klan matou um bárbaro perseguindo-o
enforcando o pobre negro a uivar queimando-o
vivo e esburacado pelos tiros
debaixo dos capuzes os prósperos rotarianos
não sabem assim crêem que são só verdugos
covardes carniceiros detritos do dinheiro
com a cruz de Caim regressam
para lavar as mãos e rezar no domingo
telefonam ao Senado contando suas façanhas
disto nada fica sabendo o morto de Illinois
porque o vento de hoje fala uma linguagem
de escravidão de fúrias de cadeias
e através das lousas o homem já não existe
é um esmiuçado polvilho de vitória
de vitória arrasada depois do triunfo morto
não só a camisa do homem se gastou
não só o buraco da morte nos mata
mas também a primavera repetida o transcurso
que rói o vencedor com o seu canto covarde
morre o valor de ontem derramam-se de novo
as furiosas bandeiras do malvado
alguém canta junto ao monumento é um coro
de meninas de escola vozes ácidas
que sobem sem tocar o pó externo
que passam sem descer ao lenhador adormecido
à vitória morta sob as reverências
enquanto burlão e viajeiro sorri o vento sul.




XXXIV
Martí (1890)

Cuba, flor espumosa, efervescente
açucena escarlate, jasmineiro,
custa-se a encontrar sob a rede florida
o teu sombrio carvão martirizado,
a antiga ruga deixada pela morte,
a cicatriz coberta de espuma.

Porém dentro de ti como clara
geometria de neve germinada,
onde se abrem tuas últimas cortiças,
jaz Martí como pura amêndoa.


Está no fundo circular da aragem,
está no centro azul do território,
e reluz como uma gota d'água
sua adormecida pureza de semente.


É de cristal a noite que o cobre.


Pranto e dor, de súbito, cruéis gotas
atravessam a terra até o recinto
da infinita claridade adormecida.

O povo às vezes baixa suas raízes
através da noite até tocar
a água quieta em seu pranto oculto.

À vezes cruza o rancor iracundo
pisoteando semeadas superfícies
e um morto cai na taça do povo.


Às vezes volta o açoite enterrado
a silvar na brisa da cúpula
e uma gota de sangue qual uma pétala
cai no chão e mergulha no silêncio.

Tudo chega ao fulgor imaculado.

Os tremores minúsculos batem
às portas do cristal oculto.


Toda lágrima toca a sua corrente.


Todo fogo estremece a sua estrutura.

E assim da jacente fortaleza,
do oculto germe caudaloso
saem os combatentes da ilha.


Chegam de um manancial determinado.


Nascem de uma vertente cristalina.




XXXV
Balmaceda de Chile (1891)

Mr.
North chegou de Londres.


É um magnata no nitrato.

Antes trabalhou no pampa,
de jornaleiro, algum tempo,
mas despediu-se e se foi.

Volta agora, envolto em libras.

Traz dois cavalinhos árabes
e uma pequena locomotiva
toda de ouro.
São presentes
para o presidente, um tal
de José Manuel Balmaceda.


“You are very clever, Mr.
North.


Rubén Darío entra por esta casa,
por esta presidência como quer.

Uma garrafa de conhaque o espeta.

O jovem Minotauro envolto em névoa
de rios, transpassado de sons,
sobe a grande escada que será
tão difícil de subir para Mr.
North.

O presidente regressou há pouco
do desolado norte salitroso,
ali dizendo: “Esta terra, esta riqueza
será do Chile, esta matéria branca
converterei em escolas, em estradas,
em pão para o meu povo”.

Agora entre papéis, no seu palácio,
sua fina forma, seu intenso olhar,
olha para os desertos do salitre.

Seu nobre rosto não sorri.

A cabeça, de pálida postura,
tem a antiga qualidade de um morto,
de um velho antepassado da pátria.


Todo o seu ser é um exame solene.


Algo desassossega, como rajada fria,
a sua paz, o seu movimento pensativo.


Rechaçou os cavalos, a maquininha de ouro
de Mr.
North.
Remeteu-os sem vê-los
para o dono, o poderoso gringo.

Apenas acenou com a mão desdenhosa.

“Agora, Mr.
North, não posso
entregar-lhe estas concessões,
não posso amarrar a minha pátria
aos mistérios da City.


Mr.
North instala-se no Club.

Cem uísques vão para a sua mesa,
cem jantares para advogados,
para o Parlamento, champanha
para os tradicionalistas.

Correm agentes para o norte,
os fios vão e vêm e voltam.

As suaves libras esterlinas
tecem como aranhas douradas
uma teia inglesa, legítima
para o meu povo, uma roupa, sob medida
de sangue, pólvora e miséria.


“You are very clever, Mr.
North.


A sombra sitia Balmaceda.

Ao chegar o dia, o insultam
e o escarnecem os aristocratas,
ladram-lhe no Parlamento,
o fustigam e caluniam.

Produzem a batalha, e ganharam.

Mas não basta: é preciso torcer
a história.
As boas vinhas
se “sacrificam” e o álcool
enche a noite miserável.

Os elegantes mocinhos
marcam as portas e uma horda
assalta as casas, arremessa
os pianos dos balcões.

Aristocrático piquenique
com cadáveres no canal
e champanha francês no Club.


“You are very clever, Mr.
North.


A embaixada argentina abriu
as suas portas ao presidente.


Nessa tarde escreve com a mesma
segurança de mão fina,
a sombra penetra seus grandes olhos
como escura mariposa,
de profundidade fatigada.


E a magnitude de seu rosto
sai do mundo solitário,
da pequena moradia,
ilumina a noite escura.

Escreve seu nítido nome,
as letras de longo perfil
de sua doutrina traída.

Tem o revólver na mão.


Olha através da janela
um derradeiro trecho da pátria,
pensando em todo o longo corpo
do Chile, sombreado
como uma página noturna.

Viaja e sem ver cruzam seus olhos,
como nas vidraças de um trem,
rápidos campos, casarios,
torres, ribeiras inundadas,
pobreza, dores, farrapos.

Ele sonhou um sonho preciso,
quis trocar a desgarrada
paisagem, o corpo consumido
do povo, quis defendê-lo.


Já é tarde, escuta disparos
isolados, os gritos vitoriosos,
o selvagem ataque, os uivos
da “aristocracia”, escuta
o último rumor, o grã silêncio,
e, com ele, recostado, entra na morte.




XXXVI
A Emiliano Zapata com música de Tatanacho

Quando cresceram as dores
na terra, e os espinheiros desolados
foram a herança dos camponeses,
e, como outrora, rapaces
barbas cerimoniais, e os açoites,
então, flor e fogo galopado.
.
.


Borrachita me voy
hacia la capital

empinou-se na alba transitória
a terra sacudida de facas,
o peão de suas amargas tocas
caiu qual uma espiga debulhada
sobre a solidão vertiginosa.


a pedirle al patrón
que me mandó llamar

Zapata então foi terra e aurora.

Em todo horizonte aparecia
a multidão de sua semente armada.

Num ataque de águas e fronteiras
o férreo manancial de Coahuila,
as estelares pedras de Sonora:
tudo veio ao seu passo adiantado,
à sua agrária tormenta de ferraduras.


que si va del rancho
muy pronto volverá

Reparte o pão, a terra:
te acompanho.


Renuncio a minhas pálpebras celestes.

Eu, Zapata, me vou com o rocio
das cavalarias matutinas,
num disparo desde as figueiras-do-inferno
até as casas de paredes róseas.


.
.
.
cintitas pa tu pelo
no llores por tu Pancho .
.
.


A lua dorme sobre as montarias.

A morte amontoada e repartida
jaz com os soldados de Zapata.

O sonho esconde sob os baluartes
da pesada noite o seu destino,
o seu incubador lençol sombrio.

A fogueira agrupa o sopro desvelado:
graxa, suor e pólvora noturna.


.
.
.
Borrachita rne voy
para olvidarte .
.
.


Pedimos pátria para o humilhado.

Tua faca divide o patrimônio
e tiros e corcéis amedrontam
os castigos, a barba do verdugo.

A terra se reparte como um rifle.

Não esperes, camponês, empoeirado,
depoís de teu suor a luz completa
e o céu parcelado em teus joelhos.

Levanta-te e galopa com Zapata.


.
.
.
Yo la quise traer
dijo yue no.
.
.


México, hostil agricultura, amada
terra entre os obscuros repartida:
das espadas do milho saíram
ao sol os teus centuriões suarentos.


Da neve do sul venho contar-te.


Deixa-me galopar em teu destino
e encher-me de pólvoras e arados.


.
.
.
Que si habrá de llorar
pa qué volver.
.
.




XXXVII
Sandino (1926)

Foi quando em terra nossa
Enterraram-se
as cruzes, gastaram-se
inválidas, profissionais.

Chegou o dólar de dentes agressivos
mordendo território,
na garganta pastoril da América.

Agarrou o Panamá com fauces duras,
enfiou na terra fresca os seus caninos,
chapinhou na lama, uísque, sangue,
e jurou um presidente de sobrecasaca:
“Seja conosco o suborno
de cada dia”.

Logo, chegou o aço,
e o canal dividiu as residências,
aqui os amos, ali a servidão.


Correram para a Nicarágua.


Desceram vestidos de branco,
disparando dólares e tiros.

Surgiu no entanto um capitão
que disse: “Não, aqui não pões
as tuas concessões, tua garrafa”.

Prometeram-lhe um retrato
de presidente, de luvas,
faixa atravessada e sapatinhos
de verniz recém-comprados.

Sandino dcscalçou as botas,
afundou-se nos trêmulos pântanos,
pôs a faixa molhada
da liberdade na selva,
e, tiro a tiro, respondeu
aos “civilizadores”.


A fúria norte-americana
foi indizível: documentados
embaixadores convenceram
o mundo de que seu amor era
a Nicarágua, que algum dia
a ordem haveria de chegar
a suas entranhas sonolentas.


Sandino enforcou os intrusos.


Os heróis de Wall Street
foram comidos pelo lamaçal,
um relâmpago os matava,
mais de um sabre os seguia,
uma corda os despertava
como serpente na noite,
e pendurados de uma árvore eram
carreados lentamente
por coleópteros azuis
e trepadeiras devoradoras.


Sandino, com os seus guerrilheiros,
na Praça do Povo, em todas
as partes estava Sandino,
matando norte-americanos.

justiçando invasores.

E quando veio a aviação,
a ofensiva dos exércitos
blindados, a incisão
de massacrantes poderios,
Sandino estava no silêncio,
como um espectro da selva,
era uma árvore que se enroscava
ou uma tartaruga que dormia
ou um rio deslizando.

E árvore, tartaruga, torrente,
foram a morte vingadora,
foram sistemas da selva,
mortais sintomas de aranha.


(Em 1948
um guerrilheiro
da Grécia, coluna de Esparta,
foi a urna da luz atacada
pelos mercenários do dólar.

Dos montes lançou fogo
sobre os polvos de Chicago,
e como Sandino, o valente
da Nicarágua, foi chamado
“bandoleiro das montanhas”.
)

Mas, quando fogo, sangue
e dólar não destruíram
a torre altiva de Sandino,
os guerreiros de Wall Street
fizeram a paz, convidaram
para celebrá-la o guerrilheiro,
e um traidor recém-alugado
disparou-lhe a carabina.


Seu nome é Somoza.
Até hoje
está reinando na Nicarágua:
os trinta dólares cresceram
e aumentaram em sua barriga.


Esta é a história de Sandino,
capitão da Nicarágua,
encarnação desgarradora
de nossa arena traída, dividida e acometida,
martirizada e saqueada.




XXXVIII
(1)
Até Recabarren

A terra, o metal da terra, a compacta
formosura, a paz ferruginosa
que será lança, lâmpada ou anel,
matéria pura, ação
do tempo, saúde
da terra desnuda.


O mineral foi como estrela
afundada e enterrada.

A golpes de planeta, grama por grama,
foi escondida a luz.

Áspera capa, argila, areia
cobriram o teu hemisfério.

Mas amei o teu sal, a tua superfície.

Tua goteira, tua pálpebra, tua estátua.


No quilate de pureza dura
cantou minha mão: na écloga
nupcial da esmeralda fui citado,
e no côncavo do ferro pus o meu rosto um dia
até emanar abismo, resistência e aumento.


Mas eu não sabia nada.


O ferro, o cobre, os sais o sabiam.


Cada pétala de ouro foi arrancada com sangue.

Cada metal tem um soldado.



(2)
O cobre
Eu cheguei ao cobre, a Chuquicamata.

Era tarde nas cordilheiras.

Era o ar como taça
fria, de seca transparência.

Antes vivi em muitos navios,
porém na noite do deserto
a imensa mina resplandecia
como um navio cegador
com o orvalho deslumbrante
daquelas alturas noturnas.


Fechei os olhos: sonbo e sombra
estendiam as suas grossas plumas
sobre mim como aves gigantes.

Apenas de queda em queda
enquanto dançava o automóvel,
a oblíqua estrela, o penetrante
planeta, qual uma lança,
me arrojavam um raio gelado
de fogo frio, de ameaça.



(3)
A noite em Chuquicamata

Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.

Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.

Era verde o sangue destas terras.


Alta até os planetas empapados
era a magnitude noturna e verde.

Gota a gota um leite de turquesa,
uma aurora de pedra,
foi construído pelo homem
e ardia na imensidade,
na estrelada terra aberta
de toda a noite arenosa.


Passo a passo, então a sombra
me levou

pela mão ao sindicato.

Era o mês de julho
no Chile, na estação fria.


Junto a meus passos, muitos dias
(ou séculos) (ou simplesmente meses
de cobre, pedra e pedra e pedra,
quer dizer, de inferno no tempo:
do infinito mantido
por mão sulfurosa),
iam outros passos e pés
que só o cobre conhecia.


Era uma multidão gordurosa,
fome e farrapo, soledades,
a que cavava o socavão.

Naquela noite não vi
desfilar sua ferida sem número
na costa cruel da mina.


Mas eu fui desses tormentos.


As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.


Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.

Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.



(4)
Os chilenos

Tudo isso foi a tua mão.

Tua mão foi a unha
do compatriota mineral, do “roto”
combatido, do pisoteado
material humano, do homenzinho em farrapos.

Tua mão foi como a geografia:
cavou esta cratera de treva verde,
fundou um planeta de pedra oceânica.


Andou pelas mestranças
manejando as pás quebradas
e botando pólvora por
todos os lados, como ovos
de galinha ensurdecedora.


Trata-se de uma cratera remota:
até da lua cheia
se veria a sua profundidade
feita lado a lado por
um tal de Rodríguez, um tal de Carrasco,
um tal de Díaz Iturrieta,
um tal de Abarca, um tal de Gumersindo,
um tal de chileno chamado Mil.


Esta imensidão, unha por unha,
o desgarrado chileno, um dia
e outro dia, outro inverno, a pulso,
em velocidade, na lenta
atmosfera das alturas,
recolheu-a da argamassa,
estabeleceu-a entre as regiões.



(5)
O herói

Não foi a firmeza tumultuosa
de muitos dedos, não só a pá,
não só o braço, as ancas, o peso
do homem todo e a sua energia:
foram dor, incerteza e fúria
os que cavaram o centímetro
de altura calcária, buscando
as veias verdes da estrela,
os finais fosforescentes
dos cometas enterrados.


Do homem gasto em seu abismo
nasceram os sais sangrentos.


Porque o Reinaldo é agressivo,
cata pedras, o infinito
Sepúlveda, teu filho, sobrinho de
tua tia Eduviges Rojas,
o herói ardendo, o que desvencilha
a cordilheira mineral.


Assim foi conhecendo,
entrando como na uterina
originalidade da entranha,
em terra e vida, fui me vencendo:
até sumir-me em homem, em água
de lágrimas como estalactites,
de pobre sangue despenhado
de suor caído no pó.


(6)
Ofícios
Outras vezes com Lafertte, mais longe,
entramos em Tarapacá,
desde Iquique azul e ascético,
pelos limites da areia.


Me mostrou Elías as pás
dos limpadores, enfiado
nas madeiras cada dedo
do homem: estavam gastadas
pelo roçar de cada ponta de dedo.

As pressões daquelas mãos derreteram
os pedernais da pá,
e abriram assim os corredores
de terra e pedra, metal e ácido,
estas unhas amargas, estes
enegrecidos cinturões
de mãos que rompem planetas,
e elevam os sais aos céus,
dizendo como no conto,
na história celeste: “Este
é o primeiro dia da terra”.


Assim aquele que ninguém antes viu
(antes daquele dia de origem),
o protótipo da pá,
levantou-se sobre as cascas
do inferno: dominou-as
com as suas rudes mãos ardentes,
abriu as folhas da terra,
e apareceu de camisa azul
o capitão de dentes brancos,
o conquistador do salitre.



(7)
O deserto

O duro meio-dia das grandes areias
chegou:
o mundo está nu,
largo, estéril e limpo até as últimas
fronteiras arenais:
escutai o som quebradiço
do sal vivo, só nas salinas:
o sol quebra seus vidros na extensão vazia
e agoniza a terra como um seco
e afogado ruído do sal que geme.



(8)
(Noturno)

Chega ao circuito do dserto,
À alta noite aérea do pampa,
Ao círculo noturno, espaço e astro,
Onde a zona do Tamarugal recolhe
Todo o silêncio perdido no tempo.


Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.


Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.


Eu te amo, irmã pura do oceano.

Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.


Estava só.

Era planura e solidão a vida.


Era este o peito varonil do mundo.


E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.



(9)
O páramo

No páramo o homem vivia
mordendo terra, aniquilado.

Fui direto ao covil,
meti a mão entre os piolhos,
caminhei entre os trilhos até
o amanhecer desolado,
dormi sobre as duras tábuas,
desci da faina na tarde,
me queimaram vapor e iodo,
apertei a mão do homem,
conversei com a mulherzinha,
portas adentro entre galinhas,
entre trapos, no cheiro
da pobreza abrasadora.


E quando tantas dores
reuni, quando tanto sangue
recolhi no cavo da alma,
vi chegar do espaço puro
dos pampas inabarcáveis
um homem feito de sua própria areia,
um rosto imóvel e estendido,
uma roupa com um corpo largo,
uns olhos entrecerrados
como lâmpadas indomáveis.


Recabarren era o seu nome.




XXXIX
Recabarren (1921)

Seu nome era Recabarren.


Bonachão, corpulento, espaçoso,
claro olhar, cara firme,
sua vasta compostura cobria,
como a areia numerosa,
as jazidas da força.


Olhai no pampa da América
(rios ramais, clara neve,
cortes ferruginosos)
o Chile com a sua destroçada
biologia, como um ramo
arrancado, como um braço
cujas falanges dispersou
o tráfico das tormentas.

Sobre as áreas musculares
dos metais e o nitrato,
sobre a atlética grandeza
do cobre recém-escavado,
o pequeno habitante vive,
acumulado na desordem,
como um contrato apressado,
cheio de meninos maltrapilhos
estendidos pelos desertos
da superfície salgada.


É o chileno interrompido
pela demissão ou a morte.


É o duríssimo chileno
sobrevivente das obras
ou amortalhado pelo sal.


Ali chegou com seus panfletos
este capitão do povo.

Pegou o solitário ofendido
que, enrolando suas mantas rotas
em seus filhos famintos,
aceitava as injustiças
encarniçadas, e lhe disse:
“Junta tua voz a outra voz”,
“Junta tua mão a outra mão”.

Foi pelos rincões aziagos
do salitre, encheu o pampa
com sua investidura paterna
e no esconderijo invisível
toda a miséria o viu.


Chegou cada “galo” ferido,
chegou cada um dos lamentos:
entraram como fantasmas
de pálida voz triturada
e saíram de suas mãos
com uma nova dignidade.

Em todo o pampa se soube.

E foi pela pátria inteira

fundando povo, levantando
os corações quebrantados.

Seus jornais recém-impressos
entraram nas galerias
do carvão, subiram ao cobre,
e o povo beijou as colunas
que levavam pela vez primeira
a voz dos atropelados.


Organizou as soledades.

Levou os livros e os cantos
até os muros do terror,
juntou uma queixa a outra queixa,
e o escravo sem voz nem boca,
o extenso sofrimento,
se fez nome, se chamou Povo
Proletariado, Sindicato,
ganhou pessoa e postura.


E este habitante transformado
que se construiu no combate,
este organismo valoroso,
essa implacável tentativa,
ate metal inalterável,
esta unidade das dores,
esta fortaleza do homem,
este caminho para amanhã,
esta cordilheira infinita.

esta germinal primavera,
este armamento dos pobres,
saiu daqueles sofrimentos,
do mais fundo da pátria,
do mais duro e mais ferido,
do mais alto e mais eterno
e se chamou Partido.

Partido
Comunista
Esse foi o seu nome.

Grande foi a luta.
Caíram
como abutre os donos do ouro.

Combateram com a calúnia.

“Esse Partido Comunista
é pago pelo Peru,
pela Bolívia, pelos estrangeiros.


Caíram sobre as impressoras,
adquiridas gota por gota
com o suor dos combatentes,
e ao atacaram, quebrando-as,
queimando-as, esparramando
a tipografia do povo.

Perseguiram Recabarren.

Negaram-lhe entrada e trânsito.

Ele, porém, congregou sua semente
nos socavões desertos
e o baluarte foi defendido.


Então, os empresários
norte-americanos e ingleses,
seus advogados, senadores,
seus deputados, presidentes,
verterem o sangue na areia.

Acurralaram, amarraram,
Assassinaram nossa estirpe,
A força profunda do Chile,
Deixaram junto às veredas
Do imenso pampa amarelo
Cruzes de operários fuzilados
Nas franjas da areia.


Uma vez em Iquique, na costa,
Mandaram buscar os homens
Que pediam escola e pão.

Ali, confundidos, cercados
Num pátio, foram dispostos
Para a morte.


Dispararam
Cm sibilante metralhadora,
Com fuzis taticamente
Dispostos, sobre a pilha
Amontoada de operários adormecidos.

O sangue encheu como um rio
A areia pálida de Iquique,
E lá está o sangue tombado,
Ardendo ainda sobre os anos
Como uma corola implacável.

Sobreviveu porém a resistência.

A luz organizada pelas mãos
de Recabarren, as bandeiras rubras
foram das minas aos povoados,
foram às cidades e aos sulcos,
rodaram com as rodas ferroviárias,
assumiram as bases do cimento,
ganharam ruas, praças, granjas,
fábricas afligidas pelo pó,
chagas cobertas pela primavera:
tudo cantou e lutou para vencer
na unidade do tempo que amanhece.


Quanta coisa se passou desde então.

Quanto sangue sobre sangue,
quantas lutas sobre a terra.

Horas de esplêndida conquista,
triunfos conquistados gota a gota,
ruas amargas, derrotadas,
zonas escuras como túneis
traições que pareciam
cortar a vida com seu fio,
repressões armadas de ódio,
coroadas militarmente

A terra parecia afundar.


Mas a luta permanece.



Oferta (1949)

Recabarren, nesses dias
De perseguição, na angústia
de meus irmãos relegados.

combatidos por um traidor,
e com a pátria envolta em ódio,
ferida pela tirania,
recordo a luta terrível
de tuas prisões, de teus passos
primeiros, tua solidão
de torreão irredutível,
e quando, saindo do páramo,
um e outro homem a ti vieram
para congregar a massa
do pão humilde defendido
pela unidade do povo augusto.



Pai do Chile
Recabarren, filho do Chile,
pai do Chile, pai nosso,
em tua construção, cm tua linha
urdida em terras e tormentos
nasce a força dos dias
vindouros e vencedores.


És a pátria, pampa e povo,
areia, argila, escola, casa,
ressurreição, punho, ofensiva,
ordem, desfile, ataque, trigo,
luta, grandeza, resistência.


Recabarren, sob o teu olhar
juramos limpar as feridas
mutilações da pátria.


Juramos que a liberdade
levantará sua flor nua
sobre a areia desonrada.


Juramos continuar teu caminho
Até a vitória



XL
Prestes do Brasil (1949)

Brasil augusto, quanto amor quisera
para estender-me em teu regaço,
para envolver-me em suas folhas gigantes,
em desenvolvimento vegetal, em vivo
detrito de esmeraldas: espia-te,
Brasil, dos rios
sacerdotais que te nutrem,
dançar nos terraços à luz
da lua fluvial, e repartir-me
por teus desabitados territórios
vendo sair do barro o nascimento
de grossos bichos rodeados
de metálicas aves brancas.


Quanta lembrança me darias.

Entrar de novo na alfândega,
sair pelos bairros, cheirar
teu estranho rito, baixar
a teus centros circulatórios,
a teu coração generoso.


Mas não posso.


Uma vez, na Bahia, as mulheres
do bairro dolorido,
do antigo mercado de escravos
(onde hoje a nova escravidão, a fome,
o trapo, a condição dolente,
vivem como antes na mesma terra),
me deram umas flores e uma carta,
umas palavras ternas e umas flores.


Não posso apartar a voz de quanto sofre.

Sei quanto me dariam
de invisível verdade as tuas espaçosas
ribeiras naturais.

Sei que a flor secreta, a agitada
multidão de mariposas,
todos os férteis fermentos
das vidas e dos bosques
me esperam com a sua teoria
de inesgotáveis umidades,

mas não posso, não posso

senão arrancar do teu silêncio
uma vez mais a voz do povo,
elevá-la como a pluma
mais fulgurante da selva,
deixá-la a meu lado e amá-la
até que cante por meus lábios.


Por isso vejo Prestes caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, Brasil, fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.

Vejo Prestes, sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.

Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.


(Poeta, buscas em teu livro
as antigas dores gregas,
os orbes acorrentados
pelas antigas maldições,
correm as tuas pálpebras torturadas
pelos tormentos inventados,
e não vês em tua própria porta
os oceanos que batem
no sombrio peito do povo.
)
No martírio nasce a sua filha.

E ela desaparece
a golpe de machado, no gás, tragada
pelos lamaçais assassinos
da Gestapo.


Oh, tormento
do prisioneiro! Oh, indizíveis
padecimentos separados
de nosso ferido capitão!
(Poeta, apaga de teu livro
a Prometeu e sua corrente.

A velha fábula não tem
tanta grandeza calcinada,
tanta tragédia aterradora.
)

Onze anos eles guardam Prestes
detrás das barras de ferro,
no silêncio da morte,
sem que se atrevam assassiná-lo.


Não há notícias para seu povo.

A tirania apaga o nome
de Prestes em seu mundo negro.


E onze anos seu nome foi mudo.

Viveu sem nome como uma árvore
em meio a todo o seu povo,
reverenciado e esperado.


Até que a liberdade
foi buscá-lo em seu presídio,
e saiu de novo à luz,
amado, vencedor e bondoso,
despojado de todo 0 ódio
que lançaram sobre a sua cabeça.


Lembro que em 1945
estive com ele em São Paulo.

(Frágil e firme sua estrutura,
pálido como o marfim
desenterrado na cisterna,
fino como a pureza
do ar nas solidões,
puro como a grandeza
custodiada pela dor.
)
Pela vez primeira a seu povo
falava, no Pacaembu.

O grande estádio pululava
de cem mil corações vermelhos
que espetavam vê-lo e tocá-lo.

Chegou em uma indizível
onda de canto e ternura,
cem mil lenços saudavam
como um bosque a sua boa-vinda.

Ele olhou com olhos profundos
a meu lado, enquanto falei.




XLI
Dito no Pacaembu (Brasil, 1945)

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações.
Saudações das neves andinas,
saudações do oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos

os povoadores de minha pátria longínqua.

Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham: Era: Cumprimenta Prestes.

Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.

Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.

E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.


Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.

Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.


Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite
falei à multidão, fui pedir auxílio
para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.


A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.

Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.

Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe
e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,

Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,
são filhos dos heróis da América, são irmãos
de Bolívar, de O'Higgins, de San Martín, de Prestes.

E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.

Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.


Vou contar-vos outra pequena história.

Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,
no Chile, no frio porto de Talcahuano,
chegou uma vez, faz tempo, um cargueiro soviético.


(O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.
)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.


Aquela noite escura teve estrelas:
as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.


Também hoje, de todos os rincões
da nossa América, do México livre, do Peru sedento,
de Cuba, da Argentina populosa,
do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,
o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas
em que brilham as altas esperanças do homem.


Por isso me mandaram, pelo vento da América,
para que te olhasse e logo lhes contasse
como eras, que dizia o seu capitão calado
por tantos anos duros de solidão e sombra.


Vou dizer-lhes que não guardas ódio.

Que só desejas que a tua pátria viva,

E que a liberdade cresça no fundo
do Brasil como árvore eterna.


Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,
carregadas por estes anos entre a pele e a alma,
sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer
o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.


Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.


Um grande silêncio peço de terras e varões.


Peço silêncio à América da neve ao pampa.


Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.


Silêncio: Que o Brasil falará por sua boca.




XLII
De novo os tiranos

Hoje de novo a caçada
se estende por todo o Brasil,
procura-o a fria cobiça
dos mercadores de escravos:
em Wall Street decretaram
a seus satélites porcinos
que enterrassem os seus caninos
nas feridas do povo,
e começou a caçada
no Chile, no Brasil, em todas
as nossas Américas arrasadas
por mercadores e verdugos.


Meu povo escondeu meu caminho,
cobriu meus versos com as mãos,
da morte me preservou,
e no Brasil a porta infinita
do povo fecha os caminhos
onde Prestes outra vez
rechaça de novo o malvado.


Brasil, que te seja salvo
o teu capitão doloroso,
Brasil, que não tenhas amanhã
de recolher de sua lembrança
fibra por fibra a sua efígie
para erguê-la em pedra austera,
sem tê-lo deixado no meio
de teu coração desfrutar
a liberdade que ainda, ainda
pode conquistar-te, Brasil.




XLIII
Chegará o dia

Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.


Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece,
soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?

Transpassastes a sua tenebrosa vida?
O coração disperso
do povo abandonado e submerso!

Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.


Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga nos chama novamente.

Descei às raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
tocai a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.


Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram.
Cada espiga
nasce de um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.

E não gostavas de festa…
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. Teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes).
E, pois, todo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim… Puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe… Calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de todo remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, hem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinquentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada…
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse… Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? Farofa
há de ser acompanhada
de uma boa cachacinha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
Ind’outro dia… Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
e que bebida mais santa
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!
E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. A teu lado,
vê: recobrou-se-lhe o viço.
Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio,
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.
Este outro aqui é doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético.
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.
Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco,
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quanto a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.
Esta calou-se. Não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças.
Se tanto assim a querias,
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é própria de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)
Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te — não se morre
uma só vez, nem de vez.
Restam sempre muitas vidas
para serem consumidas
na razão dos desencontros
de nosso sangue nos corpos
por onde vai dividido.
Ficam sempre muitas mortes
para serem longamente
reencarnadas noutro morto.
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Estamos todos como éramos
antes de ser, e ninguém
dirá que ficou faltando
algum dos teus. Por exemplo:
ali ao canto da mesa,
não por humilde, talvez
por ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. Que tal?
Fica tranquilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti,
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de te afirmar.
Lá que brigamos, brigamos,
opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez… ou senão,
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. Não herdei
de ti essa balda. Bem,
não me olhes tão longo tempo,
que há muitos a ver ainda.
Há oito. E todos minúsculos,
todos frustrados. Que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. De tão remotos,
de tão puros e esquecidos
no chão que suga e transforma,
são anjos. Que luminosos!
que raios de amor radiam,
e em meio a vagos cristais,
o cristal deles retine,
reverbera a própria sombra.
São anjos que se dignaram
participar do banquete,
alisar o tamborete,
viver vida de menino.
São anjos; e mal sabias
que um mortal devolve a Deus
algo de sua divina
substância aérea e sensível,
se tem um filho e se o perde.
Conta: catorze na mesa.
Ou trinta? serão cinquenta,
que sei? se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinquenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
A procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua bênção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça menineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchendo meu nada.
Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.
Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora),
os gestos acumulados
de efusão fraterna, atados
(não convém lembrar agora),
as fina-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!
Quem preparou? que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
quem se apagou? quem pagou
a pena deste trabalho?
quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
quem tem auréola? quem não
a tem, pois que, sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la,
e se pensa melhor faz?
quem senta do lado esquerdo,
assim curvada? que branca,
mas que branca mais que branca
tarja de cabelos brancos
retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?
quem é toda luz e é branca?
Decerto não pressentias
como o branco pode ser
uma tinta mais diversa
da mesma brancura… Alvura
elaborada na ausência
de ti, mas ficou perfeita,
concreta, fria, lunar.
Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?
Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito — enfim — vos querermos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.
Edna estava caminhando pela rua com sua sacola de compras quando passou pelo carro. Havia um cartaz na janela lateral:
PROCURA-SE MULHER
Ela parou. Havia um grande pedaço de papelão grudado na janela com alguma substância. A maior parte estava datilografada. De onde estava na calçada, Edna não conseguia ler o aviso. Podia apenas ver as letras graúdas:
PROCURA-SE MULHER
Era um carro novo e caro. Edna deu um passo sobre a grama para ler a parte datilografada:
Homem, 49 anos. Divorciado. Procura mulher para casamento. Deve ter entre 35 e 44 anos. Gosta de televisão e películas cinematográficas. Boa comida. Sou especialista em custos de produção, com estabilidade no emprego. Dinheiro no banco. Gosto de mulheres acima do peso.
Edna tinha 37 anos e estava acima do peso. Havia um número de telefone. Também havia três fotos do cavalheiro em busca de uma mulher. Ele parecia bem sério de terno e gravata. Também parecia estúpido e um pouco cruel. E feito de madeira, pensou Edna, feito de madeira.
Edna se afastou, sorrindo um pouco. Sentia também uma espécie de repulsa. Ao chegar ao seu apartamento, ela o tinha esquecido. Apenas algumas horas depois, sentada na banheira, voltou a pensar nele e, dessa vez, pensou em como ele devia estar realmente sozinho para fazer tal coisa:
PROCURA-SE MULHER
Imaginou-o chegando em casa, encontrando as contas de gás e telefone na caixa de correio, despindo-se, tomando um banho, a televisão ligada. Então leria o jornal da tarde. Depois iria para a cozinha preparar sua refeição. De pé, de cuecas, olhando para a frigideira. Pegando sua comida e caminhando para uma mesa, comendo. Bebendo seu café. Então mais televisão. E talvez uma solitária lata de cerveja antes de se deitar. Havia milhões de homens como ele por toda a América.
Edna saiu da banheira, enrolou-se na toalha, vestiu-se e saiu do apartamento. O carro ainda estava lá. Anotou o nome do homem, Joe Lighthill, e o número do telefone. Leu a parte datilografada novamente. “Películas cinematográficas.” Que termo estranho para se usar. Agora as pessoas dizem “filmes”. PROCURA-SE MULHER. O aviso era muito ousado. Estava diante de um sujeito original.
Quando Edna chegou em casa, tomou três xícaras de café antes de discar o número. O telefone chamou quatro vezes.
– Alô? – ele respondeu.
– Sr. Lighthill?
– Sim?
– Vi seu anúncio. Seu anúncio no carro.
– Ah, sim.
– Meu nome é Edna.
– Como vai, Edna?
– Ah, vou bem. Tem feito tanto calor. Esse tempo está demais.
– Sim, nada fácil.
– Bem, sr. Lighthill...
– Me chame apenas de Joe.
– Bem, Joe, rá rá rá, me sinto tão boba. Sabe por que estou telefonando?
– Você viu meu aviso?
– Quero dizer, rá rá rá, o que há de errado com você? Não consegue arranjar uma mulher?
– Acho que não, Edna. Me diga, onde elas estão?
– As mulheres?
– Sim.
– Ah, por toda parte, veja bem.
– Onde? Me diga. Onde?
– Bem, na igreja, veja bem. Há mulheres na igreja.
– Não gosto de igrejas.
– Ah.
– Escute, por que você não vem para cá, Edna?
– Quer dizer para sua casa?
– Sim. Moro em um lugar legal. Podemos tomar um drinque, conversar. Sem pressão.
– Está tarde.
– Não está tão tarde. Escute, você viu meu aviso. Deve estar interessada.
– Bem...
– Você está com medo, é só isso. Está apenas com medo.
– Não, não estou com medo.
– Então venha pra cá, Edna.
– Bem...
– Venha.
– Certo. Vejo você em quinze minutos.
O apartamento ficava no último andar de um condomínio moderno. Número 17. A piscina abaixo refletia as luzes. Edna bateu. A porta se abriu, e lá estava o sr. Lighthill: entradas frontais, nariz aquilino com pelos que saíam pelas narinas, a camisa aberta na altura do pescoço.
– Entre, Edna...
Entrou, e a porta se fechou atrás dela. Trazia seu vestido azul de seda. Estava sem meias, de sandálias, e fumando um cigarro.
– Sente-se, vou pegar uma bebida para você.
Era um lugar agradável. Tudo nas cores azul e verde e muito limpo. Ela ouviu o sr. Lighthill cantarolar surdamente, enquanto preparava as bebidas, hmmmmmmm, hmmmmmmm, hmmmmmmm... Ele parecia tranquilo e isso a ajudou a descontrair.
O sr. Lighthill – Joe – voltou com as bebidas. Alcançou a Edna a sua e então sentou-se em uma cadeira do outro lado da sala.
– Sim – ele disse –, tem feito muito calor, um calor infernal. Mas tenho ar-condicionado.
– Notei. É muito bom.
– Tome a sua bebida.
– Ah, claro.
Edna tomou um gole. Era uma boa bebida, um pouco forte, mas com um gosto agradável. Observou Joe inclinar a cabeça enquanto bebia. Ele parecia ter rugas profundas em torno do pescoço. E suas calças estavam muito folgadas. Pareciam ser de uma numeração muito maior. Davam a suas pernas uma aparência cômica.
– É um belo vestido, Edna.
– Gosta?
– Oh, sim. Você é bem fornida. O vestido fica muito bem em você, muito bem.
Edna não disse nada. E Joe também não. Apenas permaneceram sentados, olhando um para o outro e bebericando suas bebidas.
Por que ele não fala?, pensou Edna. É ele quem tem de falar. Havia nele algo que lembrava madeira, sim. Ela terminou seu drinque.
– Deixe-me preparar outra bebida para você – disse Joe.
– Não, realmente está na minha hora.
– Ora, vamos lá – ele disse –, deixe-me preparar outra bebida. Precisamos de algo para relaxar.
– Tudo bem, mas depois vou embora.
Joe foi até a cozinha com os copos. Ele não estava mais cantarolando. Voltou, alcançou a Edna um copo e sentou-se novamente em sua cadeira do outro lado da sala, em frente à cadeira dela. A bebida estava ainda mais forte.
– Sabe – ele disse –, me dou bem nesses testes sobre sexo das revistas.
Edna tomou um gole de sua bebida e não respondeu.
– Como você se sai nesses testes? – Joe perguntou.
– Nunca fiz nenhum.
– Deveria, sabe, assim você descobre quem e o que você é.
– Acha que esses testes funcionam? Já vi nos jornais. Nunca fiz nenhum, mas já vi – disse Edna.
– Claro que funcionam.
– Talvez eu não seja boa em sexo – disse Edna –, talvez seja por isso que estou sozinha.
Ela bebeu um longo gole de seu copo.
– Cada um de nós está, no final, sozinho – disse Joe.
– Como assim?
– Quero dizer, não importa quão bem a coisa esteja indo no sexo, no amor ou em ambos, chega um dia em que tudo acaba.
– Isso é triste – disse Edna.
– Claro que é. Então chega o dia em que tudo acaba. Ou há uma separação ou a coisa toda se resolve em uma trégua: duas pessoas vivendo juntas sem sentir nada. Acho que ficar sozinho é melhor.
– Você se divorciou da sua esposa, Joe?
– Não. Ela se divorciou de mim.
– O que deu errado?
– Orgias sexuais.
– Orgias sexuais?
– Veja bem, uma orgia sexual é o lugar mais solitário do mundo. Essas orgias... fiquei com uma sensação de desespero... aqueles caralhos entrando e saindo... me desculpe...
– Tudo bem.
– Aqueles caralhos entrando e saindo, pernas enlaçadas, dedos trabalhando, bocas, todo mundo se agarrando e suando e determinado a fazer a coisa toda... de alguma forma.
– Não sei muito sobre essas coisas, Joe – disse Edna.
– Acho que sem amor, sexo não é nada. As coisas só podem representar alguma coisa quando existe algum sentimento entre os participantes.
– Quer dizer que as pessoas têm que gostar umas das outras?
– Ajuda.
– Imagine que eles se cansem uns dos outros? Imagine que tenham que continuar juntos? Por economia? Filhos? Essas coisas?
– Orgias não os manterão juntos.
– E o que manteria?
– Bem, não sei. Talvez o suingue.
– O suingue?
– Você sabe, quando dois casais se conhecem muito bem e trocam parceiros. Os sentimentos têm, pelo menos, uma chance. Por exemplo, digamos que eu sempre tenha gostado da esposa de Mike. Gosto dela há meses. Já a observei caminhar pela sala. Gosto dos movimentos dela. Os movimentos me deixaram curioso. Imagino, você sabe, o que vem depois desses movimentos. Já a vi braba, já a vi bêbada, já a vi sóbria. E então, vem o suingue. Você está no quarto com ela, finalmente você a está conhecendo. Há uma chance de algo real. É claro, Mike está com a sua esposa no outro quarto. Você pensa: “Boa sorte, Mike, e espero que você seja tão bom amante quanto eu”.
– E isso dá certo?
– Bem, não sei... Suingues podem causar dificuldades... mais tarde. Tudo tem que ser combinado... muito bem combinado, antecipadamente. E então pode ter pessoas que não se conheçam bem o suficiente, não importa quanto tenham conversado.
– Você é um desses, Joe?
– Bem, esse negócio de suingue pode ser bom para alguns... talvez seja bom para muitos. Acho que não daria certo para mim. Sou muito puritano.
Joe terminou sua bebida. Edna bebeu o restante da sua e se levantou.
– Escute, Joe, tenho que ir...
Joe caminhou através da sala na direção dela. Ele parecia um elefante naquelas calças. Ela viu suas orelhas grandes. Então ele a agarrou e começou a beijá-la. Seu mau hálito vencia todas as bebidas. Ele tinha um cheiro muito azedo. Parte de sua boca não estava fazendo contato. Era forte, mas sua força não era pura, sua força claudicava. Ela afastou seu rosto para longe e mesmo assim ele a mantinha presa.
PROCURA-SE MULHER
– Joe, me solta! Você está indo muito rápido, Joe! Me solte!
– Para que você veio aqui, sua puta?
Ele tentou beijá-la novamente e conseguiu. Era horrível. Edna ergueu o joelho. Acertou-o em cheio. Ele se dobrou e caiu no tapete.
– Deus, deus... por que você fez isso? Você tentou me matar...
Ele rolava no chão.
Seu traseiro, ela pensou, ele tinha uma bunda tão feia.
Deixou-o rolando no tapete e desceu as escadas correndo. O ar estava limpo lá fora. Ela ouviu pessoas conversando, ouviu seus aparelhos de televisão. Não era uma caminhada muito longa até seu apartamento. Sentiu necessidade de outro banho, livrou-se do seu vestido de seda azul e se lavou. Então saiu da banheira, secou-se com a toalha e ajeitou os rolos em seus cabelos. Decidiu que nunca mais o veria.
– Ao sul de lugar nenhum
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1868.

Exmo. Sr. — É boa e grande fortuna conhecer um poeta; melhor e maior fortuna é recebê-lo das mãos de V. Exa, com uma carta que vale um diploma, com uma recomendação que é uma sagração. A musa do Sr. Castro Alves não podia ter mais feliz intróito na vida literária. Abre os olhos em pleno Capitólio. Os seus primeiros cantos obtêm o aplauso de um mestre. — Mas se isto me entusiasma, outra coisa há que me comove e confunde, é a extrema confiança, que é ao mesmo tempo um motivo de orgulho para mim. De orgulho, repito, e tão inútil fera dissimular esta impressão, quão arrojado seria ver nas palavras de V. Exa. mais do que uma animação generosa. — A tarefa da crítica precisa destes parabéns; é tão árdua de praticar, já pelos estudos que exige, já pelas lutas que impõe, que a palavra eloqüente de um chefe é muitas vezes necessária para reavivar as forças exaustas e reerguer o ânimo abatido. — Confesso francamente, que, encetando os meus ensaios de crítica, fui movido pela idéia de contribuir com alguma coisa para a reforma do gosto que se ia perdendo, e efetivamente se perde. Meus limitadíssimos esforços não podiam impedir o tremendo desastre. Como impedi-lo, se, por influência irresistível, o mal vinha de fora, e se impunha ao espírito literário do país, ainda mal formado e quase sem consciência de si? Era difícil plantar as leis do gosto, onde se havia estabelecido uma sombra de literatura, sem alento nem ideal, falseada e frívola, mal imitada e mal copiada. Nem os esforços dos que, como V. Exa, sabem exprimir sentimentos e idéias na língua que nos legaram os mestres clássicos, nem esses puderam opor um dique à torrente invasora. Se a sabedoria popular não mente, a universalidade da doença podia dar-nos alguma consolação quando não se antolha remédio ao mal. — Se a magnitude da tarefa era de assombrar espíritos mais robustos, outro risco havia: e a este já não era a inteligência que se expunha, era o caráter. Compreende V. Ex.a que, onde a crítica não é instituição formada e assentada, a análise literária tem de lutar contra esse entranhado amor paternal que faz dos nossos filhos as mais belas crianças do mundo. Não raro se originam ódios onde era natural travarem-se afetos. Desfiguram-se os intentos da crítica, atribui-se à inveja o que vem da imparcialidade: chama-se antipatia o que é consciência. Fosse esse, porém, o único obstáculo, estou convencido que ele não pesaria no ânimo de quem põe acima do interesse pessoal o interesse perpétuo da sociedade, porque a boa fama das musas o é também. — Cansados de ouvir chamar bela à poesia, os novos atenienses resolveram bani-la da república. — O elemento poético é hoje um tropeço ao sucesso de uma obra. Aposentaram a imaginação. As musas, que já estavam apeadas dos templos, foram também apeadas dos livros. A poesia dos sentidos veio sentar-se no santuário e assim generalizou-se uma crise funesta às letras. Que enorme Alfeu não seria preciso desviar do seu curso para limpar este presepe de Augias? — Eu bem sei que no Brasil, como fora dele, severos espíritos protestam com o trabalho e a lição contra esse estado de coisas: tal é, porém, a feição geral da situação, ao começar a tarde do século. Mas sempre há de triunfar a vida inteligente. Basta que se trabalhe sem trégua. Pela minha parte, estava e está acima das minhas posses semelhante papel, contudo. entendia e entendo — adotando a bela definição do poeta que V. Exa dá em sua carta — que há para o cidadão da arte e do belo deveres imprescritíveis, e que, quando uma tendência do espírito o impele para certa ordem de atividade, é sua obrigação prestar esse serviço às letras. — Em todo o caso não tive imitadores. Tive um antecessor ilustre, apto para este árduo mister, erudito e profundo, que teria prosseguido no caminho das suas estréias, se a imaginação possante e vivaz não lhe estivesse exigindo as criações que depois nos deu. Será preciso acrescentar que aludo a V. Ex.a? — Escolhendo-me para Virgílio do jovem Dante que nos vem da pátria de Moema, impõe-me um dever, cuja responsabilidade seria grande se a própria carta de V. Exa não houvesse aberto ao neófito as portas da mais vasta publicidade. A análise pode agora esmerilhar nos escritos do poeta belezas e descuidos. O principal trabalho está feito. — Procurei o poeta cujo nome havia sido ligado ao meu, e, com a natural ansiedade que nos produz a notícia de um talento robusto, pedi-lhe que me lesse o seu drama e os seus versos. — Não tive, como V. Exa, a fortuna de os ouvir diante de um magnífico panorama. Não se rasgavam horizontes diante de mim: não tinha os pés nessa formosa Tijuca, que V. Exa chama um escabelo entre a nuvem e o pântano. Eu estava no pântano, em torno de nós agitava-se a vida tumultuosa da cidade. Não era o ruído das paixões nem dos interesses; os interesses e as paixões tinham passado a vara à loucura: estávamos no carnaval. — No meio desse tumulto abrimos um oásis de solidão. — Ouvi o Gonzaga e algumas poesias. — V. Exa já sabe o que é o drama e o que são os versos, já os apreciou consigo, já resumiu a sua opinião. Esta carta, destinada a ser lida pelo público, conterá as impressões que recebi com a leitura dos escritos do poeta. — Não podiam ser melhores as impressões. Achei uma vocação literária, cheia de vida e robustez, deixando antever nas magnificências do presente as promessas do futuro. Achei um poeta original. O mal da nossa poesia contemporânea é ser copista — no dizer, nas idéias e nas imagens. Copiá-las é anular-se. A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria. Se se adivinha que a sua escola é a de Vítor Hugo, não é porque o copie servilmente, mas porque uma índole irmã levou-o a preferir o poeta das Orientais ao poeta das Meditações. Não lhe aprazem certamente as tintas brancas e desmaiadas da elegia; quer antes as cores vivas e os traços vigorosos da ode. — Como o poeta que tomou por mestre, o Sr. Castro Alves canta simultaneamente o que é grande e o que é delicado, mas com igual inspiração e método idêntico a pompa das figuras, a sonoridade do vocábulo, uma forma esculpida com arte, sentindo-se por baixo desses lavores o estro, a espontaneidade, o ímpeto. Não é raro andarem separadas estas duas qualidades da poesia: a forma e o estro. Os verdadeiros poetas são os que as têm ambas. Vê-se que o Sr. Castro Alves as possui; veste as suas idéias com roupas finas e trabalhadas. O receio de cair em um defeito, não o levará a cair no defeito contrário? Não me parece que lhe haja acontecido isso; mas indico-lhe o mal, para que fuja dele. É possível que uma segunda leitura dos seus versos me mostrasse alguns senões fáceis de remediar; confesso que os não percebi no meio de tantas belezas. — O drama, esse li-o atentamente; depois de ouvi-lo, li-o, e reli-o, e não sei bem se era a necessidade de o apreciar, se o encanto da obra, que me demorava os olhos em cada página do volume. — O poeta explica o dramaturgo. Reaparecem no drama as qualidades do verso; as metáforas enchem o período; sente-se de quando em quando o arrojo da ode. Sófocles pede as asas a Píndaro. Parece ao poeta que o tablado é pequeno; rompe o céu de lona e arroja-se ao espaço livre e azul. — Esta exuberância que V. Exa com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta há de reprimi-la com os anos. Então conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática; e do muito que devemos esperar temos prova e fiança no que nos dá hoje. — Estreando no teatro com um assunto histórico, e assunto de uma revolução infeliz, o Sr. Castro Alves consultou a índole do seu gênio poético. Precisava de figuras que o tempo houvesse consagrado; as da Inconfidência tinham além disso a auréola do martírio. Que melhor assunto para excitar a piedade? A tentativa abortada de uma revolução, que tinha por fim consagrar a nossa independência, merece do Brasil de hoje aquela veneração que as raças livres devem aos seus Espártacos. O insucesso fê
Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isso é sério!

O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.

Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.

Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.

[suspiro]

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.

De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.

É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.

Escuta, isso é sério!

Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!

Notas para um século surpreendente

Está tarde já. Parece muito cedo, mas está tarde. Tem gente morrendo por aí, gente íntima e gente privada, há explosões acontecendo bem no meio de nossos quartos, em nossos banheiros, na testa de nossos filhos. Alguns de nossos filhos pertencem ao futuro. Está tarde, por enquanto está tarde, faz tanto tempo desde a última vez que fomos até à entrada do rochedo, mais tempo ainda desde que mergulhámos na enseada e nos deparámos com o coral, com o brilho, com a coloração perfeita que fazia lembrar a transumância. Tenho pensado na palavra transumância. Tenho pensado muito naquele excerto do diário de Pavese que fala dos mitos e da atenção, dos símbolos, dos nomes. Nalgum momento, ele diz qualquer coisa como: estamos convencidos de que uma grande revelação só poderá sair da teimosa insistência numa mesma dificuldade. E também: sabemos que o modo mais seguro — e mais rápido — de nos espantarmos é fitarmos impávidos sempre o mesmo objeto. Segundo Cesare Pavese, é pela atenção e pela repetição que acontece o estouro do milagre. Ainda acredito em milagres. Ficou tarde de repente e alguns de nós não podem dormir, por muito que nos esforcemos só sabemos passar noites em branco fixando a parede e as sombras na parede. Ficamos até de madrugada brincando com as mãos e com o recorte delas, pelo menos a luz ainda incide sobre nossas mãos, há qualquer coisa de magia nos desenhos noturnos que se projetam nos tapumes de nossas casas, de nossas cavernas, de nossos ilusórios covis. Sim, fitamos impávidos sempre o mesmo objeto. Somos pessoas atentas, pelo menos deveríamos ser, piscamos os olhos devagar para que não se cansem nossas pálpebras, está tudo entrando por nossa cara adentro ao ritmo de um murro de Joe Frazier. Joe chegou a derrotar Muhammad Ali, cuidado. É preciso poupar nossas caras, nossos narizes, nossas línguas. A língua, essa, está muito relacionada com o segredo — é debaixo dela que guardamos o tesouro. Como uma criança que guarda um caroço de cereja na boca durante um dia inteiro, nós seguramos nossos segredos por meses seguidos. Só o segredo nos salvará mais tarde, muito mais tarde do que isto, agora é o tempo da transição e dos desastres aéreos, o tempo da descoberta de planetas muito semelhantes ao nosso mas a 1400 anos-luz daqui, o tempo da morte dos campeões, dos camponeses e dos escritores. Nunca se viu um ano como este, ou talvez sim, todo ano é uma foice e a foice da temporada 2015 está levando tantas cabeças. Pense no Herberto, no Manoel, pense no Galeano, pense no James Tate, estávamos tão distraídos quando morreu Tate, e os poemas dele são círculos tão absurdos quanto costurados pela linha da esperança — às vezes acho que é só disso que precisamos, precisaríamos, um cordel tosco e ao mesmo tempo iluminado, um objeto meio bola de praia, meio ostra, meio plástico meio talismã. Está tarde, talvez estejamos só cansados. Somos os descendentes do passado e o passado sempre foi meio esquisito, aprendemos a ler pelo mapa dos transportes públicos, subiu tanto o preço dos transportes públicos, os mapas das cidades se alteraram, há um desenho novo a cada esquina, só o desenho de nosso corpo não mudou e até isso é mentira. Nossos corpos vão se renovando a cada dia, a cada hora, agora que penso nisso: graças a Deus. Somos o reflexo da cordilheira. Fomos abençoados com a possibilidade do movimento, o constante movimento entre as falésias, abençoados com as tardes de verão e com o cinema que surgiu das cabeças francesas debaixo de um certo sol, foi-nos dada a estufa fria para de dentro dela poder contemplar a natureza que rebenta com tudo lá fora, foram-nos concedidos os vidros e o poder dos vidros. Fomos abençoados com a manhã, com o suor e com as coisas que conseguimos fazer com nosso suor até aos trinta e oito anos, foram-nos concedidas igrejas e cavernas e toda a espécie de templos que impressionam o silêncio, temos a possibilidade do templo em nosso próprio eixo humano, veja bem que sorte a nossa. Estamos atentos, estamos calados, estamos fixando sempre o mesmo objeto. Repetimos os nomes e os gestos para que nos possamos aproximar da realidade. Mito e realidade, que surpresa, afinal é tudo o mesmo. Está tarde, hoje a morte não entrou por nossos túneis, e é muito devagar que vamos movendo os animais para a montanha, da planície para a montanha, de casa para casa. Talvez esta noite possamos dormir em paz. Porque agora em nossas mãos está escrito a carvão aquele trecho de um poema do Pavese, que diz: “Lá fora, depois do jantar, virão as estrelas tocar/ a grande planície da terra. É debaixo deste silêncio que acontece o estouro.”

23 de Agosto de 2015

Crónica. Notas para um século surpreendente
Está tarde já. Parece muito cedo, mas está tarde. Tem gente morrendo por aí, gente íntima e gente privada, há explosões…
www.publico.pt

Matilde Campilho é uma poeta portuguesa, nascida em Cascais, 1982, estudou Literatura em Lisboa e História da Arte em Milão. Morou no Rio de Janeiro, onde também trabalhou como jornalista e redatora freelancer entre os anos de 2010 e 2013 e foi nessa estadia entre Rio e Lisboa que deu vida a sua primeira obra, Jóquei, misturando a dicção das duas cidades.

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Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus — ou foi talvez o Diabo — deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.
I
Que acorde o lenhador

A oeste do Colorado River
há um lugar que amo.
Acorro ali com tudo o que palpitando
transcorre em mim, com tudo
o que fui, o que sou, o que mantenho.
Há umas altas pedras vermelhas, o ar
selvagem de mil mãos
as fez edificar estruturas:
o escarlate cego subiu do abismo
e nelas se fez cobre, fogo e força.
América estendida como a pele do búfalo,
aérea e clara noite do galope,
lá para as alturas estreladas,
bebo a tua taça de verde orvalho.

Sim, por acre Arizona e Wisconsin nodoso,
até Milwaukee levantada contra o vento e a neve
ou nos excitados pântanos de West Palm,
perto dos pinheirais de Tacoma, no espesso
odor de aço de teus bosques,
andei pisando terra mãe,
folhas azuis, pedras de cachoeira
, furacões que tremiam como toda música,
rios que rezavam como os monastérios,
marrecos e maçãs, terras e águas,
infinita quietude para que o trigo nasça.

Ali pude, em minha pedra central, estender ao ar
olhos, ouvidos, mãos, até ouvir
livros, locomotivas, neve, lutas,
fábricas, tumbas, vegetais, passos,
e de Manhattan a lua no navio,
o canto da máquina que fia,
a colher de ferro que come terra,
a perfuratriz com seu golpe de condor
e tudo o que corta, oprime, corre cose:
seres e rodas repetindo e nascendo.

Amo o pequeno lar do farmer. Recentes mães dormem
aromadas como o xarope do tamarindo, os panos
recém-passados. Arde
o fogo em mil lares rodeados de cebolas
. (Os homens quando cantam perto do rio têm
uma voz rouca como as pedras do fundo:
o tabaco saiu de suas largas folhas
e como um duende do fogo chegou a estes lares.)
Vinde para dentro de Missouri, olhai o queijo e a farinha,
as tábuas olorosas, rubras como violinos,
o homem navegando a cevada,
o potro azul recém-montado cheira
o aroma do pão e da alfafa:
sinos, papoulas, ferrarias,
e nos destrambelhados cinemas silvestres
o amor abre a sua dentadura
no sonho nascido da terra.
É tua paz que amamos, não a tua máscara.
Não é formoso o teu rosto guerreiro.
És formosa e vasta, América do Norte.
Vens de humilde berço como uma lavadeira,
junto de teus rios, branca.
Edificada no desconhecido,
em tua paz de colmeia o doce teu.
Amamos o teu homem com as mãos vermelhas
do barro de Oregon, teu menino negro
que te trouxe a música nascida
em sua comarca de marfim: amamos
tua cidade, tua substância,
tua luz, teus mecanismos, a energia
do oeste, o pacífico
mel, de colmeal e aldeia,
o gigante jovem no trator,
a aveia que herdaste
de Jefferson, a roda rumorosa
que mede a tua terrestre oceania,
o fumo de uma fábrica e o beijo
número mil de uma colônia nova:
teu sangue lavrador é o que amamos:
a tua mão popular cheia de azeite.

Sob a noite dos prados já faz tempo
repousam sobre a pele do búfalo em grave
silêncio as sílabas, o canto
do que fui antes de ser, do que fomos.
Melville é um abeto marinho, de seus ramos
nasce uma curva de carena, um braço
de madeira e navio. Whitman inumerável
como os cereais, Poe em sua matemática
treva, Dreiser, Wolfe,
frescas feridas de nossa própria ausência,
Lockridge recente, atados à profundidade,
quantos outros, atados à sombra:
sobre eles a mesma aurora do hemisfério arde
e deles está feito o que somos,
Poderosos infantes, capitães cegos,
entre acontecimentos e folhagens às vezes amedrontados,
interrompidos pela alegria e pela dor,
sob os prados cruzados de tráfico,
quantos mortos nas planícies antes não visitadas:
inocentes atormentados profetas recém-impressos,
sobre a pele do búfalo dos prados.

Da França, de Okinawa, das coralinas
de Leyte (Norman Mailer o deixou escrito),
do ar enfurecido e das ondas,
retornaram quase todos os rapazes
. Quase todos ... Foi verde e amarga a história
de lama e suor: não ouviram
bastante o canto dos arrecifes
nem tocaram talvez a não ser para morrer nas ilhas, as coroas
de fulgor e fragrância:
sangue e esterco
os perseguiram, a imundície e as ratazanas,
e um cansado e desolado coração que lutava.
Mas já voltaram,
os recebestes
no vasto espaço das terras estendidas
e se fecharam (os que voltaram) como uma corola
de inumeráveis pétalas anônimas
para renascer e olvidar.


II
Mas além disso encontraram
um hóspede em casa,
ou trouxeram novos olhos (ou foram cegos antes)
ou a hirsuta ramaria lhes rompeu as pálpebras
ou novas coisas há nas terras da América.
Aqueles negros que combateram contigo, os
duros e sorridentes, olhai:
puseram uma cruz ardendo
diante de seus casarios,
enforcaram e queimaram o teu irmão de sangue:
fizeram-no combatente, hoje lhe negam
palavra e decisão: juntam-se
à noite os verdugos
encapuzados, com a cruz e o chicote.
(Outra coisa
se ouvia em além-mar combatendo.)
Um hóspede imprevisto

como um velho octópode roído,
imenso, circundante,
instalou-se em tua casa, soldadinho:
a imprensa destila o antigo veneno, cultivado em Berlim .
Os jornais (Times, Newsweek, etc.) converteram-se
em amarelas folhas de delação: Hearst,
que cantou o canto de amor aos nazistas, sorri
e afia as unhas para que partais de novo
para os arrecifes ou para as estepes
a combater por este hóspede que ocupa a tua casa.
Não te dão trégua: querem continuar vendendo
aço e balas, preparam uma nova pólvora
e é preciso vendê-la logo, antes que lhe passe à frente
a fresca pólvora e caia em novas mãos.
Por todas as partes os amos instalados
em tua mansão aumentam suas falanges,
amam a Espanha negra e uma taça de sangue te oferecem
(um fuzilado, cem): o coquetel Marshall.
Escolhei sangue jovem: camponeses
da China, prisioneiros
da Espanha,
sangue e suor de Cuba açucareira,
lágrimas de mulheres,
das minas de cobre e do carvão no Chile,
logo batei com energia
como um golpe de garrote
não esquecendo pedacinhos de gelo e algumas gotas
do canto Defendemos a cultura cristã.
É amarga esta mistura?
Já te acostumarás, soldadinho, a bebe-la.
Em qualquer lugar do mundo, à luz da lua,
ou pela manhã, no hotel de luxo,
pede esta bebida que dá vigor e refresca
e paga-a com uma boa nota
com a imagem de Washington.

Descobriste também que Charlie Chaplin, o último
pai da ternura no mundo,
deve fugir, e que os escritores (Howard Fast, etc.),
os sábios e os artistas
em tua terra
devem sentar-se para ser julgados por “un-american” pensamentos
diante dum tribunal de mercadores enriquecidos pela guerra.
Até os últimos confins do mundo chega o medo.
Minha tia lê essas notícias assustada,
e todos os olhos da terra olham
para esses tribunais de vergonha e vingança.
São os estrados dos Babbits sangrentos, `
dos escravagistas, dos assassinos de Lincoln,
são as novas inquisições levantadas agora
não pela cruz (e então era horrível e inexplicável)
mas pelo ouro redondo que bate
nas mesas dos prostíbulos e nos bancos
e que não tem, o direito de julgar.

Em Bogotá uniram-se Moríñigo, Trujillo,
González Videla, Somoza, Dutra, e aplaudiram.
Tu, jovem americano, não os conheces: são
os vampiros sombrios de nosso céu, amarga
é a sombra de suas asas:
prisões,
martírio, morte, ódio: as terras
do sul com petróleo e nitrato
conceberam monstros.
À noite no Chile, em Lota,
na humilde e molhada casa dos mineiros,
chega a ordem do verdugo. Os filhos
acordam chorando.
Milhares deles
encarcerados, pensam.
No Paraguai
a densa sombra florestal esconde
os ossos do patriota assassinado, um tiro
soa
na fosforescência do verão.
Morreu
ali a verdade.
Por que não intervêm
em São Domingos para defender o Ocidente Mr. Vandenberg,
Mr. Armour, Mr. Marshall, Mr. Hearst?
Por que na Nicarágua o senhor presidente,
despertado à noite, atormentado, teve
de fugir para morrer no desterro?
(Ali há bananas a defender e não liberdades,
e para isso basta Somoza.)
As grandes
vitoriosas idéias estão na Grécia
e na China para auxílio
de governos manchados como alfombras imundas.
Ai, soldadinho!
 

III
Também eu mais além de tuas terras, América,
ando e faço minha casa errante, vôo, passo,
canto e converso através dos dias.
Na Ásia, na URSS, nos Uraís me detenho
e estendo minha alma empapada de soledades e resina.
Amo o quanto nos espaços
a golpes de amor e luta o homem criou.
Ainda rodeia a minha casa nos Urais
a antiga noite dos pinheiros
e o silêncio como uma alta coluna.
Trigo e aço aqui nasceram
da mão do homem, de seu peito.
E um canto de martelos alegra o bosque antigo
como um novo fenômeno azul.
Daqui olho extensas zonas do homem,
geografia de meninos e mulheres, amor,
fábricas e canções, escolas
que brilham como goivos na selva
onde morou até ontem a raposa selvagem.
Daquele ponto abarca a minha mão no mapa
o verde dos prados, o fumo
de mil oficinas, os aromas
têxteis, o assombro
da energia dominada.
Volto nas tardes
pelos novos caminhos recém-traçados
e entro nas cozinhas
onde ferve o repolho e de onde sai
um novo manancial para o mundo.
Também aqui regressaram os rapazes,
mas muitos milhões ficaram atrás,
enganchados, pendurados nas forcas,
queimados em fornos especiais,
destruídos até não ficar deles
mais que o nome na lembrança.
Também foram assassinadas suas povoações:
a terra soviética foi assassinada:
milhões de vidros e ossos se confundiram,
vacas e fábricas, até a primavera
desapareceu tragada pela guerra.
Voltaram os rapazes, no entanto,
e o amor pela pátria construída
se havia mesclado neles com tanto sangue
que Pátria dizem com as veias,
União Soviética cantam com o sangue.
Foi alta a voz dos conquistadores
da Prússia e de Berlim quando voltaram
para que renascessem as cidades,
os animais e a primavera.

Walt Whitman, ergue a tua barba de relva,
olha comigo do bosque,
destas magnitudes perfumadas.
Que vês aí, Walt Whitman?
Vejo, me diz meu irmão profundo,
vejo como trabalham as usinas,
nas cidades que os mortos recordam,
na capital pura,
na resplandecente Stalingrado.
Vejo da planície combatida
do padecimento e do incêndio
nascer na umidade da manhã
um trator rechinante na direção das planuras.
Dá-me a tua voz e peso de teu peito enterrado,
Walt Whitman, e as graves
raízes de teu rosto
para cantar estas reconstruções!
Cantemos juntos o que se levanta
de todas as dores, o que surge
do grande silêncio, da grave
vitória:
Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce andar por andar a esperança
como uma habitação coletiva,
e há um tremor de novo em marcha
ensinando,
cantando
e construindo.
Do sangue surge Stalingrado
como uma orquestra de água, pedra e ferro
e o pão renasce nas padarias,
a primavera nas escolas,
sobe novos andaimes, novas árvores,
enquanto o velho e férreo Volga palpita.
Estes livros,
em frescas caixas de pinho e cedro,
estão reunidos sobre o túmulo
dos verdugos mortos:
estes teatros feitos nas ruínas
cobrem martírio e resistência:
livros claros como monumentos:
um livro sobre cada herói,
sobre cada milímetro de morte,
sobre cada pétala desta glória imutável.

União Soviética, se juntássemos
todo o sangue derramado em tua luta,
todo o que deste como mãe ao. mundo
para que a liberdade agonizante vivesse,
teríamos um novo oceano,
grande como nenhum outro,
profundo como nenhum outro,
vivente como todos os rios,
ativo como o fogo dos vulcões araucanos.
Neste mar mergulha a tua mão,
homem de todas as terras,
e levanta-a depois para afogar nele
aquele que esqueceu, que ultrajou,
o que mentiu e o que manchou,
o que se uniu com cem pequenos cachorros
da lixeira do Ocidente
para insultar o teu sangue, Mãe dos livres!

Do fragrante odor dos pinheiros urais
olho a biblioteca que nasce
no coração da Rússia,
o laboratório no qual o silêncio
trabalha, olho os trens que levam
madeira e canções a novas cidades,
e nesta paz balsâmica cresce um latejar
como em novo peito:
à estepe moças e pombas
regressam agitando a brancura,
os laranjais se povoam de ouro:
o mercado tem hoje
a cada amanhecer
um novo aroma,
um novo aroma que chega das altas terras
nas quais o martírio foi maior:
os engenheiros fazem tremular o mapa
das planícies com os seus números
e as tubulações se envolvem como longas serpentes
nas terras do novo inverno vaporoso.
Em três aposentos do velho Kremlin
vive um homem chamado José Stálin.
Tarde se apaga a luz de seu quarto.
O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.
Outros heróis deram à luz uma pátria,
ele além disso ajudou a conceber a sua,
a edificá-la,
a defendê-la.
Sua imensa pátria é, pois, parte dele mesmo
e não pode descansar porque ela não descansa.
Em outro tempo a neve e a pólvora
o encontraram diante dos velhos bandidos
que quiseram (como agora mais uma vez) reviver
o knut, e a miséria, a angústia dos escravos,
a dor adormecida de milhões de pobres.
Ele esteve contra os que como Wrangel e Denikin
foram enviados do Ocidente para “defender a cultura”.
Lá deixaram o couro aqueles defensores
dos verdugos, e no vasto terreno
da URSS, Stálin trabalhou noite e dia.
Porém mais tarde chegaram numa onda de chumbo
os alemães cevados por Chamberlain.
Stálin os enfrentou em todas as vastas fronteiras,
em todas as retiradas, em todos os assaltos
e até Berlim os seus filhos como um furacão de povos
chegaram e levaram a paz vasta da Rússia.

Molotov e Vorochilov
lá estão, eu os vejo,
com os outros, os altos generais,
os indomáveis.
Firmes como nevadas azinheiras.
Nenhum deles tem palácios.
Nenhum deles tem regimentos de servos.
Nenhum deles se tornou rico na guerra
vendendo sangue.
Nenhum deles vai como um pavão real
ao Rio de Janeiro ou a Bogotá
comandar pequenos sátrapas manchados de tortura:
nenhum deles tem duzentos trajes:
nenhum deles tem ações em fábricas de armamentos,
e todos eles têm
ações
na alegria e na construção
do vasto país onde ressoa a aurora
erguida na noite da morte.
Eles disseram “camarada” ao mundo.

Eles fizeram rei o carpinteiro.
Por essa agulha não entrará um camelo.
Lavaram as aldeias.
Repartiram a terra.
Elevaram o servo.
Apagaram o mendigo.
Aniquilaram os cruéis.
Fizeram luz na espaçosa noite.
 
Por isso a ti, moça de Arkansas, ou, melhor ainda,
a ti, jovem dourado de West Point, ou, melhor,
a ti, mecânico de Detroit, ou, ainda,
a ti, carregador da velha Orleans, a todos
falo e digo: firma teu passo,
abre teu ouvido ao vasto mundo humano,
não são os elegantes do State Department
nem os ferozes donos do aço
os que te estão falando,
mas um poeta do extremo sul da América,
filho dum ferroviário da Patagônia,
americano como o ar andino,
hoje fugitivo duma pátria na qual
o cárcere, o tormento, a angústia imperam
enquanto o cobre e o petróleo lentamente
se convertem em ouro para reis alheios.
Tu não és
o ídolo que numa mão leva o ouro
e na outra a bomba.
Tu és
o que sou, o que fui, o que devemos
amparar, o fraternal subsolo
da América puríssima, os singelos
homens dos caminhos e das ruas.
Meu irmão Juan vende sapatos
como o teu irmão John,
minha irmã Juana descasca batatas,
como a tua prima Jane,
e meu sangue é mineiro e marinheiro
como o teu sangue, Peter.

Tu e eu vamos abrir as portas
para que passe a brisa dos Urais
através da cortina de tinta,
tu e eu vamos dizer ao furioso:
“My dear guy, daqui não passarás”,
daqui pra cá a terra nos pertence
para que não se ouça a rajada
da metralhadora, porém uma
canção, e outra canção, e outra canção.



IV
Porém se armas as tuas hostes, América do Norte,
para destruir essa fronteira pura
e levar o magarefe de Chicago
ao governo da música e da ordem
que amamos,
sairemos das pedras e do ar
para morder-te:
sairemos da última janela
para derramar-te fogo:
sairemos das ondas mais profundas
para cravar-te com espinhos:
sairemos do eito para que a semente
golpeie como um punho colombiano,
sairemos para negar-te pão e água,
sairemos para queimar-te no inferno.

Não ponhas então o pé, soldado,
na doce França, porque lá estaremos
para que as verdes vinhas dêem vinagre
e as moças pobres te mostrem o local
no qual está fresco o sangue alemão.
Não subas pelas secas serras da Espanha
porque cada pedra se converterá em fogo,
e lá mil anos combaterão os valentes:
não te percas entre os olivais porque
nunca tornarás a Oklahoma, mas não entres
na Grécia, que até o sangue que hoje estás derramando
se levantará da terra para deter-vos.
Não venhais pescar então em Tocopilla
porque o peixe-espada conhecerá vossos despojos
e o obscuro mineiro da Araucania
procurará as antigas flechas cruéis
que esperam enterradas novos conquistadores.
Não confieis no gaúcho cantando uma vidalita,
nem no operário dos frigoríficos. Eles
estarão em todas as partes com olhos e punhos,
como os venezuelanos que vos esperam nessa ocasião
com uma garrafa de petróleo e uma guitarra nas mãos.
Não entres, não entres tampouco na Nicarágua.
Sandino dorme na selva até tal dia,
seu fuzil se encheu de cipós e de chuva,
seu rosto não tem pálpebras,
mas as feridas com que o matastes estão vivas
como as mãos de Porto Rico que esperam
as luzes das facas.
Será implacável o mundo para vós.
Não só as ilhas serão despovoadas, mas o ar
que já conhece as palavras que lhe são queridas.

Não chegues a pedir carne de homem
no alto Peru: na névoa roída dos monumentos
o doce antepassado de nosso sangue afia
contra ti as suas espadas de ametista,
e pelos vales o rouco caracol de batalha
congrega os guerreiros, os fundeiros
filhos de Amaru. Nem pelas cordilheiras mexicanas
busques homens para levá-los a combater a aurora;
os fuzis de Zapata não estão dormidos,
são azeitados e apontados para as terras do Texas.
não entres em Cuba, que do fulgor marinho
dos canaviais suarentos
há um único escuro olhar que te espera
e um único grito até matar ou morrer.
Não chegues
à terra de partisanos na rumorosa
Itália: não passes das filas dos soldados com jacquet
que manténs em Roma, não passes de São Pedro:
além os santos rústicos das aldeias,
os santos marinheiros do pescado
amam o grande país da estepe
no qual floresceu de novo o mundo.
Não toques
nas pontes da Bulgária, não te darão passagem,
os rios da Romênia, jogaremos neles sangue fervendo
para que queimem os invasores:
não cumprimentes o camponês que hoje conhece
os túmulos dos feudais, e vigia
com seu arado e seu rifle: não olhes para ele
porque te queimará como uma estrela.
Não desembarques
na China: já não existirá Chang, o Mercenário,
rodeado de sua apodrecida corte de mandarins:
haverá para esperar-vos uma selva
de foices labregas e um vulcão de pólvora.
Em outras guerras existiram fossos com água
e depois cercas de arame, com puas e garras,
mas este fosso é maior; estas águas mais fundas,
estes arames mais invencíveis que todos os metais.
São um átomo e outro do metal humano,
são um nó e mil nós de vidas e vidas:
são as velhas dores dos povos
de todos os remotos vales e reinos,
de todas as bandeiras e navios,
de todas as covas onde foram amontoados,
de todas as redes que saíram contra a tempestade,
de todas as ásperas rugas da terra,
de todos os infernos nas quentes caldeiras,
de todos os teares e das fundições,
de todas as locomotivas perdidas ou congregadas.
Este arame dá mil voltas no mundo:
parece dividido, desterrado,
e de repente se juntam seus ímãs
para encher a terra.
Porém ainda
mais longe, radiantes e determinados,
acerados, sorridentes,
para cantar ou combater
vos esperam
homens e mulheres da tundra e da taiga,
guerreiros do Volga que venceram a morte,
meninos de Stalingrado, gigantes da Ucrânia,
toda uma vasta e alta parede de pedra e sangue,
ferro e canções, coragem e esperança.
Se tocardes neste muro caireis
queimados como o carvão das usinas
, os sorrisos de Rochester se farão trevas
que logo a neve enterrará a brisa da estepe
e logo a neve enterrará para sempre.
Virão os que lutaram desde Pedro
Até os novos heróis que assombraram a terra
E farão de suas medalhas pequenas balas frias
Que silvarão sem trégua de toda
A vasta terra que hoje é alegria.
E do laboratório coberto de trepadeiras
Sairá também o átomo desencadeado
Na direção de vossas cidades orgulhosas.

 

V
Que nada disso aconteça.
Que desperte o Lenhador.
Que venha Abraham com seu machado
E com o seu prato de madeira
Para comer com os camponeses.
Que a sua cabeça de córtice,
Seus olhos vistos nas tábuas,
Nas rugas do carvalho,
Voltem a olhar o mundo
Subindo sobre as folhagens,
Mais altos que as sequóias.
Que entre para comprar nas farmácias,
Que tome um ônibus em Tampa,
Que morda uma maçã amarela,
Que entre num cinema, que converse
Com toda a gente simples.

Que desperte o Lenhador.

Que venha Abraham, que faça crescer
Seu velho fermento a terra
Dourada e verde de Illinois,
E levante o machado no meio do seu povo
Contra os novos escravagistas,
Contra o chicote do escravo,
contra o veneno da imprensa,
contra a mercadoria
sangrenta que querem vender.
Que marchem cantando e sorrindo
o jovem branco, o jovem negro,
contra as paredes de ouro,
contra o fabricante de ódio,
contra o mercador de sangue,
cantando, sorrindo e vencendo.

Que desperte o Lenhador.

VI
Paz para os crepúsculos que chegam,
paz para a ponte, paz para o vinho,
paz para as letras que me procuram
e que em meu sangue sobem enredando
v velho canto com terra e amores,
paz para a cidade na manhã
quando desperta o pão, paz para o rio
Mississípi, rio das raízes:
paz para a camisa de meu irmão,
paz para o livro como um selo de aragem,
paz para o grande colcós de Kíev,
paz para as cinzas destes mortos
e destes outros mortos, paz para o ferro
negro de Brooklyn, paz para o carteiro
de casa em casa como o dia,
paz para o coreógrafo que grita
com um megafone, às campanhas,
paz para a minha mão direita,
que só quer escrever Rosario:
paz para o boliviano secreto
como uma pedra de estanho, paz
para que tu te cases, paz para todas
as serrarias de Bío-Bío,
paz para o coração dilacerado
da Espanha guerrilheira:
paz para o pequeno museu de Wyoming,
no qual o mais doce
é um travesseiro com um coração bordado,
paz para o padeiro e seus amores
e paz para a farinha: paz
para todo o trigo que deve nascer,
para todo o amor que buscará folhagem,
paz para todos os que vivem: paz
para todas as terras e todas as águas.


Aqui eu me despeço, volto
para casa, em meus sonhos,
volto para a Patagônia, onde
o vento bate nos estábulos
e respinga e gela o oceano.

Não sou mais que um poeta: amo todos vós,
ando errante pelo mundo que amo:
em minha pátria encarceram mineiros
e os soldados mandam nos juízes.

Porém eu amo até as raízes
de meu pequeno país frio.

Se tivesse que morrer mil vezes
lá quero morrer:
se tivesse de nascer mil vezes
lá quero nascer,
perto da araucária selvagem,
do vendaval do vento sul,
dos sinos recém-comprados.

Que ninguém pense em mim.

Pensemos na terra toda,
batendo com amor na mesa.

Não quero que volte o sangue
a empapar o pão, os feijões,
a música: quero que venha
comigo, o mineiro, a menina,
o advogado, o marinheiro,
o fabricante de bonecas,
que entremos no cinema e saiamos
para beber o vinho mais rubro.


Não venho para resolver nada.


Vim aqui para cantar
e para que cantes comigo.

Meu leitor, o sucedido
em Lajes do Caldeirão
é caso de muito ensino,
merecedor de atenção.
Por isso é que me apresento
fazendo esta relação.

Vivia em dito arraial
do país das Alagoas
um rapaz chamado João,
cuja força era das boas
pra sujigar burro bravo,
tigres, onças e leoas.

João, lhe deram este nome
não foi de letra em cartório,
pois sua mãe e seu pai
viviam de peditório.
Gente assim do miserê
nunca soube o que é casório.

Ficou sendo João, pois esse
é nome de qualquer um.
Não carece excogitar,
pedir a doutor nenhum,
que a sentença vem do Céu,
não de lá do Barzabum.

De pequeno ficou órfão,
criado por seus dois manos.
Foi logo para o trabalho
com muitos outros fulanos
e seu muque, sem mentira,
era o de três otomanos.

Na enxada, quem que vencia
aquele tico de gente.
No boteco, se ele entrava
pra bochechar aguardente,
o saudavam com respeito:
Deus lhe salve, meu parente.

João moço não enjeitava
parada com sertanejo.
Podiam brincar com ele
sem carregar no gracejo.
Dizia que homem covarde
não é cabra, é percevejo.

Um dia de calor desses
que tacam fogo no agreste,
João suava que suava
sem despir a sua veste.
Companheiro, essa camisa
não é coisa que moleste?

lhe perguntou um amigo
que estava de peito nu.
E João se calado estava
nem deu pio de nambu.
Ninguém nunca viu seu pelo
nem por trás do murundu.

João era muito avexado
na hora de tomar banho.
Punha tranca no barraco
fugindo a qualquer estranho.
Em Lajes nenhum varão
tinha recato tamanho.

João nas últimas semanas
entrou a sofrer de inchaço.
Mesmo assim arranca toco
sem se carpir de cansaço.
Um dia, não guenta mais,
exclama: O que é que eu faço?

Os manos, vendo naquilo
coisa mei’ desimportante,
logo receitam de araque
meizinha sem variante
para qualquer macacoa:
Carece tomar purgante.

João entrou no purgativo
louco de dor e de medo,
se estorcendo e contorcendo
na solidão do arvoredo,
pois ele em sua aflição
lá se escondera bem cedo.

O gemido que exalava
do peito de João sozinho
alertou os seus dois manos
que foram ver de mansinho
como é que aquele bravo
se tornara tão fraquinho.

No chão de terra, essa terra
que a todos nós vai comer,
chorava uma criancinha
acabada de nascer,
e João, de peito desnudo,
acarinhava este ser.

Aquela cena imprevista
causou a maior surpresa.
O que tanto se ocultara
se mostrava sem defesa.
João deixara de ser João
por força da natureza.

A mulher surgia nele
ao mesmo tempo que o filho,
tal qual se brotassem junto
a espiga com o pé de milho,
ou como bala que estoura
sem se puxar o gatilho.

Se os manos levaram susto,
até eu, que apenas conto.
E o povo todo, assuntando
a estória ponto por ponto,
ficou em breve inteirado
do que aí vai sem desconto.

Nem menino nem menina
era João quando nasceu.
A mãe, sem saber ao certo,
o nome de João lhe deu,
dizendo: Vai vestir calça
e não saia que nem eu.

À proporção que crescia
feito animal na campina,
em João foi-se acentuando
a condição feminina,
mas ele jamais quis ser
tratado feito menina.

Pois nesse triste povoado
e cem léguas ao redor,
ser homem não é vantagem,
mas ser mulher é pior.
Quem vê claro já conclui:
de dois males o menor.

Homem é grão de poeira
na estrada sem horizonte;
mulher nem chega a ser isso
e tem de baixar a fronte
ante as ruindades da vida,
de altura maior que um monte.

A sorte, se presenteia
a todos doença e fome,
para as mulheres capricha
num privilégio sem nome.
Colhe miséria maior
e diz à coitada: Tome.

É forma de escravidão
a infinita pobreza,
mas duas vezes escrava
é a mulher com certeza,
pois, escrava de um escravo,
pode haver maior dureza?

Por isso aquela mocinha
fez tudo para iludir
aos outros e ao seu destino.
Mas rola não é tapir
e chega lá um momento
da natureza explodir.

João vira Joana: acontecem
dessas coisas sem preceito.
No seu colo está Joãozinho
mamando leite de peito.
Pelo menos esse aqui
de ser homem tem direito.

De ser homem: de escolher
o seu próprio sofrimento
e de escrever com peixeira
a lei do seu mandamento,
quando à falta de outra lei
ou eu fujo ou arrebento.

Joana desiste de tudo
que ganhara por mentira.
Sabe que agora lhe resta
apenas do saco a embira.
E nem mesmo lhe aproveita
esta minha pobre lira.

Saibam quantos deste caso
houverem ciência que a vida
não anda, em favor e graça,
igualmente repartida,
e que dor ensombra a falta
de amor, de paz e comida.

Meu leitor (não eleitor,
que eu nada te peço a ti
senão me ler com paciência
de Minas ao Piauí):
tendo contado meu conto,
adeus, me despeço aqui.
31/08 e 02/09/1966
na noite em que eu ia morrer
suava na minha cama
e podia ouvir os grilos
e lá fora gatos brigavam
e eu podia sentir minha alma escorrendo através do
colchão
e antes que ela tocasse o chão me levantei de um salto
fraco de quase não poder caminhar
mas caminhei ali ao redor e acendi todas as luzes
então retornei para a cama
e novamente minha alma começou a escorrer através do colchão
e eu me levantei
antes que ela chegasse ao chão
caminhei por ali e acendi todas as luzes
e então voltei para a cama
e lá estava ela escorrendo de novo e
novamente eu de pé
acendendo todas as luzes
eu tinha uma filha de 7 anos
e a certeza de que ela não queria que eu morresse
de outro modo eu não teria me preocupado nem um
pouco
mas naquela noite inteira
ninguém telefonou
ninguém apareceu com uma cerveja
minha namorada não ligou
e eu podia ouvir os grilos e fazia
calor
e eu seguia imerso naquilo tudo
levantando e deitando
até que o primeiro raio do sol atravessou a janela
através dos arbustos
e então deitei na cama
e alma ficou onde estava
por fim aqui dentro e eu
dormi.
agora as pessoas aparecem
batendo nas portas e nas janelas
o telefone toca
o telefone toca sem parar
recebo grandes cartas no correio
cartas de ódio e cartas de amor.
tudo voltou a ser o que era antes.

Duas madrugadas depois, às quatro da manhã, alguém bateu à porta.
– Quem é?
– É uma piranha ruiva.
Deixei Tammie entrar. Ela se sentou e eu abri duas cervejas.
– Estou com mau hálito, dois dentes podres. Você não pode me beijar.
– Tudo bem.
Conversamos. Bem, eu ouvi. Tammie estava emboletada. Fiquei escutando e olhando para os seus longos cabelos ruivos e enquanto ela se preocupava eu seguia olhando, olhando também para aquele corpo. Era como se ele fosse saltar para fora das roupas dela, como se implorasse para sair. Ela falava e falava. Não a toquei.
Às seis horas da manhã, Tammie me deu seu endereço e número de telefone.
– Tenho que ir – ela disse.
– Acompanho você até o carro.
Era um Camaro vermelho reluzente, completamente demolido. A parte da frente estava amassada, uma das laterais trazia um furo na lataria, as janelas não tinham mais vidros. Na parte de dentro havia panos e camisas e caixas de Kleenex e jornais e caixas de leite e garrafas de Coca e fios e cordas e guardanapos de papel e revistas e copos de papel e sapatos e canudinhos coloridos. Essa enorme massa de coisas estava empilhada até a altura dos bancos e os cobria por completo. Somente o do motorista tinha uma área mais ou menos livre.
Tammie estendeu a cabeça pela janela e nos beijamos.
Então ela se afastou do meio-fio e quando alcançou a esquina já estava a setenta quilômetros por hora. Ela pisou fundo no freio, e o Camaro deu um tranco, subiu e desceu, subiu e desceu. Voltei para dentro.
Voltei para a cama e fiquei pensando naqueles cabelos. Jamais tinha conhecido uma ruiva de verdade. Era fogo puro.
Como relâmpagos celestiais, pensei.
De algum modo seu rosto já não me parecia tão duro quanto antes...
Tammie apareceu naquela noite. Parecia estar louca de anfetaminas.
– Quero um pouco de champanhe – ela disse.
– Tudo bem – eu disse.
Alcancei-lhe uma nota de vinte.
– Volto logo – ela disse, caminhando até a porta.
Então o telefone tocou. Era Lydia.
– Queria saber apenas como estavam as coisas por aí...
– Está tudo bem.
– Comigo não. Estou grávida.
– O quê?
– E não sei quem é o pai.
– Hein?
– Você conhece o Dutch, o cara que anda ali pelo bar onde estou trabalhando?
– Sim, o velho Carequinha.
– Bem, ele é um cara muito legal. Está apaixonado por mim. Sempre me leva flores e doces. Quer se casar comigo. Tem sido muito bacana. E numa noite dessas eu fui pra casa com ele. A gente transou.
– Certo.
– E tem também o Barney, ele é casado, mas gosto dele. De todos os caras no bar ele é o único que nunca tentou me cantar. Fiquei fascinada com isso. Bem, você sabe, estou tentando vender a minha casa. Então ele apareceu uma tarde dessas. Apenas apareceu. Disse que estava atrás de uma casa para um amigo. Deixei ele entrar. Bem, ele chegou na hora certa. As crianças estavam na escola, bem, deixei que ele fosse em frente... Então certa noite um cara desconhecido chegou no bar, já era tarde. Pediu que eu fosse pra casa com ele. Eu disse não. Então ele disse que só queria ficar sentado no carro comigo, conversar e tal. Eu disse tudo bem. Ficamos lá no carro e conversamos. Então fumamos um baseado. E aí ele me beijou. Se ele não tivesse me beijado não teria rolado nada. Bem, agora estou grávida e não sei de quem. Terei que esperar pra ver com quem a criança se parece.
– Tudo bem, Lydia, toda sorte do mundo pra você.
– Obrigada.
Desliguei. Um minuto se passou e o telefone voltou a tocar. Era Lydia.
– Oh – ela disse –, me pergunto como você está se virando.
– O mesmo de sempre, cavalos e trago.
– Então está tudo bem com você?
– Não exatamente.
– O que está acontecendo?
– Bem, mandei uma mulher buscar champanhe...
– Mulher?
– Bem, na verdade é uma garota...
– Uma garota?
– Dei a ela uma nota de 20 pra comprar champanhe e ela ainda não voltou. Acho que fui enganado.
– Chinaski, não quero ouvir falar das suas mulheres. Será que você consegue entender isso?
– Tudo bem.
Lydia desligou. Soou uma batida na porta. Era Tammie. Ela voltava com o champanhe e o troco.
No dia seguinte, perto do meio-dia, o telefone tocou. Era novamente Lydia.
– Bem, ela voltou com o champanhe?
– Quem?
– A sua piranha.
– Sim, ela voltou...
– Então, o que aconteceu?
– Bebemos champanhe. Era dos bons.
– E então o que aconteceu?
– Bem, você sabe, aquela coisa...
Ouvi um uivo longo e insano, como se uma loba tivesse sido baleada em meio à neve do Ártico e, sangrando, fosse abandonada para morrer sozinha...
Ela desligou.
Dormi a maior parte da tarde e, à noite, dirigi até as corridas de charretes.
Perdi 32 dólares e entrei no fusca e fiz o caminho de volta. Estacionei, caminhei até a varanda e pus a chave na fechadura. Todas as luzes estavam acesas. Olhei em volta. As gavetas estavam abertas e haviam sido viradas, as roupas de cama estavam no chão. Todos os meus livros tinham sumido da prateleira, inclusive aqueles que eu tinha escrito, vinte ou mais. E minha máquina de escrever se foi e minha torradeira se foi e meu rádio se foi e minhas telas se foram.
Lydia, pensei.
Tudo o que ela havia me deixado era a tevê, porque sabia que eu não assistia.
Fui até o lado de fora e lá estava o carro de Lydia, mas ela não.
– Lydia – eu disse. – Ei, baby!
Subi e desci a rua e então avistei seus pés, os dois, despontando atrás de uma árvore junto ao muro de um prédio. Aproximei-me da árvore e disse:
– Escute, que diabos há com você?
Lydia não esboçou reação. Ela carregava duas sacolas cheias com os meus livros e uma pasta com as minhas telas.
– Escute, você precisa me devolver meus livros e minhas telas. Tudo isso me pertence.
Lydia saiu detrás da árvore berrando. Ela pegou as telas de pintura e começou a rasgá-las. Jogou os pedaços para cima e, ao caírem no chão, ela os pisoteou. Estava usando suas botas de vaqueira.
Então pegou meus livros da sacola e começou a jogá-los longe, no meio da rua, no gramado, por toda parte.
– Aqui estão suas pinturas! Aqui estão seus livros! E NÃO ME FALE DAS SUAS MULHERES! NÃO ME FALE DAS SUAS MULHERES!
Então Lydia correu até o meu pátio com um livro na mão, meu último lançamento, Obras escolhidas de Henry Chinaski. Ela gritava:
– Então você quer seus livros de volta? Quer a porra dos seus livros de volta? Aqui estão seus malditos livros! E NÃO ME FALE DAS SUAS MULHERES!
Ela começou a quebrar os vidros da minha porta da frente. Pegou o Obras escolhidas de Henry Chinaski e foi quebrando vidro após vidro, gritando:
– Quer seus livros de volta? Aqui estão seus malditos livros! E NÃO ME FALE DAS SUAS MULHERES! NÃO QUERO OUVIR NADA SOBRE AS SUAS MULHERES!
Fiquei ali parado, enquanto ela gritava e quebrava os vidros.
Onde estava a polícia?, pensei. Onde?
Então Lydia atravessou o pátio, dobrou rapidamente à esquerda ao passar pela lata de lixo e seguiu pela calçada até o prédio ao lado. Atrás de um pequeno arbusto estavam a máquina de escrever, o rádio e a torradeira.
Lydia apanhou a máquina e correu até o meio da rua com ela. Era uma máquina comum e antiga, bastante pesada. Lydia a ergueu com as duas mãos por sobre a cabeça e a jogou de encontro ao pavimento. O cilindro e diversas outras partes voaram longe. Ela voltou a erguer a máquina sobre a cabeça e gritou:
– NÃO ME FALE DAS SUAS MULHERES! – e jogou-a mais uma vez no chão.
Depois disso, Lydia saltou para dentro do carro e se foi.
Quinze segundos mais tarde a polícia apareceu.
– É um fusca laranja. Chama-se a Coisa, parece um tanque. Não me lembro do número da placa, mas as letras são NVA, como NÉVOA, anotou?
– Endereço?
Passei-lhes o endereço...
Evidentemente que eles a trouxeram de volta. Podia ouvi-la urrando no banco de trás, enquanto o carro se aproximava.
– AFASTE-SE! – disse um dos policiais ao sair. Acompanhou-me até minha casa. Entrou e pisou sobre um dos vidros quebrados. Por alguma razão ele direcionou sua lanterna para o teto e para as cornijas.
– O senhor quer dar queixa? – o policial me perguntou.
– Não. Ela tem filhos. Não quero que ela fique sem eles. O ex-marido está tentando ficar com a guarda das crianças. Mas, por favor, diga a ela que as pessoas não podem andar por aí fazendo esse tipo de coisa.
– Ok – ele disse –, agora assine aqui.
Escreveu à mão num pequeno caderno pautado. Dizia que eu, Henry Chinaski, não daria queixa contra Lydia Vance.
Assinei e ele se foi.
Passei a chave no que me restara de porta e fui para a cama e tentei dormir.
Mais ou menos uma hora depois, o telefone tocou. Era Lydia. Ela já estava em casa.
– SEU Filho da puta, SE VOCÊ VOLTAR A FALAR DAS SUAS MULHERES DE NOVO PRA MIM EU VOU ATÉ AÍ E QUEBRO TUDO DE NOVO!
Ela desligou.
Duas noites mais tarde, fui até a casa de Tammie em Rustic Court. Bati. As luzes estavam acesas. Parecia vazia. Olhei na sua caixa de correio. Havia cartas ali dentro. Escrevi um bilhete: “Tammie, tenho telefonado para você. Vim até aqui e você não estava. Está tudo bem com você? Me liga... Hank.”
Voltei no dia seguinte às onze da manhã. Seu carro não estava ali na frente. Meu bilhete continuava enfiado na porta. Mesmo assim toquei a campainha. As cartas continuavam na caixa de correio. Deixei um bilhete ali: “Tammie, onde diabos você está? Entre em contato comigo... Hank.”
Dei uma volta pela vizinhança em busca daquele Camaro vermelho todo detonado.
Retornei naquela noite. Chovia. Meus bilhetes estavam molhados. Havia mais cartas na caixa. Deixei-lhe um dos meus livros de poesia, com uma dedicatória. Então voltei para meu fusca. Tinha uma cruz de malta pendurada no meu retrovisor. Arranquei a cruz, voltei à casa dela e a amarrei ao redor da maçaneta.
Não sabia onde morava nenhuma de suas amigas, onde sua mãe morava, onde seus amantes moravam.
Voltei pra casa e escrevi alguns poemas de amor.
– Mulheres
"Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com uma flauta."Para que lhe servirá?", perguntaram-lhe. "Para aprender esta ária antes de morrer". As-sim vivem e morrem, os poetas, os avatares e os profetas. "Fosse possível nascer, nasceria em Pirenópolis. Fosse possível, morreria em Caldas Novas", escreveu o poeta e escritor Luiz de Aquino Alves Neto, que hoje, com orgulho, re-cebemos na casa de Colemar Natal e Silva. São assim, os poetas, os avatares e os profetas. Se a pátria de cada um é sua infância, os lugares de que temos mais saudades são aqueles em que fomos felizes. Assim são os poetas que, como Luiz de Aquino, só aprenderam a falar e a dis-tinguir as coisas e as pessoas pela linguagem do amor. E quem fala de amor merece a sua prote-ção, escreveu o jornalista Paulo Siqueira, sobre as razões da semente e da lírica e amorosa poe-sia desde goiano que, quando está em Caldas Novas, tem saudades de Pirenópolis, e quando está em Pirenópolis, tem saudades de Caldas Novas. São assim os poetas, criaturas que têm saudades do futuro. Mário de Andrade sempre morou na rua Lopes Chaves, e nunca soube quem foi Lopes Chaves. São assim, poetas como Luiz de Aquino. Cristãos que cantam no suplício, dedicam-se a aprender árias, em velu-dosas vozes, e violões enluarados, mesmo sabendo que estão a poucos minutos de enfrentar o olhar de aço do carrasco. O poeta tem apenas duas mãos, e o sentimento do mundo. Por isso, como Drummond, pede, a quem ama: "O pre-sente é tão grande, tão imensa a realidade. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas".

Assim escreveu Luiz de Aquino, sobre as raízes da frondosa e generosa árvore em que busca transformar-se, como ser humano, e como criador: "Meu pai tem mãos de amaciar violão (feito as de Rabelo e Reny, Marcelo e João Bosco). Minha mãe tem mãos-carinho (como as de Mel e Iliana, de Zaira e Mariana). Tenho mãos de escrever poemas de amor e coisas afins. O mundo tem mãos que espancam e afagam, esculpem e coloram. As de Reny fazem sons, as de meu pai criam acordes, despertam amores, acalentam dores, adormecem temores e saudades. As minhas molham-se em molhos sensuais. Tenho mãos que amansam vãos". É assim, emotiva, e saudosa de suas raízes, a poe-sia de Luiz, que hoje recebemos, jubilosos. E como o poeta conhece e decifra, sem medo, a linguagem do amor, sabe, como a poetisa Re-nata Pallotini, que para amar, de verdade, é pre-ciso ter a suprema coragem de atirar nossas coi-sas para o mar, e partir sem bagagem. Quem, como Luiz de Aquino, teve a coragem kamikaze de vender poesias de amor, de bar em bar, aos casais de namorados, sabe que a vida, a literatu-ra e o amor, só valem se fizerem parte de um único projeto. Por absurdo que pareça, disse Guimarães Rosa, três dias antes de morrer (acabara de tomar posse na Academia Brasileira de Letras), a gente nasce, vive e morre. E, como se estivesse a adivinhar o fim próximo, de sua vida e obra, assinalou: "Esta vida horária não nos deixa encerrar parágrafos, quanto mais terminar capítulos".

Mas o que tem a ver, tanto devaneio poético, com as sisudas e bem comportadas pala-vras, que devem constar de uma saudação aca-dêmica?, poderão alguns indagar. Se é verdade que as melhores palavras de um poeta são os seus próprios poemas, entendo que a linguagem mais apropriada, para saudar um poeta, é a que vibra, e se manifesta em seus próprios poemas. Se o que nós amamos verdadeiramente perma-nece, sendo entulho, todo o resto, então, para quem decifra a aventura de viver aprendendo a ária de silêncio das palavras, só o que couber na dimensão mágica da poesia tem razão e sentido. Assim sendo, não me escuso por brandir, aqui, mais a minha lira do que meus frágeis saberes acadêmicos; até porque, como bem disse o po-eta Gabriel Nascente, "A poesia não pede licen-ça pra chegar".

Luiz de Aquino Alves Neto nasceu em Caldas Novas, na praça da Matriz, em uma ca-sinha já demolida, onde se construiu, há mais de 20 anos, uma confortável morada, onde hoje funciona uma butique. Coisa da especulação turística. Era sábado, 15 de setembro de 1945, um pouco mais de um mês após os americanos detonarem, sobre Hiroshima e Nagazaki, as du-as primeiras bombas atômicas, que atiraram a humanidade nos horrores e no dantesco espetá-culo da guerra nuclear. O poeta acha que, aba-lado pela explosão do mundo, nasceu turrão. "Sou alegre e maleável até que alguém pise, distraidamente ou por querer, no nervo que os-tento na cauda". A Caldas Novas seu pai che-gou em 1940, buscando trabalho. Dois de seus tios maternos moravam lá e já desfrutavam de certa influência inexpressiva na corrutela que, 26 anos depois, despontaria como o mais pro-missor pólo turístico do Brasil Central. Ele vi-nha de Pirenópolis e — isto é curioso — pelo lado materno descende de Martinho Coelho de Siqueira, o descobridor das águas termais no findar do século XVIII.

O clima, em sua casa, no período de 45 a 56, fazia jus à raiz musical, vinda de seu avô. O pai de Luiz, Israel de Aquino, trouxe, de Pire-nópolis, a habilidade para executar, ao violão, valsas e modinhas bem ao gosto da época. Ali, aos 17 anos, encontrou um rapaz de sua idade, moço, dotado de rara inteligência e que, apaixo-nado por música e artes, conseguiu a façanha de estudar música por correspondência: José Pinto Neto, que já está do outro lado da vida. Com Zé Pinto, seu pai formou a mais marcante dupla da vida boêmia de Caldas Novas. Aos quatro anos de idade, Luiz de Aquino acompanhou os seresteiros, em sua primeira serenata. As letras das músicas (sempre antigas), eram transcritas em letra bonita, em cadernos de capa dura. Ele se lembra de ver José Pinto afastar o sax para vomitar, tanto tinha bebido. Mas a responsabili-dade do instrumentista não lhe permitia, com toda a cachaça, vomitar no instrumento. As se-renatas, tirando o período de dez aos dezessete anos, foram marcantes, em sua vida, até quando, aos 33 anos, teve a voz afetada por papilomas vocais. Por esta ocasião, o poeta empunhava, todo lampeiro, um cavaquinho que, então, teve de aposentar. "Eram comuns, as rodas musicais em minha casa. Eram viajantes que apreciavam música, eram juízes ou promotores com voca-ções musicais, que vinham buscar a companhia do meu velho, Zé Pinto sempre ao lado. E meu pai era convidado permanente para as festas de família, ou mesmo as quermesses da igreja, ape-sar de maçom. Cresci, pois, aprendendo letras de valsas e modinhas. A leitura, conheci-a nas práticas de minha mãe. Quando aprendi a ler, antes dos cinco anos, apaixonei-me pelos gibis e os lia todos, da coleção do primo Rogério. Não demorou para que eu fosse cortado dos jogos de bola ao lado da igreja, porque jamais podiam contar comigo. Era descuidarem, e eu me es-condia na casa de tia Dorinha para ler gibis".

Foram belos e difíceis, seus anos de giná-sio, no Rio. Em português, adotava-se o mesmo livro para todos os quatro anos do ginásio: an-tologia, organizada pelo professor Clóvis Mon-teiro, diretor do colégio, que viria a falecer justo naquele ano de 1958, seu primeiro ano ginasial. Foi nesse livro que tomou contato definitivo com textos literários, tanto em prosa como em verso: "No Pedro II, ensinava-se gramática pela literatura. Uma professora, particularmente, marcou minha vida: Maria Helena Silveira, de quem nunca mais tive notícias. Ela tinha um defeito físico, aquela corcunda com protuberân-cia no osso externo, o que chamam de peito-de-pombo. Foi, talvez, a personalidade mais linda que conheci na adolescência, exemplo de ho-nestidade intelectual e integridade ética". No quarto ano, para ensinar História do Brasil, che-gou o mais famoso poeta brasileiro da época, J.G. de Araújo Jorge. Com ele Luiz aprendeu, quem sabe, a cantar em poesia as paixões que, é claro, são um capítulo à parte, na vida de todos (ou quase todos) os poetas: "Minha primeira paixão era uma garotinha do primário, colega de classe, com quem jamais troquei uma palavra sequer. E
I
O grande oceano

Se de teus dons e de tuas destruições, oceano, a minhas mãos
pudesses destinar uma medida, uma fruta, um fermento,
escolheria teu repouso distante, as linhas de teu aço,
a tua extensão vigiada pelos ares e pela noite,
e a energia de teu idioma branco
que destroça e derruba as suas colunas
na sua própria pureza demolida.


Não é a última onda com o seu salgado peso
a que tritura costas e produz
a paz de areia que rodeia o mundo:
é o central volume da força,
a potência estendida das águas,
a imóvel solidão cheia de vidas.

Tempo, talvez, ou taça acumulada
de todo movimento, unidade pura
que não selou a morte, verde víscera
da totalidade abrasadora.


Do braço submerso que levanta uma gota
fica apenas um beijo de sal.
Dos corpos
do homem em tuas praias uma úmida fragrância
de flor molhada permanece.
Tua energia
parece resvalar sem ser gasta,
parece regressar a seu repouso.


A onda que desprendes,
arco de identidade, pluma estrelada,
quando se despenhou foi só espuma,
e regressou para nascer sem consumir-se.


Toda a tua força volta a ser origem.

Só entregas despojos triturados,
cascas que apartou o teu carregamento,
o que expulsou a ação de tua abundância,
tudo o que deixou de ser um cacho.


Tua estátua está estendida além das ondas.


Vivente e ordenada como o peito e o manto
de um só ser e suas respirações,
na matéria da luz irisadas,
planícies levantadas pelas ondas,
formam a pele nua do planeta.

Enches o teu próprio ser com a tua substância.


Cumulas a curvatura do silêncio.


Com o teu sal e o teu mel treme a taça,
a cavidade universal da água,
e nada falta em ti como na cratera
destampada, no corpo rude:
cumes vazios, cicatrizes, sinais
que vigiam os ares mutilados.


Tuas pétalas palpitam contra o mundo,
tremem os teus cereais submarinos,
as suaves algas penduram a sua ameaça,
navegam e pululam as escolas,
e só sobe ao fio das redes
o relâmpago morto da escama,
um milímetro ferido na distância
de tuas totalidades cristalinas.




II
Os nascimentos

Quando se transmutaram as estrelas
em terra e em metal, quando apagaram
a energia e entornada foi a taça
de auroras c carvões, submersa
a fogueira em suas moradas,
o mar caiu como uma gota ardendo
de distância em distância, de hora em hora:
seu fogo azul converteu-se em esfera,
o ar de suas rodas foi sino,
seu interior essencial tremeu na espuma,
e na luz do sal foi levantada
a flor de sua espaçosa autonomia.


Enquanto como lâmpadas letárgicas
dormiam as estrelas segregadas
adelgaçando a sua pureza imóvel,
o mar encheu de sal e mordeduras
a sua magnitude, povoou de labaredas
e movimentos a extensão do dia,
criou a terra e desatou a espuma,
deixou rastros de goma em suas ausências,
invadiu com estátuas o abismo,
e em suas praias se fundou o sangue.


Estrela de marulhadas, água manancial,
mãe matéria, medula invencível,
trêmula igreja levantada em lodo:
a vida em ti apalpou pedras noturnas,
retrocedeu quando chegou à ferida,
avançou com escudos e diademas,
estendeu dentaduras transparentes,
acumulou a guerra em sua barriga.

O que formou a escuridão quebrada
pela substância fria do relâmpago,
oceano, em tua vida está vivendo.


A terra fez do homem o seu castigo.


Demitiu bestas, aboliu montanhas,
esquadrinhou os ovos da morte.


Enquanto isso em tua idade sobreviveram
as etapas do transcurso submerso,
e a criada magnitude mantém
as mesmas esmeraldas escamosas,
os abetos famintos que devoram
com bocas azuladas de anel,
o cabelo que absorve olhos afogados,
a madrépora de astros combatentes,
e na força azeitada do cetáceo
desliza-se a sombra triturando.


Sem mãos se construiu a catedral
com golpes de maré inumerável,
o sal adelgaçou-se como uma agulha,
se fez lâmina de água incubadora,
e seres puros, recém-estendidos,
pulularam tecendo as paredes
até que como ninhos agrupados
com o cinzento atavio da esponja,
deslizou-se a túnica escarlate,
viveu a apoteose amarela,
cresceu a flor calcária de amaranto.


Tudo era ser, substância tremulante,
pétalas carniceiras que mordiam,
acumulada quantidade nua,
palpitação de plantas seminais,
sangria das úmidas esferas,
perpétuo vento azul que derrubava
os limites abruptos dos seres.

E assim a luz imóvel foi uma boca
e mordeu sua pedraria roxa.


Foi, oceano, a forma menos dura,
a translúcida gruta da vida,
a massa existencial, deslizadora
de cachos, as teias do ovário,
os germinais dentes derramados,
as espadas do soro matutino,
os órgãos acerbos do enlace:
tudo em ti palpitou enchendo a água
de cavidades e estremecimentos.

Assim a taça das vidas teve
seu turbulento aroma, suas raízes
e estrelada invasão foram as ondas:
cintura e plenitude sobreviveram,
penacho c latitude arvoraram
os hóspedes dourados da espuma.

E tremeu para sempre nas praias
a voz do mar, os tálamos da água,
a pele de furacão demolidora,
o leite enfurecido da estrela.




III
Os peixes c o afogado

De repente vi povoadas regiões
de intensidade, de formas aceradas,
bocas como uma linha que cortava,
relâmpagos de prata submersa,
peixes de luto, peixes ogivais,
peixes de firmamento tachonado.

peixes cujas pintas resplandecem,
peixes que cruzam como calafrios,
branca velocidade, ciências delgadas
da circulação, bocas ovais
da carniçaria e do aumento.


Formosa foi a mão ou a cintura
que rodeada de lua fugitiva
viu trepidar a povoação pescadora,
úmido rio elástico de vidas,
crescimento de estrelas nas escamas,
opala seminal disseminada
no lençol escuro do oceano.


Viu arder as pedras de prata que mordiam,
estandartes de trêmulo tesouro,
e submeteu seu sangue descendo
à profundidade devoradora,
suspenso por bocas que percorrem
seu torso com anéis sanguinários
até que desgrenhado e dividido
coma espiga sangrenta, é um escudo
da maré, um traje que trituram
as ametistas, uma herança ferida
sob o mar, na árvore numerosa.




IV
Os homens e as ilhas

Os homens oceânicos despertaram, cantavam
as águas nas ilhas, de pedra em pedra verde:
as donzelas têxteis cruzavam o recinto
em que o fogo e a chuva entrelaçados
procriavam diademas e tambores.

A lua melanésica
foi uma dura madrépora, as flores enxofradas
vinham do oceano, as filhas
da terra tremiam como ondas
no vento nupcial das palmeiras,
e entraram na carne os arpões
perseguindo as vidas da espuma.


Canoas balançadas no dia deserto,
das ilhas como ponto de pólen na direção
da metálica massa da América noturna:
diminutas estrelas sem nome, perfumadas
como mananciais secretos, transbordantes
de plumas e corais, quando
os olhos oceânicos descobriram a altura
sombria da costa do cobre, a escarpada
torre de neve, e os homens de argila
viram bailar os estandartes úmidos
e os ágeis filhos atmosféricos
da remota solidão marinha,
chegou o ramo
de flores de laranjeira perdido, veio o vento
da magnólia oceânica, a doçura
do acicate azul nos quadris,
o beijo das ilhas sem metais,
puras como o mel desordenado,
sonoras como lençóis do céu.




V
Rapa-Nui

Tepito-Te-Henúa, umbigo do mar grande,
oficina do mar, extinto diadema.

De tua lava escorial subiu o rosto
do homem mais acima do oceano,
os olhos gretados da pedra
mediram o ciclônico universo,
e foi central a mão que elevava
a pura magnitude de tuas estátuas.


Tua rocha religiosa foi cortada
em todas as linhas do oceano
e os rostos do homem apareceram
surgindo da entranha das ilhas,
nascendo das crateras vazias
com os pés enredados no silêncio.


Foram as sentinelas e fecharam
o ciclo das águas que chegavam
de todos os úmidos domínios,
e o mar distante das máscaras deteve
suas tempestuosas árvores azuis.

Ninguém mas só os rostos habitaram
o círculo do reino.
Era calado
como a entrada de um planeta, o fio
que envolvia a boca da ilha.


Assim, na luz da abside marinha
a fábula da pedra condecora
a imensidade com suas medalhas mortas,
e os pequenos reis que levantam
toda esta solitária monarquia
para a eternidade das espumas,
voltam ao mar na noite invisível,
voltam a seus sarcófagos de sal.


Só o peixe-lua que morreu na areia.


Só o tempo que morde os moais.


Só a eternidade nas areias
conhecem as palavras:
a luz selada, o labirinto morto,
as chaves da taça submersa.




VI
Os construtores de estátuas (Rapa-Nui)

Eu sou o construtor das estátuas.
Não tenho nome.

Não tenho rosto.
O meu se desviou até correr
sobre a sarça e subir impregnando as pedras.

Elas têm o meu rosto petrificado, a grave
solidão de minha pátria, a pele da Oceania.


Nada querem dizer, nada quiseram
senão nascer com todo o seu volume de areia,
subsistir destinadas ao tempo silencioso.


Tu me perguntarás se a estátua em que tantas
unhas e mãos, braços escuros fui gastando,
te reserva uma sílaba da cratera, um aroma
antigo, preservado por um signo de lava?

Não é assim, as estátuas são o que fomos, somos
nós, nosso rosto que olhava as ondas,
nossa matéria às vezes interrompida, às vezes
continuada na pedra semelhante a nós.


Outros foram os deuses pequenos e malignos,
peixes, pássaros que entretiveram a manhã,
escondendo as machadinhas, rompendo a estátua
dos mais altos rostos que concebeu a pedra.


Guardem os deuses o conflito, se o quiserem,
da colheita postergada, e alimentem
o açúcar azul da flor no baile.


Subam eles e desçam a chave da farinha:
empapem todos os lençóis nupciais
com o pólen molhado que imperceptível dança
dentro da rubra primavera do homem,
mas até estas paredes, a esta cratera, só venhas
tu, pequenino mortal, canteiro.


Vão ser consumidas esta carne e a outra,
a flor perecerá talvez, sem armadura,
quando estéril aurora, pó ressequido, um dia
venha a morte à cintura da ilha orgulhosa,
e tu, estátua, filha do homem, ficarás
olhando com os olhos vazios que subiram
de uma e outra mão de imortais ausentes.


Arranharás a terra até que nasça
a firmeza, até que caia a sombra na estrutura
como sobre uma abelha colossal que devora
o seu próprio mel perdido no tempo infinito.


Tuas mãos tocarão a pedra até lavrá-la
dando-lhe a energia solitária que possa
subsistir, sem se gastarem os nomes que não existem,
e assim de uma vida a uma morte, amarrados
no tempo como uma única mão que ondula,
elevamos a torre calcinada que dorme.


A estátua cresceu sobre a nossa estatura.


Olhai-as hoje, tocai esta matéria, estes lábios
têm o mesmo idioma silencioso que dorme
em nossa morte, e esta cicatriz arenosa,
que o mar e o tempo como lobos lamberam,
eram parte de um rosto que não foi derrubado,
ponto de um ser, cacho que derrotou cinzas.


Assim nasceram, foram vidas que lavraram
sua própria cela dura, seu panal na pedra.

E este olhar tem mais areia que o tempo.

Mais silêncio que toda a morte em sua colmeia.


Foram o mel de um grave desígnio que habitava
a luz deslumbrante que hoje resvala na pedra.




VII
A chuva (Rapa-Nui)

Não, que a rainha não reconheça
o teu rosto, é mais doce
assim, amor meu, longe das efígies, o peso
de tua cabeleira em minhas mãos, recordas
a árvore de Mangareva cujas flores caíam
sobre teu cabelo? Estes dedos não se parecem
com pétalas brancas: olha-os, são como raízes,
são como talos de pedra sobre os quais desliza
o lagarto.
Não temas, esperemos que caia a chuva, nus,
a chuva, a mesma que cai sobre Manu Tara.


Mas assim como a água endurece seus rasgos na pedra,
sobre nós cais levando-nos suavemente
para a escuridão, mais abaixo do buraco
de Ranu Raraku.
Por isso
não te divise o pescador nem o cântaro.
Sepulta
os teus peitos de queimadura gêmea em minha boca,
e que a tua cabeleira seja uma pequena noite minha,
uma escuridão cujo perfume molhado me cobre.

À noite sonho que tu e eu somos duas plantas
que se ergueram juntas, com raízes enredadas,
e que conheces a terra e a chuva como minha boca,
porque de terra e de chuva estamos feitos.
Às vezes
penso que com a morte dormiremos abaixo,
na profundidade dos pés da efígie, olhando
o oceano que nos trouxe para construir e amar.


Minhas mãos não eram férreas quando te conheceram, as águas
de outro mar as passavam como por uma rede; agora
água e pedras sustêm sementes e segredos.


Ama-me adormecida e nua, que na praia
és como a ilha: teu amor confuso, teu amor
assombrado, escondido na cavidade dos sonhos,
é como o movimento do mar que nos rodeia.


E quando também eu vá me adormecendo
em teu amor, nu,
deixa a minha mão entre os teus peitos para que palpite
ao mesmo tempo que os teus mamilos molhados na chuva.




VIII
os oceânicos

Sem outros deuses que o couro das focas apodrecidas,
honor do mar, yámanas açoitados
pelo látego antártico, alacalufes
untados com azeites e detritos:
entre os muros de cristal e abismo
a pequena canoa, na eriçada
inimizade de timbales e chuvas,
levou o amor errante dos lobos
e as brasas do fogo sustentadas
sobre as últimas águas mortais.


Homem, se o extermínio
não desceu dos rios da neve
nem da lua endurecida
sobre o vapor glacial das geleiras,
mas do homem que até na substância
da neve perdida e das águas
finais do oceano,
especulou com ossos desterrados
até empurrar-te para além de tudo,
hoje mais para além de tudo e da neve
e da tempestade desatada do gelo
vai tua piroga pelo sal selvagem
e pela furiosa solidão buscando
a guarida do pão, és oceano,
gota do mar e de seu azul furioso,
e teu gasto coração me chama
como incrível fogo que não morre.


Amo a gelada planta combatida
pelo uivo do vento espumoso,
e ao pé das gargantas,
o diminuto povo lucernário
que arde sobre as lâmpadas crustáceas
da água removida pelo frio,
e antártica aurora em seu castelo
de pálido esplendor imaginário.

Amo até as raízes turbulentas
das plantas queimadas pela aurora
de mãos transparentes,
porém a ti, sobra do mar, filho
das plumas glaciais, esfarrapada
oceânica, vai esta onda
nascida nas rupturas, dirigida
com o amor ferido sob o vento.




IX
Antártica

Antártica, coroa austral, cacho
de lâmpadas geladas, cinerária
de gelo desprendida
da pele terrenal, igreja quebrada
pela pureza, nave desbocada
sobre a catedral da brancura,
imoladora de quebradas vidraças,
furacão estilhaçado nas paredes
da neve noturna,
dá-me o teu nobre peito removido
pela invasora solidão, o leito
do vento aterrador mascarado
por todas as corolas do arminho,
com todas as buzinas do naufrágio
e o afundamento branco dos mundos,
ou o teu peito de paz que limpa o frio
como um puro retângulo de quartzo,
e o não respirado, o infinito
material transparente, o ar aberto,
a solidão sem terra e sem pobreza.

Reino do meio-dia mais severo,
harpa de gelo sussurrada, imóvel,
perto das estrelas inimigas.


Todos os mares são o teu mar redondo.

Todas as resistências do oceano
concentraram em ti sua transparência,
e o sal te povoou com seus castelos,
o gelo fez cidades elevadas
sobre uma agulha de cristal, o vento
percorreu teu salgado paroxismo
como um tigre queimado pela neve.


Tuas cúpulas pariram o perigo
da nave das nevadas,
e em teu dorsal deserto está a vida
como uma vinha sob o mar, ardendo
sem consumir-se, reservando o fogo
para a primavera da neve.




X
Os filhos da costa

Párias do mar, antárticos
cães chicoteados,
yaganes mortos sobre cujos ossos
dançam os proprietários que pagaram
por tarifa os pescoços altaneiros
cerceados a golpes de navalha.


Carregadores de Antofagasta e da costa seca,
párias, piolhos gelados do oceano,
netos de Rapa, pobres de Anga-Roa,
lêmures rotos, leprosos de Hotu-Iti,
servos das Galápagos, cobiçados
esfarrapados dos arquipélagos,
roupas desfiadas que através
do emplastro sujo mostram
a contextura do combate,
a pele salgada pela brisa, o valente
troço de ser humano e ambarino:
à pátria do mar veio o embarque,
veio a corda, o selo, o fundamento,
o bilhete com um perfil borrado,
detritos de garrafa na praia,
veio o governador, o deputado,
e o coração do mar se fez costura,
se fez bolso, iodo e agonia.


Quando chegaram a vender foi doce
o amanhecer, as camisas
eram como a neve no navio,
e os filhos celestes se acenderam,
flor e fogacho, lua e movimento.


Piolhos do mar, comei agora esterco,
espreitai os despojos, os sapatos
rotos do navegante, do gerente,
cheirai a dejeções e a pescado.

Já entrastes no círculo
do qual só saireis para morrer.

Não na morte do mar, com água e lua,
mas a dos desengonçados buracos
da necrologia, porque agora
se quereis esquecer, estais perdidos.

Antes a morte teve territórios,
transmigração, etapas, estações,
e pudestes subir dançando, envoltos
no orvalho diurno da rosa
ou na navegação do peixe de prata:
hoje estais mortos para sempre: afundados
no decreto tétrico do frade,
e sois apenas vermes da terra
que no máximo revolverão a cauda
sob os cartórios do inferno.


Vinde e pululai pelas praias
do mar: ainda vos
aceitamos, podeis sair para pescar sempre
que nossa Sociedad Pesquera Inc.

seja garantida: podeis ir
arranhando as costelas nos cais,
carregando sacos de grão-de-bico,
dormindo nas escórias litorâneas.

Sois na verdade uma ameaça, mofosos
deserdados da espuma; é muito
melhor, se o sacerdote vos permitir,
que entreis no navio que vos espera,
e que, com tudo e piolhos, ao nada
vos levará, sem ataúde, mordidos
pelas últimas ondas e desgraças,
desde que não se paguem, à morte.




XI
A morte

Esqualos parecidos com as algas,
com o naval veludo do abismo,
e que de repente como estreitas luas
apareceis com o fio empurpurado:
barbatanas azeitadas em treva,
luto e velocidade, naves do medo
às quais ascende como uma corola
o crime com a sua luz vertiginosa,
sem uma voz, numa fogueira verde,
na cutelaria de um relâmpago.


Puras formas sombrias que resvalam
sob a pele do mar, como o amor,
como o amor que invade a garganta,
como a noite que brilha nas uvas,
como o fulgor do vinho nos punhais:
vastas sombras de couro desmedido
como estandartes de ameaça: ramos
de braços, bocas, línguas que rodeiam
com ondulante flor o que devoram.


Na mínima gota da vida
aguarda uma indecisa primavera
que fechará com seu sistema imóvel
o que tremeu ao cair no vazio:
a fita ultravioleta que desliza
um cinturão de fósforo perverso
na agonia negra do perdido,
e o tapete do afogado recoberto
por um bosque de lanças e moréias
trementes e ativas como o tear que tece
na profundidade devoradora.




XII
A onda

A onda vem do fundo, com raízes
filhas do firmamento submerso.

Sua elástica invasão foi levantada
pela potência pura do oceano:
sua eternidade apareceu inundando
os pavilhões do poder profundo
e cada ser lhe deu sua resistência,
debulhou fogo frio em sua cintura
até que dos ramos da força
despegou o seu nevado poderio.


Vem como uma flor da terra
quando avançou com decidido aroma
até a magnitude da magnólia,
mas esta flor do fundo que rebentou
traz toda a luz que foi abolida,
traz todos os ramos que não arderam
e todo o manancial da brancura.


E assim quando suas pálpebras redondas,
seu volume, suas taças, seus corais
incham a pele do mar aparecendo
todo este ser de seres submarinos:
é a unidade do mar que se constrói:
a coluna do mar que se levanta:
todos os seus nascimentos e derrotas.


A escola do sal abriu as portas,
voou toda a luz golpeando o céu,
cresceu da noite até a aurora
a levedura do metal molhado,
toda a claridade se fez corola,
cresceu a flor até gastar a pedra;
subiu à morte o rio da espuma,
atacaram as plantas procelárias,
transbordou-se a rosa no aço:
os baluartes da água se dobraram
e o mar se desmoronou sem derramar-se
a sua torre de cristal e calafrio.




XIII
Os portos

Acapulco, cortado como uma pedra azul,
quando desperta, o mar amanhece em tua porta
irisado e bordado como um caracol,
e entre as tuas pedras passam peixes como
[relâmpagos
que palpitam carregados pelo fulgor marinho.


És a luz completa, sem pálpebras, o dia
despido, balançando como uma flor de areia,
entre a infinitude estendida da água
e a altura acesa com lâmpadas de argila.


Junto a ti as lagunas me deram o amor
da tarde cálida com bestas e mangais,
os ninhos como nós nos ramos de onde
o vôo das garças levantava a espuma,
e na água escarlate como um crime fervia
um povo encarcerado de bocas e raízes.

Topolobampo, apenas traçado à beira
da doce e nua Califórnia marinha,
Mazatlán estrelado, porto de noite,
escuto as ondas que golpeiam a tua pobreza
e as tuas constelações, o pulsar
de teus apaixonados orfeões,
o teu coração sonâmbulo que canta
sob as redes vermelhas da lua.


Guayaquil, sílaba de lança, fio
de estrela equatorial, ferrolho aberto
das trevas úmidas que ondulam
como uma trança de mulher molhada:
porta de ferro maltratada
pelo suor amargo
que molha os cachos,
que goteja o marfim nas ramagens
e desliza à boca dos homens
mordendo como um ácido marinho.


Subi às rochas de Mollendo, brancas,
árido resplendor e cicatrizes,
cratera cujo gretado continente
subjuga entre as pedras seu tesouro,
a angústia do homem acurralado
nas calvícies do despenhadeiro,
sombra das metálicas gargantas,
promontório amarelo da morte.


Pisagua, letra da dor, manchada
pelo tormento, em tuas ruínas vazias,
em teus alcantilados pavorosos,
em teu cárcere de pedra e soledades
se pretendeu esmagar a planta humana,
se quis fazer de corações mortos
um tapete, rebaixar a desventura
como marca raivosa até romper
a dignidade: ali pelas salobras
ruelas vazias, os fantasmas
da desolação movem seus mantos,
e nas desnudas gretas ofendidas
está a história como um monumento
golpeado pela espuma solitária.

Pisagua, no vazio de teus cumes,
na furiosa solidão, a força
da verdade do homem se levanta
como um despido e nobre monumento.


Não é só um homem, não é só um sangue
o que manchou a vida em tuas encostas,
são todos os verdugos amarrados
ao lamaçal ferido, aos suplícios,
ao matagal da América enlutada,
e quando se povoaram com prisões
tuas desérticas pedras escarpadas
não foi só mordida uma bandeira,
não foi só um bandido venenoso,
mas a fauna das águas vis
que repete seus dentes na história,
atravessando com mortal punhal
o coração do povo desditado,
manietando a terra que os fez,
desonrando a areia da aurora.


Oh, portos arenosos, inundados
pelo salitre, pelo sal secreto
que deixa as dores na pátria
e leva o ouro ao deus desconhecido
cujas unhas rasparam a cortiça
de nossos dolorosos territórios.


Antofagasta, cuja voz remota
desemboca na luz cristalizada
e se amontoa em sacos e adegas
e se reparte na aridez matutina
na direção dos navios.

Rosa ressecada de madeira, Iquique,
entre tuas brancas balaustradas, junto
de teus muros de pinho, que a lua
do deserto e do mar impregnaram,
foi vertido o sangue de meu povo,
foi assassinada a verdade, desfeita
em sanguinária polpa a esperança:
o crime foi enterrado pela areia
e a distância sepultou os estertores.


Tocopilla, espectral, sob os montes,
debaixo da nudez cheia de agulhas
corre a neve seca do nitrato
sem extinguir a luz de seu desígnio
nem a agonia da mão escura
que sacudiu a morte nos torrões.


Desamparada costa que rechaças
a água afogada do amor humano,
escondido em tuas margens calcárias
como o metal maior da vergonha.

A teus portos desceu o homem enterrado
para ver a luz das ruas vendidas,
para desatar o coração espesso,
para esquecer arenais e desgraças.

Tu quando passas, quem és, quem desliza
por teus olhos dourados, quem acontece
nos cristais? Desces e sorris,
aprecias o silêncio nas madeiras,
tocas a lua opaca das vidraças
e nada mais: o homem está guardado
por carnívoras sombras e barrotes,
está estendido em seu hospital dormindo
sobre os arrecifes da pólvora.


Portos do sul, que desfolharam
a chuva das folhas em meu rosto;
coníferas amargas do inverno
de cujo manancial cheio de agulhas
choveu a solidão em minhas dores.

Puerto Saavedra, gelado nas ribeiras
do Imperial: as desembocaduras
areentas, o glacial lamento
das gaivotas que me pareciam
surgir como flores de laranjeira tempestuosas,
sem que ninguém arrulhasse suas folhagens,
doces desviadas para minha ternura,
despedaçadas pelo mar violento
e salpicadas nas soledades.


Mais tarde meu caminho foi a neve
e nas casas adormecidas do estreito
em Punta Arenas, em Puerto Natales,
na extensão azul do uivo,
na sibilante, na desenfreada
noite final da terra, vi as tábuas
que resistiram, acendi as lâmpadas
sob o vento feroz, meti as mãos
na nua primavera antártica
e beijei o pó frio das ultimas flores.




XIV
Os navios

Os barcos da seda sobre a luz levados,
erigidos na violeta matutina,
cruzando o sol marítimo, com rubros pavilhões
desfiados como estames andrajosos,
o odor caloroso das caixas douradas
que a canela fez ressoar como violinos,
e a cobiça fria que sussurrou nos portos
numa tempestade de mãos esfregadas,
as bem-vindas suavidades verdes
dos jades, e o pálido cereal da seda,
tudo passeou no mar como uma viagem do vento,
como um baile de anêmonas que desapareceram.


Vieram as delgadas velocidades, finas
ferramentas do mar, peixes de trapo,
dourados pelo trigo, destinados
por suas mercadorias cinzentas,
por pedras transbordantes que brilharam
como o fogo caindo entre as suas velas,
ou repletos de flores sulfurosas
recolhidas em ermos salinos.

Outros carregaram raças, dispuseram
na umidade de baixo, acorrentados,
olhos cativos que gretaram com lágrimas
a pesada madeira do navio.

Pés recém-separados do marfim, amarguras
amontoadas como frutos malferidos,
dores esfoladas como cervos: cabeças
que caíram dos diamantes do verão
na profundidade do esterco infame.


Navios cheios de trigo que tremeram
sobre as ondas como nas planícies
o vento cereal das espigas:
barcos das baleias, eriçadas
de corações duros como arpões,
lentos de caçadas, deslocando
para Valparaíso suas adegas,
velas graxentas que se sacudiram
feridas pelo gelo e pelo azeite
até encher as taças da nave
com a colheita branda ela fera.

Barcas desmanteladas que cruzaram
de tombo em tombo no furor marinho
com o homem agarrado a suas lembranças
e os andrajos derradeiros do barco,
antes que, como mãos amputadas,
os fragmentos do mar os conduzissem
às delgadas bocas que povoaram
o espumoso mar em sua agonia.

Naves dos nitratos, aguçadas
e alegres como indômitos delfins
até as sete espumas deslizadas
pelo vento em suas savanas gloriosas,
finas como os dedos e as unhas,
velozes como plumas e corcéis,
navegadoras do mar moreno
que bica os metais de minha pátria.




XV
A uma carranca de proa (elegia)

Nas areias de Magalhães te recolhemos, cansada
navegante, imóvel
sob a tempestade que tantas vezes teu peito doce e duplo
desafiou dividindo em seus mamilos.

Te levantamos outra vez sobre os mares do sul, mas agora
foste a passageira do obscuro, dos rincões, igual
no alto-mar, envolta pela noite marinha.


Hoje és minha, deusa que o albatroz gigante
roçou com a sua estatura estendida no vôo,
como um manto de música dirigida na chuva
por tuas cegas e errantes pálpebras de madeira.

Rosa do mar, abelha mais pura que os sonhos,
amendoada mulher que desde as raízes
de um carvalho povoado pelos cantos
te fizeste forma, força de folhagem com ninhos,
boca de tempestades, doçura delicada
que iria conquistando a luz com seus quadris.


Quando anjos e rainhas que nasceram contigo
se encerraram de musgo, dormiram destinados
à imobilidade com um honor de mortos,
subiste à proa delgada do navio
e anjo e rainha e onda, tremor do mundo foste.

O estremecimento dos homens subia
até a tua nobre túnica com peitos de maçã,
enquanto os teus lábios eram oh! doce! umedecidos
por outros beijos dignos de tua boca selvagem.


Sob a chuva estranha a tua cintura deixava
cair o peso puro da neve nas ondas
cortando na sombria magnitude um caminho
de fogo derrubado, de mel fosforescente.

O vento abriu em teus cacheados sua caixa tempestuosa,
o desencadeado metal de seu gemido,
e na aurora a luz te recebeu tremendo
nos portos, beijando o teu diadema molhado.


Às vezes detiveste sobre o mar o teu caminho
e o barco tremulante desceu por seu costado,
como uma gorda fruta que se desprende e cai,
um marinheiro morto que acolheram a espuma
e o movimento puro do tempo e do navio.

E somente tu entre todos os rostos esmagados
pela ameaça, mergulhados numa dor estéril,
recebeste o sal salpicado em tua máscara,
e os teus olhos guardaram as lágrimas salgadas.

Mais de uma pobre vida resvalou pelos teus braços
para a eternidade das águas mortuárias,
e o rocio que te deram os mortos e os vivos
gastou o teu coração de madeira marinha.


Hoje recolhemos da areia a tua forma.

Afinal, a meus olhos estavas destinada.

Dormes talvez, adormecida, talvez morreste, morta:
teu movimento, por fim, esqueceu o sussurro
e o esplendor errante fechou sua travessia.

Iras do mar, golpes do céu coroaram
tua altaneira cabeça com gretas e rupturas,
e teu rosto como um caracol repousa
com feridas que marcam teu rosto equilibrado.


Para mim tua beleza guarda todo o perfume,
todo o ácido errante, toda a sua noite escura.

E em teu empinado peito de lâmpada ou de deusa,
torre turgente, imóvel amor, vive a vida.

Tu navegas comigo, recolhida, até o dia
em que deixem cair o que sou na espuma.




XVI
O homem no navio

Além da linha do navio
fiada pelo sal em movimento,
entre a graxa morta que transpassa os sonhos
o tripulante dorme com nua fadiga,
alguém de guarda arrasta um cabo de metal,
soa o mundo
do barco, range o vento nas madeiras,
palpitam surdamente os ferros viscerais,
o foguista olha o seu rosto num espelho:
num pedaço partido de vidro, reconhece
dessa ossuda máscara manchada pelo fumo
uns olhos: aqueles olhos que amou Graciela
Gutiérrez, antes de morrer, sem que junto
a seu leito estes olhos que amou pudessem vê-la,
levá-la nesta última embarcação, adentro
da jornada, entre as brasas e o azeite.

Vão importa, com os beijos que se uniam
entre as viagens e aqueles presentes, agora ninguém,
ninguém na casa, O amor na noite do mar,
toca todos os leitos dos que dormem, vive
mais embaixo de navio; como uma alga
noturna que desliza seus ramos para cima.


Há outros estendidos na noite da viagem,
no vazio, sem mar sob os sonhos,
como a vida, alturas fragmentadas, pedaços
da noite, pedregulhos que separaram
a destroçada rede dos sonhos.

A terra
de noite invade o mar com suas ondas e cobre
o coração do pobre passageiro adormecido
com uma única sílaba de pó, com uma
colherada de morte que o reclama.


Toda pedra oceânica é oceano, a mínima
cintura ultravioleta da medusa, o céu
com todo o seu vazio constelado, a lua
tem mar abolido em seus espectros:
mas o homem fecha seus olhos, morde um pouco
seus passos, ameaça seu coração pequeno,
e soluça e arranha a noite com suas unhas,
procurando terra, fazendo-se verme.


É terra que as águas não cobrem e não matam.


É orgulho de argila que morrerá no cântaro,
quebrando-se, separando as gotas que cantaram,
amarrando à terra sua indecisa costura.


Não busques no mar esta morte, não esperes
território, não guardes o punhado de pó
para integrá-lo intacto e entregá-lo à terra.


Entrega-o a estes lábios infinitos que cantam,
doa-os a este coro de movimento e mundo,
destrói-te na eterna maternidade da água.




XVII
Os enigmas

Me tendes perguntado que fia o crustáceo entre [as suas patas de ouro
e eu vos respondo: O mar o sabe.

Me dizeis o que espera a ascídia em seu sino transparente? Que espera?
Eu vos digo, espera como vós o tempo.

Me perguntais a quem alcança o abraço da alga Macrocustis?
Indagai-o, indagai-o a certa hora, em certo mar que eu conheço.


Sem dúvida me perguntareis pelo marfim maldito
[do narval, para que eu vos responda
de que modo o unicórnio marinho agoniza arpoado.

Me perguntais talvez pelas plumas alcionárias que tremem
nas puras origens da maré austral?
E sobre a construção cristalina do pólipo tereis embaralhado, sem dúvida,
uma pergunta a mais, debulhando-a agora?
Quereis saber a elétrica matéria das puas do fundo?
A armada estalactite que caminha se quebrando?
O anzol do peixe pescador, a música estendida
na profundidade como um fio na água?

Eu quero dizer-vos que isto o sabe o mar,
[que a vida em suas arcas
é vasta como a areia, inumerável e pura
e entre as uvas sanguinárias o tempo poliu
a dureza duma pétala, a luz da medusa
e debulhou o ramo de suas fibras corais
de uma cornucópia de nácar infinito.


Eu não sou mais que a rede vazia que mostra
olhos humanos, mortos naquelas trevas,
dedos acostumados ao triângulo, ,medidas
de um tímido hemisfério de laranja.


Andei como vós escarvando
a estrela interminável,
e na minha rede, à noite, acordei nu,
única presa, peixe encerrado no vento.




XVIII
As pedras da praia

Oceânicas não tendes a matéria
que emerge das terras vegetais
entre a primavera e as espigas.


O tacto azul do ar que navega
entre as uvas não conhece o rosto
que da solidão sai ao oceano.


O rosto das rochas destroçadas,
que não conhece abelhas, que não tem
mais que a agricultura das ondas,
o rosto das pedras que aceitaram
a desolada espuma do combate
em suas eternidades gretadas.


Ásperas naves de granito hirsuto
entregue à cólera, planetas
em cuja imóvel dimensão detêm
as bandeiras do mar seu movimento.


Tronos da intempérie dos furacões.


Torres de soledades sacudidas.


Tendes, rochas do mar, a vitoriosa
cor do tempo, o material gastado
por uma eternidade em movimento.


O fogo fez nascer estes lingotes
que o mar estremeceu com suas granadas.


Esta ruga em que o cobre e a salmoura
se uniram: este ferro alaranjado,
estas manchas de prata c de pomba,
são o muro mortal e a fronteira
da profundidade com seus cachos.


Pedras de solidão, pedras amadas
de cujas duras cavidades pende
o tumultuoso frio das algas,
e a cuja borda ornada pela lua
sobe a solidão das praias.

Dos pés perdidos na areia
que aroma se perdeu, que movimento
de corola nupcial subiu tremendo?

Plantas de areia, triângulos carnosos,
aplanadas substâncias que chegaram
a acender seu fulgor sobre as pedras,
primavera marinha, delicada
taça sobre as pedras erigida,
pequeno raio de amaranto apenas
aceso e gelado pela fúria,
dá-me a condição que desafia
as areias do páramo estrelado.


Pedras do mar, centelhas detidas
no combate da luz, sinos
dourados pelo óxido, afiadas
espadas da dor, cúpulas partidas
em cujas cicatrizes se constrói
a estátua desdentada da terra.




XIX
Molusco gongorino

Da Califórnia trouxe um múrex espinhoso,
a sílica em suas farpas, ataviada com fumo
sua eriçada postura de rosa congelada,
e seu interior rosado de paladar ardia
com uma suave sombra de corola carnosa.


Mas tive uma ciprinóide cujas manchas saíram
sobre sua capa, ornando o seu veludo puro
com círculos queimados de pólvora ou pantera,
e outra levou em seu dorso liso como uma taça
um ramo de rios tatuados na lua.


Mas a linha espiral, sustentada
apenas pelo ar, oh,
escadaria, escadaria delicada,
oh, monumento frágil da aurora
que um anel com opala amassada
enrola deslizando a sua doçura.


Tirei do mar, abrindo as areias,
a ostra eriçada de coral sangrento,
spondylus, fechando em suas metades
a luz de seu tesouro submerso,
cofre envolto em agulhas escarlates,
ou neve com espinhos agressores.


A azeitona grácil recolhi da areia,
úmida caminhante, pé de púrpura,
jóia umedecida em cuja forma
a fruta endureceu sua chamarada,
poliu o cristal sua condição marinha
e ovalou a pomba a sua nudez.


O caracol do tritão reteve
a distância na gruta do som
e na estrutura de sua cal trançada
sustém o mar com pétalas, sua cúpula.


Oh, rostellaria, flor impenetrável
como um signo erguido numa agulha,
mínima catedral, lança rosada,
espada da luz, pistilo de água.


Mas na altura da aurora assoma
o filho da luz, feito de lua,
o argonauta que um tremor dirige,
que um trêmulo contacto da espuma
amassou, navegando em uma onda
com sua nau espiral de jasmineiro.


E então escondida na maré,
boca ondulante do mar cor de amora,
seus lábios de titânica violeta,
a tridacna fechou como um castelo,
e lá a sua rosa colossal devora
as azuis estirpes que a beijam:
monastério de sal, herança imóvel
que encarcerou uma onda endurecida.


Mas devo nomear, tocando apenas,
ó Nautilus, a tua alada dinastia,
a redonda equação em que navegas
deslizando a tua nau nacarada,
a tua espiral geometria em que se fundem,
relógio do mar, o nácar e a linha,
e devo até as ilhas, no vento,
ir-me contigo, deus da estrutura.




XX
As aves maltratadas

Alto sobre Tocopilla está o pampa nitroso,
os ermos, a mancha das salinas, é o
deserto sem uma folha, sem um escaravelho,
sem uma fibra, sem uma sombra, sem tempo.


La a garuma dos mares fez os seus ninhos,
faz tempo, na areia solitária e quente,
deixou seus ovos debulhando o vôo
desde a costa, nas ondas da plumagem,
até a solidão, até o remoto
quadrado do deserto que alcatifaram
com o tesouro suave da vida.


Formoso rio desde o mar, selvagem
solidão do amor, plumas do vento
arredondadas em globos de magnólia,
vôo arterial, palpitação alada
em que todas as vidas acumulam,
num rio reunido, suas pressões:
assim o sal estéril foi povoado,
foi coroado o páramo de plumas
e o vôo se incubou nos areais.


Chegou o homem.
Talvez encheram
a sua miséria de pálido extraviado
do deserto, os ramos do arrulho
que como o mar tremia no deserto,
talvez o deslumbrou como uma estrela
a extensão crepitante de brancura,
mas chegaram outros em seus passos.


Chegaram na alva, com garrotes
e com cestos, roubaram o tesouro,
espancaram as aves, derrotaram
ninho por ninho a nau de plumas,
sopesaram os ovos e esmagaram
aqueles que tinham criatura.


Levantaram-nos à luz e os arremessaram
contra a terra do deserto, em meio
ao vôo e ao grasnido e à onda
do rancor, e as aves estenderam
toda a sua fúria no ar invadido,
e cobriram o sol com as suas bandeiras:
mas a destruição feriu os ninhos,
arvorou o garrote e arrasada
foi a cidade do mar no deserto.


Mais tarde a cidade, na salmoura
vespertina de névoas e bêbados,
ouviu passar os cestos que vendiam
ovos de ave do mar, frutos selvagens
do ermo em que nada sobrevive,
senão a soledade sem estações,
e o sal agredido e rancoroso.




XXI
Leviatã

Arca, paz iracunda, resvalada
noite bestial, antártica estrangeira,
não passarás por mim deslocando
teu timbale de sombra sem que um dia
eu entre por tuas paredes e levante
a tua armadura de inverno submarino.


Para o sul crepitou o teu fogo negro
de expulsado planeta, o território
de teu silêncio que moveu as algas
sacudindo a idade da mata.


Foi só forma, magnitude fechada
por um tremor do mundo em que desliza
a sua majestade de couro amedrontado
por sua própria potência e sua ternura.


Arca de cólera acesa
com as tochas da neve negra,
quando o teu sangue cego foi fundado
a idade do mar dormia nos jardins,
e em sua extensão a lua desfazia
a cauda de seu ímã fosforescente,
A vida crepitava
como uma fogueira azul, mãe medusa,
multiplicada tempestade de ovários,
e todo o crescimento era pureza,
palpitação de pâmpano marinho.


Assim foi a tua gigante mastreação
disposta entre as águas como a passagem
da maternidade sobre o sangue,
e teu poder foi noite imaculada
que resvalou inundando as raízes.

Extravio e terror estremeceram
a solidão, e fugiu o teu continente
para além das ilhas esperadas:
mas o terror passou sobre os globos
da lua glacial, e entrou em tua carne,
agrediu solidões que ampararam
a tua aterradora lâmpada apagada.

A noite foi contigo: te envolvia
aderindo-te um limo tempestuoso
c revolveu a tua cauda de furacão
o gelo em que dormiam as estrelas.


Oh, grande ferida, manancial quente
revolvendo seus trovões derrotados
na comarca do arpão, tingido
pelo mar do sangue, dessangrado,
doce e adormecido bicho conduzido
como um ciclone de partidos hemisférios
até as barcas negras da graxa
povoadas por rancor e pestilência.


Oh, grande estátua morta nos cristais
da luta polar, enchendo o céu
como uma nuvem de terror que chora
e cobre os oceanos de sangue.




XXII
“Phalacrocorax”

Aves estercorárias das ilhas,
multiplicada vontade do vôo,
celeste magnitude, inumerável
emigração do vento da vida,
quando os vossos cometas deslizam
areando o céu sigiloso
do calado Peru, voa o eclipse.

Oh, lento amor, selvagem primavera
que desenraíza sua taça plena
e navega a nave da espécie
com um fluvial tremor de água sagrada
deslocando o seu céu caudaloso
para as ilhas vermelhas do esterco.


Eu quero submergir-me em vossas asas,
ir para o sul dormindo, sustido
por toda a mata tremulante.

Ir no rio escuro das flechas
com uma voz perdida, dividir-me
na palpitação inseparável.

Depois, chuva do vôo, as calcárias
ilhas abrem o seu frio paraíso
de onde cai a lua da plumagem,
a tormenta enlutada das plumas.


O homem inclina então sua cabeça
ante o arrulho das aves mães,
e cava esterco com as mãos cegas
que levantam as grades uma a uma,
raspa a claridade do escremento,
acumula as fezes derramadas.

e se prosterna ao meio das ilhas
da fermentação, corno um escravo,
saudando as ácidas ribeiras
que coroam os pássaros ilustres.




XXIII
Não só o albatroz

Não da primavera, não esperadas
sois, não na sede da corola,
não no mel roxo que se entretece
fibra por fibra em cepas e cachos,
mas na tempestade, na andrajosa
cúpula torrencial do arrecife,
na greta perfurada pela aurora,
e ainda mais, sobre as lanças verdes
do desafio, na desmoronada
solidão dos páramos marinhos.


Noivas do sal, pombas procelárias,
a todo aroma impuro da terra
destes o dorso pelo mar molhado,
e na selvagem claridade mergulhastes
a geometria celestial do vôo.


Sagradas sois, não só a que andou
como gota ciclônica no ramo
do vendaval: não só a que se aninha
nas vertentes da fúria, mas
a gaivota de neve arredondada,
a forma do remeiro sobre a espuma,
o prateado fardel de platina.


Quando tombou fechado como um nó
o alcatraz, mergulhando o seu volume,
e quando navegou a profecia
nas asas extensas do albatroz,
e quando o vento do petrel voava
sobre a eternidade em movimento,
para além dos velhos cormorões,
meu coração se recolheu em sua taça
e estendeu aos mares e às plumas
a desembocadura de seu canto.


Dá-me o estanho gelado que no peito
levais às pedras tempestuosas,
dá-me a condição que se congrega
nas garras da águia marinha,
ou a estatura imóvel que resiste
a todos os crescimentos e rupturas,
o vento da flor de laranjeira desamparado
e o sabor da pátria desmedida.




XXIV
A noite marinha

Noite marinha, estátua branca e verde,
te amo, dorme comigo.
Fui por todas
as ruas calcinando-me e morrendo,
cresceu comigo a madeira, o homem
conquistou a sua cinza e se dispôs
a descansar rodeado pela terra.


Fechou a noite para que os teus olhos
não vissem o seu repouso miserável:
quis proximidade, abriu os braços
custodiado por seres e por muros,
e caiu no sonho do silêncio, baixando
à terra funeral com suas raízes.

Eu, noite oceano, a tua forma aberta,
à tua extensão que Aldebarã vigia,
à boca molhada de teu canto
cheguei com o amor que me constrói.


Te vi, noite do mar, quando nascias
golpeada pelo nácar infinito:
vi se tecerem as fibras estreladas
e a eletricidade de tua cintura
e o movimento azul dos sons
que acossam a tua doçura devorada.


Ama-me sem amor, sangrenta esposa.


Ama-me com espaço, com o rio
de tua respiração, com o aumento
de todos os teus diamantes transbordados:
ama-me sem a trégua de teu rosto,
dá-me a retidão de teu quebranto.


Formosa és, amada, noite formosa:
guardas a tempestade como uma abelha
adormecida em teus estames alarmados,
e sonho e água tremem nas taças
de teu peito acossado de vertentes.


Noturno amor, segui o que erguias,
tua eternidade, a torre tremulante
que assume as estrelas, a medida
de tua vacilação, as povoações
que levanta a espuma em teus costados:
estou acorrentado à tua garganta
e aos lábios que rompes na areia.


Quem és? Noite dos mares, dize-me
se a ma escarpada cabeleira cobre
toda a solidão, se é infinito
este espaço de sangue e de prados.

Dize quem és, cheia de navios,
cheia de luas que tritura o vento,
dona de todos os metais, rosa
da profundidade, rosa molhada
pela intempérie do amor nu.


Túnica da terra, estátua verde,
dá-me uma onda como um sino,
dá-me uma onda de flor de laranjeira furiosa,
a multidão de fogueiras, os navios
do céu capital, a água em que navego,
a multidão do fogo celeste: quero um só
minuto de extensão e mais que todos
os sonhos, tua distância:
toda a púrpura que medes, o grave
pensativo sistema constelado:
toda a tua cabeleira que visita
a escuridão, e o dia que preparas.


Quero ter a tua fronte simultânea,
abri-la em meu interior para nascer
em todas as tuas praias, ir agora
com todos os segredos respirados,
com as tuas escuras linhas resguardadas
em mim como o sangue ou as bandeiras,
levando estas secretas proporções
ao mar de cada dia, aos combates
que em cada porta - amores e ameaças -
vivem adormecidos.

Mas então
entrarei na cidade com tantos olhos
como os teus, e sustentarei a vestimenta
com que me visitaste, e que me toquem
até a água total que não se mede:
pureza e destruição contra toda a morte,
distância que não pode gastar-se, música
para os que dormem e para os que despertam.

Joelhos, salsa, lábios, mapa.

As letras dormiam na noite inclinada, e eram
silveiras bravas. Por elas
escorregava o sono inclinado: mercúrio,
salsa leve.
Unidas as letras nos cotovelos, unidas
dormindo
nos seus frios joelhos de letras.
Por baixo, os mapas redondos com seu
mercúrio leve e a sua
salsa leve inclinada. Bravias
silveiras escorregando nos mapas.
Meus lábios unidos às letras dormindo.
Esse, isso — cabelo quente,
telha molhada.

Fogo, vestido, cidade, areia.

Cantando as mulheres palpitavam às portas,
sonhando com atenção. E eu —
engenheiro móvel — enquanto
a noite sensível.
Martelos batiam borboletas como sons
na cidade de areia.
As letras vergavam num sonho.
Cantando linho agudo na atenção
sensível, vergadas às portas,
mulheres cantavam, palpitando letras
na cidade de areia.
Longe, perto — cabelo
quente, telha molhada.

Mulheres, mercúrio, noite, fábrica.

Através do livro raso, um estupendo k
negro de tanto amor.
E o meu grito, copo de pé através
de frias fábricas.
o radar pontuava a viagem das rosas.
Vírgulas na neve batendo nas rosas.
Ww, tt, aspas, parêntesis sensíveis.
Enquanto através alguém ia gritando
pela noite, pela neve — o seu amor:
cabelo quente, telha molhada.

Engenheiro, letra, grito, aspas.

A terra irada escrevia o seu livro raso.
Enquanto por baixo as letras dos peixes
fazendo som.
Eles vinham sonhando, elas vinham sonhando.
Como vírgulas num mapa—os peixes, as letras
vergavam num sonho.
Martelos batendo som nos peixes.
Por baixo os martelos, por cima o radar,
no meio os peixes, as letras, as rosas.
E dentro de mim as vírgulas grandes —
cor de martelos,
som de rosas.
Esse grito, essa letra — cabelo quente, telha
molhada.

Som, radar, peixe, k.

E um terrível amor —pontapé estupendo,
tempestade de areia.
Então o cabelo respirava como uma tábua
irada. Longe, perto — as silveiras
vergavam ao som de mulheres
cantando vírgulas, peixes e aspas.
Enquanto a visão de um copo de pé e da letra k.
E a minha alegria, fábrica de
cabelo quente, telha molhada.

Copo, muro, livro, tábua.

Então o meu cabelo respirava.
Telhas voavam pelos canais —11, tt, ii — durante
todo o pensamento, e os cabelos
no muro batiam finas estátuas.
Abrindo no escuro, durante toda a neve,
os copos, os vestidos, os mapas.
E dentro de mim, rompendo peixes,
uma noite sensível cor de martelos.
Esse grito, essa vírgula, esse amor, esse
martelo louco
nas borboletas. Então o meu cabelo
respirava — cabelo quente, telha
molhada.

Neve, borboleta, vírgula, estátua.

Na noite sensível — louco, louco —
loucamente levantava sobre o livro raso
essa letra k.
Elas tinham asas de castiçal na cara.
Enquanto eu — engenheiro móvel — na fria
fábrica, um copo de pé, um sentimento
de areia. Irado amor em todos
os mapas — cabelo quente,
telha molhada.

Martelo, sono, rosa, porta.

Eu comia fogo ao pé das cerejas.
Álcool escorrendo num retrato aberto
ao contrário da noite.
E as cerejas dormiam de tão abertas —
líricas e loucas.
E eu, álcool escorrendo
pelas fábricas de neve, abertas.
A cabeça aguda dormia nos ares
de um livro raso — cabelo
quente, telha molhada.

Cara, retrato, canal, álcool.

Sinistro na mão um peixe levantado
louco, alguém
gritando, ia gritando pela fábrica fora.
Rosas enoveladas vergavam no sono,
enquanto letras com os cabelos
escorrendo num muro.
Extraordinário, pendurado no sono
sinistro, um negro peixe
morria durante a neve inteira.
Com esse peixe, alguém ia gritando:
cabelo quente, telha molhada.

Gritando, cor de martelo, em peixes
com som de rosas:

Castiçal, silveira, linho — e:

porta porta.

1963.
1.
Você, uma vez a bela de Shreveport,
cabelos tingidos de hena, a pele como pêssego,
ainda manda fazer vestidos como os que se usavam então,
e toca um prelúdio de Chopin
chamado por Cortot: “Deliciosas reminiscências
flutuam como perfume pela memória”.
Sua mente agora, mofando como bolo de casamento,
pesada de experiências inúteis, pródiga
em suspeitas, rumores, fantasias,
desmoronando sob o fio
do mero fato. Na primavera da vida.
Inquieta, o olhar faiscante, sua filha
limpa as colheres de chá, cresce para outro lado.
2.
Dando com a cafeteira na pia
ela escuta o reproche dos anjos, e fita
o céu desgrenhado para além de jardins impecáveis.
Não faz mais de uma semana desde que disseram:Não tenha paciência.
Da próxima foi: Seja insaciável.
E depois:Salve-se. Aos demais, não poderá salvar.
Por vezes tem deixado a água da torneira lhe escaldar o braço,
um fósforo queimar-lhe a unha do dedão,
ou posto a mão sobre a chaleira
bem na lã do vapor. São provavelmente anjos
posto que já nada a magoa, excetuando
a areia de cada manhã indo de encontro aos olhos.
3.
Uma mulher pensante dorme com monstros.
O bico que a agarra, ela se torna. E a Natureza,
este ainda cômodo, destampado baú
cheio detempora e mores
enche-se de tudo:…………… as flores de laranjeira cobertas de orvalho,
os contraceptivos, os terríveis seios
de Boadiceia sob orquídeas e cabeças chatas de raposa.
Duas belas mulheres, trancadas em discussão,
ambas orgulhosas, argutas, sutis, ouço que gritam
por sobre a maiólica e os cacos de vidro
como Fúrias encurraladas para longe de suas presas:
A discussãoad feminam, todos os velhos punhais
que enferrujaram em minhas costas, o seu adentro
ma semblable, ma soeur!
IV.
Conhecendo-se bem demais uma na outra
seus dons sem puro desfrute, mas espinhos
a agulha afiada contra uma ponta de escárnio…
Lendo enquanto espera
aquecer o ferro,
escrevendo,Minha vida – encostada pelos cantos
naquela despensa em Amherst enquanto as geleias fervem e escumam,
ou, com maior frequência,
de olhos fitos e embicada e obstinada como uma ave,
tirando poeira a todo o triquetraque da vida cotidiana.
5.
Dulce ridens, dulce loquens
ela depila as pernas até brilharem
como petrificadas presas de mamute.
6.
Quando canta Corina a seu alaúde
não são dela nem letra nem música;
somente os longos cabelos descaindo-se
sobre a bochecha, somente a canção
da seda contra os joelhos,
e mesmo estes
ajustam-se nos reflexos de um olho.
Empertigada, trêmula e insatisfeita, ante
uma porta destrancada, a jaula das jaulas,
diga-nos, sua ave, sua trágica máquina –
será istofertilisante douleur? Esmagada
pelo amor, para ti a única reação natural,
estarás acirrada a ponto
de arrombar os segredos do cofre? a Natureza,
nora, mostrou-te enfim os livros de contabilidade
que seu próprio filho sempre ignorou?
7.
Ter neste incerto mundo alguma posição
inabalável é
da maior importância.
…………………………………….Assim escreveu
uma mulher, em parte boa e em parte audaz,
que lutou com o que não compreendia de todo.
Poucos homens a seu redor teriam feito mais,
portanto a rotularam puta, megera, engodo.
8.
Morreis todos aos quinze anos”, disse Diderot,
mudando-se metade em lenda, metade em convenção.
No entanto, olhos sonham equivocamente
por detrás de janelas fechadas, empastadas de vapor.
Deliciosamente, tudo o que poderíamos ter sido,
tudo o que fomos – fogo, lágrimas,
espírito, gosto, ambição martirizada –
agita-se como a lembrança do adultério recusado
o seio murcho e esvaziado de nossa “meia idade”.
9.
Não que se faça bem, mas
que se faça e ponto? Pois bem, pense
nas possibilidades! ou ignore-as para sempre.
Estes luxos da criança precoce,
a querida inválida do Tempo –
abdicaríamos, minhas caras, se nos fosse dado?
Nossa praga foi também nossa sinecura:
mero talento nos bastava –
brilho em rascunhos e fragmentos.
Não mais suspirem, minhas senhoras.
………………………………………………………..O tempo é macho
e em suas taças bebe ao belo.
Divertidas pelo galanteio, ouvimos
enquanto nos louvam as mediocridades,
indolência lida como abnegação,
desleixo lido como intuição refinada,
cada deslize perdoado, o único crime sendo
estampar uma sombra demasiado notável
ou sumariamente destruir o molde.
Para isso, a solitária,
o gás lacrimogênio, os estilhaços.
Poucas pleiteam este tipo de honra.
13.
……………………………………………………….Bom,
ela posterga sua chegada, que lhe deve parecer
tão pouco clemente quanto a própria história.
A mente cheia ao vento, vejo-a mergulhar
de seios e relanceando pelas correntezas,
tomando a luz sobre si,
pelo menos tão bela quanto qualquer menino
ou helicóptero,
…………………………………………..empertigada, chegando ainda,
suas finas hélices fazendo o ar recuar
mas sua carga
já nenhuma promessa:
entregue
palpável
nossa.
1958 – 1960
(tradução de Ismar Tirelli Neto)
I
O vale das pedras ( 1946)

Hoje caíu, 25 de abril,
sobre os campos de Ovalle,
a chuva esperada, a água de 1946.


Nesta primeira quinta-feira molhada, um dia de vapor
constrói sobre os cerros sua cinzenta ferragem.

É esta quinta-feira das pequenas sementes
que em suas bolsas guardaram os camponeses famintos:
hoje apressadamente furarão a terra e nela
deixarão cair seus grãozinhos de verde vida.


Ainda ontem subi o rio Hurtado acima:
acima, entre os ásperos cerros impertinentes,
eriçados de espinhos, pois o grande cacto andino,
como um cruel candelabro, aqui se estabelece.


E sobre seus agrestes espinhos, como vestimenta
escarlate, ou como uma mancha de terrível arrebol,
como sangue dum corpo arrastado sobre mil puas,
as parasitas acenderam as suas lâmpadas sangrentas.


As rochas são imensas bolsas coaguladas
na idade do fogo, sacos cegos de pedra
que rolaram até se fundirem nestas
implacáveis estátuas que guardam o vale.


O rio leva um doce e agônico rumor
de últimas águas entre o salgueiro escuro
multidão de folhagem, e os álamos
deixam tombar em gotas seu delgado amarelo.


É o outono do Norte Pequeno, o atrasado outono.


Pestaneja mais aqui a luz no cacho.


Como uma mariposa, detém-se mais tempo
o transparente sol até coalhar a uva,
e brilham sobre o vale seus panos moscatéis.




II
Irmão Pablo

Mas hoje os camponeses vêem ver-me: “Irmão,
não tem água, irmão Pablo, não tem água, não choveu.


E a corrente miúda
do rio
sete dias circula, sete dias se seca.


Nossas vacas morreram lá em cima na cordilheira.


E a sede começa a matar crianças.

Lá em cima, muitos não têm o que comer.

Irmão Pablo, você vai falar com o ministro”.


(Sim, o irmão Pablo vai falar com o ministro, mas eles não sabem
como me vêem chegar
essas poltronas de couro ignominioso
e depois a madeira ministerial, esfregada
e polida pela saliva bajulante.
)
Mentirá o ministro, esfregará as mãos,
e o gado do pobre comuneiro
com o burro e o cachorro, pelas esfiapadas
rochas, de fome em fome, tombará lá embaixo.




III
A fome e a ira

Adeus, adeus a tua quinta, à sombra
que ganhaste, ao ramo
transparente, à terra consagrada,
ao boi, adeus, à água avara,
adeus, às vertentes, à música
que não chegou na chuva, ao cinto pálido
da ressaca e da pedregosa aurora.


Juan Ovalle, te dei a mão, mão sem água,
mão de pedra, mão de parede e estiagem.

E te disse: à parda ovelha, às mais ásperas
estrelas, à lua como cardo roxo,
amaldiçoa, ao ramo partido dos lábios nupciais,
mas não toques no homem, não derrames ainda o homem
ferindo-lhe as veias, não tinjas ainda a areia,
não acendas ainda o vale com a árvore
dos tombados ramos arteriais.


Juan Ovalle, não mates.
E tua mão
me respondeu: “Estas terras
querem matar, buscam de noite
vingança, o velho vento ambarino
na amargura é vento de veneno,
e a guitarra é como um quadril
de crime, e o vento é uma faca”.




IV
Tiram-lhes a terra

Porque atrás do vale e da seca,
detrás do rio e da delgada folha,
espreitando o torrão e a colheita,
o ladrão de terras.


Olha que árvore de ressoante púrpura
contempla seu estandarte avermelhado,
e atrás de sua estirpe matutina,
o ladrão de terras.


Ouves como o sal do arrecife
o vento de cristal nas nogueiras,
porém sobre o azul de cada dia
o ladrão de terras.


Sentes entre as capas germinais
pulsar o trigo em sua flecha dourada,
porém entre o pão e o homem há uma máscara:
o ladrão de terras.




V
Aos minerais

Depois, às altas pedras
de sal e de ouro, à enterrada
república dos metais
subi:
eram os doces muros em que uma
pedra se amarra com outra,
com um beijo de barro escuro.


Um beijo entre pedra e pedra
pelos caminhos tutelares,
um beijo de terra e terra
entre as grandes uvas vermelhas,
e como um dente junto a outro dente
a dentadura da terra,
as paredes de matéria pura,
as que levam o interminável
beijo das pedras do rio
aos mil lábios do caminho.


Subamos da agricultura ao ouro.

Tendes aqui os altos pedernais.


O peso da mão é como uma ave.

Um homem, uma ave, uma substância de ar,
de obstinação, de vôo, de agonia,
uma pálpebra talvez, mas um combate.


E de lá no transversal berço do ouro,
em Punitaqui, frente a frente
com os calados sapadores
da picareta, da pá, vem,
Pedro, com tua paz de couro,
vem, Ramírez, com tuas abrasadas
mãos que indagaram o útero
das cerradas minerações,
salve, nas grades, nos
calcários subterrâneos
do ouro, abaixo em suas matrizes,
ficaram as vossas digitais
ferramentas marcadas com fogo.




VI
As flores de Punitaqui

Era dura a pátria lá como antes.

Era um sal perdido o ouro,
era
um peixe enrubescido e no torrão colérico
seu pequeno minuto triturado
nascia, ia nascendo das unhas sangrentas.


Entre a alva corno uma amendoeira fria,
sob os dentes das cordilheiras,
o coração perfura seu buraco,
rastreia, toca, sofre, sobe, e na altura
mais essencial, mais planetária, chega
com a camiseta rasgada.


Irmão de coração queimado,
junta em minha mão esta jornada,
e baixemos uma vez mais às camadas adormecidas
em que tua mão como uma tenaz
agarrou o ouro vivo que queria voar
ainda mais profundo, ainda mais abaixo, ainda.


E lá como umas flores
as mulheres de lá, as chilenas de cima,
as minerais filhas da mina,
um ramo entre as minhas mãos, umas flores
de Punitaqui, umas rubras flores,
gerânios, flores pobres
daquela terra dura,
depositaram em minhas mãos como
se tivessem sido achadas na mina mais funda,
se aquelas flores filhas da água rubra
voltassem lá do fundo sepultado do homem.


Peguei suas mãos e suas flores, terra
despedaçada e mineral, perfume
de pétalas profundas e dores.

Soube ao olhá-las de onde vieram
até a solidão dura do ouro,
me mostraram como gotas de sangue
as vidas derramadas.


Eram em sua pobreza
a fortaleza florescida, o ramo
da ternura e seu metal remoto.


Flores de Punitaqui, artérias, vidas, junto
a meu leito, na noite, vosso aroma
se ergue e me guia pelos mais subterrâneos
corredores do luto
pela altura perfurada, pela neve, e ainda
pelas raízes que só as lágrimas alcançam.


Flores, flores da altura,
flores de mina c pedra, flores
de Punitaqui, filhas
do amargo subsolo: em mim, nunca olvidadas,
ficastes vivas, construindo
a pureza imortal, uma corola
de pedra que não morre.




VII
O ouro

Teve o ouro esse dia de pureza.

Antes de mergulhar de novo sua estrutura
na suja saída que o aguarda,
recém-chegado, recém-desprendido
da solene estátua da terra,
foi depurado pelo fogo, envolto
pelo suor e as mãos do homem.


Lá se despediu o povo do ouro.

E era terrestre o seu contacto, puro
como a matriz cinzenta da esmeralda.

Igual era a mão suarenta
que recolheu o lingote emaranhado
ao cepo de terra reduzida
pela infinita dimensão do tempo,
à cor terrenal das sementes,
ao solo poderoso dos segredos,
à terra que lavra os racimos.


Terras do ouro sem manchar, humanos
materiais, metal imaculado
do povo, virginais minerações,
que se tocam sem se verem na implacável
encruzilhada de seus caminhos:
o homem continuará mordendo o pó,
continuará sendo terra pedregosa,
e ouro subirá sobre seu sangue
até ferir e reinar sobre o ferido.




VIII
O caminho do ouro

Entrai, senhor, comprai pátria e terreno,
casas, bênçãos, ostras,
tudo se vende aqui aonde chegastes.

Não há torre que não caia em vossa pólvora,
não há presidência que rechace nada,
não há rede que não reserve o seu tesouro.


Como somos tão “livres” como o vento,
podeis comprar o vento, a cachoeira,
e na desenrolada celulose
ordenar as impuras opiniões,
ou recolher amor sem alvitre,
destronado no linho mercenário.


O ouro mudou de roupa usando
formas de trapo, de papel puído,
frios fios de lâmina invisível, cinturões de dedos enroscados.


À donzela em seu novo castelo
levou o pai de aberta dentadura
o prato de cédulas
que devorou a bela disputando-o
no chão e a golpes de sorriso.

Ao bispo subiu a investidura
dos séculos de ouro, abriu a porta
dos juízes, manteve as alfombras,
fez tremer a noite nos bordéis,
correu com os cabelos no vento.


(Eu vivi a idade em que reinava.

Eu vi consumida podridão,
pirâmides de esterco angustiadas
pela honra: conduzidos e trazidos
césares da chuva purulenta,
convencidos do peso que punham
nas balanças, rígidos
bonecos da morte, calcinados
por sua cinza dura e devorante.
)



IX

Fui além do ouro:
entrei na greve.

Lá durava o fio delicado
que une os seres, lá o cordão puro
do homem está vivo.

A morte os mordia,
o ouro, ácidos dentes e veneno
lançava para eles, mas o povo
pôs os seus pedernais na porta,
foi torrão solidário que deixava
transcorrer a ternura c o combate
como duas águas paralelas,
fios
das raízes, ondas da estirpe.


Vi a greve nos braços reunidos
que apertam o desvelo
e em uma pausa trêmula de luta

vi pela primeira vez o único vivo!
A unidade das vidas dos homens!

Na cozinha da resistência
com seus fogões pobres, nos olhos
das mulheres, nas mãos insignes
que com torpor se inclinavam
para o ócio de um dia
como em um mar azul desconhecido,
na fraternidade do pão escasso,
na reunião inquebrantável, em todos
os germes de pedra que surgiam,
naquela romã valorosa
elevada no sal do desamparo,
achei por fim a fundação perdida,
a remota cidade da ternura.




X
O poeta

Antes andei pela vida, em meio
a um amor doloroso: antes retive
uma pequena página de quartzo
cravando-me os olhos na vida.


Comprei bondade, estive no mercado
da cobiça, respirei as águas
mais surdas da inveja, a inumana
hostilidade de máscaras e seres.

Vivi um mundo de lamaçal marinho
no qual a flor de súbito, a açucena
me devorava em tremor de espuma,
e onde pus o pé resvalou minha alma
pelas dentaduras do abismo.

Assim nasceu minha poesia, apenas
resgatada de urtigas, empunhada
sobre a solidão como um castigo,
ou apartou no jardim da impudicícia
sua mais secreta flor até enterrá-la.

Asilado assim como a água sombria
que vive em seus profundos corredores,
corri de mão em mão, ao insulamento
de cada ser, ao ódio cotidiano.

Soube que assim viviam, escondendo
a metade dos seres, como peixes
do mais estranho mar, e nas lodosas
imensidades encontrei a morte.

A morte abrindo portas e caminhos.

A morte deslizando pelos muros.




XI
A morte no mundo

A morte ia mandando e recolhendo
em lugares e tumbas seu tributo:
o homem com punhal ou com bolso,
ao meio-dia ou na luz noturna,
esperava matar, ia matando,
ia enterrando seres e ramagens,
assassinando e devorando mortos.

Preparava as suas redes, esmagava,
sangrava, saía nas manhãs
cheirando o sangue da caçada,
e ao voltar de seu triunfo estava envolto
por fragmentos de morte e desamparo,
e então matando-se enterrava
com cerimônia funeral os seus passos.


As casas dos vivos eram mortas.

Escória, tetos rotos, urinóis,
vermiculadas ruelas, covas
acumuladas com o pranto humano.

- Assim deves viver - disse o decreto.

- Apodrece em tua substância - disse o chefe.

- És imundo - arrazoou a Igreja.

- Estende-te no lodo - te disseram.

E uns tantos armaram a cinza
para que ela governasse e decidisse,
enquanto a flor do homem se batia
contra as paredes que lhe construíram.


O cemitério teve pompa e pedra.

Silêncio para todos e estatura
de vegetais altos e afiados.


Por fim estás aqui, por fim nos deixas
um vazio nu meio da selva amarga,
por fim te encontras teso entre paredes
que não transpassarás.
E cada dia
as flores como um rio de perfume
se juntaram ao rio dos mortos.

As flores que a vida não tocava
caíram sobre o vazio que deixaste.




XII
O homem

Aqui encontrei o amor.
Nasceu na areia,
cresceu sem voz, tocou os pedernais
da dureza e resistiu à morte.

Aqui o homem era vida que juntava
a intacta luz, o mar sobrevivente,
e atacava e cantava e combatia
com a mesma unidade dos metais.

Aqui os cemitérios eram terra
apenas erguida, cruzes partidas,
sobre cujas madeiras derretidas
adiantavam-se os ventos arenosos.




XIII
A greve

Estranha era a fábrica inativa.

Um silêncio na planta, uma distância
entre máquinas e homem, como um fio
cortado entre planetas, um vazio
das mãos do homem que consomem
o tempo construindo, e as desnudas
estâncias sem trabalho e sem um som.

Quando o homem deixou as tocas
da turbina, quando desprendeu
os braços da fogueira e decaíram
as entranhas do forno, quando tirou os olhos
da roda e a luz vertiginosa
se deteve em seu círculo invisível,
de todos os poderes poderosos,
dos círculos puros de potência,
da energia surpreendedora,
ficou um montão de inúteis aços
e nas salas sem homem, o ar viúvo,
o solitário aroma do azeite.


Nada existia sem aquele fragmento
batido, sem Ramírez,
sem o homem de roupa rasgada.

Lá estava a pele dos motores,
acumulada em morto poderio,
como negros cetáceos no fundo
pestilento dum mar sem ondulação,
ou montanhas escondidas de repente
sob a solidão dos planetas.




XIV
O povo

Passeava o povo suas bandeiras rubras
e entre eles na pedra que tocaram
estive, na jornada fragorosa
e nas altas canções da luta.

Vi como passo a passo conquistavam.

Somente a resistência dele era caminho,
e isolados eram como troços partidos
duma estrela, sem boca e sem brilho.

Juntos na unidade feita em silêncio,
eram o fogo, o canto indestrutível,
o lento passo do homem na terra
feito profundidades e batalhas.

Eram a dignidade que combatia
o que foi pisoteado, e despertava
como um sistema, a ordem das vidas
que tocavam as portas e se sentavam
na sala central com suas bandeiras.




XV
A letra

Assim foi.
E assim será.
Nas serras
calcárias, à beira
da fumaça, nas oficinas,
há uma mensagem escrita nas paredes
e o povo, só o povo, pode vê-la.

Suas letras transparentes se formaram
com suor e silêncio.
Estão escritas.

Amassaste-as, povo, em teu caminho
e estão sobre a noite como o fogo
abrasador e oculto da aurora.

Entra, povo, nas margens do dia.

Anda como um exército, reunido,
e bate a terra com teus passos
e com a mesma identidade sonora.

Seja uniforme o teu caminho como
é uniforme o suor da batalha,
uniforme o sangue poeirento
do povo fuzilado nos caminhos.


Sobre esta claridade irá nascendo
a granja, a cidade, a mineração,
e sobre esta unidade como a terra
firme e germinadora se há disposto
a criadora permanência, o germe
da nova cidade para as vidas.

Luz dos grêmios maltratados, pátria
amassada por mãos metalúrgicas,
ordem que saiu dos pescadores
como um ramo do mar, muros armados
pela alvenaria transbordante,
escolas cereais, armaduras
de fábricas amadas pelo homem.

Paz desterrada que regressa, pão
compartilhado, aurora, sortilégio
do amor terrenal, edificado
sobre os quatro ventos do planeta.

A Areia Traída
Talvez, talvez o olvido sobre a terra como uma capa
possa desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.


Talvez, talvez o homem como um ferreiro acode
à brasa, aos golpes do ferro sobre o ferro,
sem entrar nas cegas cidades do carvão.

sem fechar os olhos, precipitar-se abaixo
em fundições, águas minerais, catástrofes.

Talvez, porém meu prato é outro, meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido:
meus lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo gastou as minhas mãos.

Por isso te falarei destas dores que quisera afastar,
te obrigarei a viver uma vez mais entre suas queimaduras,
não para nos determos coma numa estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra .

nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminhar conhecendo, para tocar a retidão
com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria, para
que assim sejamos invencíveis.




I
Os verdugos

Sáuria, escamosa América enrolada
ao crescimento vegetal, ao mastro
erigido no lamaçal:
amamentaste filhos terríveis
com venenoso leite de serpente,
tórridos berços incubaram
e cobriram de barro amarelo
uma progênie encarniçada.

O gato e a escorpiona fornicaram
na pátria selvática.


Fugiu a luz de ramo em ramo,
mas não acordou o adormecido.


Cheirava à cana o cobertor,
haviam rodado as machadinhas
ao mais arredio lugar da sesta,
e no penacho escasseado
das cantinas escarrava
a sua independência jactanciosa
o jornaleiro sem sapatos.



O Dr.
Francia
O Paraná nas zonas maranhosas,
úmidas, palpitantes de outros rios
onde a rede da água, Yabebiri,
Acaray,, Igurey, jóias gêmeas
tingidas de quebracho, rodeadas
pelas espessas copas do copal,
transcorre para as savanas atlânticas
arrastando o delírio
do nazaret arroxeado, as raízes
do curupay em seu sonho arenoso.


Do lodaçal tépido, dos tronos
do jacaré devorador, ao meio
da pestilência silvestre,
cruzou o Dr.
Rodríguez de Francia
a caminho da poltrona do Paraguai.

E viveu entre os rosetões
de rosada alvenaria
qual estátua sórdida e cesárea
coberta pelos véus da aranha sombria.


Solitária grandeza no salão
cheio de espelhos, espantalho
negro sobre a felpa rubra
e ratazanas assustadas na noite.

Falsa coluna, perversa
academia, agnosticismo
de rei leproso, rodeado
pela extensão da erva-mate
bebendo números platônicos
na forca do justiçado,
contando triângulos de estrelas,
medindo claves estelares,
espreitando o alaranjado
entardecer do Paraguai
com um relógio na agonia
do fuzilado em sua janela,
com uma mão no ferrolho
do crepúsculo manietado.


Os estudos sobre a mesa,
os olhos no acicate
do firmamento, nos emborcados
cristais da geometria,
enquanto o sangue intestinal
do homem morto a coronhadas
escorria pelos degraus
chupado por verdes enxames
de moscas que cintilavam.


Fechou o Paraguai como um ninho
de sua majestade, amarrou
tortura e barro nas fronteiras.

Quando nas ruas sua silhueta
passa, os índios viram
os olhos para o muro:
sua sombra resvala deixando
duas paredes de calafrios.


Quando a morte consegue ver
o Dr.
Francia, ele está mudo,
imóvel, atado a si próprio,
só em sua cova, seguro
pelas cordas da paralisia,
e morre só, sem que ninguém
entre na câmara: ninguém se atreve
a tocar a porta do amo.


E amarrado por suas serpentes,
desbocado, fervido em sua medula,
agoniza e morre perdido
na solidão do palácio,
enquanto a noite estabelecida
como uma cátedra devora
os capitéis miseráveis
salpicados pelo martírio.



Rosas (1829-1849)

É tão difícil ver através da terra
(não do tempo, que ergue sua taça transparente
iluminando o alto resumo do orvalho),
porém a terra espessa de farinhas e rancores,
adega endurecida com mortos e metais,
não me deixa olhar pra baixo, no fundo
em que a entrecruzada solidão me rechaça.


Mas falarei com eles, os meus, os que um dia
para minha bandeira fugiram, quando era a pureza
estrela de cristal em seu tecido.


Sarmiento, Alberdi, Oros, del Carril:
minha pátria pura, logo manchada,
guardou para vós
a luz de sua metálica estreiteza,
e entre pobres e agrícolas adobes
os desterrados pensamentos
foram fiando-se com dura mineração
e aguilhões de açúcar vinhateiro.


O Chile os repartiu em sua fortaleza,
deu-lhes o sal de seu circuito marinho,
e esparziu as sementes desterradas.


Enquanto isso o galope na planície.

A argola partiu-se sobre as fibras
da cabeleira celeste,
e o pampa mordeu as ferraduras
das bestas molhadas e frenéticas.


Punhais, gargalhadas de mazorca
sobre o martírio.
Lua coroada
de rio a rio sobre a brancura
com um penacho de sombra indizível!

A Argentina roubada a coronhadas
no vapor da alba, castigada
até sangrar e enlouquecer, vazia,
cavalgada por azedos capatazes!

Tu fizeste procissão de vinhas rubras,
foste uma máscara, um tremor selado,
e te substituíram na brisa
por uma trágica mão de cera.

Saiu de ti uma noite, corredores,
lousas de pedra enegrecida, escadarias
onde se fundiu o som, encruzilhadas
de carnaval, com mortos e bufões,
e um silêncio de pálpebra que cai
sobre todos os olhos da noite.


Por onde fugiram teus trigos espumosos?
Teu garbo frutal, tua extensa boca,
tudo o que se move por tuas cordas
para cantar, teu couro trepidante
de grande tambor, de estrela sem medida,
emudeceram sob a implacável
solidão da cúpula encerrada.


Planeta, latitude, claridade poderosa,
em tua orla, na cinta pela neve compartida,
recolheu-se o silêncio noturno que chegava
montado sobre um mar vertiginoso,
e onda após onda a água nua relatava,
o vento gris a tremer desatava a sua areia,
a noite nos feria com o seu pranto estépico.


Mas o povo e o trigo se amassaram: aí
alisou-se a cabeça terrenal, pentearam-se
as fibras enterradas da luz, a agonia
provou as portas livres, destroçadas do vento,
e das poeiradas do caminho, uma
a uma, dignidades submersas, escolas,
inteligências, rostos ao pó ascenderam
até se tornarem unidades estreladas,
estátuas da luz, puras pradarias.



Equador
Dispara Tunguragua azeite rubro,
Sangay sobre a neve
derrama mel ardendo,
Imbabura de tuas cimeiras
igrejas nevadas arroja
peixes e plantas, ramos duros
do infinito inacessível,
e nos páramos, acobreada
lua, edificação crepitante,
deixa cair as tuas cicatrizes
como veias sobre Antisana,
na enrugada solidão
de Pumachaca, na sulfúrica
solenidade de Pambamarca,
vulcão e lua, frio e quartzo,
chamas glaciais, movimento
de catástrofes, vaporoso
e ciclônico patrimônio.


Equador; Equador, cauda violeta
de um astro ausente, na irisada
multidão de povos que te cobrem
com infinita pele de frutaria,
ronda a morte com o seu funil,
arde a febre nos povoados pobres,
a fome é um arado
de ásperas puas na terra,
e a misericórdia te fere
o peito com buréis e conventos,
qual uma enfermidade umedecida
nas fermentações das lágrimas.



García Moreno
Dali saiu o tirano.

García Moreno é seu nome.

Chacal enluvado, paciente
morcego de sacristia,
recolhe cinza e tormento
em seu sombreiro de seda
e enfia as unhas no sangue
dos rios equatoriais.


Com os pequenos pés metidos
em escarpins envernizados,
benzendo-se e encerando-se
nas alfombras do altar,
com as fraldas mergulhadas
nas águas processionais,
dança no crime arrastando
cadáveres recém-fuzilados,
dilacera o peito dos mortos,
passeia seus ossos voando
sobre os féretros, vestido
com plumas de pano agourento.


Nas aldeias índias, o sangue
cai sem direção, há medo
em todas as ruas e sombras
(debaixo dos sinos há medo
que ressoa e sai para a noite),
e pesam sobre Quito as grossas
paredes dos monastérios,
retas, imóveis, seladas.


Tudo dorme com os florões
de ouro oxidado nas cornijas,
os anjos dormem pendurados
em seus cabides sacramentais,
tudo dorme qual uma teia
de sacerdócio, tudo sofre
sob a noite membranosa.


Mas não dorme a crueldade.

A crueldade de bigodes brancos
passeia com guantes e garras
e crava escuros corações
sobre as grades do domínio.

Até que um dia entra a luz
como um punhal no palácio
e abre a jaqueta mergulhando um raio
no peitilho imaculado.


Assim saiu García Moreno
do palácio, mais uma vez, voando
para inspecionar as sepulturas,
empenhadamente mortuário,
mas dessa vez rodou até o fundo
dos massacres, retido,
entre as vítimas sem nome,
na umidade do podredouro.



Os bruxos da América
América Central pisoteada pelos mochos,
engordurada por ácidos suores,
antes de entrar em teu jasmim queimado
considera-me fibra da tua nave,
asa de tua madeira combatida
pela espuma gêmea,
e enche-me do arrebatador aroma
pólen e pluma de tua taça,
margens germinais de tuas águas,
linhas frisadas do teu ninho.

Porém os bruxos matam os metais
da ressurreição, fecham as portas
e entrevam a morada
das aves deslumbradoras.



Estrada
Chega talvez Estrada, pequenino,
em seu fraque de antigo anão
e entre uma tosse e outra os muros
da Guatemala fermentam
regados incessantemente
pelas urinas e pelas lágrimas.



Ubico
Ou é Ubico pelas picadas,
atravessando os presídios
de motocicleta, frio
como pedra, mascarado
da hierarquia do medo.



Gómez
Gómez, tremedal da Venezuela,
afoga lentamente rostos,
inteligências, em sua cratera.

O homem cai à noite nela
mexendo os braços, cobrindo
o rosto dos golpes cruéis,
e é tragado pelos atoleiros,
mergulha em adegas subterrâneas,
aparece nas estradas
cavando carregado de ferro,
até morrer despedaçado,
desaparecido, perdido.



Machado

Machado, em Cuba, arreou sua ilha
com máquinas, importou tormentos
feitos nos Estados Unidos,
silvaram as metralhadoras
derrubando a florescência,
o néctar marinho de Cuba,
e o estudante apenas ferido
era lançado à água onde
os tubarões terminavam
a obra do benemérito.

Chegou até o México a mão
do assassino, e rolou Mella
como um discóbolo sangrento
pela rua criminosa
enquanto a ilha ardia, azul,
embrulhada em loteria,
hipotecada com açúcar.



Melgarejo
A Bolívia morre em suas paredes
como uma flor enrarecida:
encarapitam-se em suas montarias
os generais derrotados
e rompem o céu a pistoladas.

Máscara de Melgarejo,
besta bêbada, espumarada
de minerais traídos,
barba da infâmia, barba horrenda
sobre os montes rancorosos,
barba arrastada no delírio,
barba carregada de coágulos,
barba achada nos pesadelos
da gangrena, barba errante
galopada pelos potreiros,
amancebada aos salões,
enquanto o índio e sua carga cruzam
a última savana de oxigênio
trotando pelos corredores
dessangrados da pobreza.



Bolívia (22 de março de 1865)

Belzu venceu.
É de noite.
La Paz arde
com os últimos tiros.
Poeira seca
e dança triste para o alto
sobem entrançadas com álcool lunário
e horrenda púrpura recém-molhada.

Melgarejo caiu, sua cabeça bate de encontro ao fio mineral
do cimo sangrento, os cordões
de ouro, a casaca
tecida de ouro, a camisa
rota empapada de suor maligno,
fazem junto ao detrito do cavalo
e aos miolos do novo fuzilado.

Belzu em palácio, entre as luvas
e as sobrecasacas, recebe sorrisos,
reparte-se o domínio do escuro
povo nas alturas alcoolizadas,
os novos favoritos deslizam
pelos salões encerados
e as luzes de lágrimas e lâmpadas
caem no veludo despenteado
por uns tantos fogachos.


Entre a multidão
vai Melgarejo, tempestuoso espectro
apenas sustentado pela fúria.

Escuta o âmbito que fora o seu,
a massa ensurdecida, o grito
despedaçado, o fogo da fogueira
alto sobre os montes, a janela
do novo vencedor.

Sua vida (pedaço
de força cega e ópera desatada
sobre as crateras e os planaltos,
sonho de regimento, no qual os trajes
derramam-se em terras indefesas
com sabres de papelão, mas há feridas
que mancham, com morte verdadeira
e degolados, as praças rurais,
deixando atrás o coro mascarado,
e os discursos do Eminentíssimo,
esterco de cavalos, seda, sangue
e os mortos de rodízio, rotos, rígidos,
atravessados pelo atroante
disparo dos rápidos carabineiros)
caiu no mais fundo do pó,
do desestimado e do vazio,
de uma talvez morte inundada
de humilhação, porém a derrota
como um touro imperial mostra as fauces,
escarva as metálicas areias
e empurra o bestial passo vacilante
o minotauro boliviano caminhando
para as salas de ouro clamoroso.

Entre a multidão cruza cortando
massa sem nome, escala
pesadamente o trono alienado,
ao vencedor caudilho assalta.
Rola
Belzu, manchado o amido, roto o cristal
que cai derramando a sua luz líquida
esburacado o peito para sempre,
enquanto o assaltante solitário
búfalo ensangüentado do incêndio
sobre o balcão apóia a sua estatura
gritando: “Morreu Belzu”, “Quem vive?”,
“Respondei”, E da praça,
rouco um grito de terra, um grito negro
de pânico e horror responde; “Viva,
sim, Melgarejo, viva Melgarejo”,
a mesma multidão do morto, aquela
que festejou o cadáver a dessangrar-se
na escadaria do palácio: “Viva”,
grita o fantoche colossal, que tapa
todo o balcão com sua roupa rasgada,
barro de acampamento e sangue sujo.



Martínez (1932)

Martínez, o curandeiro
de El Salvador, reparte frascos
de remédios multicores,
que os ministros agradecem
com prosternação e salamaleques.

O bruxinho vegetariano
vive a receitar em palácio
enquanto a fome tormentosa
uiva entre os canaviais.

Martínez então decreta:
e em poucos dias vinte mil
camponeses assassinados
apodrecem nas aldeias
que Martínez manda incendiar
com ordenações de higiene.

De novo em palácio retorna
a seus xaropes, e recebe
as rápidas felicitações
do embaixador norte-americano.

“Está assegurada”, lhe diz,
“a cultura ocidental,
o cristianismo do Ocidente
e ademais os bons negócios,
as concessões de bananas
e os controles alfandegários.


E bebem juntos uma longa
taça de champanha, enquanto cai
a chuva tépida nos pútridos
agrupamentos do ossuário.



As satrapias
Trujillo, Somoza, Carías,
até hoje, até este amargo
mês de setembro
do ano de 1948,
com Moríñigo (ou Natalicio)
no Paraguai, hienas vorazes
de nossa história, roedores
das bandeiras conquistadas
com tanto sangue e tanto fogo,
encharcados em suas fazendas,
depredadores infernais,
sátrapas mil vezes vendidos
e vendedores; açulados
pelos lobos de Nova York.

Máquinas famintas de dólares,
manchadas no sacrifício
de seus povos martirizados,
prostituídos mercadores
do pão e do ar americanos,
lodosos verdugos, manada
de prostibulários caciques,
sem outra lei que a tortura
e a fome açoitada do povo.


Doutores honoris causa
da Columbia University,
com a toga sobre as fauces
e sobre o punhal, ferozes
transumantes do Waldorf Astoria
e das câmaras malditas
onde apodrecem as idades
eternas do encarcerado.


Pequenos urubus recebidos
por Mr.
Truman, recobertos
de relógios, condecorados
por “Loyalty”, sangradores
de pátrias, só há um
pior do que vocês, só há um
e este o deu a minha pátria um dia
para desgraça de meu povo.




II
As oligarquias

Não, ainda não secavam as bandeiras,
ainda não dormiam os soldados
quando a liberdade mudou de roupa,
transformou-se em fazendas:
das terras recém-semeadas
saiu uma casta, uma quadrilha
de novos-ricos com escudo,
com polícia c com prisões.


Traçaram uma linha negra:
“Aqui somos nós, porfiristas
do México, caballeros
do Chile, pitucos
do Jockey Club de Buenos Aires,
engomados flibusteiros
do Uruguai, adamados
equatorianos, clericais
señoritos de todas as partes”.


“Lá, vocês, rotos, mamelucos,
pelados do México, gaúchos,
amontoados em pocilgas,
desamparados, esfarrapados,
piolhentos, vagabundos, ralé,
desbaratados, miseráveis,
sujos, preguiçosos, povo.


Tudo se construiu sobre a linha.

O arcebispo batizou este muro
e instituiu anátemas incendiários
para o rebelde que ignorasse
a parede da casta.

Queimaram pela mão do verdugo
os livros de Bilbao.

A polícia
guardou a muralha, e no faminto
que se aproximou dos mármores sagrados
bateram com um pau na cabeça
ou o espetaram num cepo agrícola
ou a pontapés o nomearam soldado.


Sentiram-se tranqüilos e seguros.

O povo continuou nas ruas e campinas
a viver amontoado, sem janelas,
sem chão, sem camisa,
sem escola, sem pão.


Anda pela nossa América um fantasma
nutrido de detritos, analfabeto,
errante, igual em nossas latitudes,
saindo dos cárceres lamacentos,
arrabaldeiro e fugitivo, marcado
pelo temível compatriota cheio
de roupas, ordens e gravata-borboleta.


No México produziram pulque
para ele, no Chile
vinho terebinteno de cor violeta,
o envenenaram, rasparam-lhe
a alma pedacinho por pedacinho,
negaram-lhe o livro e a luz,
até que foi tombando no pó,
metido no desvão tuberculoso,
e então não teve enterro
litúrgico: sua cerimônia
foi metê-lo nu entre outras
carniças sem nome.



Promulgação da Lei da Trapaça
Eles se declararam patriotas.

Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.

Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a universidade, os sapatos.


Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.

Foi debatido, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.

Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
a respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.

Foi aprovada.


Para o rico a boa mesa.


O lixo para os pobres.


O dinheiro para os ricos.


Para os pobres o trabalho.


Para os ricos a casa grande.


O tugúrio para os pobres.


O foro para o grão ladrão.


O cárcere para quem furta um pão.


Paris, Paris para os señoritos.


O pobre na mina, no deserto.


O Sr.
Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.

“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.

Era
tão necessária quanto a água.

Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este código
do Funil, sábio e severo.

Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanaconas
do Partido Radical.


Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloqüência, que espiritual
filósofo, que luminar!
E foi cada um encher correndo
os bolsos com seus negócios,
um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas, com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.



Eleição em Chimbarongo (1947)

Em Chimbarongo, no Chile, faz tempo,
fui a uma eleição senatorial.

Vi como eram eleitos os pedestais da pátria.

As onze da manhã
chegaram do campo as carretas
atulhadas de inquilinos.

Foi no inverno, molhados,
sujos, famintos, descalços,
os servos de Chimbarongo
descem das carretas.

Torvos, tostados, esfarrapados,
são apinhados, conduzidos,
com uma cédula na mão,
vigiados e apertados
voltam a cobrar o pagamento,
e outra vez para as carretas,
em fila como cavalos,
são conduzidos.

Mais tarde
lhes atiram uma caneca de vinho
até ficarem bestialmente
envilecidos e esquecidos.


Escutei mais tarde o discurso
do senador assim eleito:
“Nós, os patriotas cristãos,
nós, os defensores da ordem,
nós, os filhos do espírito”.


E sua barriga era balançada
por sua voz de vaca acachaçada,
que parecia tropeçar
como trompa de mamute
nas abóbadas tenebrosas
da uivante pré-história.



A nata
Grotescos, falsos aristocratas
de nossa América, mamíferos
recém-estucados, jovens
estéreis, asnos sensatos, proprietários malignos.
heróis
da bebedeira no clube,
assaltantes de banco e bolsa,
falsos elegantes, grã-finos, bestalhões,
ataviados tigres de embaixada,
pálidas meninas principais,
flores carnívoras, culturas
das cavernas perfumadas,
trepadeiras chupadoras
de sangue, esterco e suor,
cipós estranguladores,
anéis de jibóias feudais.


Enquanto tremiam os prados
com o galope de Bolívar,
ou de O'Higgins (soldados pobres,
povo chicoteado, heróis descalços),
vós formastes as fileiras
do rei, do poço clerical,
da traição às bandeiras,
mas quando o vento arrogante
do povo, agitando suas lanças,
nos deixou a pátria nos braços,
surgistes aramando as terras,
medindo cercas, amontoando
áreas e seres, repartindo
a polícia e os lagos.


O povo voltou das guerras,
afundou-se nas minas, na escura
profundidade dos currais,
caiu nos sulcos pedregosos,
moveu as fábricas engorduradas,
procriando nos prostíbulos.

nos cômodos repletos
de outros seres desgraçados.


Naufragou em vinho até se perder,
abandonado, invadido
por um exército de piolhos
e de vampiros, rodeado
de muros e delegacias,
sem pão, sem música caindo
na solidão desesperada
onde Orfeu mal lhe deixa
uma guitarra para sua alma,
uma guitarra que se cobre
de fitas e rasgões
e canta por cima dos povos
como a ave da pobreza.



Os poetas celestes
Que fizestes vós, gidistas,
intelectualistas, rilkistas,
misterizantes, falsos bruxos
existenciais, papoulas
surrealistas acesas
numa tumba, europeizados
cadáveres da moda,
pálidas lombrigas do queijo
capitalista, que fizestes
ante o reinado da angústia,
frente a este escuro ser humano,
o esta pateada compostura,
a esta cabeça submersa
no esterco, a esta essência
de ásperas vidas pisoteadas?

Não fizestes nada além da fuga:
vendestes amontoados detritos,
buscastes cabelos celestes,
pés covardes, unhas quebradas,
“beleza pura”, “sortilégio”,
obras de pobres assustados
para evadir os olhos, para
emaranhar as delicadas
pupilas, para subsistir
com o prato de restos sujos
que vos lançaram os senhores,
sem ver a pedra em agonia,
sem defender, sem conquistar,
mais cegos que as coroas
do cemitério, quando cai
a chuva sobre as imóveis
flores podres das sepulturas.



Os exploradores
Assim foi devorada,
negada, sujeitada, arranhada, roubada,
jovem América, tua vida.


Dos despenhadeiros da cólera
onde o caudilho pisoteou cinzas
e sorrisos recém-tombados,
até as máscaras patriarcais
dos bigodudos senhores
que presidiram a mesa dando
a bênção aos presentes
e ocultando os verdadeiros
rostos de escura saciedade,
de concupiscência sombria
e cavidades cobiçosas:
fauna de frios mordedores
da cidade, tigres terríveis,
comedores de carne humana,
peritos na caçada
do povo fundido nas névoas,
desamparado nos rincões
e nos porões da terra.



Os pedantes
Entre os miasmas ganadeiros
ou papeleiros, ou coqueteleiros,
viveu o produto azul, a pétala
da podridão altaneira.


Foí o “siútico” do Chile, o Raúl
Aldunatillo (conquistador
de revistas com mãos alheias,
com mãos que mataram índios),
O Tenente Afetado, o Coronel
Negócio, o que compra letras
e se estima letrado, compra
sabre e se crê soldado,
mas não pode comprar pureza
e então escarra como víbora.


Pobre América revendida
nos mercados do sangue
pelos mergulhões enterrados
que ressurgem no salão
de Santiago, de Minas Gerais,
fazendo “elegância”, caninos
cavalheirinhos de boudoir,
peitilhos inúteis, tacos
do golfe da sepultura.

Pobre América, emascarada
por elegantes transitórios,
falsificadores de rostos,
enquanto, abaixo, o vento negro
fere o coração destroçado
e roda o herói do carvão
até o ossário dos pobres,
varrido pela pestilência,
coberto pela escuridão,
deixando sete filhos famintos
que serão lançados nos caminhos.



Os favoritos
No espesso queijo cardão
da tirania amanhece
outro verme: o favorito.

É o covardão arrendado
para louvar as mãos sujas.

É orador ou jornalista.

Acorda rápido cm palácio
e mastiga com entusiasmo
as dejeções do soberano,
elucubrando longamente
sobre seus gestos, enturvando
a água e pescando seus peixes
na laguna purulenta.

Vamos chamá-lo Darío Poblete,
ou Jorge Delano “Coke”.

(Dá na mesma, poderia ter
outro nome, existiu quando
Machado caluniava Mella,
depois de tê-lo assassinado.
)
Ali Poblete teria escrito
sobre os “Vis inimigos”
do “Péricles de Havana”.

Mais tarde Poblete beijava
as ferraduras de Trujillo,
a cavalgadura de Moríñigo,
o ânus de Gabriel González.


Foi o mesmo ontem, recém-saído
da guerrilha, alugado
para mentir, para ocultar
execuções e saques,
e hoje, erguendo sua pena
covarde sobre os tormentos
de Pisagua, sobre a dor
de milhares de homens e mulheres.


Sempre o tirano em nossa negra
geografia martirizada
achou um bacharel lamacento
que repartisse a mentira
e dissesse: El Sereníssimo,
el Constructor, el Gran Repúblico
que nos gobierna, e deslizasse
pela tinta emputecida
suas garras negras de ladrão.

Quando o queijo é consumido
e o tirano cai no inferno,
o Poblete desaparece,
o Delano “Coke” se esfuma,
o verme torna ao esterco,
esperando a roda infame
que afasta e traz as tiranias,
para aparecer sorridente
com um novo discurso escrito
para o déspota que desponta.


Por isso, povo, antes de ninguém,
pega o verme, rompe sua alma
e que seu líquido esmagado,
sua escura matéria viscosa
seja a última escritura,
a despedida de uma tinta
que limparemos da terra.



Os advogados do dólar
Inferno americano, pão nosso
empapado em veneno, há outra
língua em tua pérfida fogueira:
é o advogado nativo
da companhia estrangeira.


É ele que arrebita os grilhões
da escravidão em sua pátria,
e passeia desdenhoso
com a casta dos gerentes
a mirar com ar supremo
nossas bandeiras andrajosas.

Quando chegam de Nova York
as vanguardas imperiais,
engenheiros, calculistas,
agrimensores, peritos,
e medem terra conquistada,
estanho, petróleo, bananas,
nitrato, cobre, manganês,
açúcar, ferro, borracha, terra,
adianta-se um anão obscuro,
com um sorriso amarelo,
e aconselha com suavidade
aos invasores recentes:

Não é preciso pagar tanta
a estes nativos, seria
um crime, meus senhores, elevar
estes salários.
Nem convém.

Estes pobres-diabos, estes mestiços,
iriam só embriagar-se
com tanto dinheiro.
Pelo amor de Deus!
São uns primitivos, quase
umas feras, conheço esta cambada.

Não paguem tanto dinheiro.


É adotado.
Põem-lhe
libré.
Veste como gringo,
cospe como gringo.
Dança
como gringo, e vai subindo.

Tem automóvel, uísque, imprensa,
é eleito juiz e deputado,
é condecorado, é ministro,
e é ouvido no governo.

Sabe ele quem é subornável.

Sabe ele quem é subornado.

Ele lambe, unta, condecora,
afaga, sorri, ameaça.

E assim se esvaziam pelos portos
as repúblicas dessangradas.


Onde mora, perguntareis,
este vírus, este advogado,
este fermento do detrito,
este duro piolho sangüíneo,
engordado de nosso sangue?
Mora nas baixas regiões
equatoriais, o Brasil,
mas sua morada é também
o cinturão central da América.


Podereis encontrá-lo na escarpada
altura de Chuquicamata.

Onde cheira riqueza sobe
os montes, cruza abismos,
com as receitas de seu código
para roubar a terra nossa.

Podereis achá-lo em Puerto Limón,
na Ciudad Trujillo, em Iquique,
em Caracas, Maracaibo,
em Antofagasta, em Honduras,
encarcerando nosso irmão,
acusando seu compatriota.

despojando diaristas, abrindo
portas de juízes e abastados,
comprando imprensa, dirigindo
a polícia, o pau, o rifle
contra sua família esquecida.


Pavoneando-se, vestido
de smoking, nas recepções,
inaugurando monumentos,
com esta frase: Meus senhores,
a pátria, antes da vida,
é a nossa mãe, é o nosso chão,
vamos defender a ordena fazendo
novos presídios, novos cárceres.


E morre glorioso, “o patriota”,
senador, patrício, eminente,
condecorado pelo papa,
ilustre, próspero, temido,
enquanto a trágica ralé
de nossos mortos, os que fundiram
a mão no cobre, arranharam
a terra profunda e severa,
morrem batidos e esquecidos,
postos às pressas
em seus caixões funerários:
um nome, um número na cruz
que o vento sacode, matando
até a cifra dos heróis.



Diplomatas (1948)

Se você nasce bobo na Romênia
segue a carreira de bobo,
se você é bobo em Avignon
sua qualidade é conhecida
pelas velhas pedras de França, pelas escolas e meninada
desrespeitosa das granjas.

Mas se você nasce bobo no Chile
não demoram a fazê-lo embaixador.


Chame-se você bobo Mengano,
bobo Joaquín Fernández, bobo
Fulano de Tal, se for possível
tenha uma barba acrisolada.

É tudo o que se exige
para “entabular negociações”.


Informará depois, sabichão,
sobre a sua espetacular
apresentação de credenciais,
dizendo: Etc.
, o coche,
etc.
, Sua Excelência, etc.

frases, etc.
, benévolas.


Arranje uma voz cava e um tom
de vaca protetora,
condecorando-se mutuamente
com o enviado de Trujillo,
mantenha discretamente
uma garçonnière (“Sabe você
as conveniências destas coisas
para o Tratado de Limites”),
remeta disfarçado em algo
o editorial do jornal
doutoral que leu ao café
anteontem: é um “informe”.


Junte-se com o “fino”
da “sociedade”, com os bobos
daquele país, adquira quanta
prataria puder comprar,
fale nos aniversários
junto aos cavalos de bronze,
dizendo: Ejem, los vínculos,
etc.
, ejem, etc.
,
ejem, los descendientes,
etc.
, la raza, ejem, el puro,
el sacrosanto, ejem, etc.


E fique tranqüilo, tranqüilo:
é você um bom diplomata
do Chile, é você um bobo
condecorado e prodigioso.



Os bordéis
Da prosperidade nasceu o bordel,
acompanhando o estandarte
das cédulas amontoadas:
sentina respeitada
do capital, adega da nave
de meu tempo.

Foram mecanizados
bordéis na cabeleira
de Buenos Aires, carne fresca
exportada pelo infortúnio
das cidades e dos campos
remotos, onde o dinheiro
espreitou os passos do cântaro
e aprisionou a trepadeira.

Rurais lenocínios, à noite,
no inverno, com os cavalos
à porta das aldeias
e as moças aturdidas
que caíram de venda em venda
nas mãos dos magnatas.

Lentos prostíbulos provincianos
em que os abastados do lugar
- ditadores da vindima -
aturdem a noite venérea
com espantosos estertores.

Pelos rincões, escondidas,
grei de rameiras, inconstantes
fantasmas, passageiras
do trem mortal, já vos tomaram,
já caístes na rede enodoada,
já não podeis voltar ao mar,
já vos estreitaram e vos caçaram,
já estais mortas no vazio
do mais vivo desta vida,
já podeis resvalar a sombra
pelas paredes: em nenhum
lugar senão na morte
andam estes muros pela terra.



Procissão em Lima (1947)

Eram muitos, levavam o ídolo
sobre os ombros, era espessa
a cauda da multidão
como uma saída do mar
de roxa fosforescência.


Saltavam dançando, elevando
graves murmúrios mastigados
que se uniam à fritada
e aos tétricos tamborins.


Coletes roxos, sapatos
roxos, chapéus
enchiam de manchas violeta
as avenidas como um rio
de enfermidades pustulentas
que desembocava nas vidraças
inúteis da catedral.

Algo infinitamente lúgubre
como o incenso, a copiosa
aglomeração de chagas
feria os olhos unindo-se
com as chamas afrodisíacas
do apertado rio humano.


Vi o obeso latifundiário
suando nas sobrepelizes,
esfregando os goteirões
de sagrado esperma na nuca.


Vi o andrajoso gusano
das montanhas estéreis,
o índio de rosto perdido
nas vasilhas, o pastor
de lhamas doces, as meninas
cortantes das sacristias,
os professores de aldeia
com rostos azuis e famintos.

Narcotizados dançarinos
em camisões purpurinos
iam os negros esperneando
sobre tambores invisíveis.

E todo o peru batia
no peito mirando a estátua
de uma senhora melindrada,
azul-celeste e rosadinha,
que navegava as cabeças
em seu barco de confeitos
inflado de aragem suarenta.



A Standard Oil Co.


Quando a verruma grossa abriu caminho
pelas furnas pedregosas
e enfiou seu intestino implacável
nas fazendas subterrâneas,
e os anos mortos, os olhos
das idades, as raízes
das plantas encarceradas
e os sistemas escamosos
se fizeram estratos da água,
subiu pelos tubos o fogo
convertido em líquido frio,
na aduana das alturas
à saída de seu mundo
de profundidade tenebrosa,
encontrou um pálido engenheiro
e um titulo de proprietário.


Ainda que se enredem os caminhos
do petróleo, ainda que as napas
mudem seu lugar silencioso
e movam sua soberania
entre os ventres da terra,
quando agita a fonte
sua ramagem de parafina,
antes chegou a Standard Oi1
com seus letrados e suas botas,
com seus cheques e seus fuzis,
com seus governos e seus presos.


Seus obesos imperadores
vivem em Nova York, são suaves
e sorridentes assassinos,
que compram seda, náilon, puros
tiranetes e ditadores.


Compram países, povos, mares,
polícias, deputações,
distantes comarcas onde
os pobres guardam seu milho
como os avaros o ouro:
a Standard Oil os desperta,
uniformiza, lhes designa
qual é o irmão inimigo,
e o paraguaio faz sua guerra
e o boliviano se desfaz
com sua metralhadora na selva.


Um presidente assassinado
por uma gota de petróleo,
uma hipoteca de milhões
de hectares, um fuzilamento
rápido numa manhã
mortal de luz, petrificada,
um novo campo de presos
subversivos, na Patagônia,
uma traição, um tiroteio
sob a lua apetrolada,
uma troca sutil de ministros
na capital, um rumor
de maré de azeite,
e logo o baque da garra, e verás
como brilham, sobre as nuvens,
sobre os mares, em tua casa,
as letras da Standard Oil
iluminando seus domínios.



A Anaconda Copper Mining Co.


Nome enrolado de serpente,
fauce insaciável, monstro verde,
nas alturas agrupadas,
na montaria gasta
de meu país, sob a lua
da dureza, escavadora, abres as crateras lunares
do mineral, as galerias
do cobre virgem, afundado
em suas areias de granito.


Já vi arder na noite eterna
de Chuquicamata, nas alturas,
o fogo dos sacrifícios,
a crepitação desbordante
do ciclope que devorava
a mão, o peso, a cintura
dos chilenos, enrolando-os
sob suas vértebras de cobre.

esvaziando-lhes o sangue morno,
triturando os esqueletos
e cuspindo-os nos montes
dos desertos desolados.


O ar ressoa nas alturas
de Chuquicamata estrelada.

Os socavões aniquilam
com mãos pequeninas de homem
a resistência do planeta,
trepida a ave sulfurosa
das gargantas, amotina-se
o férreo frio do metal
com suas selvagens cicatrizes
e quando troam as buzinas
a terra engole um desfile
de homens minúsculos que descem
às mandíbulas da cratera.

São pequeninos capitães,
sobrinhos meus, filhos meus,
e quando revertem os lingotes
para os mares, e limpam
a cara e voltam trepidando
no último calafrio,
a grande serpente os devora,
e diminui, e os tritura,
e os cobre de baba maligna,
e os atira pelos caminhos,
e os mata com a polícia,
e os faz apodrecer em Pisagua,
e os encarcera, e os cospe,
compra um presidente traidor
que os insulta e persegue,
e os mata de fome nas planuras
da imensidade arenosa.


E há uma que outra cruz torcida
nas ladeiras infernais
como única lenha dispersa
da árvore da mineração


A United Fruit Co.


Quando soou a trombeta, ficou
tudo preparado na terra,
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola, a Anaconda,
Ford Motors, e outras entidades:
a Compañía Frutera Inc.

reservou para si o mais suculento,
a costa central de minha terra,
a doce cintura da América.

Batizou de novo suas terras
como “Repúblicas Bananas”,
e sobre os mortos adormecidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera-bufa:
alienou os arbítrios,
presenteou coroas de César,
desembainhou a inveja, atraiu
a ditadura das moscas,
moscas Trujíllo, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas úmidas
de sangue humilde e marmelada,
moscas bêbadas que zumbem
sobre as tumbas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tirania.


Entre as moscas sanguinárias
a Frutera desembarca,
arrasando o café e as frutas,
em seus barcos que deslizaram
como bandejas o tesouro
de nossas terras submersas.


Enquanto isso, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam índios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
um ramo de fruta morta
derramada no monturo.



As terras e os homens
Velhos latifundiários incrustados
na terra como ossos
de pavorosos animais,
supersticiosos herdeiros
da encomenda, imperadores
duma terra escura, fechada
com ódio e arame farpado.


Entre as cercas o estame
do ser humano foi afogado,
o menino foi enterrado vivo,
negou-se-lhe o pão e a letra,
foi marcado como inquilino
e condenado aos currais,
Pobre peão infortunado
entre as sarças, amarrado
à não-existência, à sombra
das pradarias selvagens.


Sem livro foste carne inerme,
e em seguida insensato esqueleto,
comptado de uma vida a outra,
rechaçado na porta branca
sem outro amor que uma guitarra
despedaçadora em sua tristeza
e o baile apenas aceso
com rajada molhada.
Não foi porém só nos campos
a ferida do homem, mais longe,
mais perto, mais fundo cravaram:
na cidade, junto ao palácio,
cresceu o cortiço leproso,
pululante de porcaria,
com a sua acusadora gangrena.


Eu vi nos agros recantos
de Talcahuano, nas encharcadas
cinzas dos morros,
ferver as pétalas imundas
da pobreza, a maçaroca
de corações degradados,
a pústula aberta na sombra
do entardecer submarino,
a cicatriz dos farrapos,
e a substância envelhecida
do homem hirsuto e espancado.


Eu entrei nas casas profundas,
como covas de ratos, úmidas
de salitre e de sal apodrecido,
vi seres famintos se arrastarem,
obscuridades desdentadas,
que procuravam me sorrir
através do ar amaldiçoado.


Me atravessaram as dores
de meu povo, se enredaram em mim
como aramados em minh'alma:
me crisparam o coração:
saí a gritar pelos caminhos,
saí a chorar envolto em fumo,
toquei as portas e me feriram
como facas espinhosas,
chamei os rostos impassíveis
que antes adorei como estrelas
e me mostraram seu vazio.


E então me fiz soldado:
número obscuro, regimento,
ordem de punhos combatentes,
sistema da inteligência,
fibra do tempo inumerável,
árvore armada, indestrutível
caminho do homem na terra.


E vi quantos éramos, quantos
estavam a meu lado, não eram
ninguém, eram todos os homens,
não tinham rosto, eram povo,
eram metal, eram caminhos.

E caminhei com os mesmos passos
da primavera pelo mundo.



Os mendigos
Junto às catedrais, atados
ao muro, carrearam
seus pés, seus vultos, seus olhos negros,
seus crescimentos lívidos de gárgulas,
suas latas andrajosas de comida,
e daí, da dura
santidade da pedra,
se fizeram flora da rua, errantes
flores de legais pestilências.


O parque tem seus mendigos
como suas árvores de torturadas
ramagens e raízes:
nos pés do jardim vive o escravo,
como no fim do homem, feito lixo,
aceitada sua impura simetria,
pronto para vassoura da morte.

A caridade o enterra
em seu buraco de terra leprosa:
serve de exemplo ao homem de meus dias.

Deve aprender a pisotear, a afogar
a espécie nos pântanos do desprezo,
a pôr os sapatos na frente
do ser com uniforme de vencido,
ou pelo menos deve compreendê-lo
nos produtos da natureza.

Mendigo americano, filho do ano
de 1948, neto
de catedrais, eu não te venero,
eu não vou colocar marfim antigo,
barbas de rei em tua escrita figura,
como te justificam nos livros,
eu vou te apagar com esperança:
não entrarás em meu amor organizado,
não entrarás em meu peito com os teus,
com os que te criaram cuspindo
tua forma degradada,
eu apartarei tua argila da terra
até que te construam os metais
e saias a brilhar como uma espada.



Os índios
O índio fugiu de sua pele ao fundo
de antiga imensidade de onde um dia
subiu como as ilhas: derrotado,
transformou-se em atmosfera invisível,
foi-se abrindo na terra, derramando
sua secreta marca sobre a areia.


Ele que gastou a lua, ele que penteava
a misteriosa solidão do mundo,
ele que não transcorreu sem erguer-se
em altas pedras coroadas de aragem,
ele que durou como a luz celeste
sob a magnitude de seu arvoredo,
gastou-se de repente até ser fio,
converteu-se em rugas,
esmiuçou suas torres torrenciais
e recebeu seu pacote de farrapos.


Eu o vi nas alturas imantadas
de Amatitlán, roendo as margens
da água impenetrável: andou um dia
sobre a majestade esmagadora
do monte boliviano, com seus restos
de pássaro e raiz.

Eu vi chorar
meu irmão de louca poesia,
Alberti, nos recintos araucanos,
quando o rodearam como a Ercilla
e eram, em lugar daqueles deuses rubros,
uma corrente de mortos cor de cardo.


Mais longe, na rede de água selvagem
da Terra do Fogo,
eu os vi subir, ó mestiços, desgrenhados,
às pirogas rotas
para mendigar o pão no oceano.


Aí foram matando cada fibra
de seus desérticos domínios,
e o caçador de índios recebia
notas sujas para trazer cabeças,
dos donos do ar, dos reis
da nevada solidão antártica.


Os que pagaram os crimes se sentam
hoje no Parlamento, matriculam
seus matrimônios nas presidências,
vivem com os cardeais e os gerentes,
e sobre a garganta apunhalada
dos donos do sul crescem as flores,

Já da Araucania os penachos
foram desbaratados pelo vinho,
puídos pela tasca,
enegrecidos pelos advogados
a serviço do roubo de seu reino,
e aos que fuzilaram a terra,
aos que nos caminhos defendidos
pelo gladiador deslumbrante
de nossa própria orla
entraram disparando e negociando,
chamaram “Pacificadores”
e lhes multiplicaram as dragonas.


Assim perdeu sem ver, assim invisível
foi para o índio o desmoronamento
de sua herdade; não viu os estandartes,
não lançou a girar a flecha ensangüentada,
apenas o roeram pouco a pouco,
magistrados, ratoneiros, abastados,
todos tomaram sua imperial doçura,
todos o enredaram na manta
até que o lançaram a sangrar
aos últimos lamaçais da América.


E das verdes lâminas, do céu
inumerável e puro da folhagem,
da imortal morada construída
com pétalas pesadas de granito,
foi conduzido à cabana rota,
ao árido esgoto da miséria.

Da sua fulgurante desnudez,
dourados peitos, pálida cintura,
ou dos ornamentos minerais
que uniram à sua pele todo o rocio,
foi levado até o fio do andrajo,
repartiram entre eles calças mortas
e assim passeou sua majestade remendada
pela brisa do mundo que foi seu.


Assim foi cometido este tormento.


O feito foi invisível como entrada
de traidor, como impalpável câncer,
até que foi humilhado o nosso pai,
até que o doutrinaram a fantasma
e entrou pela única porta que lhe abriram,
a porta de todos os outros pobres, a de todos
os chicoteados pobres desta terra.



Os juízes
Pelo alto Peru, por Nicarágua,
sobre a Patagônia, nas cidades,
não tiveste razão, não tens nada:
taça de miséria, abandonado
filho das Américas, não há
lei, não há juiz que te proteja
a terra, a casinhola com seus milhos.


Quando chegou a casta dos teus,
dos senhores teus, já esquecido
o sonho antigo de garras e facas,
veio a lei para despovoar teu céu,
para arrancar-te torrões adorados,
para discutir a água dos rios,
para roubar-te o reinado do arvoredo.


Te testemunharam, te puseram selos
na camisa, te forraram
o coração de folhas e papéis,
te sepultaram em éditos frios,
e quando despertaste na fronteira
da mais despenhada desventura,
despossuído, solitário, errante,
te deram calabouço, te amarraram,
te manietaram para que nadando
não saísses da água dos pobres,
mas te afogasses esperneando.


O juiz benigno te lê o inciso
número Quatro Mil, parágrafo Terceiro,
o mesmo usado em toda
a geografia azul que libertaram
outros que foram como tu e tombaram,
e te institui, por seu codicilo
e sem apelação, cão sarnento.


Diz teu sangue, como se entreteceram
o rico e a lei? Com que tecido
de ferro sulfuroso, como foram
caindo os pobres no julgado?

Como se fez a terra tão amarga
para os pobres filhos, duramente
amamentados com pedras e dores?

Assim foi e assim o deixo escrito.

As vidas escreveram-no na minha testa.



III
Os mortos da praça (28 de janeiro de 1946, Santiago do Chile)

Eu não venho chorar aqui onde tombaram:
venho a vós, acudo aos que vivem.

Acudo a ti e a mim e em teu peito bato.

Antes outros tombaram.
Lembras? Sim, lembras.

Outros que os mesmos nomes e sobrenomes tiveram.

Em San Gregorio, em Lonquimay chuvoso,
em Ranquil, derramados pelo vento,
em Iquique, enterrados na areia,
ao longo do mar e do deserto
ao longo da fumaça e da chuva,
dos pampas aos arquipélagos,
foram assassinados outros homens,
outros que se chamavam Antonio como tu
e que eram como tu pescadores ou ferreiros:
carne do Chile, rostos
cicatrizados pelo vento,
martirizados pelo pampa,
firmados pelo sofrimento.


Encontrei pelos muros da pátria,
junto à neve e sua cristalaria,
atrás do rio de ramagem verde,
debaixo do nitrato e da espiga,
uma gota de sangue de meu povo
e cada gota, como o fogo, ardia.



Os massacres
Mas aí o sangue foi escondido
atrás das raízes, foi lavado
e negado
(foi tão longe), a chuva do sul limpou a terra
(tão longe foi), o salitre o devorou no pampa:
e a morte do povo foi como sempre tem sido:
como se não morresse ninguém, nada,
como se fossem pedras que caem
sobre a terra, ou água sobre água.


De norte a sul, onde trituraram
ou queimaram os mortos,
foram nas trevas sepultados,
ou na noite queimados em silêncio,
acumulados numa escarpa
ou no mar cuspidos os seus ossos:
ninguém sabe onde estão agora,
não têm túmulo, estão dispersos
nas raízes da pátria
seus martirizados dedos:
são fuzilados seus corações:
o sorriso dos chilenos:
os valores do pampa:
os capitães do silêncio.


Ninguém sabe onde enterraram
os assassinos estes corpos,
porém sairão da terra
para cobrar o sangue derramado
na ressurreição do povo.


No meio da praça foi o crime.


Não escondeu o matagal o sangue puro
do povo, nem o tragou a areia do pampa.


Ninguém escondeu este crime.


O crime foi no meio da Pátria.



Os homens do nitrato
Eu estava no salitre, com os heróis obscuros,
com o que cava neve fertilizante e fina
na casca dura do planeta,
e apertei com orgulho suas mãos de terra.


Me disseram; “Olha,
irmão, como vivemos
aqui em `Humberstone', aqui em `Mapocho',
em `Ricaventura', em `Paloma',
em `Pan de Azúcar', em `Piojillo' “.


E me mostraram suas rações
de miseráveis alimentos,
seu piso de terra nas casas,
o sol, o pó, os percevejos,
e a solidão imensa.


Vi o trabalho dos raspadores,
que deixam afundada, no cabo
da madeira da pá,
a marca toda de suas mãos.


Escutei uma voz que vinha
do fundo estreito da escarpa,
como de um útero infernal,
e depois assomar em cima
uma criatura sem rosto,
uma máscara poeirenta
de suor, de sangue e pó.


E este me disse: “Aonde fores,
fala destes tormentos,
fala tu, irmão, de teu irmão
que vive embaixo, no inferno”.



A morte
Povo, aqui decidiste dar a tua mão
ao perseguido operário do pampa, e chamaste,
chamaste o homem, a mulher, a criança,
há um ano, até esta praça.

E aqui caiu teu sangue.

No meio da pátria foi vertido,
em frente ao palácio, no meio da rua,
para que todo o mundo o visse
e não pudesse limpá-lo ninguém,
e ficaram suas manchas vermelhas
como planetas implacáveis.


Foi quando mão e mão de chileno
alongaram seus dedos pelo pampa,
e com o coração inteiro
iria a unidade de suas palavras:
foi quando ias, povo, a cantar
uma velha canção com lágrimas,
com esperança e com dores:
veio a mão do verdugo
e empapou de sangue a praça!


Como nascem as bandeiras
Estão assim até hoje nossas bandeiras.

O povo as bordou com sua ternura,
coseu os trapos com seu sofrimento.


Cravou a estrela com sua mão ardente.


E cortou, de camisa ou firmamento,
azul para a estrela da pátria.


O vermelho, gota a gota, ia nascendo.



Eu os chamo
Um por um falarei com eles esta tarde.

Um por um, chegais à recordação,
esta tarde, nesta praça.

Manuel Antonio López,
camarada.


Lisboa Calderón,
outros te traíram, nós continuamos tua jornada.


Alejandro Gutiérrez,
o estandarte que caiu contigo
sobre toda a terra se levanta.


César Tapia,
teu coração está nestas bandeiras,
palpita hoje o vento da praça.


Filomeno Chávez,
nunca apertei a tua mão, mas aqui está a tua mão:
é uma mão pura que a morte não mata.


Ramona Parra, jovem
estrela iluminada,
Ramona Parra, frágil heroína,
Ramona Parra, flor ensangüentada,
amiga nossa, coração valente,
menina exemplar, guerrilheira dourada:
juramos em teu nome continuar esta luta
para que assim floresça teu sangue derramado.



Os inimigos
Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.


Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem de sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.


Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.


Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.


Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.


Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.


Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.


Para os que defenderam este crime,
peço castigo.


Não quero que me dêem a mão
empapada de nosso sangue.

Peço castigo.

Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranqüilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.

Quero castigo.



Estão aqui
Hei de chamar aqui como se aqui estivessem.

Irmãos: sabei que a nossa luta
continuará na terra.


Continuará na fábrica, no campo,
na rua, na salitreira.


Na cratera do cobre verde e rubro,
no carvão e sua terrível cova.

Estará a nossa luta em todas as partes,
e em nosso coração, estas bandeiras
que presenciaram vossa morte,
que se empaparam em vosso sangue,
serão multiplicadas como as folhas
da infinita primavera.



Sempre
Ainda que as passadas toquem mil anos este lugar,
não apagarão o sangue dos que aqui tombaram.


E não se extinguirá a hora em que tombastes,
ainda que milhares de vozes cruzem este silêncio.

A chuva há de empapar as pedras da praça,
mas não apagará vossos nomes de fogo.


Mil noites cairão com as suas asas escuras,
sem destruir o dia que esperam estes mortos.


O dia que esperamos ao longo do mundo
tantos homens, o dia final do sofrimento.


Um dia de justiça conquistada na luta,
e vós, irmãos tombados, em silêncio,
estareis conosco nesse vasto dia
da luta final, nesse dia imenso.



IV
Crônica de 1948 (América)

Ano ruim, ano de ratos, ano impuro!

Alta e metálica é a tua linha
na beira do oceano
e do ar, como um arame
de tempestades e tensão.


Porém, América, também és
noturna, azul e pantanosa:
lamaçal e céu, uma agonia
de corações esmagados
como negras laranjas estragadas
em teu silêncio de adega.



Paraguai
Desenfreado Paraguai!
De que serviu a lua pura
iluminando os papéis
da geometria dourada?
Para que serviu o pensamento
herdado das colunas
e dos números solenes?

Para este buraco oprimido
de sangue apodrecido, para
este fígado equinocial
arrebatado pela morte.

Para Moríñigo reinante,
sentado sobre as prisões
em seu açude de parafina,
enquanto as penas escarlates
dos colibris elétricos
voam e fulguram sobre
os pobres mortos da selva.


Mau ano, ano de rosas deterioradas,
ano de carabinas, mira, sob teus olhos
não te cegue
o alumínio do avião, a música
de sua velocidade seca e sonora:
mira teu pão, tua terra, tua multidão gasta,
tua estirpe rota!
Vês esse vale
verde e cinza do alta do céu?
Pálida agricultura, mineração
em farrapos, silêncio e pranto
corno a trigo, caindo
e nascendo
em uma eternidade malvada.



Brasil
Brasil, o Dutra, o pavoroso
Peru das terras quentes,
Engordado pelos amargos
Ramos do ar venenoso:
Sapo dos negros lameiros
De nossa lua americana:
Botões dourados, olhinhos
De rato cinzento arroxeado:
Ó Senhor, dos intestinos
De nossa pobre mãe faminta,
De tanto sonho e resplandescentes
Libertadores, de tanto
Suor sobre os buracos
Da mina, de tanta e tanta
Solidão pelas plantações,
América, ergues subitamente
A tua claridade planetária
Um Dutra arrancado ao fundo
De teus répteis, de tua surda
Profundidade e pré-história.


E assim foi!
Pedreiros
Do Brasil, golpeai a fronteira,
Pescadores, chorai a noite
Sobre as águas litorâneas,
Enquanto Dutra, com seus pequenos
Olhos de porco-do-mato,
Quebra a imprensa de machadinha,
Queima os livros na praça,
Encarcera, persegue e fustiga
Até que o silêncio se faz
Em nossa noite tenebrosa.



Cuba
Em cuba estão assassinando!

Já têm Jesús Menéndez
Num caixão recém-comprado
Ele saiu, como um rei, do povo,
e andou espiando raízes,
detendo os transeuntes,
batendo no peito dos adormecidos,
estabelecendo as idades,
compondo as almas partidas,
e levantando do açúcar
os sangrentos canaviais,
o suor que apodrece as pedras,
perguntando pelas cozinhas
pobres: quem és? quanto comes?,
tocando este braço, esta ferida,
e acumulando estes silêncios
numa única voz, a rouca
voz entrecortada de Cuba.


Assassinou-o um capitãozinho,
um generalzinho: num trem
lhe disse: vem, e pelas costas
fez fogo o generalzinho,
para que calasse a voz
rouca dos canaviais.



América Central
Mau ano, vês além da espessa
sombra de matagais a cintura
de nossa geografia?
Uma onda estrela,
como una favo, suas abelhas azuis
de encontro à cesta e voam os clarões
do duplo mar sobre a terra estreita.
.
.


Delgada terra como um látego,
açoitada como um tormento,
teu passo em Honduras, teu sangue
cm São Domingos, à noite,
teus olhos em Nicarágua,
me tocam, me chamam, me exigem,
e pela terra americana
toco as portas para falar,
toco as línguas amarradas,
levanto as cortinas, afundo
a mão dentro no sangue:

Oh, dores
de minha terra, oh, estertores
do grande silêncio estabelecido,
oh, povos de longa agonia,
oh, cintura de soluços.



Porto Rico
Mr.
Truman chega à ilha
de Porto Rico,
vem à água
azul de nossos mares puros
para lavar seus dedos sangrentos.

Acaba de ordenar a morte
de duzentos jovens gregos,
suas metralhadoras funcionam
estritamente,
cada dia
por suas ordens as cabeças
dóricas - uva e azeitona -,
olhos do mar antigo, pétalas
da corola corintiana,
tombam no pó grego.

Os assassinos
erguem a taça
doce de Chipre com os
peritos norte-americanos,
entre grandes gargalhadas, com
os bigodes gotejantes
de azeite frito e sangue grego.


Truman a nossas águas chega
para lavar as mãos vermelhas
de sangue longínquo.
Enquanto
decreta, prega e sorri
na universidade, em seu idioma,
fecha a boca castelhana,
cobre a luz das palavras
que ali circularam como um
rio de estirpe cristalina
e estatui: “Morte para a tua língua,
Porto Rico”.



Grécia
(O sangue grego
desce a esta hora.
Amanhece
nas colinas.

É um simples
arroio entre o pó e as pedras:
os pastores pisam o sangue
de outros pastores:
é um simples
fio delgado que desce
dos montes para o mar,
até o mar que ele conhece e canta.
)

.
.
.
A tua terra, a teu mar volta os olhos,
olha a claridade nas austrais
águas e neves, constrói o sol as uvas,
brilha o deserto, o mar do Chile surge
com sua linha ferida.
.
.


Em Lota estão as baixas minas
do carvão: é um porto frio,
do grave inverno austral, a chuva
cai e cai sobre os tetos, asas
de gaivotas cor de névoa,
e sob o mar sombrio o homem
cava e cava o recinto negro.

A vida do homem é escura
como o carvão, noite andrajosa,
pão miserável, duro dia.


Eu pelo mundo andei longamente,
porém jamais pelos caminhos
ou pelas cidades, jamais vi
homens mais maltratados.

Doze dormem num quarto.

As habitações têm
tetos de restos sem nome:
pedaços de latas, pedras,
papelões, papéis molhados.

Crianças e cães, no vapor
úmido da estação fria,
se juntam até se dar o fogo
da pobre vida um dia
será outra vez fome e trevas.



Os tormentos
Uma greve mais, os salários
Não dão, as mulheres choram
Nas cozinhas, os mineiros
Juntam uma a uma suas mãos
E sua dores.


É a greve
Dos que sob o mar escavaram,
Estendidos na cova úmida,
E extraíram com sangue e força
O torrão negro das minas.

Desta vez vieram soldados.

Arrebentaram suas casas, à noite,
E os conduziram para as minas
Como a um presídio e saquearam
A pobre farinha que guardavam,
O grão de arroz dos filhos.


Depois, batendo nas paredes,
Os exilaram, os afogaram,
Os encurralaram, marcando-os
Como bestas, e pelos caminhos
Num êxodo de dores,
Os capitães do carvão
Viram seus filhos expulsos,
Derrubadas suas mulheres,
E centenas de mineiros
Trasladados, encarcerados
Na Patagônia, no frio antártico,
Ou nos desertos de Pisagua.



O traidor
E por cima destas desventuras
Um tirano que sorria
Cuspindo nas esperanças
Dos mineiros traídos.

Cada povo com suas dores.

cada luta com seus tormentos,
mas vinde aqui dizer-me
se entre os sanguinários,
entre todos os desmandados
déspotas, coroados de ódio,
com cetros de látegos verdes,
foi algum como o do Chile?

Este traiu pisoteando
suas promessas e seus sorrisos,
este do asco fez o seu cetro,
este bailou sobre as dores
de seu pobre povo cuspido.


E quando nas prisões cheias
por seus desleais decretos
se acumularam olhos negros
de agravados e ofendidos,
ele dançava em Viña del Mar,
rodeado de jóias e taças.


Mas os olhos negros olham
através da noite negra.


Que fizeste tu? Não veio tua palavra
para o irmão das minas profundas,
para a dor dos atraiçoados,
não veio a ti a sílaba de chamas
para defender e clamar por teu povo?


Acuso
Acusei então o que havia
estrangulado a esperança,
chamei os rincões da América
e pus seu nome na cova
das desonras.

Então crimes
me reprocharam, a matilha
dos vendidos e alugados:
os “secretários do governo”,
os polícias, escreveram
com piche seu espesso insulto
contra mim, mas as paredes
miravam quando os traidores
escreviam com grandes letras
meu nome, e a noite apagava, com suas mãos inumeráveis,
mãos do povo e da noite,
a ignomínia que em vão
quiseram lançar em meu canto.


Foram à noite então queimar
minha casa (o fogo marca agora
o nome de quem os enviara),
e os juízes se uniram todos
para condenar-me, buscando-me,
para crucificar minhas palavras
e castigar estas verdades.


Fecharam as cordilheiras
do Chile para que eu não partisse
a contar o que aqui acontece,
e quando o México abriu suas portas
para receber-me e guardar-me,
Torres Bodet, pobre poeta,
ordenou que me entregassem
aos carcereiros furiosos.


Mas minha palavra está viva,
e meu livre coração acusa.


Que acontecerá? Que acontecerá? Na noite
de Pisagua, o cárcere, as cadeias,
o silêncio, a pátria envilecida,
e este mau ano, ano de ratazanas cegas,
este mau ano de ira e de rancores,
que acontecerá, perguntas, me perguntas?


O povo vitorioso
Está meu coração nesta luta.

Meu povo vencerá.
Todos os povos
vencerão, um por um.

Estas dores
se espremerão como lenços até
esmagar tantas lágrimas vertidas
em socavões do deserto, em túmulos,
em escalões do martírio humano.

Mas perto está o tempo vitorioso.

Que sirva o ódio para que não tremam
as mãos do castigo,
que a hora
chegue a seu horário no instante puro,
e o povo encha as ruas vazias
com suas frescas e firmes dimensões.


Aqui está minha ternura para então.

Vós a conheceis.
Não tenho outra bandeira.




V González Videla, o traidor do Chile (epílogo) (1949)

Das antigas cordilheiras saíram os verdugos,
como ossos, como espinhos americanos no hirsuto lombo
duma genealogia de catástrofes: estabelecidos foram,
enquistados na miséria de nossas povoações.

Cada dia o sangue manchou seus alamares.


Das cordilheiras como bestas ossudas
foram procriados por nossa argila negra.

Aqueles foram os sáurios tigres, os dinastas glaciais,
recém-saídos de nossas cavernas e de nossas derrotas.

Assim desenterraram os maxilares de Gómez
sob os caminhos manchados por cinqüenta anos de nosso sangue.


A besta escurecia as terras com suas costelas
quando depois das execuções retorcia os bigodes
junto ao embaixador norte-americano que lhe servia o chá.


Os monstros envileceram, mas não foram vis.

Agora no rincão que a luz reservou à pureza,
na nevada pátria branca de Araucania,
um traidor sorri sobre um trono apodrecido.


Em minha pátria preside a vileza.


É González Videla a ratazana que sacode
o seu pelame cheio de esterco e de sangue
sobre a terra minha que vendeu.
Cada dia
tira de seus bolsos as moedas roubadas
e pensa se amanhã venderá terras ou sangue.

Tudo traiu.

Subiu como um rato aos ombros do povo
e dali, roendo a bandeira sagrada
de meu país, ondula sua cauda roedora
dizendo ao abastado, ao estrangeiro, dono
do subsolo do Chile: “Bebei o sangue todo
deste povo, eu sou o mordomo dos suplícios”.

Triste clown, miserável
mescla de mono e rato, cujo rabo
penteiam em Wall Street com pomada de ouro,
não passarão os dias sem que caias do galho
e passes a ser o montão de imundície evidente
que o transeunte evita pisar nas esquinas!

Assim foi.
A traição foi governo do Chile.

Um traidor deixou seu nome em nossa história.

Judas arvorando dentes de caveira
vendeu o meu irmão,
deu veneno a minha pátria,
fundou Pisagua, demoliu nossa estrela,
cuspiu nas cores duma bandeira pura.


Gabriel González Videla.
Aqui deixo seu nome,
para que, quando o tempo haja apagado
a ignomínia, quando minha pátria limpar
seu tosto iluminado pelo trigo e pela neve,
mais tarde, os que aqui buscarem a herança
que nestas linhas deixo como uma brasa verde
encontrem também o nome do traidor que trouxe
a taça de agonia que rechaçou o meu povo.


Meu povo, povo meu, ergue teu destino!
Rompe o cárcere, abre os muros que te encerram!
Esmaga o passo torvo da ratazana que comanda
do palácio: ergue tuas lanças à aurora,
e no mais alto deixa que a tua estrela iracunda
fulgure, iluminando os caminhos da América.


I
Chegam pelas ilhas (1493)

Os carniceiros desolaram as ilhas.

Guanahaní foi a primeira
nesta história de martírios.

Os filhos da argila viram partido
seu sorriso, ferida
sua frágil estatura de gamos,
e nem mesmo na morte entendiam.

Foram amarrados c feridos,
foram queimados e abrasados,
foram mordidos e enterrados.

E quando o tempo deu sua volta de valsa
dançando nas palmeiras,
o salão verde estava vazio.


Só ficavam ossos
rigidamente colocados
em forma de cruz, para maior
glória de Deus e dos homens.


Das gredas ancestrais
e da ramagem de sotavento
até as agrupadas coralinas
foi cortando a faca de Narváez.

Aqui a cruz, ali o rosário,
aqui a Virgem do Garrote.

A jóia de Colombo, Cuba fosfórica,
recebeu o estandarte e os joelhos
em sua areia molhada.




II Agora é Cuba

E foi logo o sangue e a cinza.


Depois ficaram as palmeiras sozinhas.


Cuba, meu amor, te amarraram ao potro,
te cortaram a cara,
te apartaram as pernas de ouro pálido,
te partiram o sexo de romã,
te atravessaram de facas,
te dividiram, te queimaram.


Pelos vales da doçura
desceram os exterminadores,
e nos altos montes a cimeira
de teus filhos se perdeu na névoa,
mas ali foram atingidos
um por um até a morte,
despedaçados no tormento
sem sua terra tépida de flores
que fugia sob os seus pés.


Cuba, meu amor, que calafrio
te sacudiu de espuma a espuma,
até que te fizeste pureza,
solidão, silêncio, mato,
e os ossinhos de teus filhos
fossem disputados pelos caranguejos.




III
Chegam ao Mar do México (1519)

A Veracruz vai o vento assassino.

Em Veracruz desembarcaram os cavalos.

As barcas vão atochadas de garras
e barbas vermelhas de Castela.

São Arias, Reyes, Rojas, Maldonados,

filhos do desamparo castelhano,
conhecedores da fome no inverno
e dos piolhos nos albergues.


Que olham debruçados nos navios?
Quanto do que vem e do perdido
passado, do errante
vento feudal na pátria açoitada?

Não deixaram os portos do sul
para colocar as mãos do povo
no saque e na morte:
eles enxergam terras verdes, liberdades,
cadeias rompidas, construções,
e do alto do navio as ondas que se extinguem
sobre as costas do compacto mistério.

Iriam morrer ou reviver atrás
das palmeiras no ar quente
que, como um forno estranho, a total baforada
para eles dirigem as terras abrasadoras?
Eram povo, cabeças hirsutas de Montiel,
mãos duras e quebradas de Ocaña e Piedrahita,
braços de ferreiros, olhos de meninos
a mirar o sol terrível e as palmeiras.


A fome antiga da Europa, fome como a cauda
dum planeta mortal, povoava o brigue,
a fome lá estava, desmantelada,
errante machado frio, madrasta
dos povos, a fome lança os dados
na navegação, sopra as velas:
“Mais além, senão te como, mais além,
senão regressas
à mãe, ao irmão, ao juiz e ao cura,
aos inquisidores, ao inferno, à peste.

Mais além, mais além, longe do piolho
do chicote feudal, do calabouço,
das galeras cheias de excremento”.


E os olhos de Núñez e Bernales
fixavam na ilimitada
luz o repouso,
uma vida, outra vida,
a inumerável e castigada
família dos pobres do mundo.




IV
Cortés

Cortés não tem povo, é raio frio,
coração morto na armadura.

“Ferazes terras, meu Senhor e Rei,
templos em que o ouro, coalhado
está por mãos de índio.


E avança mergulhando punhais, ferindo
as terras baixas, as escarvantes
cordilheiras dos perfumes,
parando a sua tropa entre orquídeas
e coroações de pinheiros,
atropelando os jasmins,
até as portas de Tlaxcala.


(Irmão aterrado, não tomes
por amigo o abutre cor-de-rosa:
do musgo te falo, das
raízes de nosso reino.

Vai chover sangue amanhã,
as lágrimas serão capazes
de formar névoa, vapor, rios,
até derreteres os teus olhos.
)

Cortés recebe uma pomba,
recebe um faisão, uma cítara
dos músicos do monarca
mas quer a câmara do ouro,
quer mais um passo e tudo cai
nas arcas dos vorazes.

O rei assoma aos balcões:

“É meu irmão”, diz.
As pedras
do povo voam respondendo,
e Cortés afia punhais
sobre os beijos traídos.

Volta a Tlaxcala, o vento trouxe
um surdo rumor de dores.




V
Cholula

Em Cholula os jovens vestem
seu melhor tecido, ouro e plumagens,
e calçados para o festival
interrogam o invasor.


A morte lhes deu resposta.


Lá estão milhares de mortos.

Corações assassinados
que ali palpitam estendidos
e que, na úmida furna que abriram,
guardam o fio daquele dia.

(Entraram matando a cavalo,
cortaram a mão que fazia
a homenagem de ouro e flores,
fecharam a praça, cansaram
os braços até o arrocho,
matando a flor do reinado,
metidos até os cotovelos no sangue
de meus irmãos surpreendidos.
)



VI
Alvarado

Alvarado, com garras e facas,
caiu sobre as choupanas, arrasou
o patrimônio do ourives,
raptou a rosa nupcial da tribo,
agrediu raças, prédios, religiões,
foi a caixa caudal dos ladrões,
o falcão clandestino da morte.

Até o grande rio verde, o Papaloapan,
rio das Borboletas, foi mais tarde
levando sangue em seu estandarte.


O grave rio viu os seus filhos
morrerem ou sobreviverem escravos,
viu arder nas fogueiras perto d'água
raça e razão, cabeças juvenis.

Mas não se esgotaram as dores
como à sua passagem endurecida
para novas capitanias.




VII
Guatemala

Guatemala, a doce, cada laje
de tua mansão leva uma gota
de sangue antigo devorado
pelo focinho dos tigres.

Alvarado massacrou tua estirpe,
violou as estrelas austrais,
espojou-se em seus martírios.


Em Yucatán entrou o bispo
atrás dos pálidos tigres.

Reuniu a sabedoria
mais profunda ouvida no ar
do primeiro dia do mundo,
quando o primeiro maia escreveu
anotando o tremor do rio,
a ciência do pólen, a ira
dos Deuses do Envoltório,
as migrações através
dos primeiros universos,
as leis da colméia,
o segredo da ave verde,
o idioma das estrelas,
segredos do dia e da noite
colhidos nas margens
da evolução terrestre!



VIII
Um bispo

O bispo ergueu o braço,
queimou os livros na praça
em nome de seu Deus pequeno
tornando em fumaça as velhas folhas
gastas pelo tempo escuro.


E a fumaça não volta do céu.




IX
A cabeça num pau

Balboa, morte e garra
levaste aos rincões da doce
terra central, e entre os cães
caçadores, o teu era a tua alma:
leãozinho de beiço sangrento
apanhou o escravo que fugia,
enfiou caninos espanhóis
nas gargantas palpitantes,
e das, unhas dos cachorros
saía a carne para o martírio
e a jóia caía na bolsa.


Malditos sejam cão e homem,
o uivo infame na selva
original, a desafiante
passagem de ferro do bandido.

Maldita seja a espinhenta
Coroa da sarça agreste
que não saltou como um ouriço
para defender o berço invadido.


Mas entre os capitães
sangüinários se ergueu na sombra
a justiça dos punhais,
o acerbo ramo da inveja.


No regresso estava a meio
de teu caminho o apelido
de Pedrarias qual uma corda.


Te julgaram entre os latidos
de cães matadores de índios.

Agora que morres, ouves
o silêncio puro, partido
por teus lebréus açulados?
Agora que morres nas mãos
dos torvos chefes,
sentes o aroma dourado
do reino destruído?

Quando cortaram a cabeça
de Balboa, ficou enfiada
num pau.
Seus olhos mortos
decompuseram seu relâmpago
e rolaram pela lança
numa grande gota de imundice
que desapareceu na terra.




X
Homenagem a Balboa

Descobridor, o vasto mar, minha espuma,
latitude da lua, império da água,
depois de séculos te fala pela minha boca.

Tua plenitude chegou antes da morte.

Ergueste até o céu a fadiga,
e da noite dura das árvores
conduziu-te o suor até a beira
da soma do mar, do grande oceano.

Em teu olhar se fez o matrimônio
da luz estendida e do pequeno
coração do homem, encheu-se a taça
jamais antes erguida, uma semente
de relâmpagos chegou contigo
e um trovão torrencial encheu a terra.

Balboa, capitão, quão diminuta
a tua mão na viseira, misterioso
boneco do sal descobridor,
noivo da oceânica doçura,
filho do novo útero do mundo.


Por teus olhos entrou como um galope
de flores de laranjeira o aroma escuro
da roubada majestade marinha,
caiu em teu sangue uma aurora arrogante
até povoar-te a alma, possesso!
Quando voltaste às terras rudes,
sonâmbulo do mar, capitão verde,
eras um morto que esperava
a terra para receber os teus ossos.


Noivo mortal, a traição cumpria-se.


Não em vão pela história
entrava o crime espezinhado, o falcão devorava
seu ninho e se juntavam as serpentes
que se atacavam com línguas de ouro.


Entraste no crepúsculo frenético
e os passos perdidos que levavas,
ainda empapado de profundidades,
vestido de fulgor e desposado
pela maior espuma, te traziam
às praias de outro mar: a morte.




XI
Dorme um soldado
Extraviado nas fronteiras espessas
chegou o soldado.
Era total fadiga
e caiu entre os cipós e as folhas
ao pé do grande deus emplumado:
este
estava só com o seu mundo mal
surgido da selva.

Olhou o soldado,
estranho nascido do oceano.

Olhou seus olhos, sua barba sangrenta,
sua espada, o brilho negro
da armadura, o cansaço tombado
como bruma sobre essa cabeça
de menino carniceiro.


Quantas zonas
de obscuridade para que o Deus de Pluma
nascesse e enroscasse seu volume
sobre os bosques, na pedra rosada,
quanta desordem de águas loucas
e de noite selvagem, o transbordado
leito da luz sem nascer, o fermento raivoso
das vicias, a destruição, a farinha
da fertilidade e logo a ordem.

a ordem da planta e da seita,
a elevação das rochas cortadas.

a fumaça das lâmpadas rituais,
a firmeza do solo para o homem,
a fundação das tribos,
o tribunal dos deuses terrestres.


Palpitou cada escama da pedra,
Sentiu o pavor que tombou
Como uma invasão de insetos,
Recolheu todo o seu poderio,
fez chegar a chuva às raízes,
falou com as correntezas da terra,
escuro em sua vestimenta
de pedra cósmica imobilizada,
e não pôde mover nem garras nem dentes,
nem rios, nem tremores.

nem meteoros que silvaram
na abóbada do reinado,

e ali ficam, pedra imóvel, silêncio,

enquanto Beltrán de Córdoba dormia.




XII
Ximénez de Quesada (1536)

Tá vão, já vão, já chegam,
coração meu, olha as naus,
as naus pelo Magdalena,
as naus de Gonzalo Jiménez
já chegam, já chegam as naus,
detém-nas, rio, fecha
tuas margens devoradoras,
submerge-as em teu palpitar,
arrebata-lhes a cobiça,
lança-lhes tua trompa de fogo,
teus vertebrados sanguinários,
tuas enguias comedoras de olhos,
atravessa o jacaré espesso
com os seus dentes cor de lodo
c sua primitiva armadura,
estende-o como ponte
sobre tuas águas arenosas,
dispara o fogo do jaguar
do alto das árvores, nascidas
de tuas sementes, rio mãe,
atira-lhes moscas de sangue,
cega-os com estercos negro,
afunda-os em teu hemisfério,
submete-os entre as raízes
na escuridão de teu leito,
apodrece-lhes o sangue todo
devorando-lhes os pulmões
e os lábios com teus caranguejos.


Já entraram na floresta:
já roubam, já mordem, já matam.

Ó Colômbia! Defende o véu
de tua secreta selva rubra.


Já ergueram o punhal
sobre o oratório de Iraka,
agora agarram o cacique,
agora o amarram.
“Entrega
as jóias do deus antigo”,
e brincavam com o orvalho
da manhã da Colômbia.


Agora atormentam o príncipe.

Degolaram-no, sua cabeça
me espia com olhos que ninguém
pode fechar, olhos amados
de minha pátria verde e nua.

Agora queimam a casa solene,
agora seguem os cavalos,
os tormentos, as espadas,
agora restam umas brasas
e entre as cinzas os olhos
do príncipe que não se fecharam.




XIII
Encontro de corvos

No Panamá uniram-se os demônios.

Foi aí o pacto dos furões.

Uma vela apenas iluminava
quando os três chegaram por um.

Primeiro chegou Almagro antigo e torto,
Pizarro, o velho porcino
e o frade Luque, cônego entendido
em trevas.
Cada um
escondia o punhal para as costas
do associado, cada um
com ensebado olhar nas escuras
paredes adivinhava sangue,
e o ouro do longínquo império os atraía
como a lua às pedras malditas.

Quando pactuaram, Luque ergueu
a hóstia na eucaristia,
os três ladrões amassaram
a obréia com torvo sorriso.

“Deus foi dividido, irmãos,
entre nós”, garantiu o cônego,
e os carniceiros de dentes
roxos disseram “Amém”.

Bateram na mesa cuspindo.

Como não sabiam de letras
encheram de cruzes a mesa,
o papel, os bancos, os muros.


O Peru, escuro, submerso,
estava marcado de cruzes,
pequenas, negras, negras cruzes
pelo sul saíram navegando:
cruzes para as agonias,
cruzes peludas e afiadas,
cruzes com ganchos de réptil,
cruzes salpicadas de pústulas,
cruzes como pernas de aranha,
sombrias cruzes caçadoras.




XIV
As agonias

Em Cajamarca começou a agonia.


O jovem Atahualpa, estame azul,
árvore insigne, ouviu o vento
trazer rumor de aço.

Era um confuso
brilho e tremor desde a costa,
um incrível galope
- patear e poderio -
de ferro e ferro entre a relva.

Chegaram os capitães.


O Inca saiu da música
rodeado pelos senhores.


As visitas
de outro planeta suadas e barbudas,
iam prestar reverência.

O capelão
Valverde, coração traidor, chacal podre,
avança um estranho objeto, um pedaço
de cesto, um fruto
talvez daquele planeta
de onde vieram os cavalos.

Atahualpa o segura.
Não sabe
de que se trata: não brilha, não soa,
e o deixa cair sorrindo.


“Morte,
vingança, matai, que vos absolvo”,
grita o chacal da cruz assassina.

O trovão acode aos bandoleiros.

Nosso sangue em seu berço é derramado.

Os príncipes rodeiam como um coro
o Inca, na hora agonizante.


Dez mil peruanos caem
debaixo de cruzes e espadas, o sangue
molha as vestimentas de Atahualpa.

Pizarro, o porco cruel de Extremadura,
faz amarrar os delicados braços
do Inca.
A noite desceu
sobre o Peru como brasa negra.




XV
A linha avermelhada

Mais tarde ergueu a fatigada
mão o monarca, e acima
das caras dos bandidos,
tocou os muros.

Aí traçaram
a linha avermelhada.

Três câmaras
era preciso encher de ouro e prata,
até essa linha de seu sangue.

Rodou a roda de ouro, noite e noite.

A roda do martírio dia e noite.


Arranharam a terra, retiraram
jóias feitas com amor e espuma,
arrancaram o bracelete da noiva,
desampararam os seus deuses.

O lavrador entregou a sua medalha,
o pescador sua gota de ouro,
e as relhas tremeram respondendo
enquanto voz e mensagem nas alturas
ia a roda de ouro rodando.

Aí tigre e tigre se juntaram
e repartiram o sangue e as lágrimas.


Atahualpa esperava levemente
triste no escarpado dia andino.

Não se abriram as portas.
Até a última
jóia os abutres dividiram:
as turquesas rituais, salpicadas
pela carnificina, o vestido
laminado de prata: as unhas bandoleiras
iam medindo e a gargalhada
do frade entre os verdugos
o rei escutava com tristeza.


Era seu coração um vaso cheio
de uma angústia amarga como
a essência amarga da quina.

Pensou em suas fruteiras, no alto Cuzco,
nas princesas, em sua idade,
no calafrio de seu reino.

Maduro estava por dentro, sua paz
desesperada era tristeza.
Pensou em Huáscar.

Viriam dele os estrangeiros?
Tudo era enigma, tudo era faca.

Tudo era solidão, só a linha rubra
palpitava vivente,
tragando as entranhas amarelas
do reino emudecido que morria.


Entrou Valverde então com a morte.

“Te chamarás Juan”, lhe disse
enquanto preparavam a fogueira.

Gravemente respondeu: “Juan,
Juan me chamo até morrer”,
já sem compreender nem mesmo a morte.


Ataram-lhe o pescoço e um gancho

penetrou na alma do Peru.




XVI
Elegia

Só, nas soledades
quero chorar como os rios, quero
escurecer, dormir
como tua antiga noite mineral.

Por que chegaram as chaves radiantes
até às mãos do bandido? Levanta-te,
materna Oello, descansa teu segredo
na fadiga longa desta noite
e deita em minhas veias teu conselho.

Não te peço ainda o sol do Yupanquis.

Te falo adormecido, chamando
de terra a terra, mãe
peruana, matriz, cordilheira.

Como entrou em teu arenoso recinto
a avalanche dos punhais?

Imóvel em tuas mãos,
sinto estenderem-se os metais
nos canais do subsolo.


Estou feito de tuas raízes,
mas não entendo, não me entrega
a terra a sua sabedoria.

Vejo apenas noite e noite
sob as terras estreladas.


Que sonho sem sentido, de serpente,
arrastou-se até a linha avermelhada?
Olhos do luto, planta tenebrosa.

Como chegaste a este vento vinagre,
como entre os penhascos da ira
não ergueu Capac a sua tiara
de argila deslumbrante?

Deixai-me sob os pavilhões
padecer e afundar-me como
a raiz curta que não dará esplendor.

Sob a dura noite dura
descerei pela terra até chegar
à boca do ouro.


Quero estender-me na pedra noturna.


Quero chegar aí com a desgraça.




XVII
As guerras

Mais tarde ao Relógio de Granito
chegou uma chama incendiária.

Almagros e Pizarros e Valverdes,
Castillos e Urías e Beltranes
se apunhalaram repartindo
as traições adquiridas,
se roubavam a mulher e o ouro,
disputavam a dinastia.

Enforcavam-se nos currais,
debulhavam-se na praça,
agarravam-se aos Cabildos.

Tombava a árvore do saque
entre estocadas e gangrena.


Desse galope de Pizarros
nos territórios linhosos
nasceu um silêncio estupefato.


Estava tudo cheio de morte
e sobre a agonia arrasada
de seus filhos desventurados,
no território (roído
até os ossos pelas ratazanas),
sujeitavam-se as entranhas
antes de matar e se matarem.


Magarefes de cólera e força,
centauros tombados na lama
da cobiça, ídolos
partidos pela luz do ouro,
exterminastes vossa própria
estirpe de unhas sanguinárias
e junto às rochas murais
do alto Cuzco coroado.

diante do sol de espigas mais altas,
representastes no pó
dourado do Inca, o teatro
dos infernos imperiais:
a Rapina de focinho verde,
a Luxúria azeitada em sangue,
a Cobiça de unhas de ouro,
a Traição, avessa dentadura,
a Cruz como um réptil rapace,
a Forca mm fundo de neve,

e a Morte fina como o ar

imóvel em sua armadura.




XVIII Descobridores do Chile

Do norte trouxe Almagro sua rugosa centelha.

E sobre o território, entre explosão e ocaso,
inclinou-se dia e noite como sobre uma carta
Sombra de espinhos, sombra de cardo e cera,
o espanhol reunido com a sua seca figura,
mirando as sombrias estratégias do solo.


Noite, neve e areia fazem a forma
de minha pátria delgada,
todo o silêncio está em sua longa linha,
toda a espuma sai de sua barba marinha,
todo o carvão a enche de beijos misteriosos.

Como brasa o ouro arde em seus dedos
e a prata ilumina como lua verde
sua endurecida forma de tétrico planeta.

O espanhol sentado junto à rosa um dia,
junto ao azeite, junto ao vinho, junto ao antigo céu,
não imaginou este ponto de colérica pedra
nascer sob o esterco da águia marinha.




XIX
A terra combatente
Primeiro resistiu a terra.


A neve araucana queimou
como uma fogueira de brancura
a marcha dos invasores.

Caíam de frio os dedos,
as mãos, os pés de Almagro
e as garras que devoraram
e sepultaram monarquias
eram na neve um ponto
de carne gelada, eram silêncio.

Foi no mar das cordilheiras.


O ar chileno chicoteava
marcando estrelas, derrubando
cobiças e cavalarias.


Cedo, a fome andou atrás
de Almagro como invisível
mandíbula que atacava.

Os cavalos eram comidos
naquela festa glacial.


E a morte do sul debulhou
o galope dos Almagros,
até que voltou seu cavalo
para o Peru, onde esperava
o descobridor rechaçado,
a morte do norte, sentada
no caminho, com um machado.




XX
Unem-se a Terra e o Homem

Araucania ramo de carvalhos torrenciais,
c5 Pátria despiedosa, amada escura,
solitária em teu reino chuvoso:
eras apenas gargantas minerais,
mãos de frio, punhos
acostumados a cortar penhascos,
eras, Pátria, a paz da dureza
e teus homens eram rumor,
áspera aparição, vento bravio.


Não tiveram os meus pais araucanos
elmos de plumagem luminosa,
não descansaram em flores nupciais,
não fiaram ouro para o sacerdote:
eram pedra e árvore, raízes
dos matagais sacudidos,
folhas com forma de lança,
cabeças de metal guerreiro.

Pais, apenas levantastes
a orelha ao galope, apenas no cimo
dos montes, cruzou
o raio de Araucania.

Tornaram-se sombra os pais de pedra,
ataram-se ao bosque, às trevas
naturais, tornaram-se luz de gelo,
asperezas de terras e espinhos,
e assim esperaram nas profundezas
da solidão indomável:
um era uma árvore vermelha que olhava,
outro um fragmento de metal que ouvia,
outro uma lufada de vento e verruma,
outro tinha a cor do caminho.

Pátria, nave de neve,
folhagem endurecida:
aí nasceste, quando o homem teu
pediu à terra o seu estandarte,
e quando terra e ar e pedra e chuva,
folha, raiz, uivo, perfume,
cobriram como um manto o filho
que amaram e defenderam.

Assim nasceu a pátria unânime:
a unidade antes do combate.




XXI
Valdivia (1544)

Mas voltaram (Pedro se chamava).

Valdivia, o capitão intruso,
cortou minha terra com a espada
entre ladrões: “Isto é teu,
isto é teu.
Valdés, Montero,
isto é teu, Inés, este lugar
é o cabido”.

Dividiram minha pátria
como sé fosse um asno morto.

“Leva
este pedaço de lua e arvoredo,
devora este rio com crepúsculo”,
enquanto a grande cordilheira
erguia bronze e brancura.


Assomou Arauco.
Adobes, torres,
ruas, o silencioso
dono da casa levantou sorrindo.

Trabalhou com as mãos empapadas
de sua água e de seu barro, trouxe
a greda e verteu a água andina:
mas não pôde ser escravo.

Então Valdivia, o verdugo,
atacou a fogo e morte.

Assim começou o sangue,
o sangue de três séculos, o sangue oceano,
o sangue atmosfera que cobriu a minha terra
e o tempo imenso, como guerra nenhuma.

Saiu o abutre iracundo
da armadura enlutada
e mordeu o chefe, rompeu
o pacto escrito no silêncio
de Huelén, no ar andino.


Arauco começou a ferver seu prato
De sangue e pedras.

Sete príncipes
vieram para lamentar.

Foram presos.

Diante dos olhos da Araucania,
cortaram as cabeças dos caciques.

Animavam-se os verdugos.
Toda
empapada de vísceras, uivando,
Inés Suárez, a mercenária,
subjugava os pescoços imperiais
com os seus joelhos de infernal harpia.

E as lançou sobre a paliçada,
banhando-se de sangue nobre,
cobrindo-se de barro escarlate.

Acreditaram assim dominar Arauco.

Porém aqui a unidade sombria
de árvore e pedra, lança e rosto,
transmitiu o crime ao vento.

Soube disso a árvore da fronteira,
o pescador, o rei, o mago,
soube disso o lavrador antártico,
souberam-no as águas mães
do Bío-Bío.

Assim nasceu a guerra pátria.

Valdivia enfiou a lança gotejante
nas entranhas pedregosas
de Arauco, meteu a mão
no palpitar, apertou os dedos
no coração araucano,
derramou as veias silvestres
dos labregos,
exterminou
o amanhecer pastoril,
ordenou martírio
ao rei do bosque, incendiou
a casa do dono do bosque,
cortou as mãos do cacique,
devolveu os prisioneiros
com orelhas e narizes cortados,
empalou o toqui, assassinou
a moça guerrilheira
e com a sua luva ensangüentada
marcou as pedras da pátria,
deixando-a cheia de mortos
e solidão e cicatrizes.




XXII
Ercilla


Pedras de Arauco e desatadas rosas
fluviais, territórios de raízes,
encontraram-se com o homem que chegou de Espanha.

Invadem a sua armadura com gigantesco líquen.

Atropelam a sua espada as sombras do feto.

A hera original põe mãos azuis
no recém-chegado silêncio do planeta.

Homem, Ercilla sonoro, ouço o pulso da água
de teu primeiro amanhecer, um frenesi de pássaros
e um trovão na folhagem.

Deixa, deixa a tua pegada
de águia rubra, destroça
a tua face contra o milho silvestre,
tudo será na terra devorado.

Sonoro, somente tu não beberás a taça
de sangue, sonoro, só ao rápido
fulgor de ti nascido
cm vão chegará a boca secreta do tempo
para dizer-te: em vão.

Em vão, em vão
sangue pelas ramagens de cristal salpicado,
em vão pelas noites do puma
o desafiador passo do soldado,
as ordens,
os passos
do ferido.

Tudo torna ao silêncio coroado de plumas
onde um rei remoto devora trepadeiras.




XXIII
Enterram-se as lanças

Assim ficou repartido o patrimônio.

O sangue dividiu a pátria inteira.

(Contarei em outras linhas
a luta do meu povo.
)
Mas foi cortada a terra
pelas facas invasoras.

Depois vieram povoar a herança
usurário de Euzkadi, netos
de Loyola.
Da cordilheira
do oceano
dividiram com árvores e corpos
a sombra recostada do planeta.

As comendas sobre a terra
sacudida, ferida, incendiada,
o reparte de selva e água
nos bolsos, os Errázuriz
que chegam com seu escudo de armas:
um chicote e uma alpargata.




XXIV
O coração magalhânico (1519)

De onde sou, às vezes me pergunto, de que diabos
venho, que dia é hoje, que acontece,
ronco, no meio do sonho, da árvore, da noite,
e uma onda se levanta como pálpebra, um dia
dela nasce, um relâmpago com focinho de tigre.



Desperto de repente na noite pensando no extremo sul
Vem o dia e me diz: “Ouves
a água lenta, a água
sobre a Patagônia?”
E eu respondo: “Sim, senhor, escuto”.

Vem o dia e me diz: “Uma ovelha selvagem,
longe, na região, lambe a cor gelada
duma pedra.
Não escutas o balido, não reconheces
o vendaval azul em cujas mãos
a lua é uma taça, não vês a tropa, o dedo
rancoroso do vento
tocar a onda e a vida com o seu anel vazio?”


Recordo a solidão do estreito
A longa noite, o pinheiro, vêm aonde vou.

E se transtorna o ácido surdo, a fadiga,
a tampa do tonel, quanto tenho na vida.

Uma gota de neve chora e chora à minha porta
mostrando o seu vestido claro e desatado
de pequeno cometa que me procura e soluça.

Ninguém olha a lufada, a extensão, o uivo
do ar nas pradarias.

Me aproximo e digo: vamos.
Toco o sul, desemboco
na areia, vejo a planta seca e negra, toda raiz e rocha,
as ilhas arranhadas pela água e pelo céu,
o Rio da Fome, o Coração de Cinza,
o Pátio do Mar Lúgubre, e onde assovia
a solitária serpente, onde cava
o último zorro ferido e esconde seu tesouro sangrento
encontro a tempestade e sua voz de ruptura,
sua voz de velho livro, sua boca de cem lábios,
algo me diz, algo que o ar devora cada dia.



Os descobridores da América aparecem e deles nada fica
Recorda a água quanto aconteceu ao navio.

A dura terra estranha guarda as suas caveiras
que soam no pânico austral como cornetas
e olhos de homem e de boi dão ao dia o seu vazio,
o seu anel, o seu ressoar de implacável sulco.

O velho céu busca a vela, ninguém
já sobrevive: o brigue destruído
vive com a cinza do marinheiro amargo,
e dos entrepostos de ouro, das casas de couro
do trigo pestilento, e da
chama fria das navegações
(quanto golpe noite [rocha e baixel] no casa,)
fica apenas o domínio queimado e sem cadáveres,
a incessante intempérie apenas partida
por um negro fragmento
de fogo falecido.



Só se impõe a desolação
Esfera que destroça lentamente a noite, a água, o gelo,
extensão combatida pelo tempo e pelo fim,
com sua marca violeta, com o final azul
do arco-íris selvagem
se afogam os pés de minha pátria em tua sombra
e uiva e agoniza a rosa triturada.

Recordo o velho descobridor
Pelo canal navega novamente
o cereal gelado, a barca do combate,
0 outono glacial, o transitório ferido.

Com ele, com o antigo, com o morto,
com o destituído pela água raivosa,
com ele em sua tormenta, com seu rosto.

Ainda o segue o albatroz c a soga de couro
comida, com os olhos fora do olhar
e o rato devorado cegamente olhando
entre paus partidos o esplendor iracundo,
enquanto no vazio o anel e o osso
caem, resvalam pela vaca-marinha.



Magalhães
Qual é o deus que passa? Olhai sua barba cheia de vermes
e seus calções aos quais a espessa atmosfera
se agarra e morde como um cão náufrago:
e tem peso de âncora maldita a sua estatura,
e silva o pélago e o aquilão acorre
até seus pés molhados.
Caracol da escura
sombra do tempo, espora
carcomida, velho senhor de luto litoral, caçador
sem estirpe, manchado manancial, o esterco
do estreiro te manda,
e de cruz tem o seu peito só um grito
do mar, um grito branco, de luz marinha,
e de tenaz, de tombo em tombo, de aguilhão demolido.



Chega ao Pacífico
Porque o sinistro dia do mar termina um dia,
e a mão noturna corta seus dedos um a um
até não ser, até que o homem nasce
e o capitão descobre dentro de si o aço
e a América sobe a soa borbulha
e a costa levanta o seu pálido arrecife
sujo de aurora, turvo de nascimento
até que da nau sai um grito e se afoga
e outro grito e a alba que nasce da espuma.



Todos morreram
Irmãos de água e piolho, de planeta carnívoro:
vistes, enfim, a árvore do mastro encolhida
pela tormenta? Vistes a pedra esmagada
sob a louca neve brusca da lufada?
Enfim, já tendes o vosso paraíso perdido,
enfim, tendes a vossa guarnição maldizente,
enfim, vossos fantasmas atravessados pelo ar
beijam sobre a areia o rasto da foca.


Enfim, a vossos dedos sem anel
chega o pequeno sal do páramo, o dia morto,
tremendo, em seu hospital de ondas e pedras.




XXV
Apesar da ira

Roídos elmos, ferraduras mortas!

Mas através do fogo e da ferradura
como de um manancial iluminado
pelo sangue sombrio,
com o metal fundido no tormento
derramou-se uma luz sobre a terra:
número, nome, linha e estrutura.


Página de água, claro poderio
de idiomas rumorosos, doces gotas
elaboradas como cachos de uvas,
sílabas de platina na ternura
de uns peitos puros aljofarados,
e uma clássica boca de diamantes
deu seu fulgor nevado ao território.


Já longe a estátua depunha
seu mármore morto, e na primavera
do mundo, amanheceu a maquinaria.


A técnica elevava o seu domínio
e o tempo foi velocidade e lufada
na bandeira dos mercadores.


Lua de geografia
que descobriu a planta e o planeta
estendendo geométrica formosura
em seu desenvolvido movimento.


Ásia entregou o seu virginal aroma.

A inteligência com um fio gelado
foi atrás do sangue a fiar o dia.


O papel repartiu a pele nua
guardada nas trevas.


Um vôo
de pombal saiu da pintura
com arrebol e azul ultramarino.


E as línguas do homem se juntaram
na primeira ira, antes do canto.


Assim, com o sangrento
titã de pedra,
falcão encarniçado,
não só chegou o sangue mas o trigo.


A luz veio apesar dos punhais.
Sobre o meu coração ainda vibram seus pés: a alta
formosura do ouro. E se acordo e me agito,
minha mão entreabre o subtil arbusto
de fogo — e eu estou imensamente vivo.
Se com a neve e o mosto dei ao tempo
a medida secreta, na minha vida tumultuam
os rostos mais antigos. Não sei
o que é a morte. Enchia com meu desejo
o vestíbulo da primavera, eu próprio me tornava uma árvore
abismada e cantante. E a beleza é uma chama
solitária, um dardo que atravessa
o sono doloroso. Nada sei dos mortos.
Deixaram em mim os pés sombrios, um súbito
fulgor de ausência. — De mim, vivo e ofegante,
sei uma flor de coral: delicada, vermelha.

Porque morrem assim no interior do vinho quando
se extasiam e cantam? Porque escurecem os ombros onde
as videiras se derramavam e subiam as escadas?
Uma um vão nascendo meus pensamentos
nocturnos, e eu digo: porque morrem
os que tinham a carne com seu peso e milagre e sorriam
sobre a mesa
como seres imortais?

E agora é a minha vida que assombrada se fecha.
A vida funda e selvagem. Porque um dia,
como se apaga a labareda de um cacho,
o brilho se apagará onde estava a minha letra.
Dançarei uma só vez em redor da taça,
festejando a última estação. Hoje
nada sei. Correm em mim os mortos, como água —
com o murmúrio gelado da sua incalculável ausência.

E digo: não refulgia a carne quando
a primavera inclinava a cabeça sobre a sua confusão?
Não dormiam junto ao mosto com lírios no pensamento?
Ei-los em mim, os mortos longos, e digo: se havia
tanto ouro dentro e fora deles, porque
se extinguiram?
Nada sei dos mortos.
Um dia hei-de ser como espuma absorta em volta
de um coração, e dele se erguerá uma onda de púrpura,
um amor terrível.

— Porque era de ouro firme, e ressoava.

Projeto de Vida- Depoimento de Um Poeta Sexagenário

Silas Corrêa Leite

(Da Série "Testamento de Uma Jornada")

A partir de uma tenra idade, muito precoce ainda, pais honestos, meio probo, vc começa a delinear um básico projeto de vida. De origem humilde, você cisma: -Estudar muito, ler bastante, trabalhar o mais cedo possível, ganhar a vida honestamente, com as mãos limpas. Simples assim.

Começa a trabalhar, sempre lendo, sendo honesto, pontual, produtivo, criativo, admirado e elogiado pelos patrões, tipo "esse menino vai longe". Quando tem a chance de estudar, se entrega loucamente aos estudos que acabou parando na quarta-série primária ainda guri, para trabalhar e ajudar a família carecida. E exemplos de dignidade, criatividade, honestidade em casa, no meio, no clã. Siga os bons.

Cedo sai de casa em busca de melhores condições de trabalho e estudos. Passa necessidade, passa fome, dorme em cortiço, pensão, dorme na rua. Sempre com um ideal, um sonho, esperanças limpas. Nunca é tarde para recomeçar, e a busca de ser feliz ainda que tardia.

Acaba se formando com dificuldades, acaba melhorando de empregos, sempre respeitado pelos colegas, subalternos, amigos, chefes, patrões, donos. Podem confiar em você. Seu sonho é vencer na vida com esforço e por merecimento. Em todo trampo, mesmo começando por baixo, logo acaba chefe por mérito. Começa a ganhar bem. Ajuda amigos, parentes, familiares. Seu projeto de vida é digno. Aprende a respeitar a dor do outro, estender a mão, ser solidário, também tem um projeto de vida ético-humanitário. Vai realizando seus sonhos...

Erra e acerta no amor. Romântico, poeta, sabe como é. Comete erros que pode dizer que cometeu, na caminhadura. Nada a esconder. Nenhum mal feito que revele você interesseiro, mau caráter, roubando a firma, o patrão, o meio, nem nunca chamado de caloteiro, de velhaco, nem nunca sofrendo despejo por falta de pagamento, nunca ostentando nada que não fizesse por merecer ter com sangue, suor e lágrimas. Projeto de vida. Simples assim.

Vez em quando, levando um tombo da vida, uma mentira, uma traição, uma punhalada pelas costas de parente ou amigo, mas sempre saindo da queda, do chão, limpo, se levantando com mais trabalho, resiliência, mais esforços, três trampos, acordando cedo, dormindo tarde, vendendo as férias para fazer caixa, fazendo cursos em finais de semana, nas férias. Projeto: evoluir, comprar uma casa para si, uma casa prometida para a mãe. Finalmente, entre lonjuras e escolhas, acerta e acha a mulher de sua vida, uma mão na roda, honesta, estudiosa, que trabalha muito também, que estuda até tarde, que dá um show em casa, gerencia sua cabeça, suas loucuras, dá estrutura aos seus planos... Luz atrai luz.

De vez em quando um novo curso, um novo diploma, um prêmio literário de renome, um convite pra palestra paga, uma entrevista no rádio, outra na tevê, em programa de alto nível cult, depois bola um livro pioneiro, de vanguarda e único no gênero que sai na chamada grande mídia, vira tese de mestrado, no doutorado, consta em centenas de sites, até em antologias literárias no exterior, ou mesmo na Biblioteca Nacional, e você com seu projeto de vida ganhando amplitude, destaque, reconhecimento. De três sonhos impossíveis quando criança berebenta com amarelão, realizou mais de dez sonhos impossíveis ao longo de seu projeto de vida. E como escritor elogiado entre outros por Elio Gaspari, Fernando Jorge, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Álvaro Alves de faria, Moacir Scliar e Carlos Nejar,ambos da ABL-Academia Brasileira de Letras. Sentiu firmeza.

Encontra colegas de trabalho, patrões, alunos. Em todos o reconhecimento claro e cristalino. Seus textos em sites, até internacionais, em redes socais, em convites de formatura, em discursos, citações, em teses de TCCS, em posses de academias de letras regionais, em agendas, até fora do Brasil. O menino pobre, pondo suas dores pra fora, seu projeto de vida relido e contato, e novos prêmios, outros livros. E palestras, até em universidades federais, publicado em jornal da USP, onde foi bolsista pesquisador, seus textos em sites da Argentina, Itália, Chile, Estados Unidos, Espanha, Portugal, Angola,Moçambique, Rússia, no Pravda. Seu Estatuto de Poeta vertido para o inglês,francês, espanhol e russo. Seu projeto de vida tem o que dizer,o que valer, o que fazer sentido numa croniqueta, num poema, num livro. Você compra a casa para sua mãe. E a sua mãe descendente de negros com índios, vendo você na TV Cultura, duas vezes, na TV Band, em capa de jornais de sua cidade, em matérias e em revistas, e diz: -Ele sempre foi meio espeloteado. Você a honra. E conta que vc esteve para morrer seis vezes, quando criança. Que seu pai gastou vários terrenos para comprar remédios, tratar de vc, para que você sobrevivesse. Você venceu a morte... a miséria... a batalha da vida dura... Os padres dizem que vc seria um ótimo Frei. Os crentes dizem que vc seria um ótimo pastor. Os Médiuns dizem que vc é médium... Será o impossível? E vc na sua vidinha, fé com obras...

Um dia chutam: -Você deu sorte na vida. Não sabem um terço da missa. Um dia perguntam: -E se você fosse avisado por um medico, de que tem pouco tempo de vida,o que faria? Você responde: Eu olharia para trás, vendo que deixei o mundo de meu clã melhor do que recebi, olharia minha origem, minha trajetória, e diria, curto e grosso: -Pintei e bordei.

Cada coisa em sua casa, conquistada com esforço e dignidade. Nunca colocou nada em casa que fosse tirado, furtado, roubado, enganando alguém, a empresa, o amigo, o parente, a facilidade de extorsão, o enriquecimento ilícito com divida, peculato, prevaricação. E ainda socialista, sonhando um humanismo de resultados. Um amigo brinca: Se vc fosse de direita, mau caráter, mulherengo,interesseiro,olho grande,mão rápida, dinheirista, continuasse na área de advocacia, estaria podre de rico? E indagam: -Vc está rico? Vc responde na bucha: -Estou digno.

Quando não te chateiam: -Por que vc estuda tanto,lê tanto, feito um E.T.? Ninguém sabe a sua dor.O que você passou para continuar limpo e para ser o que é. Vc cai no Vestibular na faculdade de letras de sua cidade, da qual é autor de um hino. Cai, junto com Machado de Assis e Vinicius de Moraes no Vestibular da VUNESP.Seu projeto de vida cresceu com você. E vc não ostenta posses,nem nada que valore mais você,a não ser a sua própria história de vida, que já daria um romance de tristeza,de conquista e determinação...

Projeto de vida: vencer com a força de sua cabeça,seus braços; o que tem fazer por merecer e coadugnar com seus ganhos em três trampos e trabalhos de assessorias em escritas,orelhas e prefácios de livros,resenhas criticas, criticas literárias e sociais, escrevendo em mais de 800 links de sites. Você fez além de seu projeto de vida. Há um Deus. Quando chegar a sua hora de ir embora, cantar noutra fregesia do céu, numa Itararezinha Celeste, dirão: -Passou a vida lendo e escrevendo e estudando feito um louco. Alguma pessoa que sabe sua história,dirá: -Queria ter um filho como ele.Uma aluna dirá novamente: -Foi o melhor professor que eu tive,foi como um pai pra mim,e regia aulas como um professor de cursinho, cantava na sala, fazia historias em quadrinhos,teatro,letras de rock, entrevista,rodas vidas de aulas... tudo isso em Geografia,História, Filosofia e Ética e Cidadania, Didática...

Nesses erros e acertos,altos e baixos,idas e vindas, tempos de vacas magras e vacas gordas, perdas e saudades, rupturas e desastres, tragédias e lamentos,procura honrar a memória de seus ancestrais. Você foi forte,dizem. Você deu no couro,diz um parente. E você, passando dos sessenta, jogando limpo, segue o trajeto final de sua vida. Exigindo pelo pai,criticado,cobrado, sancionado,correspondeu, fez bonito. Criticado, foi estudar mais. Cada pé na bunda que levava, um novo curso,um novo livro,um novo diploma. Sempre assim. Primeiro dizem que você é pobre, é feio,filho de preto,de crente, de mãe lavadeira de roupas, faxineira, depois dizem que você é metido (escreve pro jornal com 16 anos), depois que é viado, depois que maconheiro,depois que é bêbado, depois que é comunista, petralha, depois você Vence sem fazer parte do sistema, sem entrar em nenhum esqueminha, sem corporativismo, sem jogos sujos, sem tramoias. E quem humilhou você num determinado tempo de pobrinho, humilhou sua mãe até,hoje compra seus livros no site da Livraria Cutura e pede autografo para você. Já pensou que demais?

A sua primeira professora, que, com a diferenciada pedagogia do afeto alfabetizou você e descobriu sua primeira poesiazinha certamente pueril, décadas depois,num lançamento de mais um livro seu, na Casa das Rosas lotada, na Avenida Paulista, em SP, depõe:--O Silas foi o aluno mais pobre que eu tive. O Silas foi ao aluno mais inteligente que tive.Você chora. Alguns presentes choram.Mais de dez anos depois, você encontra uma ex-aluna que abraça você chama você de pai.Você olha a mãe da aluna chorando por finalmente conhecer você,e diz:-Você ajudou a criar minha filha. Ela estudou oito anos com vc e vc encheu o coração dela de sonhos... e mudou a cabeça. O sr foi como um pai pra ela,que era filha de mãe solteira...

Com quase cinco mil amigos no facebook,muitos até do exterior, entre centenas de ex-alunos, e o surpreso marido de uma ex aluna na pg do facebook diz:-Minha esposa está aqui na sala, na frente dos filhos,chorando,por encontrar o senhor de novo,que diz que foi o melhor professor que ela teve. Esse reconhecimento vale mais que um holerite, vale uma vida, uma alma. Somos todos aprendizes?

Por essas e outras, vencedor com as mãos limpas, sem obter vantagem em nada, sem ludibriar a empresa em que trabalha, ou valer-se do cargo ou situação de meio para ter status, pose, posses, conquistas amorais ou ilegais,você segue seu final de vida, como que lhe couber. Não fiz feio.

Na longa estrada da vida, os amigos podem contar com você. Os parentes podem contar com você. Seu pai contava com você, pois precisou. Você nunca abandonou sua mãe, e ela com você sabia que podia sempre contar.

Todos nós temos uma história pra contar.

Qual é a sua, vai encarar?

Se forem fazer uma auditoria,confirmariam isso. E saberiam de processos que sofreu por corruptos em quem os outros votaram,você não, e vc ainda continua primário apesar de tudo, 47 anos escrevendo para o Jornal O Guarani de Itararé,onde tudo começou como uma escada,uma escola,uma estrada, um treino, um aprendizado básico.

Consciência limpa,sem remorso,várias perdas e tristezas,marcas no corpo e na alma, sem tatuagens mas com várias cicatrizes, e você segue sobrevivendo sem esperar muito da vida agora,afinal,estamos todos no mesmo roçado de trajeto e entornos, e, parafraseando Caetano Veloso, sabemos que uns vão, uns não, uns hão,uns cão, uns chão,e não existem outros...

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Silas Corrêa Leite

E-mail:poesilas@terra.com.br

WWW.artistasdeitarare.blogspot.com/

Texto da Série "Daquilo Que Eu Sei e Vivi Plenamente"

Caminhando a passos lentos, voltando do trabalho muito mais tarde do que eu queria, senti a garganta arranhar, estava muito frio e eu parecia que adoeceria muito em breve. "Mais essa agora!" Pensei. Como se já não bastasse as pilhas de relatorios para revisar inadiavelmente, eu ficaria doente e dolorido. Meus resfriados sempre eram fortes e me deixam muito mal.

As ruas da minha cidade são muito escuras e eu ando sempre a pé. Meu dinheiro é curto e eu tenho que sustentar a mim e ao meu filho, o Felipe. Felipe tem só cinco anos e sente muito a falta da mãe. Minha querida e amada Julia, que Deus a tenha.

Chegando perto de casa eu sempre vejo a luzinha da Tv ligada da janela, já passam das nove e meia da noite e Felipe sabe que já devia estar dormindo. A babá só fica até as oito então ele aproveita pra fazer suas travessuras quando ela sai. Sempre que ele ouve o barulho do velho portão de metal rangir eu vejo a luzinha da TV apagar, e como num passe de magica, quando eu entro em casa ele deita na cama e finge estar dormindo.

Menino travesso,o meu, mas eu prefiro que seja assim, pelo menos não é uma criança triste.

Esta noite em especial eu cheguei e o Felipe não fingiu dormir, ao invez disso ele desligou a TV e me esperou na porta. Parecia chateado.

- Papai! Eu fiquei com medo.

Ele abraçou minhas pernas com força e pareceu choramingar.

Meu coração estava partido, o que tinha feito meu garotinho levado chorar?

Eu acariciei seus cabelos escuros e me pareceram suados e oleosos. Afastei-o devagar e com delicadeza e me agachei para nivelar a altura.

-Do que você teve medo filho? Aconteceu alguma coisa?

Ele esfregou os olhinhos molhados e avermelhados de sono. Seus olhos eram verdes, iguais os da Julia, lembrava muito a mãe.

-A Bárbara, foi embora muito cedo, eu não gosto de ficar sozinho aqui.

Eu fiquei confuso, Bárbara era a babá, sempre foi muito confiável, e ela sempre me avisava quando tinha de sair antes do horário, não me lembrava dela ter dito nada a mim hoje.

-Como assim filho? A Bárbara sempre sai ás oito, quando a lua começa a aparecer lembra? E minutinhos depois o papai chega, só hoje que eu me atrasei um pouquinho.

-Sim Papai! Mas hoje ela saiu quando ainda tinha sol, fiquei muito tempo sozinho, você não chegava nunca mais, achei que você tivesse ido embora.

Felipinho desabou a chorar, e aquilo deixou meu coração em frangalhos, ao mesmo tempo que me deixou enfurecido. Como a Bárbara pode fazer isso sem avisar, deixar meu pequeno sozinho sem mais nem menos.A que horas ela saiu?

-Filho, calma, você já tomou banho?

-Não. Ela saiu sem me dar banho.

Ela sempre da banho no Felipe por volta das seis, antes de ele fazer a lição, jantar e ir pra cama, se ela saiu sem dar banho nele, significava que ela havia saído no meio da tarde. Eu fiquei extremamente zangado. Respirei fundo, não podia transparecer minha fúria a uma criança.

-Vamos para o banheiro, papai vai te dar banho e aí a gente vai dormir, ta bom?

- Ta bom, mas eu posso dormir com você hoje pai? Só hoje!

Tinha um nó na minha garganta. Engoli meu choro.

-Pode sim meu anjo.

Dei um banho no Felipe, ele estava bem sujinho, talvez de tanto brincar, ele pareceu mais alegre naquela hora, fazia muito tempo que eu não dava banho nele e ele gargalhava fazendo espuma pra todo lado. Coloquei ele na cama e acho que não demorou nem cinco minutos para que ele pegasse no sono, o pobrezinho parecia exausto.

Deitei na cama ao lado dele, mas não podia dormir, não sem uma explicação, Levantei e sai do quarto silenciosamente, encostei a porta.

Fui até a cozinha e peguei meu celular. Liguei pra Bárbara. Ela atendeu ao terceiro toque.

-Alô.

-Alô, Bárbara, aqui é o Gregório.

-Ah, seu Gregório, oi.

-Bárbara, o Felipe me disse que você saiu mais cedo hoje, o que foi isso? Aconteceu alguma coisa? Não me lembro de você ter dito nada.

-Não. É que na verdade eu não vou mais.

-Como assim não vem mais? E o nosso contrato? O que aconteceu?

-Eu não posso é que .... Não consigo, não da.

- Como assim? Por que não?

-Essas pessoas estranhas paradas aí na frente da casa o dia todo, é perturbador, eu não posso com isso, to muito apavorada e .... Não vou, não mesmo.

Eu não conseguia processar o que ela estava falando, não estava entendendo bulhufas.

- Que pessoas, menina? Não tem ninguem aqui, do que você ta falando?

- Desculpa, seu Gregório, me desculpa mesmo, manda o Beijo pro Felipinho, fala que eu adoro ele tá?

- O que? Não, espera, como assim?

Ela desligou.

Que porra Bárbara!

Joguei o celular no chão. Estava desamparado. E agora o que eu iria fazer? Ela esteve cuidando do Felipinho por dois anos, como eu iria achar uma substituta tão em cima da hora?

Sentei na cadeira e dei uma respirada. Pequei meu notebook e mandei um e-mail pro meu chefe, não poderia ir trabalhar no dia seguinte, ficaria cuidando do meu filho.

As palavras dela não me saiam da cabeça. De que pessoas ela estava falando?

Levantei e fui até a janela da cozinha, abri só uma pequena fenda da cortina, do outro lado da rua quatro figuras encapuzadas estavam paradas olhando pra casa, quando me perceberam espiar, acenaram pra mim.


Acordei meio suado, parecia já ser tarde, só me lembrava de ter ido me deitar ao lado do meu filho, eu estava apavorado e me perguntando quem seriam aquelas pessoas estranhas em frente à minha casa. Esfreguei os olhos tentando despertar, rolei para o lado e a cama meio bagunçada estava vazia. O Felipe não estava ali.

Levantei de supetão, estava tremendo, não sei se de frio ou de nervoso. Talvez fosse os dois. Procurei no banheiro, nada. Chamei meu filho e não houve resposta.

Estava atordoado, meu deus, meu filho. Fui correndo até a varanda dos fundos e vi o Bolinha, nosso cachorro comendo um pedaço enorme de carne. Estranhei aquilo, eu não havia dado nada a ele, tinha acabado de acordar. Não dei muita importância, precisava achar meu filho.

Corri para a sala, estava vazia, da forma que estava na noite anterior. Estava ofegante, parecia que eu ia desmaiar quando ouvi um barulho de talher na cozinha.

Corri até lá desesperado, entrei pela porta escorregando no piso por causa das meias, e vi meu filho, sentado à mesa, que estava farta, cheia de frutas e doces caseiros. Foi um alivio enorme, tão grande que minhas pernas amoleceram, soltei todo o ar dos pulmões.

-Filho! Não ouviu o papai te chamar?

Ele com toda a sua tranquilidade de criança, balançando as perninhas na cadeira terminou de mastigar uma colherada de cereal com fruta.

-Não ouvi papai, desculpe.

Eu não sabia o que dizer, estava ficando paranoico, dei um beijo na testa dele e fui pegar uma xícara de café, estava aliviado. Enchi uma xícara bem cheia de café e me escorei no balcão, fui dar um gole e me virei para mesa e só então me dei conta. Quem havia preparado aquilo tudo?

Meus olhos arregalaram, meu coração palpitou, me senti tremer novamente, coloquei de vagar a xícara em cima do bancão e vagarosamente me aproximei do Felipe, meu corpo em choque tentando entender, olhei para ele e perguntei pausadamente, engolindo em seco.

-Felipe.

-hum?

-Quem preparou isso tudo pra você?

Ele me olhou confuso.

-Você?

Eu esfreguei a mão na testa, não estava conseguindo conter meu nervosismo.

-Não filho, o pai tava dormindo.

Ele fez uma expressão pensativa, entendo que pra ele deveria estar ainda mais difícil de compreender.

-humm, a Bárbara?

Ele estava tentando adivinhar.

-Não querido, a Bárbara não veio hoje. Você viu alguém aqui hoje cedo? Quero dizer, fazendo alguma coisa?

-Não. Já tava aqui. Ah! Você deixou a porta aberta ontem pai. tava tudo frio aqui.

Eu senti tontura, parecia que eu ia enfartar. "não eu não deixei". Pensei. Me apoiei na mesa para me manter de pé.

-Sim, claro, me esqueci, Obrigado.

Fui até a porta da frente, andando meio duro, parecia um robô inexpressivo, em choque. Olhei para fora com medo do que eu veria, mas para minha surpresa não havia nada estranho, aquelas pessoas da noite passada não estavam mais lá, olhei para a rua cima a baixo, procurando nem eu sei o que, e não vi absolutamente nada fora do normal. Quando já estava quase fechando a porta vi no chão um papel meio amassado, resolvi desamassar para ver o que tinha ali, e para meu espanto, desenhado à lápis havia um símbolo estranho, um pentágono com uma estrela de seis pontas no meio, e quatro assustadores olhos desenhados no centro da estrela, havia também outro pedaço de papel colado no canto da folha com o carimbo de um ponto de interrogação.

O que essas aberrações estavam querendo me dizer? Eu estava surtando, guardei o papel no bolso do pijama, dei mais uma olhada para fora e fechei a porta. Tranquei.


Coloquei um agasalho no Felipe e me aprontei para pegar o ônibus rumo a biblioteca municipal, eu vou scannear essa porcaria e fazer uma busca na internet para ver se eu acho alguma coisa que faça sentido, se eu tiver sorte pode ser que seja alguma piada de mal gosto que se tornou viral.

Estávamos aguardando no ponto quando eu vejo de longe um golzinho velho vermelho se aproximando e parando bem perto de nós, a janela do carro se abriu devagar e fazendo um rangido estranho.

-Falaa Greg!

Era o Barba, meu amigo do trabalho, o apelido dele é esse por causa da barba comprida que ele mantem e cuida igual cabelo de mulher. A maioria do pessoal até já esqueceu o nome dele de verdade, eu mesmo que o conheço desde que entramos juntos na empresa me esqueço as vezes, O nome dele é Jurandir, então Barba, pega mais fácil.

-Eae Barba!-Respondi.

Ele olhou para o Felipe, que estava distraído.

-Oi Felipinho, como você ta campeão?

O Felipe adora o Barba, ao perceber que era ele ficou todo agitado.

-Oi Tio Barba! Eu cresci um tanto assim - Ele fez um sinal exagerado de tamanho com os braços.-

-Tudo isso rapaz? desse jeito vai bater a cabeça nas nuvens eim.

-Uau! Eu acho que eu vou sim, dai eu vou comer um pedaço delas, porque elas são de algodão doce, só que branco.

Levei a mão na testa, que imaginação era aquela, rimos muito.

-Mas eai Senhor Gregório, pra onde você ta indo? Fiquei sabendo do que a Barbara fez, ela não é disso cara, que foda.

-Eu to indo na biblioteca agora. Pois é cara, sacanagem, acontece que ...

-Não, não, me conta no caminho, vou dar uma carona pra vocês entra aí.

Ele jogou umas tralhas pro canto do banco de trás e eu acomodei o Felipe no assento. No caminho até a biblioteca contei tudo o que tinha acontecido pro Barba, ele não falou nada até eu terminar, só balançava a cabeça.

-Uff. - ele soltou o ar como se fosse algo pesado.- Mano, que porra de história bizarra que tu acabou de me contar. Verídico mesmo?

-É claro que é caramba! Da onde que eu ia inventar um troço desse? Você me conhece, sou quadradão demais pra isso de inventar coisa.

-Mas assim, os caras, deixaram o desenho e PUFF desapareceram no ar?

-O que? Não! -Eu estava frustrado, ela não estava me levando a sério-. Eles só deixaram lá e foram embora, seja lá pra onde gente estranha mora.

-Eu vou te ajudar a resolver essa fita aí.

-Não precisa, deve ser bobeira.

-E daí se for bobeira? Agora eu quero saber, sou doido nesse negócio de teoria da conspiração, meu sonho investigar essas paradas.

-Cara, não é teoria da conspiração.

-Não corta o meu barato, falou? Pra mim é sim, esses negócios existem em toda parte irmão, ou você acha que o homem foi mesmo pra lua? Não se iluda!

-Ta bom. -Ri-. Mas eai, porque você não foi trabalhar hoje?

-Peguei atestado, doido.

-Você ta doente?

-To, doente daquele monte de relatório, deus me livre.

-Não acredito, O Marcelo vai ter que fazer tudo sozinho?

-Vai. - Ele me deu um olhar maléfico e demos uma gargalhada juntos.- Aquele mala vive puxando o saco do Afonso, ele que se vire, não é o senhor prestativo, senso de dono da empresa? Se vi-re.

-Bem feito.

Chegamos em nosso destino, eu já mais descontraído por causa da conversa com o Barba. A biblioteca municipal é um lugar enorme, deve ter sido construído lá por mil oitocentos e pouco, porque tem um aspecto bem antigo. Estacionamos o carro e subimos a longa escadaria até a porta. Chegando lá me virei pro meu filho.

-Filho, o papai vi ter que procurar umas coisas e pode ser que demore um pouquinho, lá dentro tem uma sala de joguinhos e uma tia bem simpática que vai cuidar de você, você promete que vai se comportar?

Ele balançou a cabeça em sinal de sim e saiu correndo para a entrada da sala de jogos.

Me aproximei da moça da recepção. Era uma mulher bonita, cerca de 30 anos, morena.

-Quanto tá a hora da salinha? - Perguntei pra ela-.

-São 20 reais, senhor.

Meu bolso doeu, aqueles homens misteriosos estavam me custando os olhos da cara.

-Me ve 1 hora então, por favor.

-Nome?

-Gregório Aparecido Boulevard.

-Nome da criança?

-Felipe de Alcântara Boulevard.

-Vamos anotar o telefone do senhor para contato.

Ela retirou uma fitinha com o nome do meu filho, amarrou no pulso dele e girou a catraca, Felipe saiu correndo feito um doido e sumiu no meio das crianças e dos brinquedos.

Não pude conter minha preocupação, não gostava de deixa-lo sozinho assim, mas desta vez foi preciso. Parece que transpareci demais, o Barba percebeu.

-Relaxa, a recepcionista bonitona vai cuidar dele.

Eu ri.

-Deixa só a Cristina ouvir isso.

-Deus o livre, ela arranca meu couro.

Adentramos a imensa biblioteca e fomos confiantes rumo a nossa caçada ao desconhecido.

Digitalizei o pedaço de papel e fiz uma busca rápida na internet. Nada.

Olhei para o Barba que assim como eu se sentiu frustrado. Resolvi fazer uma busca em livros de papel. Imprimi uma cópia do símbolo para o barba e pedi para ele seguir pelo lado esquerdo da biblioteca e procurar por livros de simbologia ou qualquer coisa que remetesse ainda que vagamente aquilo. Eu segui pelo lado direito.

Voltamos minutos depois, ambos com os braços cheios de livros pesados, colocamos sobre a bancada.

Depois de quase uma hora folheando páginas e mais páginas e sem sucesso algum, me senti exausto, estava quase na hora do Felipe sair da salinha de jogos e eu decidi fazer uma última busca desesperada. Sai entremeio as imensas prateleiras lendo os títulos nas bordas dos livros o mais rápido quanto podia, quando um deles em especial chamou minha atenção, era um livro velho de capa de couro cujo título era "Os lugares mais misteriosos do Brasil e suas histórias".

Me aproximei dele, e retirei da prateleira pela borda, analisei a capa em busca de algo que indicasse se aquilo tinha alguma relação ainda que mínima com meu símbolo misterioso, como não encontrei nada concreto olhei novamente para prateleira na intenção de colocá-lo no lugar, mas o que vi, me fez tremer os ossos. Do outro lado, no espaço vazio que o livro deixara havia um homem parado, cujo o olho estava posicionado perfeitamente na brecha, um homem de pele escura e olhos verdes como folha.

Eu travei, não sabia mais falar, gritar nem me mover, com muito custo consegui chamar o Barba que estava apenas a alguns passos de mim.

Ele parou ao meu lado confuso e olhou para prateleira, ao perceber aquele homem ali, ele entendeu o motivo do meu pavor. Barba sempre foi mais destemido que eu, e resolveu enfrentar a figura que viamos.

-Ei! Ei cara, o que você ta querendo, meu irmão?

O homem moveu-se saiu do nosso campo de visão, mas ouvimos sua voz grave e calma quando ele disse do outro lado:

-Aquele que com aplicação procura, sempre acha.

Barba puxou meu braço, me tirando do meu estado de choque.

-Vamos Greg! Vamos caramba. Vamos pegar esse cara.

Caminhamos a passos rápidos até o fim do corredor para dar a volta e nos encontrarmos com nosso colega misterioso, mas quando dobramos a esquina não encontramos nada incomum. Do outro lado só havia um grupo de estudantes de cerca de vinte anos sentados em volta de uma grande mesa.

Barba se aproximou de um deles e questionou:

-Desculpa interromper, pessoal, mas vocês viram um cara grandão, pele escura, olhos verdes por aqui?

O garoto olhou para os colegas como quem refazia a pergunta a todos e como ninguém se manifestou, respondeu:

-Foi mal, não prestamos atenção não.

Barba deu dois tapinhas no ombro do rapaz como quem diz um obrigado silencioso.

Nos afastamos andando lentamente, confusos e decepcionados. Peguei o Felipe na saída da salinha e só então me dei conta que ainda estava com o livro na mão. Dei meia volta, na intenção de retornar à prateleira para devolve-lo quando ouvi um grito e um alarme soou. No alto falante um rapaz repetia freneticamente. "incêndio na sessão 7, incêndio na sessão 7. Repito. Isso não é um teste, incêndio na sessão 7. Todos os leitores e funcionários favor dirijam-se para a saída mais próxima. Repito(...)"

Coloquei o livro dentro do meu casaco, pequei meu filho no colo e fomos até a saída principal. Atrás de nós um caos de pessoas saindo apressadas e desnorteadas.

Em silencio andamos até o estacionamento e entramos no carro.

Barba suspirou forte, e soltou um palavrão em tom animado e incrédulo.

-Que merda foi essa meu amigo? Caraaaaalho, que isso? Mano, sessão sete não era a que a gente estava? Caraaaalho, isso foi insano.

Eu estava com o olhar fixo a minha frente, era muito para processar, estava nervoso.

-Barba, e-eu roubei um livro da biblioteca municipal!

-O que

-E-eu nunca roubei nada na vida, nem bala, uma vez a moça me deu um real a mais no supermercado e eu devolvi. Eu roubei um livro da caralha da biblioteca municipal!

-Você ta fumado Gregório? Me atualiza aí que eu não to entendendo porcaria nenhuma do que você ta falando.

Abri o casaco, retirei o livro de dentro dele e apontei para o Barba. Estava eufórico.

O Barba olhou pra ele, processou por alguns segundos. Soltou uma gargalhada e ligou o carro.

-Ora, ora, parece que temos um grande ladrão entre nós. Próxima parada, Banco Central.

-Cala sua boca!- Ri.

O transito naquela área estava péssimo por conta do fuzuê do incêndio. Caminhões de bombeiro pra todo lado, curiosos dirigindo devagar e policiais isolando a área. Pedi pro barba ligar o rádio do carro pra gente saber o que os repórteres estavam falando sobre o acontecido.

Em várias estações de rádio, ouvimos notícias de que o incêndio fora criminoso, estavam analisando as câmeras de segurança para identificar o culpado. Chamaram o ato de terrorismo.

Naquele momento estávamos tensos. Aquilo tinha tomado proporções muito maiores do que jamais pudemos imaginar. Não eram apenas caras estranhos querendo fazer uma pegadinha de mal gosto, era algo muito sério, e o pior de tudo é que eu estava envolvido.

-Mano. -Eu disse tentando não parecer nervoso-. O que eu vou fazer agora?

Barba me olhou por uns instantes.

-Você? Você nada. NÓS vamos dar um jeito nesses caras. Vamos na polícia, talvez eles nos ajudem em algo.

Me exaltei.

-Policia? Você ta locão? Eu não posso ir na polícia! E-eu, eu roubei a merda de um livro!

-Ta bom, ta bom! Calma! Vamos resolver nós dois então. Eu e você. Sem polícia.

-Melhor assim.- Esfreguei as mãos no rosto tentando aliviar a tensão e pensar lucidamente-. Mas o que nós dois contadores de uma empresa furreca podemos fazer? Estamos fu...- Lembrei que meu filho de 5 anos de idade estava no banco de trás ouvindo todos aqueles palavrões. Me senti um péssimo pai.- Estamos lascados!


Barba me deixou na porta de casa, tudo parecia estranho ali, segurando a mãozinha gelada do meu filho tudo que eu conseguia sentir era medo. Eu havia passado o dia todo correndo atrás de mistérios e me esqueci completamente que, apesar das minhas horríveis aventuras eu ainda era um pobretão que por acaso trabalharia na manhã seguinte e não tinha nenhuma babá.

Barba já estava saindo quando pedi para que esperasse um pouco e abaixasse os vidros. Precisava fazer um pedido a ele:

-Mano, tem como você me arrumar um desses seus atestados aí? Ainda to sem babá cara.

Barba fez uma expressão malandra.

-É claro que eu consigo, Brother! Peguei um de 7 dias pra mim. Te arranjo um igual, até você acertar essas paradas suas aí com os iluminatti.

Não acreditava que tinha escutado aquilo. Barba era mesmo muito doidão. Ri muito.

-Sim claro! E com os Maçons também.

Barba riu, mas depois fez uma expressão pensativa.

-Mano! Será que eles são Maçons?!

Não podia acreditar naquilo. Bati a mão na testa.

-Vai pra casa, Barba.

Ele arrancou com o carro em alta velocidade e saiu fazendo uma barulheira pelo bairro todo.

Aquele velho golzinho deve estar todo ferrado com as loucuras que o Barba apronta com ele. O que se pode fazer? O cara vive intensamente. Eu, por outro lado, não passo de um pamonha.

Destranquei a porta e logo que ela abril Felipe saiu correndo pra dentro, imaginei o quão cansado das aventuras de hoje ele deveria estar, correu pra geladeira e pegou um pedaço enorme de chocolate que estava lá esquecido. Pensei em repreende-lo por comer doces àquela hora, mas não o fiz, só desta fez não faria mal algum.

Comecei a dar uma organizada na casa, quando fui procurar o Felipe para organizar os brinquedos da sala o encontrei jogado na minha cama dormindo ainda com o chocolate lhe lambuzando as mãozinhas. O cobri e voltei aos meus afazeres domésticos.

Pensei em abandonar toda aquela loucura, aqueles homens de capuz e o episódio todo da biblioteca, não era nenhum agente secreto para ficar resolvendo mistérios, mas era um pai que precisava tomar conta de seu filho pequeno. Decidi que no dia seguinte devolveria o livro à biblioteca e diria que na correria o levei por engano e se acaso aqueles homens aparecessem novamente eu chamaria a polícia. Era o mais sensato a se fazer.

Estava perdido em meus pensamentos quando ouvi uma batida na porta, dei um pulo do susto que levei, não estava esperando ninguém, provavelmente o Barba havia esquecido algo e voltou para dizer.

Abri a porta calmamente, mas não foi o Barba que vi, na verdade era uma figura completamente diferente, uma moça loira, não mais que quarenta anos, trajando um vestido fino vermelho, parecia uma celebridade. O único pensamento que me passava pela cabeça era o que um ser tão deslumbrante fazia à minha porta no subúrbio do mundo. Quase não consegui dizer nada.

-Senhor Boulevard? -Ela perguntou com um sotaque russo-.

Balancei a cabeça como que para desfazer minha cara de bocó.

-Eu mesmo, pois não?

Ela me entregou um envelope igualmente vermelho com meu nome escrito em letra cursiva.

-Compareça neste endereço hoje ás 20:00 horas.

Não entendi porcaria nenhuma, percebi naquele momento que de uns dias para ali eu não entendia nada de porcaria nenhuma. Tentei parecer educado.

-Perdão Senhorita, do que se trata?

Ela não tinha expressão alguma.

-Posso lhe dizer que não se trata de um convite.

Fiquei atônito e com um pouco de raiva também, eu agora seria forçado a ir a lugares.

Abri a boca para protestar, mas ela não permaneceu para me escutar, virou as costas e andou até um enorme carro preto que estava parado em meu portão, sentou no banco de trás e saiu sem nem se quer olhar novamente para mim.

Pronto! Pensei. Mais essa agora! Eu já tinha decido não entrar nessa loucura.

Passei a tarde tentando ignorar aquele envelope maldito, mas eu sofria de um mal incurável, a curiosidade.

Abri o envelope e dentro dele só havia um bilhete simples escrito à mão com um endereço. Naquele momento eu entendi o que me forçaria a ir até lá. Eu mesmo.

Liguei pro Barba e pedi pra ele cuidar do Felipe naquela noite. fucei o guarda roupas em busca do meu terno de casamento, me pareceu pela aparência da moça que eram pessoas poderosas com a qual iria lidar, então precisava me misturar. Ao retirar meu velho paletó empoeirado no cabide, meu coração apertou. "Que saudades Julia, meu amor. Se ao menos você estivesse aqui".

Afastei meus pensamentos tristonhos e me trajei a rigor.Escutei alguém bater à porta, era o Barba, finalmente.

Estava com um cigarro de seda na boca.

-Que porra é essa aí,Barba?

Ele soltou a fumaça e me respondeu com a voz rouca:

-Maconha.

-Eu sei que é maconha seu animal. Eu quero dizer.. cara tem uma criança aqui, você sabe né.

- Ou, eu sei ta. -Jogou o cigarro no chão e pisou em cima-. aí, pronto já joguei fora.

-ah, sim agora ta melhor mesmo. - Estava nervoso, passei a mão pela cabeça-. Deus, eu vou deixar o meu filho com um drogado!

- Cara não surta, relaxa, vai lá encontrar a loira gostosona.

-Eu não ... olha, só não deixa ele sair de casa ta? Ele se vira.

-Ta bom.

Eu não sabia que rumo aquilo estava tomando, peguei as chaves do carro do Barba emprestado e saí sem ter a mínima ideia do que me aguardava.


Dirigi uns vinte minutos pela rodovia, o endereço que a moça me deu era de uma zona rural, não sabia ao certo qual entrada lateral tomar, então parei no acostamento e peguei o bilhete novamente. No final da descrição do endereço estava descrito "Fazenda Escorpião". Dirigi mais uns quinhentos metros e encontrei a entrada com esse nome.

Parado ali na entrada de uma longa estrada de terra eu refleti se eu realmente estava fazendo uma boa escolha, e se me fizessem algum mal, como ficaria meu filho? Ele já não tinha mais a mãe e por conta de uma besteira perderia o pai também?

Pensei em dar meia volta e acabar com aquilo, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude alguém bateu no vidro da janela. Quase morri de susto, do lado de fora um homem alto, trajado de segurança, usando terno e aqueles comunicadores de ouvido, pedia para que abrisse a janela:

-Boa Noite senhor. Preciso dos seus documentos de identidade e bilhete de convocação.

Eu ainda estava me recuperando do susto, não sabia como lidar com aquilo, com as mãos tremulas e ansioso abri o porta-luvas e entreguei o que ele me pediu. Minha testa suava, eu estava realmente nervoso.

Ele deu uma olhada, falou alguma coisa no comunicador em uma língua que eu não consegui compreender e me devolveu a documentação.

-Siga em frente por mais cem metros, há uma vaga no estacionamento reservada para o senhor após o portão principal. Tenha uma boa noite.

Acenei com a cabeça para identificar que tinha entendido.

-Obrigado.

Era isso, a partir dali não tinha mais volta, se alguma coisa parecesse fugir do controle eu planejava sair de lá o mais rápido possível, dirigi mais um pouco a frente quando avistei um enorme portão branco perolado, era magnifico, digno da realeza.

Ao ultrapassar o portão havia uma vaga logo a frente, no meio de vários carrões de luxo com o meu sobrenome escrito em uma placa. Estacionei o golzinho, que parecia tímido e ofuscado em meio a tantas maquinas milionárias.

Subi uma pequena escadaria de mármore e parei frente a uma enorme porta branca. Toquei a campainha.

Segundo depois a porta se abriu, e lá estava novamente a minha frente aquela mulher deslumbrante, trajando um vestido de veludo preto, igualmente charmosa e fina.

-Por favor entre, estávamos te aguardando. Madame Nikole Ivanov, ao seu dispor.

Entrei meio desconfiado a casa mais parecia um palácio, escadarias enormes de mármore se elevavam em espiral até um segundo piso com pequenas salinhas como em um teatro.

Entramos em uma enorme sala redonda com várias cadeiras organizadas em um semicírculo, contei pelo menos umas vinte, mas sei que haviam mais. Sentados uma em cada cadeira estavam pessoas poderosas, vi alguns vereadores a até mesmo o prefeito em uma delas, o restante deveria ser empresários ou celebridades, não sabia dizer, só conseguia ver a riqueza e o poder em suas faces pomposas.

No meio deles havia apenas uma cadeira vazia, imaginei que seria a minha então tomei-a e me sentei. Ainda estava nervoso com aquela situação, minhas mãos me entregavam e eu batia os dedos no apoio ansiosamente.

Minutos após a minha chegada, Madame Ivanov, que havia se retirado, voltou a sala empurrando uma cadeira de rodas com um senhor muito idoso sentado nela. Colocou a cadeira o centro da sala, para que todos nós o víssemos. Apesar da idade avançada o senhor estava finamente trajado, e tossia em intervalos muito pequenos.

Ivanov parou ao seu lado e começou a discursar:

-Sejam bem-vindos a nossa trigésima sessão de sucessão. Como muitos de vocês já sabem, meu pai, Dom Dimitri Ivanov, está muito doente. Após a sua partida, eu, tomarei o seu lugar como suprema mestre da fraternidade brasileira.

Fiquei confuso e agitado, aquilo era o que? Algum tipo de seita? Estava perdido, mal sabia como me comportar. Ela continuou:

-No entanto, para tomar o meu lugar como governador geral da fraternidade, meu pai escolherá um de seus herdeiros. Eu já tenho o nome de cada um de seus filhos, e ele, junto aos supremos mestres de cada país fará a melhor escolha.

Minha cabeça rodava, governador geral? Nossos filhos? Eu não envolveria o Felipe nessa loucura, eu nem mesmo fazia parte daquilo tudo, não tinha a mínima ideia do porque havia sido levado até aquilo. Protestei.

-Perdão, Madame Ivanov, mas receio que meu filho não fará parte desta votação, eu nem mesmo faço parte disso.

Todos na sala voltaram suas atenções para mim. Me senti suar. A face da mulher era inexpressiva, não poderia dizer de forma alguma como ela sentiu diante da minha objeção. Só depois de alguns segundos me analisando ela exclamou:

-Não. O senhor certamente não, Senhor Boulevard. No entanto a Senhora Julia, era uma de nossas mestras. Você é o representante dela como esposo, devido a infortuna circunstância de sua ausência, nada mais.

Me senti amolecer, tontear, tamanho o meu choque. Julia? Não, não poderia ser. Como? A Julia fazia parte dessa bizarrice. Como eu nunca soube de nada? Porque ele envolveu nosso filho nisso? Eu estava com raiva, como a mulher que eu amava era membro de uma fraternidade louca e eu não sabia? Ivanov continuava a falar.

-Nesse momento faremos uma pausa de quinze minutos para a tomada de decisão dos supremos mestres. Aguardem, por favor.

Ivanov saiu da sala empurrando a cadeira de seu pai. Eu ainda sentado na cadeira, suava frio. Não conseguia processar aquilo, minhas mãos tremiam e ninguém ao meu redor parecia estar preocupado. Quinze minutos pareceram ser horas até que Nikole e o velho senhor retornaram:

-A decisão foi tomada.

Ela tinha um envelope vermelho em mãos. Eu só conseguia pensar. "Que não seja o meu filho, por favor, que não seja o meu filho".

Ela abriu o envelope e leu o cartão que estava dentro dele. Ela soltou um risinho irônico, pareceu sair involuntariamente, só então exclamou:

-Felipe de Alcântara Boulevard.

Meu mundo caiu, naquele momento, eu senti vontade de vomitar, mas não pude, estava paralisado. As pessoas ao redor sussurravam umas com as outras, incrédulas. Meu coração acelerava cada vez mais. Parecia que eu iria explodir. Escutei uma voz masculina vindo do outro lado da sala em tom alto. Era o prefeito.

-Governadora, isso é inconcebível! O garoto é uma criança!

Nikole deu com os ombros como quem diz que não há o que fazer. Pediu silencio a todos.

-Devido a esse atípico fato, declaro que o senhor Gregório será o Mentor de Felipe até que ele alcance a maior idade. Isso não indica a detenção do poder a ele, O cargo é de Felipe por direito, ele só responderá por ele até que o menino alcance a maior idade.

Os cochichos retornaram, os participantes pareciam não aceitar a decisão. Ouvi alguém gritar no meio deles.

-Isso é um absurdo!

Madame Ivanov levantou a voz.

-Absurdo ou não, é a decisão dos supremos. Esta sessão está encerrada! Há um coquetel na sala ao lado, aproveitem.

Ela saiu, soltando o ar de stress. Todos levantaram e se dirigiram para a sala indicada ainda cochichando indignados. Fui atrás de Ivanov.

-Madame Ivanov por favor espere! Nikole!

Ela se virou para mim, também não parecia muito satisfeita.

-Precisa de alguma coisa Senhor Boulevard?

Eu ainda estava muito nervoso, não sabia como começar.

-Olha, eu sei que eu não faço parte disso, a Julia nunca me disse nada sobre vocês, eu realmente não sei o que fazer.

Eu estava desesperado. Ela cerrou os olhos, parecia surpresa.

-Não? Interessante.

-Não, não, não, nada de interessante, olha você não entende, aqueles caras de capuz assustaram minha babá, eu não tenho ninguém, não sou esses ricaços aí, preciso trabalhar, não da.

Ela arregalou os olhos, pareceu assustada.

-O que você disse?

Fiquei confuso, o que eu disse que a assustou?

-Eu não sou rico?

-Não isso, idiota, os caras de capuz, o que você disse sobre os caras de capuz?

-Bom, eles ficam me observando em frente à minha casa, deixam bilhetes.

Ela pareceu ficar nervosa, passou a mão na testa tentando se recompor.

-Quatro caras de capuz, é isso?

Eu não estava entendendo, o que havia de errado.

-Sim, quatro deles, eles não são dos seus?

Ela se apoiou na parede, parecia apavorada, e eu me apavorava mais ainda vendo aquilo.

-Não, não são dos nossos. Isso é ruim, muito ruim. Já estão aqui.

Madame Ivanov me deixou sozinho na sala, saiu rápidamente batendo o salto alto no piso de mármore fazendo ecoar um som seco de trote pelo grande salão. Eu fiquei ali parado, confuso, nervoso e ávido por respostas. Levei as mãos à cabeça e dei aguns passos desnorteados pelo salão até decidir sair dali e ir para casa.

Cruzei o salão até a porta principal andando tão rápido que se alguém me observasse de longe poderia até mesmo dizer que eu estava correndo, entrei no carro e me sentei no banco do motorista sem saber ao certo ainda o que fazer, e foi ali, no silêncio e na solidão que tudo finalmente pesou.
Pensei naquelas pessoas, na votação, na minha esposa. Desferi socos desesperados contra o volante e me peguei chorando. Lembrei do meu filho, me recompus, limpei o rosto na manga do terno e girei a chave.

Não me lembro muito bem de como cheguei em casa, mas cheguei inteiro, estacionei o carro e olhei para a casa. Dela podia se ver apenas uma janela iluminada, era a luz da sala de estar. Entrei ainda amargurado, deixei as chaves na mesa da cozinha e fui até a sala. A cena que encontrei me fez dar o primeiro sorriso do dia, Barba e Felipinho estavam apagados, babando no sofá abraçados, ambos fantasiados de pirata com objetos improvisados. Aquilo aqueceu meu coração. Apesar de toda a loucura eu ainda tinha pessoas que me amavam acima de tudo.

Apaguei a luz da sala e deixei os dois dormindo lá, do jeitinho que estavam, não me atreveria a acorda-los. Entrei no quarto e me despi do meu traje de gala. Estava quase me deitando quando observei o livro que roubei da biblioteca, abandonado no criado mudo. Me peguei pensando no porquê diabos eu tinha me interessado por aquele livro tão aleatório e sem sentido.

Fui até ele e o encarei por um tempo, enquanto minha mente vagava buscando uma explicação, me lembrei da Julia, viva e linda. Amava ver a maneira como ele erguia seus cachos escuros em um coque para ler livros malucos para o nosso pequeno bebê.

Enquanto me deliciava em minhas memórias, por um instante pareci me recordar da minha esposa carregando um livro muito parecido com aquele que eu agora estava segurando, forcei a memória por alguns instantes até me dar conta de que com toda a certeza era o mesmo livro.

Folheei o livro desesperadamente tentando encontrar qualquer coisa fora do comum. depois de muito tempo e sem sucesso, esbravegei e soquei-o contra a madeira do criado mudo. O barulho que aquilo fez fi estranho, oco. Peguei a rapidamente o exemplar de volta e analisei com todo o cuidado a capa grossa que o revestia, até que percebi um relevo quase imperceptível que surgia na contra capa. Com um pedaço de clip de papel consegui desgrudar a parte em relevo da capa. Dentro do buraco, havia um fino medalhão prateado com um entalhe muito peculiar. Um circulo, uma estrela e quatro olhos sinistros. As palavras pularam da minha boca:
- Mas que merda, Julia!

Acordei energizado, tomei um banho rápido, peguei o celular e liguei para o Barba.

-Barba?

- Oi? Greg? Ta tão cedo cara, aconteceu alguma coisa?

- Eu tenho uma ideia, preciso da sua ajuda.

- Chego aí em dez minutos.



Deixei o Felipe com a Cristina, esposa do Barba, expliquei sobre o medalhão para ele. Tirei uma foto do objeto e imprimi o maior que pude. Colei na minha porta da frente, abri duas cervejas e sentamo-nos no sofá.

Barba me olhou com expectativa, algo em seus olhos indicava animação e adrenalina, características as quais eu invejava imensamente. Cansado do meu silencio ele questionou.

-E agora?

-Agora esperamos.

Dei uma golada na minha bebida e permaneci frígido. Estava decidido a obter todas as respostas ali.

O dia se desenrolou sem grandes emoções e a noite já quase caía enquanto eu e Barba permanecíamos jogados no sofá da sala, sem esperança alguma e assistindo um programa de culinária da tevê local.

Barba me dirigiu um olhar cansado e levantou para despedir-se, nesse exato momento ouvimos alguém bater à porta. Levantei de supetão e parei por um momento hesitante frente ao trinco, respirei fundo e abri.

Parado de frente para mim com uma postura invejável, completamente ereta e trajando uma farda muito bem alinhada, estava um homem de meia idade muito provavelmente militar. Sua expressão estava séria e seus duros olhos me encaravam com repreensão.

-Boa noite, Boulevard. O senhor tem a mais vaga noção da origem completamente sigilosa do símbolo que ostenta de forma tão vulgar em sua porta da frente?

O sangue me inundou os olhos, a petulância que me saltava à boca ignorava completamente a figura intimidadora daquele oficial.

-Na verdade, não tenho mesmo. Sou completamente leigo a respeito dessa coisa que vocês chamam de sigilosa e que por motivos que eu nem mesmo sei dizer acabou em minhas mãos civis. A imagem continuará aí até que essa merda toda me seja esclarecida.

Me arrependi de ter aberto a boca no pontual momento em que a fechei, mas já era tarde, tudo já havia sido dito e eu esperava qualquer que fosse a consequência agressiva que provavelmente sofreria.

Contradizendo todos os meus temores e instintos, o homem virou as costas e saiu, dirigiu-se à um carro preto e antigo que estava estacionado próximo ao meu portão. Quando pensei que havia sido deixado falando sozinho, a porta traseira do veículo se abriu, e de dentro dele surgiu o que julguei ser um homem muito robusto trajando uma roupa completamente preta e com o rosto coberto por um capuz.

Meu coração palpitou forte e a minha mente já estava a planejar um plano de fuga, eu queria correr, me esconder. A única frase que eu pude formar naquele momento e que saltaram dos meus lábios mais rápidos do que poderia pensar foi: "Fodeu! ".

Primeiro Rascunho Para Breve Resenha de Rebites Mínimos:

A poética de um certo "feminietszche" de Priscila Merizzio

"Dentro de mim mora um grito//

De noite, ele sai com suas garras, à caça//

de algo para amar." - Sylvia Plath

O livro "Minimoabismo" de PRISCILA MERIZZIO assombra pelos poemaços contundentes que ela, faca entredentes, por assim dizer-se, tira das "panacéias e infernos" de sua vernissages íntimas... De tanto olhar para o abismo... que o abismo se apequena (para os poetas) e vira maxipoemas. Bem isso. A alma na UTI faz bem pra arte. A loucura-lucidez de Priscila nos surpreende, pois ela eleva seus abismos ao aparato estético de uma portentosa linguagem dentro do nutricional da arte com uma "nietszchedez" fora de série e fora do comum, extraordinários. Periga ler. Abismos, rogai por nós. Eu, que além de adorar as loucas poetas russas, Anna Akhmatova e outras, também passando pela Hilda Hist e tendo um selvagem amor plathônico pela Sylvia Plath, quando caí no deguste do liquidificador de macadames da Priscila no deserto de si mesma, criei amarras, amargos, me reformatei e capitulei horrores. Que porra poeta de aço é essa que mergulha potencializada no curtume de todos os esquizofrêmitos e esquizocênicos da alma brucutu da espécie? Periga ler. Aliás, falando sério, Vininha de Moraes já dizia que o abismo é fundamental na expressão literária.

Todo mundo tem seus abismos. Alguns escrevivem e vivenciam dentro deles sem saber, ou camuflam em bebidas, drogas, sexismo, pós-graduações, consumos, igrejismos, ilhas de amarguras, pataquadas e mixórdias afins, outros, sacam, como se se ilhassem neles, e fazem artes - como libertação - em músicas, poemas, telas, letras de blues, suicídios (cortam os pulsos com poesia?) como na existência da poesia aterradora de Priscila. Eis os mínimos abismos de Priscila que, reconheçamos, além de sua boniteza peculiar, também enlua a lírica abismal com arames dela em buscas, prismas e atiços de carne viva. Sorte nossa. Deixa sangrar. A perigosa poesia dela vem perigritante pelos flancos, e quando se vê, cara pálida, enaltece o oficio de criar, que não é mais do mínimo, mas, muito mais do máximo em estupor, ainda bem trufada groselha preta de sangue cênico e lágrimas de cimento com glitter. Poesia de alto nível, meio mantras de sofrências a palo seco ou um nirvana a la bukowski. O buraco é mais embaixo, baby.

Vejam-se, "lejam-se" (alejem-se):

Emergências

seus olhos de obus lançam-me ao abismo

engulo um puma de marzipan

perverto Barbies zarolhas

no aquário, o casal de bettas

tenta aniquilar-se pela

parede de vidro que os separa

o relógio do computador exibe: Retorno de Saturno

- 29 anos arrastando o caixão do pai

Complexo de Electra em gengivas cafajestes

sequência de frames conduzem

o protagonista-suicida

ao Cliffs of Moher, na Irlanda

Vale dos Suicidas de leprechauns

fêmeas de lagartos da família Teiidae

trepam com os próprios cromossomos

balcões de óperas contêm vidas com a duração

do espirro de uma estrela amorfa

- première de presuntos

lutar por independência passando

querosene no chão dos IMLs

alquimia extraída de silêncio e dor

a solidão eriça meus pelos

............................................

Sacou ou quer que eu resenhe?

Um poema testamento existencial, enjambrado com transcortantes facas/feridas abertas e diluídas em arte, com uma Electra manca, mas ainda assim (e por isso mesmo) de uma densidade que emana talento, leitura, dom, enfrentamentos, perguntações, desabandonos, desespelhos - loucura - vá lá, o que quer que seja que ilumine essas maravilhosas loucas mulheres que ardem no inferno da TPM desse mondo canne machista, e ainda assim regurgitam, purgam, geram, esmerilham, atacam artes de si afloradas, sacam as armas, e nos dão seus afetos que se encerram em nosso peito dito varonil. E depois, disse Manoel de Barros, que salpicou de poemas nosso chão: "Aquele que não morou nunca em seus próprios abismos//Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas//Não foi marcado. Não será exposto// Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema".

Priscila Merizzio nasceu em Curitiba, publica em revistas, sites, jornais e antologias literárias desde 2012. Este é seu livro de estreia e foi semifinalista do Prêmio Oceanos Itaú Cultural 2015. Poemas urbanos, pós-modernos, humanus, enrodilhados de estrofes que saltam aos olhos e revelam não o que se diz abismo, mas o que se apresenta revelação, depois dos chorumes e decantações. A carne é música? Ai de ti, ardiduras de dálias negras! Per/vertida, loucamente solta os guindastes que se lhe afogam a alma, e dá nisso: poemas galopantes, alvoroços. Alvorrostos? Na voçoroca da vida, a poetona se salva pelos poemas escritos como alucilâminas em areias movediças de si mesma. Ah essas potentes mulheres armadinhas, e suas arapucas de sinais de pânico, sinais de trâmite, de trânsito, em poesia afinada com rupturas. Mulher quando se pinta para escrever, quer mover mundos e fungos, ícaros e ácaros.

Leiam-na, e se sintam habitados. Ou pelo menos ainda e assim por isso mesmo, se sintam. O mundo é um inferno, mas ainda plantamos facas cegas nas palavras escritas a ferro e fogo. Lendo os abismos da Priscila, habitei-os. E fui salgado pelas palavras.

Salgue-se quem for ler.

-0-

Silas Corrêa Leite

Poeta, ficcionista, blogueiro premiado

Autor entre outros de GUTE GUTE, BARRIGA EXPERIMENTAL DE REPERTÓRIO, Editora Autografia, 2016, RJ

E-mail: poesilas@terra.com.br

Era uma vez um navio...
Que por seu dono foi construído com muito carinho e chamado de werther. Por medo de perdê-lo e por amá-lo de mais ele não lhe apresentou ao mar. E assim se passam os 10 anos antes de sua primeira e única viagem ao mar.

O seu criador além de tudo temia que a salinidade do mar afetasse a pintura daquele cristal tão precioso, feito de aço e madeira, que guardava docemente com carinhos e cuidados infinitos no funde de sua bela casa; temia também que a tempestade o afundasse e que a ferrugem e o cupim o comecem. Por isso, resolveu manter-lo trancado qual ave na gaiola, qual peixe no aquário. Isso porque o navio representava muito para ele.

Construí-lo era como vencer uma batalha que nunca teve a oportunidade de ao menos ser derrotado. Mas o resultado dessa construção era entes de tudo, a reação de outras ações. Contudo com essa construção o seu maior propósito era se libertar das correntes da culpa, quebrar a escada da solidão, que principalmente na juventude tanto fez questão de subir e voltar ao passado a cada martelada e cada pincelada tirar das trevas as suas percas e os seus gritos não gritados, todo o medo de lutar por seus ideais e lançá-los numa era de luz.

Esse homem era de poucas vitorias na vida. Ainda assim possuía o que poucos possuíam: alma livre para sonhar. Mas a marcha desses sonhos e também de suas atitudes e de seus planos passavam primeiro por seu medo. E esse juiz oculto dificilmente acatava qualquer de suas decisões.

O navio ao seu modo também o amava, mas sentai lá no fundo íntimo de si, que esse amor não matava sua cede. Além das muitas outras coisas que ele não sabia, e uma morte era uma das; não sabia também que tão cedo partiria com ela virgem de sonhos e realizações. Coitado! - mas reconhecia um sentimento bem oposto ao que tinha pelo o homem, que ao invés de sustentar e alegrar e acalentar esvaziava-o do que nem mesmo tinha. Tudo isso só porque pensava naquilo que balançava para lá para cá.

Certos sentimentos amargavam, ainda mais, quando de sua cela estúpida (ESTÚPIDA PORQUE NÃO ERA ÇELA PARA CERTO TIPO DE PRISIONEIRO, MAS MESMO ASSIM VAZIA-O), de longe simplesmente via a leveza que os outros navios flutuavam sobre aquele tão longínquo e mais tarde agridoce rosto que sempre balançava para é para cá.
Werther, de algum modo, trazia em sua genética um imã que o puxa pra aquele imenso e liso resto que balançava pra lá e para cá. Contemplava-o então com seus olhos, que era uma imensa estrutura de aço e madeira, luzindo mil estrelas e outras mil agonias. Tudo isso o fazia sentisse-se como uma lua amarrada num porto impedida de subir ao céu.
Engolia toda a essa onde de sentimentos angustiosos, amarrado aos pés, que mais uma vez era toda a uma estrutura de aço e madeira, por longas e vultosas correntes - que mais pareciam ancoras lançadas, ao invés do mar, ao chão!

Não me ficou dito como, mas uma vez o werther teve a sua grande chance de conhece aquele rosto, que não muito tempo depois soube que se chamava mar; e que em outras palavras, os navios eram felizes. Só que aquelas correntes, antes presas aos seus pés, estavam finalmente soltas, mas agora ancoradas fatalmente em seu coração. Os motivos para isso pode ter sido vários como, por exemplo, medo e comodismo. Também Pode de ser levar em conta que talvez pensasse não era ser à hora de correr em direção a grande força que o puxava - como fazem tantos por ai. Ou ouviu quem viu frustrações próprias na sua possível realização. Também deve ter caído no conto dos que não foram 'ao encontro do seu grande mar', "por isso auto condenaram-se a lamentar e se arrependerem a vida toda; sem saberem que o destino e uma questão de escolha. Esses agora nem por isso, infelizmente, aprenderam e continuam ensinando agir errado quando o mar chamar um navio. Neles às dores que ardem como o sol não foi e nem são suficientes para evitar que continuem estéreis como pedras. E o que mais dor é saber que tiveram suas chances e a desperdiçaram-na, e agora vêem com a hipócrita ideologia que 'mais vale um pássaro na mão que dois voando'.
Não conquistaram o que perderam por puro medo ou falta de atitude. E por agirem assim não só perderam os dois pássaros que estavam voando, mas também o que estava em mãos. Pois agora, depois de passada a festa e restado só o silencio do salão vazio, depois que perderam suas grandes chances contemplar a alegria dos outros navios, naquele imenso mar, é grande tristeza que seus olhos não cansam, e nem se cansarão de ver. ''

Essas reflexões ao navio caíram como a mão e a luva porque pensar e sofrer e se magoar era o seu grande passa tempo - em quanto isso a pequena bateria de sua vida ai descarregando. Agora, a areia dos castelos dos meus sonhos é capaz de secar o sorriso deste infinito mar...!

Em todo era homem simples: colhia o que a vida dava e plantava o que não tinha. Não era dotado de inteligência genial, mas mesmo assim sabia que quem nunca andou de bicicleta nunca aprenderia; e que toda forma de felicidade, seja ela simples ou grande, era felicidade assim como todo pecado era é pecado.
Tinha alma pura, capaz de filtrar a beleza e leveza da vida até nos mais simples acontecimentos: desde o contemplar do ar pura de uma casa limpa, ao gesto cheio de simbolismo de tirar o palito e a gravata do pescoço. Enquanto ao medo - fruto de seu passado -, não o possuía de todo, mas o tinha nas suas mais variáveis formas. E para salientá-lo ainda mais trazia dentro de si uma gruta secreta, saturada de frustrações; e via o seu fim, sua explosão, o seu esvaziamento com construção do navio.
Formas variáveis do ditado '' como jogador de futebol você daria um grande medico'', por exemplo, não se aplicavam a ele. Isso porque quando não conseguia atuar com êxito, ou por medo, em uma área, simplesmente extraia toda sua força e dedicação para outra área. E assim se fortalecia a ideia da construção do navio. Ainda mais depois do casamento, quando soube que o grande sonho de sua esposa era uma viagem justamente de navio no verão com a família. Então qual melhor presente? Qual maior forma de mostrar o seu amor? Além do que queria presentear o maior presente que a da vida lhe trouxe, quem sabe ate de Deus - com maior presente que ele poderia lhe dar o dera.
Belo plano, grande presente de casamento, tudo feito, mas o medo seria o fator ''x'' na vida deste homem, a cena que não faria parte do espectáculo.

Acontece que sua esposa soube que o passeio com a família que tanto quisera seria com naquele navio que o marido passara anos construindo, e que ele saíra para o auto-mar no intuito de "testá-lo", pois havia já se passado 10 anos deste a conclusão da obra.

A noite era tempestuosa; então ela sem nenhuma sombra de duvida pegou uma embarcação a motor e saiu em sinal de emergência, pronta a ajudá-lo caso algo saísse errado. - como de alguma forma temia.
E foi o que fez...

Nesse momento algo de extraordinário aconteceu com o homem. Sentiu muito mais que medo da morte, quando que viu a representação dos seus sonhos flutuante naufragando...

Quando ela viu a letra A da palavra amor, que formava a frase: ''Com muito Amor e Carinho'' sendo engolida pela água, percebeu o naufrago. Então sem declamar frases poéticas, sem nenhum gesto heróico, mas sim num momento de muito pavor e tensão, lançou ao marido a bóia que espetacularmente estava ali no seu barco. Esse sem mais delongas alcançou-a...

''A perca, os amores não correspondidos ou não vividos, os planos que não deram certo se acumulam em nossas vidas porque não nos entregamos por completo a eles, sempre por um motivo ou outro arrancamos suas raízes ou se quer a plantamos; e não por causa deles.
Nós somos as ferramentas e tinta e tela e pintura da obra que fazemos de nossa vida. POR ISSO TODO DESENHO e todo propósito, por mais tosco que seja, tem de ser visto como a Vara do Monte Horebe. Porque a diferencia de um propósito para o outro é o quantos nós empenhamos para que seu fim seja plausível e eterno. ''

Porém, assim como há uma diferencia entre quem ler e quem decodificar palavras, há diferencia em quem ler um livro, por exemplo, e quem coloca em pratica suas ideias; e tudo isso aqui não passa de literatura.

''Nossos propósitos se lhes fossem dados a força de lutaram por si mesmo é que escolheriam os homens em ou até mesmo navios em que se realizariam!?'' - E se os fossem dados, de forma mágica esse poder; pensem se de alguma forma eles fossem palpáveis, visíveis, ou tomássemos uma pílula para tal acontecer, brotar no nosso córtex cerebral com 1001 formas possíveis para sua concretização?
Mas se isso acontecesse os homens bombas e terroristas em geral, com certeza, tomariam todas as pílulas possíveis por uma só ideia, para que em uma só explosão morresse todos os Palestinos e Israelenses e Americanos e toda a humanidade. Por outro haveria também tantos que tomariam as ' pílulas propositais' por não a violência e não a fome e não as armas nucleares e guerras e não as desigualdades.
Sendo assim conclui-se que, se houvessem realmente essas pílulas, o mundo enfim teria um fim tanto bom como mal. Afinal ''água "mole e pedra dura tanto batem até que fura."

''Só em pensar que o infinito é infinito, por mais que vivermos, nossa existência não passa de alguns segundos. E não há génios ou analfabetos e ricos ou pobres e brancos ou negros, entes de qualquer religião e ateis ou céticos; que seja geneticamente melhor um que o outro. Não hã nenhum ser humano, desta o mais arrogante ao mais simples, que não esteja sujeito ás leis da natureza, e a mesmo fim: a morte - mas não nos precipitemos com isso - nosso tempo de existência pode ser pequeno - o importante é
sermos capitalista da felicidade: conquistar o máximo de felicidade com o mínimo de frustrações possível.
Um exemplo bem sucedido disso é o Sistema capitalista; que quer sempre aumentar a obtenção de lucro e não as despesas.
Para o capitalismo tempo é dinheiro, e todo bom capitalista não deve perder tempo em suposições, nem chances de expandi ou começar seus negócios. Ainda, via da regra para começar uma empresa é preciso que se tenha, além de tudo, capital de giro.
Com um investimento inicial de, por exemplo, 100 mil reais a "empresa" compara a matéria prima, os meios e produção e pagará a mão de obra e produzira, por exemplo, 150 mil reais. obtendo, obviamente, um lucro de 50 mil reais. Completo o circulo é necessário começar tudo de novo.
Para os capitalistas da felicidade o processo de obtenção de 'lucro' (felicidade) também é o mesmo. É de extrema necessidade, porém, nem que seja, um pequeno 'capital de giro; que compra a matéria prima, os meios de produção e pagará a mão de obra... Que produz os bens de consumo... Que são vendidos e dão o lucro'. Completo o circulo é necessário começar tudo de novo.
Sobre tudo no amor - sua maior empresa mundial. Acontece que algumas dessas empresas 'fecham-se' por má administração (Traição no casamento, ignorância entre parentes ou amigos, violência, por exemplo) ao contrario das outras empresas capitalistas que compram sua matéria-prima, as capitalistas de felicidade fabricam sua matéria-prima.''

- Existe ainda um pequeno contraste de informações: para começá-las e preciso no mínimo um minúsculo capital de giro(sentimento), mas para que ele sobreviva ao sistema( as crises em geral, por exemplo.) é necessário a matéria-prima.

''Se por um lado se constrói uma grande empresa do amor com tão pouco, por, também se detrói uma grande empresa do amor por tão pouco. - basta acabar a matéria-prima. ''

Todas essas reflexões se passaram na cabeça do homem, em fleches de luz, enquanto segurava-se na bóia e era puxado ao barco.
Já no barco um pouco atómico, deu um leve suspiro e depois abraçou a esposa; e de súbito enxugou a solitária lágrima que rolou de sues olhos.
Ele só não imaginaria que o navio, ao seu modo, no mesmo momento também teve as mesmas reflexões.

Sua criação por mais cede que tivesse e mais atração e mais destinado que fosse ao mar, não consegui concluir o seu propósito - Porque ele mesmo o era!
O homem ao construí-lo deu-lhe alma quando colocou aquela frase: ''Com muito Amor e Carinho''.
Seu navio foi realmente um jovem werther ao contrario. Antes de tudo, 'morreu' não por sua ''amada'', mas quando a teve. Quantos jovens werthes vivem dentro de si?

Após iniciar licenciatura em Letras, senti certa dificuldade em continuar a escrever mais um de meus tantos poemas, ou crônicas, ou pensamentos. Até mesmo agora sinto-me repulsiva ao esclarecer minhas ideias amontoadas no caixote da memória. As deficiências do amor já não saem com tanta franqueza,o lápis ousa desapontar, quando não resolve sair correndo por entre minhas mãos. Como dizem, ‘’ você perdeu o fio da meada’’. Não estou sendo uma boa operária. Já não sei mais o que fazer com as linhas, na realidade, eu sempre sei. Mas a desordem é tamanha, que acabo me enroscando e tecendo um cobertor de verão ao invés demeias para o inverno. Quem será que criou as meias? Talvez na época a população não achara confortável andar só de sapatos largos e borrachudos. Prefiro a creditar que o motivo para a criação desse artefato aconchegante e misteriosamente curador de resfriados tenha sido em decorrência da arte e poder.Imagine, os barões mais respeitados da aristocracia, sentados na alta nobreza com suas meias cor de laranja lima que quase atingem os joelhos. Seria artefato real de respeito. As baronetes passeando com suas pequenas meias contrastantes com a pele, não querendo chamar a atenção da elite, pois as bordas de lã antecipariam a demonstração de sua superioridade. Poderia criar milhares de teses a respeito de minha vestimenta favorita sem nunca saber da real. Às vezes a verdade desmistifica os processos de criação, e ao invés de ir ao palanque com meus tons de tirania, chego apenas até a esquina com o novo modelito idade média que tampa o pescoço. E realmente eu prefiro ficar deitada com meus pés quentinhos, ao sair pra qualquer lugar, a próxima esquina parece estar na França, e como Rainha da Corte Imperial das Empresas Teceleiras de Lã de minha avó, permaneço enroscada de fios com meu título de anciã das meias furadas.

Considerações

Talvez tenha enfiado a vergonha num bolso roto
A humildade no bolso da camisa, talvez esteja morto
Esse abjecto desejo da beleza consensual os olhos do mundo
Numa circunferência perfeita em volta do meu egoísmo
Essa ignóbil inspiração em mim mar fecundo, profundo
Os amores, as flores, as paixões, tudo apenas sonho, lirismo!

Procuro na essência o divino, longe fora de mim
Em mim diabolicamente anuncio, apenas e só o fim
Não corro em casulo fechado na estepe
Olho e absorvo quem passa, e os que procuro
Nas cores da vida, nada cinzento ou crepe
Um quadro incompleto, sem moldura, imaturo!

Indago de mim se eu próprio tenho paixão
Se não fechei o olhar sem qualquer consideração
Grandes poemas desaparecem também nas letras
Essas que se tornaram consumíveis e pequenas
Que balbuciam amores, e outras tristes tretas
E longas tragédias e sofrimentos de uma morta Atenas!

Há objectos que me inspiram os dedos
A caneta não tem vida, eu conduzo-a
Considero que a palavra soprada ao papel
Não morre, nunca morre, apenas vive noutro olhar!

Alberto Cuddel
30/05/2017
10:05
***
S E L E T A



D

I



V E R S O S









Antonio Cabral Filho





Letras Taquarenses Edições

2014

*

NOTÍCIAS DE MIM


Nasci em 13 de agosto de 1953, no município de Frei Inocêncio - MG. Em 1964, após o golpe militar, fui para a escola, por decreto do generalíssimo Castelo Branco, aos onze anos de idade. Em 1968 concluí a quarta série, com média 7. Nessa época eu fazia teatro, na escola e na igreja, e, com a ajuda da única pessoa que eu considero Professora neste mundo, a Dona Adir, como eu ainda a chamo, montamos a peça O FILHO PRÓDIGO, com a intenção de realçar a auto-destruição em que se encontrava a juventude naquele momento.

Durante as férias escolares de junho de 1968, dei uma chegada ao Rio de Janeiro para fazer uns biscates e comprar roupa nova, mas ao chegar no Catumbi, meu primo Sadi levou-me para conhecer a cidade. Era 26 de junho, dia da PASSEATA DOS CEM MIL. Passeei na passeata.

Em junho de 1969, meu Tio paterno Sebastião Cabral, mestre de obras no Rio de Janeiro, foi buscar peão para suas obras e eu me alistei. Falei com ele da necessidade de eu sair da roça, escapar das garras do meu pai, deixar de ser mão-de-obra gratuita. Tinha quinze anos e era escravo do meu próprio pai.

Ele compreendeu e arrancou-me da casa paterna, não sem antes anunciar-me as agruras da cidade. Ao chegar em seu barraco, na Favela da Mineira, meu romantismo com a cidade grande foi pelo valão abaixo. Vi cair aos meus pés um menino fuzilado pela polícia, que segundo foi dito, era traficante. Durante muito tempo eu tive pesadelos por causa disso.

Morei na casa do meu querido tio até ir para o quartel. Matriculei-me na Escola Geny Gomes, no Rio Comprido e cursei o ginásio. Era um tempo turbulento, com muitos professores fazendo "inquéritos" com os alunos. Logo a seguir, entrei no Colégio Martin Luther King, fiz a sétima e a oitava séries e fui para o profissionalizante, no Curso Santa Rosa, Largo de São Francisco, em frente ao IFCS-UFRJ. Era 1974, fui promovido a cabo do exército, mas de olho no curso de sargento. Fiz o curso e passei, fiquei até 77 aguardando a promoção que não veio e pedi baixa; passei no vestibular e fui cursar direito na UFF. Abandonei por desilusão com a filosofia do direito após o quarto período; fui para comunicação social, mas a psicologia da notícia acabou comigo. Caí na vida e estou pegando touro à mão.


1 -


1 - ECCE HOMO - POESIA, Edições Curupira, 1997;
2 - DUELO DE SOMBRAS, POESIA, Edições Curupira, 1999;
3 - VER...SO CURTO&GROSSO - POEMAS PIADAS, Edições Letras Taquarenses, 2006;
4 - CINZA DOS OSSOS, POESIA, Edições Letras Taquarenses, 2008;
5 - MEUS HAICAIS PREFERIDOS, COLETÂNEA DE 20 AUTORES, Org Antonio Cabral Filho, Edições Letras Taquarenses, 2010
6 - TROVAS DE TORCEDOR, TEMA FUTEBOL, E-BOOK, 2010;
7 - TROVADOR DE FÉ, RELIGIÃO, E-BOOK, 2011;
8 - TROVAS DE AMIGO, HOMENAGENS, CRÍTICAS, IRONIAS, E-BOOK,2011;
9 - AUTOBIOGRAFIA EM TROVAS & VERSOS FAMILIARES, E-BOOK, 2012;
10 - CADERNO DE HAICAIS, E-BOOK, 2013.
11 - SELETA DI VERSOS 2014


2 - PARTICIPAÇÕES


1 - POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, ANE -
Associação Niteroiense de Escritores, 1992;
2 - POETAS 10ENGAVETADOS, Coletânea
, Org. Antonio Cabral Filho, Edição dos Autores, 1995;
3 - ANTOLOGIA POÉTICA VOL2, UFF/EDUFF 1996;
4 - INTERVALO, Ano II Nº10,
Edição Francisco Filardi, 2006;
5 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2007,
Org Ivone Vebber, 2007;
6 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2007,
Org Padre MossenPere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2007;
7 - CD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
8 - DVD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
9 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2009,
Org Ivone Vebber 2009;
10 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2010,
Org Padre Mossen Pere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2010;
11 - FANTASIAS COLETÂNEA,
Org Rozelia Scheifler Rasia et all,
Edição Alpas21/Ed Alternativa 2011;
12 - ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE,
oRG Araci Barreto, Edição Postal Clube, 2011;
13 - POETAS EN / CENA 6 - BELÔ POÉTICO,
Org Rogério Salgado e Virgilene Araújo, BELÔ POÉTICO 2012;
14 - VERSOS DE OUTONO ANTOLOGIA
Org Delmo Fonseca, Edição Confraria de Autores 2013;
15 - ANTOLOGIA 15 POSTAL CLUBE,
Org Araci Barreto, Edição Postal Clube 2013;
16 - ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS
Org Elenilson Nascimento, Editora Pimenta Malagueta, 2013;
17 - DIÁRIO DO ESCRITOR - Livro Agenda, Litteris Editora, 2013.

18 - APANHADOR DE SONHOS ANTOLOGIA - Editor Marcio M. do N. Sena - Beco dos Poetas 2014.


*

DEDICATÓRIA


A TODOS,

TANTOS,

QUE SABEM

A SUA IMPORTÂNCIA

NA MINHA VIDA.


***

ÍNDICE ( Lista de Poemas )



1 - Florão da América

2 - Poeta de Periferia

3 - Brecht Sob o Céu de Berlim

4 - Ladeira Saint Romain

5 - Me Disserem

6 - Lições de Tempo

7 - Solilóquio

8 - Cogitação

9 - Instinto Primitivo

10 - Política Anti - Literária

11 - Do Pobre Arlequim

12 - Lira dos Quinze Anos

13 - Cinza Wim Wenders

14 - Canção do Preto Inácio

15 - Canto a Ilu-ayê

16 - Delírios de prometeu

17 - Canção dos Guetos

18 - Tempo Fértil

19 - Lotação Esgotada

20 - Faluja

21 - Canções do Filho

22 - Rimbaudices

23 - Dezoito Brumário de Artur Rimbaud

24 - Deslumbramentos

25 - Neoliberal Postudo

26 - Poema Para Moacy Cirne

27 - Viver Sem Receita

28 - Shakespearíaco

29 - deuses do Gueto

30 - Cantiga Para Cassiano Nunes

31 - Quintana

32 - Quintana

33 - Quintana

34 - Quintana

31 - Ode ao Verso Livre

...

Apresentação



Mário de Andrade é uma fonte de inspiração à qual eu gosto muito de recorrer. Ele diz num determinado trecho do Prefácio Interessantíssimo que apresentação, prefácio, notas introdutórias, enfim, essas coisas de dar satisfações a que veio, são inúteis para quem nos despreza e desnecessárias para quem nos ama, ou algo assim.

Meu objetivo aqui não vai nessas direções. Não dou satisfações a quem despreza as diferenças nem preciso fazer preleções a quem as quer bem. Digo isto porque sempre marchei sozinho, sempre sem medo de aonde vai dar e no quê.

Minhas experiências com a escrita vêm desde a adolescência, quando da realização das festas juninas de 1967 em que meu pai pegou meu "Livro de Versos", apenas um caderno do MEC doado nas campanhas de alfabetização daquele período, e, acendendo o isqueiro do Vovó fumar, transformou-o numa tocha para pôr fogo na fogueira, não me lembro se de São João ou São Pedro, aos berros de " poesia é coisa de marica! " Lembro-me que no dia seguinte eu fui revirar as cinzas acreditando encontrar algum fragmento de poema que me ajudasse a reescrever alguma coisa. Inútil! Desde então trago comigo a noção de " estar só " naquilo que faço. Isso poderia ser um ponto de fraqueza para quase todos, mas aprendi a fazer disso a minha força: Não sei contar com ninguém, na hora do " pega-pra-capar ". Por isso, esta seleta de poemas eu a faço sem buscar apoio de ombros amigos, seja na escolha, seja na ordem dos poemas. E tudo que desejo registrar é que constitui-se de poemas bem divulgados, bem aceitos na nossa imprensa literária, a imprensa alternativa, hoje fortalecida pela internet, com seu mundo fantástico de sites, páginas e blogs.

Espero que quem os leia veja um pouco do meu trabalho, aqui representado por versos livres, sem nenhum poema minimalista, nem poemas-piadas, nem haicais, Nem trovas, nenhum soneto, sequer um poetrix. Apenas versos livres na sua expressão mais prosaica, mais solta, distante das formas fixas, modalidade na qual eu creio me mexer bem. Afinal, ser incluído em livros pela UFF - Universidade Federal Fluminense, ser editado em sites como o Jornal de Poesia, criado e dirigido pelo distinto Soares Feitosa, ou no Momento Litero Cultural, hoje tornado site pelo ilustríssimo Selmo Vasconcellos ou ainda figurar na ESCRITABLOG, do caríssimo Wladir Nader, não creio ser algo pouco significativo. E, com o devido respeito a quem gosta de tapinha nos ombros, eu não bajulei ninguém, não troquei favores, até porque não possuo nada trocável. Já cheguei a quinto lugar em diversos concursos, mas não me ressinto em injustiças e dou-me por satisfeito com os resultados até aqui. Mas de agora em diante, tudo muda.



***


FLORÃO DA AMÉRICA



O menino era pivete

E se chamava Joãozinho

Vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem deus e sem diabo pra atentar



Foi estuprado por um maníaco

E encontrado morto na Lapa

Dentro de um latão de lixo



Não foi homenageado

Com honrarias militares

Nem imortalizado

Num samba de carnaval



Morreu e está morto

Morto, bem morto mesmo

Morto até na memória



O menino que era pivete

E se chamava Joãozinho

Que vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem voz sem vez

E sem lugar na HISTÓRIA

*


POETA DE PERIFERIA



Nunca tirei um sarro

Nos bancos do Central Park

Nem aos pés da Estátua da Liberdade

Sequer algum dia

Imitei Hugh Grant

Trocando boquete

Com alguma Divine

Nos arredores de Los Angeles

Jamais mijei no Rio Hudson

Do vão central da Ponte do Brooklin

E nunca achei graça nenhuma

Em comer pipoca com bacon

No trem fantasma da Disney World

Tampouco nunca peguei um breack-fest

Em alguma lanchonete da Wall Street



Mas ninguém se assuste

Com o meu desdém debochado

Pelas coisas suntuosas

Desse mundo consumista

É que eu me sinto muito bem

Junto aos pés-de-cana

Dos butiquins pés sujos

Desses guetos suburbanos

Onde levo minha vida

De poeta proletário.

*


BRECHT SOB O CÉU DE BERLIM


Olhem para mim, vejam bem!

Eu estou aflito.

Não concebo ficar quieto

Diante da situação.

Se o tempo estiver bom,

Eu saio à rua a passear.

Se não estiver eu saio também.

Não dá pra ficar neutro.

Olhem para o tempo.

Como estão as nuvens?

Claras ou turvas?

Ou não há nuvens?

Chove e faz frio

Ou o calor é intenso?

Não importa!

Conforme a temperatura

Eu respondo à altura.

Não quero saber

Se são nuvens de tnt

Ou se neve suave de amanhecer.

Meus pés caminham...


*


LADEIRA SAINT ROMAIN



A Ladeira Saint Romain

Tem muita história a contar,

Mas a Ladeira Saint Romain

Não quer censura em sua história.



A Ladeira Saint Romain

Precisa de alguém que diga

Sua história com o Pasquim,

Mas que seja enquanto viva.



Pois a Ladeira Saint Romain

Não quer deixar sua história

Pra depois que ela morrer.



A Ladeira Saint Romain

Viu muita gente subir,

Mas não viu tanta gente descer.


*


ME DISSERAM



Eu menino me disseram

Que eu era HOMEM

Com todas as letras maiúsculas

Que eu teria uma mulher

Com a qual me casaria

E seríamos felizes para sempre



Porém eu descobri o AMOR e a LIBERDADE

E percebi que o amor é solteiro

E a liberdade não se casa com ninguém



Em seguida me disseram

Que todos tinham religião

E me venderam um deus

Que eu seguiria para sempre



Porém eu percebi

Que havia muitos templos

Tantas tendas onde comprar-se um deus

Que eu desisti

E fui tachado de ateu

Depois me disseram

Que todos tinham ideologia

E me venderam um partido

No qual eu ingressaria

E S P O N TA N E A M E N T E

E a ele serviria enquanto eu quisesse



Tornei-me então violento ativista

Mas constatei que todos tinham que ser iguais

E que o ser a si próprio era impossível



Até que um dia me avisaram

Que eu estava fora do partido

E que eu não era comunista



Desde então venho notando

Que todas as coisas têm um preço

E eu não posso comprar nada

Do que me querem vender

E ainda assim

o SHOW BUSSINESS

não quer deixar-me em paz

por onde quer que eu passo.



Como é possível

Numa mesma praça

De um lado um religioso

Fantasiado de cristo

Nos oferecendo a paz celestial

E do outro

Um comício eleitoral

Nos oferecendo um Strip-tease

Em troca de voto?

Agora restou-me a pecha:

Disseram que eu sou

ANARQUISTA.


*


LIÇÕES DE TEMPO



Houve um tempo

Não muito remoto

Em que me preocupei

Com a velhice

E até me programei

Pra fazê-la agradável,

Como lutei fiz planos

Formei vasta biblioteca

Pra passar o resto

Dos meus dias

Cercado de livros,

Planejei viagens

Pra conhecer a Ásia

A Europa a África

E da América

Visitar pelo menos

Machu Pichu.

Eu queria ser um

devorador de distâncias

guloso qual um marujo

pirata dos mares revoltos,

mas eu não sabia que o tempo passa

e que alguns copos de vinho

deixam a gente assim serelepe.

*


SOLILÓQUIO DE INVERNO



TUDO ANDA TURVO

Cigarras silentes

Arbustos estáticos

Há muito não noto

Formigas nervosas no seu ir e vir

Nem os grilos silvam mais


TUDO ANDA TURVO

Sapos aposentando pilões

Não sei mais dos agouros da côa

E o Bentivi não mais

Dedura ninguém

Os cães nem ladram mais

Nas noites frias

Não mais há bêbados

Cambaleando as calçadas

Rumo ao incerto caminho de casa


TUDO ANDA TURVO

Não mais se ouvem amigos

Falando alto na esquina

Contando histórias de amores furtivos

E mijando a saideira

Tomada agora há pouco


TUDO ANDA TURVO

E não basta dizer

Que tudo anda turvo

A manhã vem irrompendo

E Netuno acaba de soltar os ventos

E Vênus balança os cachos

Rindo-se de mim

Com seu sorriso de ninfa.


*


COGITAÇÃO


(Ao Poeta e Amigo Pedro Giusti)



Pense

Pense

&

Escreve

Se não puder sussurrar

Pense

Pense

&

Sussurre

Se não puder falar

Pense

Pense

&

Fale

Se não puder gritar.


*


INSTINTO PRIMITIVO



Foi assim

Sem mais

Nem menos

Me aproximei dela

E senti um odor diferente

Odor de terra molhada

Algo natural mesmo

Lhe cumprimentei

E senti todo meu corpo crispar-se

Ela notou e disse

Vem cá

E fomos de mãos dadas

Olhos nos olhos

Assim

Sem mais

nem menos

*

POLÍTICA ANTI - LITERÁRIA


O poeta ingênuo sai no pau com o crítico literário

Pra ver qual deles é capaz de regenerar

O poeta oportunista



Enquanto isso o poeta revolucionário

Panfleta nas favelas

O seu sonho visionário



E o poeta maior

O poeta menor

E o dito marginal

Fazem bolotinhas

Com meleca do nariz...


*


DO POBRRE ARLEQUIM





Nasci no sopé das montanhas

Lá onde terminam os bosques

E as florestas se adensam.

Bem cedo aprendi a brincar

Com os habitantes desse mundo

Onde reinam Sacis e Iaras.



Ainda menino fui pras cidades

Sem seio de mãe nem ombro de pai

Órfão de noite e de dia.



Segui sempre o sem-fim dos caminhos

E a poeira das estradas

Tingiu de vermelho os meus sonhos.

E o ronco do motor dos caminhões

É que ninou a soneca do menino

À sombra dos arbustos solidários.



Meu prato requentado e rápido

Eu soube sempre o seu sabor de sal

Temperado de relento e sol.



Na cidade sou um peixe fora d'água

E vez por outra ponho-me frente aos bares

Perscrutando por que essa gente bebe tanto.



O meu amor não sabe o pranto

Tão fartas comigo foram as mulheres francas

Em darem-se inteiras e detalhes tantos.



Não prometo ser algum dia um gentleman

Mas eu não mijo calçada a fora

Após uns chopes com steinhägen.


*


LIRA DOS QUIZE ANOS



Oh que alívio que eu tenho

Daqueles colegas de infância

Com seus mundos cor-de-rosa,

Heróis de história em quadrinho,

Coca-cola, chiclete, carmanguia,

Lencinhos perfumados, documentos,

Sem sombra de movimentos

Que os anos não trazem mais.



Como eram frios os versos

Profundamente românticos!

Mas contra os versos

Profundamente românticos

A alma dos versos meus

É francamente livre

E cospe na cara do eu-lírico

Que caça borboletas azuis.



Oh que alegrias que eu trago

Das minhas gazetas da infância,

Daquelas tardes jongueiras

À sombra dos oitiseiros

Entre o Largo da Carioca

E o tabuleiro da Baiana

Com tudo quanto é quitute,

Cuscuz, cocada, quindins

E os chamegos da mulata.



Oh que saudades que eu tenho

Da minha Avenida Central,

Avenida dos meus sonhos

Colhidos na Cinelândia

E comidos nos Arcos da Lapa

Por alguma linda Brigite

Com beijo gosto de menta

E seios de Marilyn Monroe.


Pobre do espírito pudico

Que nunca esbarrou com Cupido!

Jamais se esbaldou

Nas tabernas da Praça Mauá

Degustando cuba-libre

Com as nossas Bardots,

Nem trocou beijos calientes

Entre senha e contrassenha

Com alguma companheira

Aos cicios " pela revolução!"

Nas esquinas da Rio Branco.



Livre filho suburbano

Desfilava desafeto

Por meu boulevard sem Paris

Da minha Avenida Central,

Que só virou Rio Branco

Para agradar ditos-cujos,

E ria com meus olhos leigos

Da anarquia arquitetônica

Daquele casario sem eiras,

Que o Pereira "passo" extinguiu

Com um só "bota-baixo".


Naqueles tempos ruidosos

De ardente adolescência,

Papai montava a cavalo

E saía pra campear,

Mamãe brandia o chicote

E o leite fervia

No fogão a lenha,

Eu era pingente de trem

E ofice-boy da Light

E Che Guevara era bandeira

Nas barricadas de Paris.



Ai que saudades que eu tenho

Da Avenida Rio Branco

Como um palco a céu aberto

P'rum côro de cem mil vozes

Cantando Geraldo Vandré:

"Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


Mas "saudades" que eu sinto,

"Saudades" que me doem fundo mesmo

São da Avenida Rio Branco

Na Passeata dos Cem Mil

No auge dos meus quinze anos,

Daquela gente bronzeada

Mostrando tanto valor

Só pra mudar o Brasil,



Dos " bailes" que eu dei nos "ome"

Na Biblioteca Nacional

Com o saco de bola-de-gude,

Do Wladimir trepado no poste

Gritando "Abaixo a Ditadura!"

Alheio ao gás lacrimogênio,

Das balas com endereço certo

E o sangue correndo solto.....

................................................

São "saudades" que a palavra

Lhes recusa a assinatura,

Coisas muito duras para esquecer

Como diz o Rei Roberto,

Mas me fazem muito bem

Que os anos não tragam mais.



Por isso eu sigo cantando

"Caminhando" com Vandré:

" Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


*


CINZA WIM WENDERS


O céu turvo de Berlim

Lembra lona de circo velho,

Onde nossos avós nos levavam

Para vermos aquele palhaço

De há muito nosso conhecido.



Seus prédios cinzas,

De um cinza há muito conhecido,

Soltam o reboco feito animais

Que de tempos em tempos

Mudam de pele.



Suas árvores, em eterno outono,

Sem folhas pelo chão...

Suas cores, não sei como, jazem

Sob esse cinza perene

À espera da plena primavera...


*


CANÇÃO DO PRETO INÁCIO



Nasci nos caminhos de dentro,

Que ligam Minas Gerais à Bahia,

Ali pelas imediações do Suassuí,

Lugar de muita casa grande

E senzala mais ainda.



De início éramos todos lavradores,

Gente de lida que os senhores arrebanham

Com ajuda dos bate-paus,

Ora pegos em quilombos

Ora arrematados em leilões

Feitos pelos negreiros à beira dos cais.



Mas de tempos em tempos

Alguém saía de trouxa nas costas

Pendurada no pau de dois bicos,

Como fez o Preto Inácio

Que nunca mais deu sinal.


Quando fugia, dizia-se

Que fez poeira;

Quando saía por conta própria

Dizia-se que foi pra vida;

E, quando era posto pra fora,

Buchichava-se à boca miúda:

Foi vender puáia,

Que era como tratavam

esses pretos velhos

vendedores de raízes

nas feiras da cidade.



Entre uma e outra leva

Dessa gente que partia

Fui aprendendo com a vida

Lição por lição de partida

E assim que peguei tope

Aprontei meu pau de dois bicos

E fiz poeira,

Fui pra vida

Vender puaia.

*


CANTO A ILU-AYÊ



Negro é raiz da liberdade

Mais forte que qualquer outra

E faz nosso povo se unir

Hoje muito mais que outrora.

Porém, os chacais que o rondam

Ainda encontram lacaios

Contra o nosso porvir,

Pois quem nasceu para Judas

Não se cansa de trair.



Ilu-ayê tem o sorriso negro

Pra fortalecer meus irmãos

E regar a flor da resistência

Desde a grimpa dos morros

Até à vereda mais úmida

Em prontidão na tocaia

Para emboscar bate-estradas

E avisar aos capatazes

Que quem brinca com corda

acaba dependurado.


Ilu-ayê tem o abraço negro

Pra fortificar os quilombos

E multidões de Zumbis

Com suas bandeiras erguidas

Pra celebrar nosso Rei,

Que deu seu sangue por nós

E merece glória eterna.



Ao cismar sozinho relembro

Que todo instante da vida

É sempre vinte de novembro

Com a dignidade iluminada

E o espírito pleno de axé.



Pois nossa pele tem mais sol,

Nosso céu tem mais luar,

Nosso povo tem mais força

Quanto mais doar amor.



Não permita Deus que eu morra

Sem que ainda faça um poema

Digno da beleza negra,

Com maior engenho e arte,

Que exalte Rainha Dandara,

Zumbi e Solano Trindade

Com uma imensa quizomba

Para alegrar nossa raça

E cantar pra Ilu-ayê!

*


DELÍRIOS DE PROMETEU


Acossado por despautérios,

As Tróias do presente

E as Cartagos do futuro

Obrigam-me a transpor muros

Da epopéia de quimeras

E prever que qualquer dia

Serei mito de ficção.



Algo ímpar na literatura universal,

Maior que Sherazad,

Maior que Dom Quixote,

Mais forte que os Três Mosqueteiros,

Mais valente que Robin Hood,

Mais sortudo que Robinson Cruzoé

Com Segunda Feira e tudo.



Desses que viram objeto de estudo,

Mais que Joyce e Ezra Pound

E dão pesadelo em curiosos,

São temas de teses acadêmicas

E motivo de congressos mundiais

Com reunião de exegetas renomados,

Cada qual com seu aporte

Sobre o pobrezinho aqui.


E o maior frisson

É o momento culminante

Em que todos vão à práxis

Acomodados em mesa redonda

Para provarem seus enfoques,

Quando enfim sou dissecado

Letrinha por letrinha

Até à exaustão,



Inclusive com preleção

De Leonardo da Vinci

E sua aula de anatomia.



Depois, todos partem felizes,

Com ares de dever cumprido,

Enquanto eu pairo sobre tudo

Alheio ao suor derramado,

À adrenalina gasta

E ao fosfato queimado,

Todo senhor de mim,

Dono do meu ser ficcional

Infinitamente inexaurível,

Como bem apraz à obra prima!


*


CANÇÃO DOS GUETOS





YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos de Roma

Hanói, Formosa

Pequi, ou de la Habana Vieja

Y sus "desintegrados"



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos londrinos

Bem à margem do Buckingham

Guetos germânicos

De Bonn ou Berlim

Divididos em "Òssis e Véssis"

Cada um velando

em seu umbigo

o ovo da serpente

MADE IN GERMANY



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.


Guetos da Bolívia

E seus índios "cocaleros"

Da tribo Quéchua,

Guetos do Peru

E seus guerrilheiros

Sem sendeiros luminosos

Para TUPAC AMARU,

Guetos da Venezuela

E seus caracazos bolivarianos



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos dos guetos amarelos

Brasilverdesifilíticos

Gonorrêicos que não lhes quero

Assim do Oiapoque ao Chuí

Das palafitas ribeirinhas de Manaus

Cheias de prostitutazinhas meninas

Vendida por seus próprios pais

A caftens made in europe

Às margens das trans...amaz

Ônicas de meninos e meninas ao relento

Nas praças da república

De suas megacapitais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD


Guetos de São Paulo

Dos casarios miseráveis

De tábua e zinco

Das zonas norte

Desnorteadas pro

Sul leste oeste

Que apesar dos pontos cardeais

Que os atritam

Nenhum cardeal

Nos deixam em paz

Nos seus sermões dominicais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos do Rio de Janeiro

De tontas maravilhas

De janeiro a janeiro

E cariocas brejeiras

De cartão postal

De Chapéu Mangueira

E Pavão Pavãozinho

Vidigais e Vigários Gerais

Onde a palavra FAVELA

Fala a língua do "bigode grosso"

Pela graça da mordaça

De tantos COMANDOS



Há que buscar uma linha

Mesmo que seja vermelha

Mesmo que seja amarela

Ainda que seja anêmica

Para juntar tantas

Rocinhas Morros das Viúvas

Ladeiras dos Adeuses

Baixadas e Jardins Catarinas

Contra tantos opressores.





Pero hermanos

Hablar no me basta

Como no me basta

Llorar los hermanos caídos

Pois para poner fin

A tanto apartheyd







HAY QUE ENSUCIARSE LAS MANOS!


*


TEMPO FÉRTIL


Não sei se Homero foi à guerra,

Mas exaltou seus heróis

Que foram fazer fortuna.



Camões eu sei que foi

E cantou em verso e pólvora

Os crimes que cometeu.



Tem bardos compondo hinos

Por honra de seus irmãos

Mortos em alheio chão.



Não sei o que sentiriam

Se tivessem os seus lares

Invadidos por estranhos,



Mas eu digo a todos eles:

Não hastearei minha bandeira

Sobre os restos de ninguém,

Como apraz aos cães de guerra;



Não entoarei cantos de gesta

Pelas desgraças alheias,

Tão caras aos pais da usura;

Não gastarei tinta e papel

Só para matar o tempo

Ou agradar ociosos

Com coisas tão caras.



Nunca joguei porrinha

Valendo escalpe de índio

Nem minas de Vila Rica.



LOTAÇÃO ESGOTADA



Brasil cheio

De raças

De classes

De castas



Brasil rico

De prosas

De histórias

De causos



Brasil farto

De seitas

De facções

De máfias



Até o dia em que

Veremos ruir

Isso tudo

E o caos

Entorne a taça

E eu possa rir

O riso largado

Da sangria desatada

Com o potro solto no pasto

E o nosso povo altivo

Com a bandeira na mão.



FALUJA



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não sou feliz,

E vou sem Manoel Bandeira,

Pois na hora da partida

Virou porquinho da Índia.



Vou-me embora pra Faluja

E já disse porque vou.

Faluja é uma terra livre

Onde o povo não tem rei.



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não volto mais.

Faluja é terra de luz

Onde o povo faz a lei.



Vou-me embora pra Faluja,

Viver lá é uma aventura

De tal modo comovente

Que churrasco de yankee

É servido ainda quente.


Vou-me embora pra Faluja,

Vou juntar-me àquela gente

E fazer que um mundo surja

Sem choro e ranger de dente.


Vou-me embora pra Faluja,

E encerrar a ladainha

Senão eu não chego lá

Nem saio desta terrinha...



Vou-me embora pra Faluja,

Lá sou inimigo do rei

E minha maior diversão

É combater a opressão.


*


CANÇÕES DO FILHO

Parte I

Na minha genealogia

Tem um Pataxó destribalizado

E uma negra Haussa evadida,

Restolhos das "Entradas

E Bandeiras," por parte de mãe.



Ambos foram caçados

Por um bandeirante

E seus bate-paus,

Por parte de pai.



Nesta terra de Caminha

Que em se plantando tudo dá,

A escravidão sexual

Vira miscigenação

E ganha status em canção

De muito filho bastardo.



Muitos se ufanam

De serem mestiços

E até receitam isso

Com certidões de mulatos.



Mas eu não tenho dúvida,

Não cometo suicídio de raça

Nem viro escravo de sangue.



Parte II



Chamam-te AMÉRICA

E após tomarem teu corpo

E devassá-lo milhões de loucos,

Esquartejaram-no com mil cavalos

E aonde acharam manchas do teu sangue

Batizaram com nomes eurobestiais,



Mas pra conferirem ares santos

Providenciaram as bênçãos

De certa santa madre igreja

E em cada parte violada

Cravaram aí uma espada

Simbolizando a nova fé,

À qual chamaram cruz de cristo.



Santa Mãe Terra,

Tão divina, tão ultrajada,

Teu nome são teus filhos

E tu vives em todos nós

Desde a mais antiga Era

Ao mais distante Futuro.

Como eu vivo em meus avós

E o rio na montanha,

Somos todos um só,

Santa Mãe Terra.


*


Menos teus inimigos,

Que perecerão ao relento

Sem chão sob seus pés

Nem céu sobre seus rostos,

Como os ratos, sem berço

De Mãe nem Pátria.


Parte III


Este é um país de poetas

Em sua maioria crioulos,

Que derramam no papel

Transatlânticas nostalgias

Pelas pátrias de seus pais.



Desde Bento Teixeira e Manoel Botelho

Que lançam seus tentáculos

Aos confins de suas itálias,

Ricas em leonardos dantes;

Às suas lisboas fartas

De lusidíacas iguarias das índias

E bacalhau norueguês;

Às suas Londres opacas

Túmidas de piratas da rainha;

D'espanhas e franças e holandas

De germânicas reminiscências.



Felizmente não vivo aqui

Com o umbigo além-mar,

Não sofro a mácula

Do pecado original,

Não trago em meus ombros

Pesadas montanhas

De negros e índios

Dizimados por meus pais,

Para que eu vivesse em paz.



Não canto, não toco nem faço coro

Com o coral da escravidão,

Pois eu estou em minha terra,

Terra natal eterna

Dos meus antepassados longínquos,

Dela broto e a ela volto

E me deito sem colchão

E me desfaço em seu corpo de mãe.



Parte IV



Minha terra não é "minha"

Nem é de quem diz ser dono,

Mas tem impostor assim, oh,

Que a chamam de minha terra.

Muitos dizem minha terra,

Mas com os pés em chão alheio;

Só que esses "terratenientes"

Passam o dia no formol

Pra vampirá-la de noite

Com seus versinhos biáfricos

Por uma caneca de vinho.



Mas o fazem ser saber

Que só vinho não dá verve

Pra suas poéticas esquálidas

Tirá-los de cena à francesa,

Como se fossem nababos.

E tornam careta o Brasil,

Chinfrinizam os seus milagres

E deixam os marajás tupiniquins

Morrerem comendo acarajé

Na aba do sabiá.

*


RIMBAUDICES





Não confie em ninguém

Que xingue deus e o diabo,

E, como um litle bad boy,

Queira estuprar os anjos,

Mesmo que perca a perna esquerda

E a direita perca também

E ainda morra em Marselha,

Bem à porta do oriente

Carcomido pelo câncer.





Não acredite em ninguém

Com mais de trinta dinheiros,

Com mais de trinta invernos,

Que acredite em demônios,

Que fuja para a Abissínia

E contrabandeie armas

E ainda trafique escravos

E em sua hora final

Chame por seu Djami.*¹

Não confie em ninguém

Que levou tiro de Verlaine

E o colocou atrás das grades

E ainda fugiu para Roche

E, após uma Une Saisson em Enfern,

Mandou a Paul Demany

A Lettre Du Voyant,

Escreveu Iluminations

Sem dúvida bem além

Dos Paradises artificiales

De Monsieur Baudelaire,

Regado a muito haschisch.



Não confie em ninguém

Que nasceu gênio precoce,

Seja filho de gendarme,

Freqüente o CABARET VERT

E zombe de pátria e família

E vague noite a dentro no váquo

Como o Spleen de Paris.

Não confie em ninguém

Que sofra de rimbaudite

E viva pagando mico

Em algum coufeé maudit.



- *1 : Djami é o nome do mordomo de Rimbaud.

*


DEZOITO BRUMÁRIO DE ARHUR RIMBAUD



Tenho apenas vinte anos

A mais que Artur Rimbaud

E nem um segundo no inferno.



Nunca provei a taça da amargura

Nem quebrei a cara na Abissínia

Ou cheguei em casa perneta.



Jamais reneguei meus pais

Nem minha querida Jampruca

Por suas vidas pacatas.



E o fato de mochilar por aí

Não tornou-me um andarilho

Nem me fará urbanóide.



Sair da casa paterna, pra mim,

É o mesmo que ir ao trabalho

Ou à horta colher alfaces.



Não quero fazer do mundo

Um monte das minhas cinzas,

Porque me odeio e não tenho causa.

Não sofro de " cazuzismo ",

Acusando a burguesia

Por falta de ideologia.

*

DESLUMBRAMENTO



Meu primeiro amor

Foi como beijo roubado:

Sem liberdade de escolha.

Meu primeiro amor

Começou com a chupeta

Quando Ritinha ameaçou-me

"Só te namolo se laigá pepeta!"

Meu primeiro amor

Trocou bala boca-a boca

Na Igreja de Frei Inocêncio

Bem no meio da missa

E o Padre Daniel

Mandou-me rezar três Pai-Nossos

E eu rezei até mais

Para ficar bem perdoado

O pecadinho tão doce.

Meu primeiro amor

Bateu muita gazeta

Na pracinha da igreja

Só pra comer cocada

E dar beijinhos na boca

Das filhinhas-de-papai...

Meu primeiro amor

Passou nas provas

De educação sexual

Com notas de louvor,

Mas se o Grupo Escolar falasse...

Meu primeiro amor

Chupou muito ingá

Na galhada dos ingaseiros

Sobre as margens do Suassuí

Com a Dasdô do Mané Cachorro.



Meu primeiro amor

Tinha gosto de pé-de-moleque

Devorado com a gula

Do menino assustado

Com o presente da namorada

Que levantou a saia de chita

E lhe disse " mete aqui!"



Meu primeiro amor

Ficou de coração na mão

Com o bicho cabeludo

Da Maria Serafina

Nuinha na minha cama

Pra comer minha inocência,

Apesar dos avisos da mamãe

De que ela era rapariga.


*


Meu primeiro amor

Era como filme de Speelberg:

O tempo todo de suspense

E no fim sobra surpresa.

Meu primeiro amor

Nunca encontrou seu fim

Porque a poeira vermelha

Das estradas mineiras

Nos cobriu na encruzilhada

Entre o passado e o futuro

E o destino nos levou

Para distintos presentes.

*


NEOLIBERAL POSTUDO



Após a abertura

Lenta e gradual

Do General Geisel

Nos idos de 74,

Aceitei a receita

Do General Figueiredo

E empanturrei-me de democracia

Com eleição após eleição

E overdose de votos hoje

Pra curar o porre de ontem,

Nem sempre de votos.



Desde então aposentei

Meus apetrechos de guerrilha

Contra a ditadura militar,

Entre eles meu quixute

Mais veloz que bala de INA

E os arapongas do SNI

Com seus óculos Ray Ban

E cabelos James Dean,

Meus comprimidos de Redoxon

Contra gás lacrimogênio,

Minha lista de jornais

E ONGs de DH,


Minha coleção de calças jeans,

Meu Livro Vermelho de Mao Tsetung

E o trezoitão solidário

Que nunca "moscou" na hora

Quando fez-se necessário

Falar o idioma inimigo,

Além da inexorável certeza

De poder mudar o mundo

Nem que fosse a bala,



Mas a três décadas disso tudo

Não sou mais assim não,

Já não sei quem são meus inimigos,

Já não vislumbro as classes

Em que se antagonizam as pessoas

No seio da sociedade,



Não identifico mais ninguém

Como direita ou esquerda

E qualquer discurso ideologizado

Soa-me como algo anacrônico...



Enfim, tornei-me um reles

Neoliberal pós-tudo,

Sem os mínimos valores humanos

De respeito aos oprimidos

E à luta contra a opressão,

De solidariedade militante

Às minorias sociais

E aos despossuídos em geral.

Hoje, se o Tio Sam me pedisse,

Eu venderia minha própria mãe

E entregaria a alma ao diabo

Sem nenhum motivo aparente,

Porque tornei-me um neoliberal pós-tudo.


*


POEMA PARA MOACY CIRNE



Faz tanto tempo

Que não encontro alguém

Que há muito

Eu não encontrava

Alguém que me deixe assim

Alvissareiro

Como as flores e o sol

Às nove da manhã

Com o peito cheio de alegria

Pronto a dar vida às novas emoções,

Como aconteceu com o Cirne

E sua fada amante

Certo dia em Ceridó,

Que se sentiram crianças no parque

Com as façanhas que viveram

Tamanha a felicidade da dupla

Algo assim tão radiante

Que faz mister compartilhar

Fazer com que irradie

Em todo ambiente

Onde haja corações

Que buscam alguém

Digno de ser encontrado

Pelo puro prazer um do outro,

Como o vinho e os lábios

Da mulher amada.


*


VIVER SEM RECEITA


E assim foram-se vinte anos,

Vinte anos de namoro,

Após longas operações secretas

Nos hotéis da Frei Caneca

E seus corredores sinistros,

De arrepiar Hichtcock,

Com tantas fugas fantásticas

Pela Avenida Mem de Sá,

De congelar Mon Sieur Poirot

Depois de longas estadas

Nos cortiços da Gomes Freire

Durante tantos carnavais

Regados a frango assado

E muito vinho de buteco,

Muita lasanha com Black Prince

Nos bares da Cinelândia,

Filmes pornôs no Cine Íris

Só pra criar o clima,


*


Depois de muitos natais

Curtidos a dois nos quartinhos de favela

Regados a risoto de frango e Malzebeer,

Depois de muita briga besta,

Muita salada completa,

Muita "volta" recíproca,

Muita paz de beijo e abraço

Nos bancos da Cruz Vermelha,

Depois de Ana e de Edson,

Passaram-se vinte anos

Além dos cinco pregressos,

Almejo ainda mais vinte

Mas isto não é receita

Para mal sem cura...

*

SHAKESPEARÍACO



Ao tocar a sirene da fábrica

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezessete e trinta.



Às dezoito horas

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezoito e trinta

João soube pelo vigia

Que Maria fazia serão.



Às dezenove horas

João viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

E despedir-se do amante

Com um longo beijo na boca.

João perdeu a linha,

Bebeu a noite inteira,

Chegou em casa de manhã

E matou Maria

Com um tiro na cabeça,

Depois saiu dançando rua afora

Tocando Carinhoso

Em sua flauta de bambu

E nunca mais foi visto.


*


DEUSES DO GUETO


Na topografia do caos

Veias são avenidas

E ninguém viu

Cruzar esta via

Um calango de pedreira

Mais veloz que um tisio

Ou um guri de patins

Nas vielas da favela,

Que ostenta o status

De "aviãozinho da boca"

Mais querido no pedaço

E finda abatido em pleno vôo

Nos becos do mundaréu...

O "patrão" paga o enterro,

O jornal gera emprego,

A família sabe o troco.


*


CANTIGA PARA CASSIANO NUNES



Recebi poemas durante anos

Do Mestre Cassiano Nunes

E saía com eles pra rua,

Levava para os eventos

E lia para os amigos,

Nas rodas e recitais

E quando soube da sua morte

Fiquei desconsolado, e agora (?),

Pensei, mas certo de não ter resposta,

Segui de boca seca.

Senti por não fazer acervo

De tantos poemas que recebi,

Mas me desfiz deles após

Lê-los para o meu público

E publicá-los em meus fanzines.

E a falta que sinto agora

Seja dos poemas ou do poeta

É a satisfação que vai comigo

Pelos destinos que lhes dei

Enquanto eles se foram

Para outras vidas e outras formas.

Mas quando alguém perguntava

Após a leitura de um poema

Quem é Cassiano Nunes,

Eu respondia todo enrolado:

É um paulista de São Vicente,

foi a Brasília fazer carreira

E nunca mais saiu de lá.


*


QUATO POEMAS A MÁRIO QUINTANA


1 - PARAISO QUINTANA


Dizem os abduzidos

Que ao chegar no Paraíso,

Tão bestunta quanto sempre,

Mário Quintana estacou,

Pregou na nuvenzinha

Que lhe servia de tapete

E ficou abestalhado

Com tanta beleza,

Tanta alegria, tanta paz,

Que até esqueceu de sair do lugar,

Sem dar um Passo sequer

E que um anjo louro,

Louro louro muito louro,

Aterrissou a seu lado

Pegando-o pela mão,

E saíram voando, voando,

De início a meia altura

Para logo em seguida,

Seguros de vôos mais altos,

Estenderem as asas

E ganharem outros ventos...


*


Coisas de abduzidos...

E dizem que Mário Quintana

Pensou em perguntar ao anjo

Que parque era aquele,

Lá embaixo, bem ao centro

De todo aquele Paraíso,

Mas como fosse um anjo

Leitor de pensamentos,

Foi logo explicando

Que era o Parque Mário Quintana,

Onde crianças e poetas

Se exercitam nos versos

Bem aos olhos das musas,

Que as suas lhe aguardavam ansiosas

Para ouvirem os versos seus.


*


E ao notar insegurança

Nos olhos tímidos do poeta

Pensando em Bruna Lombardi,

O anjo se adiantou dizendo

Que ela enviara todas suas semelhantes

Enquanto se desvencilhava

De seus encantos terrenos.

Segundo os abduzidos,

Quintana vive cercado

De musas e discípulos,

Exercitando seus encantos

Lá nos palcos do Paraíso,

Bem alheios à realidade.

Mas

Quem

Diz

São os

Abduzidos!

*


2 - QUINTAN'ESSÊNCIAS


Não consigo imaginar

Quintana chorando,

Cortando soluços sentidos

A não ser lágrimas

De extrema alegria

Para lavarem as faces

Queimadas pelo arco-íris,

Pois a palavra Quintana

Sugere criança brincando,

Alheia a tudo,

Imune a qualquer risco

Longe desta vida,



De direitos e deveres,

De ordens e obediências,

Reduzidas a números e papéis,

Aliás, como Quintana sempre quis.


*


3 - GRAVATA DE QUINTANA


Quintana empaca meu verso,

Mas eu puxo-lhe a gravata

E ele ri seu risinho besta

Cheio de desdém

Pelas coisas deste mundo,

E sem largar a desgraça do cigarro.



Intimo-o a não rir de mim,

Mas sem dar-me nenhuma atenção

Mantem-se concentrado em seu vinho

Sem descuidar com o olhar

Atento para surpresas

Que eu possa aprontar-lhe,

Até que desata a rir mais ainda

E desfaz-se o nosso entrevero,

Como se defraudasse

A bandeira colorida

Dos seus sonhos infantis.


*


Mas novamente puxo-lhe a gravata

E não mais encontro Quintana,

Só o vaquo da mesa vazia,

O salão da adega em silencia

E o jornal à minha frente

Com a notícia repentina...



Quintana decola

Do aeroporto moinho de ventos

Rumo ao seu mundo de estrelas,

Onde pretende esquecer de tudo

E passar o resto da eternidade

Puxando perna de grilo

E beijando brunas lombardes.





*

4 - QUINTANA







Mário Quintana

Partiu

De Porto Alegre

Para Porto Feliz

E foi-se

Sem dizer adeus

Rumo ao Reino de Deus

Esquecido de nós

De vez

Sem mandar notícias

Jamais

Ou seria um deus-nos-acuda

Com tantas Babis, Babys

E Brunas Lombardes

Em êxtase.



*

ODE AO VERSO LIVRE







No princípio a poesia era uma canção regada a vinho

Ao som de harpas tocadas com carinhos e beijos de mulher amada

À sombra de uma palmeira frondosa

Onde o poeta-filósofo se deleitava com a vida sem fronteiras

E ela brincava solta pelos bosques entre duendes

Indiferente ao tempo acariciando a sua nudez

Coberta de inocência,



Depois, veio a escrita e de palavra em palavra

Foi vergando-a sob o rigor do verso

Moldando-a à disciplina da métrica

E aprisionando-a à liberdade

Que lhe permite esta margem de papel,



E agora ela atravessa as grades das gramáticas

Sobrevoa o muro das linguagens

E vem sondar-me

No ondular dos cabelos desta mulher que passa...

*
L



A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
K
LMNOPQRSTUVWXYZ


L
Letra
tear
reta
arte


Letra é arte.
Letra alerta.
Letra arreta.
Letra é aleta.
Ela é tear: ata, reata e atrela.
A letra está para o átomo,
como o poema, para a matéria.
Poema é amor entre letras.


Pode ser minúscula em Bashō.
Pode ser maiúscula em Camões.
Letra não é nada sem o leitor
ou é um muro de incompreensões.

Mas só alcançará a completude
uma vez que unida a suas irmãs,
tal como a aranha tece sua rede
e capta no orvalho a luz da manhã.

Três letrinhas já podem ser poema,
como, em sânscrito, a palavra Om.
O poeta escritor, sem a alma gêmea

do leitor, o poeta seu irmão,
morre doente, na pobreza extrema,
como Camões morreu na solidão.


Mesmo Camões, sem ter lido Bashō,
não foi reconhecido ainda em vida,
não faz sentido uma letra só,
mas apenas quando está unida

a uma outra e depois outra e assim
sucessivamente ad infinitum...



Dedico estas menores e piores redondilhas ao Paulo Leminski

Lê mim se quiser
Me lê sem querer
Entre eu e você
O que der e vier



Um soneto à mãe

O perfume e a beleza das cores
das flores que ela tanto amava,
para sempre, serão nosso deleite,
refletem, pois, o que dela emanava.

E, mesmo não tendo sua presença
densa, em corpo físico, entre nós,
ainda a teremos sempre presente
na mente e no coração. Somos sós,

quando isolados nas paredes do ego.
Mas somos todos um só, irmanados
em fronteiras além do infinito,

sem barreiras, que separam, do tempo.
Assim a sentimos, extasiados
pelo que pode ainda ser sentido.



Um soneto ao pai

Quisera eu ter o dom de expressar,
de forma tão verdadeira e bela
e simples como, à noite, o luar,
a sua luz atravessa a janela,

para, quem sabe, tentar transmitir,
com palavras, a justa homenagem,
mais valiosa que possa existir,
ao amigo, ao exemplo, ao homem!

Ao pai, que muito amo e que me ama,
hoje só agradeço; nada peço.
Dedico este soneto em que trabalho

àquele cuja vida é um poema,
àquele cujo nome é um verso:
Erasto Villa-Verde de Carvalho.



"Amar se aprende amando"

Dormir se nasce sabendo
Chorar também é instinto
Andar se aprende caindo
Viver, desafio estupendo

Sorrir se aprende sorrindo
Fazer se aprende errando
Cantar, em aulas de canto
"Amar se aprende amando"

Dançar, só rodopiando
Ler se apreende lendo
Escrever, no pensamento

Expressar-me experimento
Proseando e versejando
Drummondeandradeando



Outros sonetos ao amor

I

Sei que o amor está em toda parte
e aparece quando menos se espera,
quando se chega e quando se parte:
o amor é fícus, o amor é hera.

Árvore frondosa de grandes copas.
Erva que se espalha pela parede.
Ora nos enleva alto, ora brota
como praga, musgo ou limo verde.

Hoje amo amor de árvores belas,
antes sementes, agora florescem:
todos que as veem se admiram delas.

Mas também sei do amor que dá em pedras,
que se espraia, nos agarra e endoidece.
Prefiro o amor fruto ao amor quimera.

II

Quero me embriagar de poesia.
Beber palavras até saciar
a sede que me resseca a alma.
Degustar o néctar da ambrosia

de versos em caldas. Eu tomaria
litros e mais litros de letras tintas,
tonéis de carvalho, harmonizadas
com as melhores especiarias.

E depois, dançaria com a musa,
ao som das estrelas. Sobre o tapete
verde, então, tiraria a sua blusa

e sorveria o doce deleite
que escorreria por fora de sua
taça de amor, tal como sorvete.



Corpo de dor / Corpo de luz

A meu irmão espiritual Namadev (in memorian), que, além de tantas outras preciosidades, me apresentou a obra do mestre espiritualista Ekchart Tolle.

I

Enquanto perco a minha consciência,
uma intensa dor de mim se apodera,
como se eu fosse uma outra pessoa
não tão boa como a que antes eu era.

Deixo-me dominar pela emoção
que de tão forte a mim me controla,
pensamentos tolos que vêm e vão,
sem a noção do Ser, do aqui e do agora.

Depois me vem o arrependimento,
a dor do remorso que me devora.
E desse modo retroalimento

o corpo de dor que dentro em mim mora.
Como me livrar dele? Não sei. Tento
forçá-lo daqui de dentro pra fora.

II

Dor que volta mais forte do que antes.
Meu semblante até a mim apavora.
Já com a face toda retorcida,
como suicida que só aguarda a hora

de terminar com sua própria existência,
nem mesmo eu a mim me reconheço.
Quero começar novo recomeço,
estar consciente da Consciência

e mais presente em minha presença.
Não há solução à base da força.
A mente que descontrolada pensa,

observada de maneira atenta,
naturalmente uma hora se cansa
e na quietude então se assenta.

III

Assim surge silenciosamente
quem sempre esteve, mas despercebido,
aqui mesmo, contudo escondido
pelo ego que me dominava a mente.

Sem nome ou forma, refoge aos sentidos.
Em relação ao mundo é transcendente.
O Eterno só é aqui, no presente.
O Infinito nunca é definido.

O corpo de dor, desaparecendo
aos poucos, perde a sua densidade,
pois só existia em meu pensamento.

Quieta a mente com naturalidade,
alívio sinto enfim bem aqui dentro:
só o Corpo de Luz É, na realidade.



Ahimsa

Política não é religião,
assim como partido não é seita.
Sem a liberdade de expressão,
a Democracia não se sustenta.

O discurso de ódio interessa
só a quem toma o poder à força.
Para que o povo o retome depressa,
criatividade e inteligência

são necessárias na resistência,
desobediência civil pacífica,
como ensinou Mahatma Gandhi.

Sua doutrina da Não Violência
é uma grande verdade histórica
que o brasileiro agora apreende.



Vermelho (des)encarnado

I

Do pau-brasil se extrai o pigmento
para tingir tecidos de vermelho:
a cor que provoca tanto espanto
em quem se ufana de ser brasileiro.

A cor menos visível do espectro
está na pele dos índios Tupi.
Quando aportaram os estrangeiros,
eles já se encontravam aqui.

A que mais se aproxima do negro,
como o sangue derramado em vão,
é pois a cor que causa tanto medo,

a cor que se ausenta sem a luz,
qual a fogueira que vira carvão
à medida que o fogo se reduz.

II

Do pau-brasil se extrai o pigmento
para tingir tecidos de vermelho.
Mas o desconhecimento é tanto
que ignoram até o que é ser brasileiro!

Se o vermelho não está na bandeira -
como o verde das matas devastadas,
o azul do céu de nuvens poluídas,
o amarelo do ouro que orna igrejas

na Europa -, está na pele dos índios
que habitavam esta terra quando
os brancos a tomaram (tempos idos?),

no sangue que derramaram enquanto
saqueavam e ficavam mais ricos
à custa de almas desencarnando...

III

Revogaram o vermelho das rosas.
Proscreveram o vermelho do sangue.
Confinaram o vermelho das roupas
aos limites de um sonho estanque.

Censuraram palavras de ordem.
Proibiram as frases de efeito.
Determinaram os livros que podem
ser, nas mais nobres estantes, enfeites,

e queimaram em fogueiras medíocres:
os outros; rosas e roupas vermelhas.
E chamaram sonhadores de míopes,

ignorando sua própria cegueira.
Pois o sonho arrebenta os diques,
como o sangue escorre das veias.



Vossa Excelência tem a palavra

A linguagem do advogado verdadeiro,
dita de forma tão dura quanto polida,
que a Justiça nela brilhe por inteiro
e trespasse a falácia em aço construída,

há de ser. Pois, como o diamante, milenar,
forte nos textos dos clássicos, que cultiva,
o advogado deve assim se expressar,
bravo, com voz serena, todavia altiva.

E que esse mesmo brilho, de tão reluzente,
pleno de simples e honesta sabedoria,
possa enfim ofuscar a fala do sofista.

Que sirva não a si, mas sim a seu cliente.
Nem o gesto ou a beca, nada em demasia.
Assim seja, claro, na voz e na escrita.



Ser ou estar?

Tantas vezes de novo reinvento
outro eu que eu sei que sempre sou:
político, poeta, músico ou
advogado mesmo, virulento

assim como estou neste momento,
que já não sei se sou persona grata!
Mas para mim isso pouco importa,
contanto que eu continue sendo

eu. Mas quem sou eu? Nem quero saber!
Cabeça doida, teorias tortas.
Ser ou estar? É de estarrecer!

Clamo pela paz, ao amanhecer,
ideias certas, vida bem disposta!
Diferente de mim, não posso ser.



Haicais. 20.6.2016

Está amanhecendo
O canto de um passarinho
Frio... Frio... Frio

Cinzas no ar
Revoada de quero-queros
Poeira nos sapatos

Seca no cerrado
Queria tomar chuva
até encharcar a alma

O dia se esvai
O sol que entra na sala
não me aquece dentro

São grilos da noite
zumbindo no meu ouvido
ou grilos da mente?



Haicais. 21.6.2016

Alta madrugada.
Canta o carro-de-boi?
Não! O carro de lata.

"Inverno austral"
Dias curtos, noites longas
Sul do e-quæ-dor!

Dia do Yoga:
atividade no templo;
paz no coração.



Haicai. 22.6.2016.

Porto Alegre? Sim.
Mas trago nesta viagem
frio no coração.


Outro paiz (23.6.2016)

Bah sal
Bah céu
Brazil

Bah sol
Bah sul
Bah frio

Balbucio

Bah chá
Bah tchê
Bah xi

Bashō
Babaçu
Baiacu

Baba, Rio!



Haicais da Bahia (jul.2016)

O sol é a estrela
do dia, mas a tristeza,
o astro de dentro.

Eu robotizado
Estrelas no Universo
O mar me lambeu



Carta à Segunda Pessoa

Digníssima Senhōra,
Onde estás que não respondes?
Só nos versos de Pessoa,
de Cabral de Melo Neto?

Ah, eu chamo-te à toa...
É aqui que tu te escondes?
Nestes versos que destoam,
pois versejo, não poeto?

Farias a mediação
entre mim e a Terceira,
mas sem ti, na solidão
desta língua brasileira,

José, Chico e João,
Severino e Donana,
o Mané, a Conceição,
Seu Tião e Bastiana,

até mesmo os de cima
ficam sós, na Casa Grande,
que ninguém consegue rima
se te fazes de importante.

Preto não fala com branco,
só com a excelência dele,
e, se o olha no olho,
chicote lhe queima a pele.

Na tribo, criança, cacique,
homem, mulher são auá.
Mas carioca é muito chique,
lugar de branco falar.

Inclusive padre Antônio,
irreverente com Deus,
era cerimonioso
quando pregava aos seus.

E o plebeu não se dirige
diretamente ao Rei.
Por isso que sumiste
ou causa de que? Não sei.

Ei! Fugiste para onde?
Diz-me, ora pois! Que é de ti?
Coronel ou lobisomem,
estás com medo de quê?

Não podes abandonar
tantos filhos de João,
de Maria e de José!
És cristã ou és pagão?

Foste para além-mar
com a família real?
Não temos com quem parlar
de igual para igual!

Voltasse pra Portugal,
sem coragem de lutar,
e levasse, além de terra,
que dizias tanto amar...

(Vossa Mercê me perdoe
se já lhe não dou ao respeito!
Vosmecê não se chateie,
não falo mais com você!

Suncê levasse daqui,
além de terra - já disse!),
ouro, prata... mineral,
toda riqueza que existe,

e largasse uma língua
nesse mundo, sem igual!
Pois italiano, espanhol,
português de Portugal

prosam contigo de boa,
em Roma, Madri, Lisboa.
Aqui te tratam tão mal
quanto foram maltratados.

Nesta terra desigual,
pobre e rico tão distantes,
não estranha no Brasil
idioma nunca dantes...

Onde mal falam ocê,
agora, em tempo real,
duas letrinhas, mais nada,
é tudo que lhe restou.

Nem me refiro a bandeira
branca, pedindo a paz,
levanto sim a vermelha:
que não tornes nunca mais!

Desde que, neste país,
Pombal, pedante Marquês,
proibiu a língua Tupi
e impôs o Português,

gerações degeneraram-te,
na fala e na escrita,
cansadas de palmatória,
de chibata. Que desdita!

Como disse o malfalado,
Severino Cavalcanti,
chefete dos Deputados
(tão insignificante,

mas nos anais registrado):
- Recolha-se à insignificância
de Vossa Excelência!
Vc já está bloqueado!



Confesso-me estranha e extremamente consciente da pouca voz e da minha vulgar opinião, rouco profissional, maltalhado na árdua tarefa de mensageiro de vocábulos, placebo sem muita voz, dono duma história simples, gutural de simples existencialismo e banal, sem experiência provada, sem palavras nem alta aptidão vocal, vocabular, pouco nobre no que digo e inexpressivo ao ponto de mesmo adormecer pensando mole, infecundo, sendo eu o meu maior enigma e o inimigo que eu próprio mais temo, tenho e terei para sempre e doravante para me diluir em dois, dividir-me para duvidar melhor, de reinventar-me ao cubo num futuro e instante plausível que pode nem vir a dar-se e a propósito de nada. À falta de imaginação e à sensação insensata de escassez de criatividade, expresso-me por chavões sem fruto e através de impressões fáceis, frágeis, alheias na maior parte das vezes e da minha menor dimensão física de “Zé Ninguém”, encontro-me impresso nas expressões faciais, nos rostos do que sinto no fundo, e em mim dentro, impróprio não só na acção ou no que faça e veja para deprimir a razão oposta ao acto vital, virtual embora até nisso o raciocínio muitas vezes dê erro, um fatal engano em y, ao sentar-me dirimido, de pernas trocadas, cruzadas, tortas, ou quando me sinto irónico e obvio, tenho-me ainda assim como um covarde coercivo, um indigno indígena de Porto-Fino, um valentão de circo, matulão convencido de praça publica, charlatão sentado, sem força embora com vigor para realmente desertar ainda e de mim próprio, fiquei-me pelo que fiz, ainda que me batam, não vou à luta pelo que vejo à primeira vista, no decote das blusas, os seios, o brilho da pele, o cetim e o receio, um aviso sem letras nem letreiro que diz, dirá provavelmente “não tens valia”, ou então, “não és senão esquecimento”, sei que não sou a conjugação perfeita nem a remissão dos pecados do peito dos outros me fará atleta da sensibilidade alheia, monarca ateu dos meus próprios princípios, o meu básico “entediamento” é moral e congénito, não demovo maçónicas lojas meio cheias de apáticos viscerais cavalheiros, nem a emoção me domina raramente menos que a cem por cento, nem determina quem há-de-me ouvir nos fastidiosos auditórios, o custo e a serventia da singularidade não é um dogma pungente, nem a espontaneidade uma acção abstrata, obscura ou bastarda, parada no tempo, cada um tem a sua própria marca ferrada ou ferroada de abelhão, crivada no corpo, somos equivalentes e polivalentes, equidistantes monólitos cerâmicos, herméticos malabaristas por de dentro quanto basta, mistérios e sombras quase sempre em nós dão erro, incompreensão, desconhecimento, nados mortos, iguais a baixos relevos, a razão nas formas das coisas consistentes, o material dos dedos, metais pesados iméritos, inéditos, misteriosos quiçá imperfeitos, quanto o nosso rosto refractado nos gelos, neste silêncio amorfo de deuses, graffitis pintados nas paredes, devoradores de temores, receios infundados, basilares subterfúgios para quem não age após ofendido e dá outra face com vontade de tornar a ser fendido no queixo e no amor próprio, um antisséptico baptizado de contrição, remorso e de culpa inócua, contradições de poeta prosaico, em itálico.

Basta me sente pra que me pense, cansado do tempo de espera, sem ideia alguma, ganhe vida qualquer coisa funda, abstrata, uma lembrança nativa da fadiga, iconoclasta insensatez procedente do cansaço vazio que é não pensar tanto, assim como uma espécie de absurdo arrependimento de que me perco a pensar e do poderia ser pensado, manifestado quando digo de mim para mim sem eco ou objecto, cada um tem do seu esquecimento uma ideia, inquilina de curta memoria, só eu não sei onde estou quando me castigo por caminhos sem saída nem asfalto, nem voo e o que penso ser real é apenas uma fantasia, um espigão, uma mera opinião minha que me achou e que me faz achar senão artesão de minha própria vontade tida, mas não, sou apenas aquele que se pensa a meio, assim como uma porta entreaberta que se acha de par em par aberta, sou eu suponho aquele que se aparenta em si mais ao sonho, que o sonho em si, ele mesmo estranho, se estranha.
Sinto-me pobre, um “ Seu Dirceu” ou um mosquito Ignicio, um certo insecto insectívoro da imaginação, aquele que nem a si próprio ou a si mesmo se inventa ou se explica por gestos, excita-me esse principio lavado e limpo, a indecisão básica de estagiário, inclusive igual ao que creio e reflcito na condição leve, breve que se me cola na língua e o corpo à carne, igual a outros e como eles, único bem que temos, sermos unos com quem nos habita, termos língua olhos e mente doutros, guarida e desterro num único lugar aparente sem que o busquemos, sem sabermos ao certo o limite do nosso território de elite, imenso… ou que ele existe, se eu existo todavia, sendo eu o infinito eternamente sou, serei “invictro” na consciência das coisas vivas e animadas, sermos nós deuses dos que se erguem da terra e os que nos levam nos ares, eles mesmo ilimitadas mutações de nós mesmo, eleitos eleitores dos nosso próprios sentimentos e paixões.
A satisfação que me é dada pelo espirito quando sonho não se compara ao mundo que faculta o sonhar, o que sinto ao sonhar vai mais além que a alegria do corpo ou a letargia do sono em que certos nervos motores se entregam a mitigar na calma o sossego e a alma, o sonho vai mais além a modelar mundos a moldar leis da física e reinos adolescentes, incandescentes e curiosos, viçosos e ao som da mente, reinos onde tudo pode acontecer, sendo eu súbdito e rei, monarca absoluto de mim, eu autentico mestre/Sensei.
A derrota da subtileza será das tristezas mais tristes e vis, mais aguda e estranha em mil e uma formas de fracasso áspero, ácido e agressivo, aquele que mais assusta e se perpetua, desapropria e aprofunda na pele, os gânglios, os cabelos, as meninges do cérebro.
A banalidade é benevolente, uma mentira bondosa tal como como o obelisco a um soldado desconhecido e morto, não deve ser cultivada nem regada de forma a brotarem rebentos jovens, assim como dois noivos em pé, juvenis, virgens de valores, viris, parados, separados, transparentes para todo o sempre, à porta do registo civil, ao sábado, ligados pelo umbigo e no simbolismo do altar vago, sem se aproximarem um do outro, nem pelo significado do sim matrimonial, bondoso, caridoso e monótono como tudo que passa sem passar, e não passa de uma ideia falsa de dualidades e bom nome, linhagem, justos irmãos e gémeos até que a morte os separe da vida, existir só ?, impossível e a possibilidade é ficarmos quietos, parados, banais e impotentes, cansados para mudar de lugar, casados de iguais sensações, feitas de canseiras vulgares e opiniões semelhantes, iguais em tudo e também no formato do sal das lágrimas dos dois, parados à porta do tribunal, sentados como sempre.
O meu futuro pessoal é certamente uma incógnita “Zen”, um lugar, uma história em que xis é menor que y e o menos desconhecido dos vectores será realmente o z-do final, um inútil zero. Sou o mais real dos meus sonhos quando me sonho, embora não tenha direito real a uma vida que suponho ser real, sem realmente a saber verdade ou imaginária, esta que possuo, mesquinha, pequenina de um zéfiro mensageiro, placebo sem voz nem percolo, filtro, protocolo ou alçapão, ainda assim considero-me consciente, por dois e “ao-vivo” por dentro, por fora não sou eu que sinto mas ainda um outro …

 

 

 

 

Joel Matos ( 18 Fevereiro 2021)

 

 

 

 

 

 

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Senhores Carlos Drummond de Andrade e Tancredo Neves, desculpem-me a formalidade, mas o respeito que meus pais me ensinaram assim o exige, espero que estejam bem desde quando nos deixaram, em agosto de 1987 e em abril de 1985 respectivamente.

Creio que os senhores, onde estiverem, vez ou outra, recebam algumas informações e atualizações da situação do nosso Brasil e da sua terrinha em particular, Tancredo de São João del-Rei e Drummond de Itabira, da nossa querida Minas Gerais.

Não só os Itabiranos e São-Joanenses não os esquecem, na verdade, nós, os brasileiros de todos os cantos, sentimos muito suas ausências, embora nos tenham deixado vasto material sobre valores, costumes e boas práticas de civismo, estamos cá com graves problemas nessas áreas.

Senhor Drummond, ainda estudamos seus escritos para deles extrairmos suas ideias e ensinamentos sobre o amor, a tolerância, paciência, angústia e arrependimentos depreendidos de seus versos de toda uma vida.

Ah! Senhor Drummond, sua habilidade com as palavras nos coloca diante de caminhos e obstáculos de difícil ou fácil transposição, depende do leitor, do dia da leitura ou das tantas releituras, as pedras da vida lá estão e nunca no mesmo lugar, permitindo belas equações de amor e superação.

Já o Senhor, Seo Tancredo, em um de seus discursos, propondo mais conciliação, nos ensinou que, "A Pátria é escolha, feita na razão e na liberdade. Não basta a circunstância do nascimento para criar esta profunda ligação entre o indivíduo e sua comunidade".

Senhores Drummond e Tancredo, nosso Brasil anda estranho demais, continuamos sendo um país do futuro em vários aspectos, especialmente na saúde e educação, pilares de uma nação que almeja desenvolvimento e dignidade para todos.

O gigante continental da América do Sul está carente de líderes políticos com visões de estadistas e empresários que visem mais que apenas o lucro do capital e assumam sua responsabilidade social.

Vivemos um período de grande insatisfação com divisões no seio do povo que extrapolam o bom senso e não residem apenas na divergência de opiniões, muitos, sem rumo e com pouca massa crítica, se deixam levar por meios de comunicação que manipulam a informação dependendo dos interesses próprios e das ocasiões.

Necessitamos de líderes que nos mostrem caminhos em meio às pedras e que persistam na boa trilha da valorização da Pátria enquanto espaço para a dignidade humana que está além e muito além das letras mortas dos estatutos dos partidos políticos.

Drummond e Tancredo, permitam-me agora como irmãos que sempre fomos e seremos, estamos a precisar de paz e serenidade para desanuviar o ambiente pesado que paira sobre nós.

As energias densas estão a ofuscar a razão que nos jogam na sanha das paixões sem freio, claro, temos sim nossa parcela de responsabilidade pelo que nos ocorre, mas pedimos, de onde estiverem, juntem forças com outros brasileiros, renomados ou não, mas de grande valor moral, ético e cristão, e nos cubram de amor e pacificação.

É em nosso Brasil, vocacionado para a espiritualidade e humanidade, onde convivem credos diversos, trazidos pelos escravos africanos, católicos, evangélicos, espíritas, budistas, muçulmanos, islamitas, xintoístas, cristãos e ateus, que todos se juntam em oração.

Mãos dadas, como uma família que somos, clamamos ao Deus de todos, bençãos para que os homens sejam fraternos e acordem da indiferença, do orgulho, da vaidade e da soberba que lhes cega ante todas as misérias.

Estamos de passagem neste plano onde a ilusão do ter e do poder estão mascarando um triste despertar.

Luz, paz, amor, ternura e serenidade.

Fraterno abraço.

Paulo Afonso Barros
Maio de 2017


No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade
In Alguma Poesia
Ed. Pindorama, 1930
© Graña Drummond.

In: http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond04.htm


Trecho do discurso de Tancredo Neves preparado para a posse na Presidência da República, em março de 1985.

"Senhores Membros do Congresso Nacional, recebo da soberania do povo, de que sois portadores, a chefia do Estado e o governo do País. Esta solenidade encerra singular mistério de liturgia cívica. A Nação inteira se reúne, pelo instituto da representação, em sua vontade e em sua esperança, para investir um homem da responsabilidade de a conduzir, na lei e na dignidade.

De cada um dos homens que constituem a comunidade nacional transfere-se, ao coração e ao espírito do escolhido, um homem como os outros, parcela essencial de ser, na devoção aos valores comuns e na inquebrantável decisão de os preservar para sempre.

Ao assumir esta enorme responsabilidade, o homem público se entrega a destino maior do que todas as suas aspirações, e que ele não poderá cumprir senão como permanente submissão ao povo.

Quando falamos em povo não pensamos em uma entidade abstrata, que possa ser eventualmente conduzida em trilhas de equívoco, pelo fanatismo ou pela demagogia. Pensamos no povo como soma de razões e virtudes, que sempre prevalecem, para impor lucidez à história, restaurando o que se deve restaurar, abandonando o que se deve abandonar e construindo o que se deve construir (...).

In: https://oglobo.globo.com/politica/discurso-de-tancredo-neves-preparado-para-posse-na-presidencia-da-republica-3021920#ixzz4hVRdpHYM

“Eu canto porque O instante existe E a minha vida Está completa. Não sou alegre Nem sou triste Sou poeta”

Pretensões à parte, porém calcado no poema Motivo, de Cecília Meireles, inicio agradecendo o Altíssimo por me conceder a coragem e a ousadia da perseverança na literatura. Trago comigo a séria convicção de que não chego a ser, nem tenho pretensões da intelectualidade, mas unicamente em continuar a ser autor de poesias. Ainda assim atrevo-me a estar aqui com o objetivo de somar junto aos doutos e ilustres pares. Considero-me um humilde artesão dos versos, sendo minha maior matéria-prima, portanto, a palavra. E como bem diz Victor Hugo, “As palavras têm a leveza do vento e a força da tempestade”. Assim, o que produzimos por vezes são brisas e por vezes, dedos que calcam feridas. Porém sempre justos e próprios pela grandeza da arte.

Parafraseando o poeta Carpinejar: ‘Todos somos poetas, entretanto alguns são autores’. Em assim sendo, respeitando a ótica de Carpinejar, além de poeta, também me atrevo a dizer que sou autor de poemas. E é por essa escola que venho me especializando através de ferrenho e continuado exercício da inspiração. E por assim ser, mais um sonhador; e por ser assim um mero aprendiz na labuta esmerilada das palavras, acredito-me pronto a também passar a colaborar com esta Casa em prol da Cultura, da Educação e dos bons costumes à nossa Sociedade junto às Senhoras e Senhores Acadêmicos, fazendo jus aos votos e à confiança que mui generosamente me foram dados.

Confesso que o cotidiano me tem proporcionado gratas e inexplicáveis saudáveis surpresas. E poder estar aqui em vosso meio hoje me é uma das mais engrandecedoras conquistas e das mais prazerosas alegrias alcançadas. Por isso, repito, sou muito grato à vida, a Deus, à família e aos senhores, partícipes desse meu cotidiano.

Quando ainda menino e pela juventude, muito escrevi, preguei, falei, apregoei poesia, caminhando por essa seara bastante espinhosa, porem deveras gratificante. Nasci ha dois mil quilômetros do mar, porém cantando com muita propriedade as belezas do Centro Oeste Brasileiro, minha origem, com muita transparência e sensatez. Tenho impregnadas nas ruas da minha amada Três Lagoas e Guaraçai, os ingredientes do Oeste Paulista e do Mato Grosso do Sul - uma ferrenha militância nas Letras, através de Jornais, Livros, Revistas, Escolas, Universidade, Instituições e sólidas parcerias e amizades sempre ainda presentes e até hoje muito altivas. Foram bons tempos falando de poesia e espalhando poemas por onde andei.

No final dos anos 80, passando a residir na Costa do Descobrimento, fui eu, literalmente falando, o descobridor da felicidade plena ao ter tido o privilégio de ter sido tão bem identificado e criado meus laços e espaços entre vós, portosegurenses, gozando do afago nativo dessa gente baiana. As últimas três décadas, portanto, passei incubando valores literários os quais vieram à tona novamente e que, repito, graças à generosidade dos meus pares, me trouxeram até aqui. Confesso que até cobicei esse momento na Academia, mas em face a tanta intelectualidade existente nessa cosmopolita Cidade de Porto Seguro, não sentia acontecer tão rápido e hoje. Entretanto o Supremo Arquiteto do Universo assim o faz realizar. Por isso minha eterna gratidão a todos.

MEU PATRONO – CADEIRA Nº 18

Destarte, ao tomar posse da Cadeira de nº 18, reformulo meu compromisso com a literatura, prometendo honrar os ensinamentos do meu patrono LUIZ GONZAGA PINTO DA GAMA, sobre o qual passo agora a discorrer:
Quando me fora dada a opção de escolha da Cadeira 18, me chamou a atenção a vida e obra desse baiano nascido no dia 21 de Junho de 1830 na capital Salvador. Luiz Gama foi um rábula, orador, jornalista e escritor dos mais respeitados e admirados de sua época. Nascido de mãe negra africana livre, vinda da Costa da Mina (correspondente ao Golfo da Guiné, Litoral da África Ocidental) que ganhava a vida fazendo quitandas, e de um fidalgo português que vivia em Salvador, cujo nome o poeta nunca revelou. Em 1837, Luiza Mahin deixa a cidade e parte em direção ao Rio de Janeiro, ficando o filho aos cuidados do pai. Este, segundo o próprio Gama relata, era um homem de posses, apaixonado pela pesca, pela caça e principalmente pelas cartas. Vivia de uma herança que havia recebido em 1838 e, dois anos depois, já se encontrava em plena miséria.

Em novembro deste mesmo ano, portanto aos dez anos de idade, o menino Luiz Gama foi levado pelo pai a bordo do navio “Saraiva”, e lá vendido como escravo. Dias depois, ao desembarcar no Rio de Janeiro, foi levado para a casa de um negociante português que negociava escravos sob comissão. No mês seguinte, foi novamente vendido, junto com um lote de “cento e tantos escravos”, ao “negociante e contrabandista” Antônio Pereira Cardoso, que os levou para São Paulo.

Porém os escravos vindos da Bahia eram tidos como “desordeiros” e “revolucionários”, devido ao marco histórico que foi a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, da qual a mãe de Gama, Luiza Mahin, teria participado. A Revolta, portanto, foi um levante de escravos de maioria muçulmana na cidade de Salvador, capital da Bahia, que aconteceu na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835. Os Malês eram negros de origem islâmica, que organizaram o levante. Depois disso, os escravos oriundos dessa cidade eram preteridos pelos compradores, como deixa transparecer o depoimento do poeta: “Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu ‘baiano’”.

Sendo assim mais uma vez renegado por ser negro e pela origem, Luiz permaneceu por mera conveniência do destino, na casa do senhor Cardoso, onde foi encarregado dos serviços domésticos, tendo aprendido com outro escravo, também baiano, o ofício de sapateiro. Ali se estabeleceu, aos dezessete anos de idade, o primeiro contato de Luiz Gama com as letras, através de um hóspede que viera de Campinas para a capital, com o objetivo de estudar.

Em 1848, Gama fugiu da casa de seus senhores, tendo conseguido, logo depois, documentos que confirmavam a sua liberdade, uma vez que era filho de uma negra liberta. Em 1856, foi nomeado amanuense da Secretaria da Polícia, onde serviu até 1868, quando foi demitido por “bem do serviço público”. Para esclarecer o motivo real da demissão, o poeta faz a seguinte confissão em carta ao amigo Lúcio de Mendonça: ‘A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias, e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, a alforria de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis.’

Em 1859, Gama publicou Primeiras trovas burlescas de Getulino, no qual consta o famoso poema “Quem sou eu”, mais conhecido como Bodarrada, no qual expõe o preconceito de cor na sociedade brasileira. O poema foi escrito em resposta ao apelido que os intelectuais da época tentaram lhe impor: bode - termo usado de forma depreciativa para designar os negros. Também como jornalista, Luiz Gama teve uma atuação política bastante intensa: foi aprendiz de tipógrafo do jornal O Ipiranga, e redator do Radical Paulistano, no qual colaboraram, entre outros, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Foi ainda responsável pela redação de O Polichinelo – primeiro periódico político satírico da cidade de São Paulo, o que faz Alberto Faria atribuir a Luiz Gama a fundação da imprensa humorística paulistana.

Nos anos 60, o advogado autodidata Luiz Gama se esforçava para tratar dos casos de escravizações ilegais e de abolições individuais e coletivas do Estado de São Paulo. Costumava dizer: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias”. Segundo consta, Gama teria sido o responsável direto pela liberdade de aproximadamente quinhentos escravos.

Além de advogar, Gama realizava conferências e publicava polêmicos artigos nos quais explicitava seus ideais abolicionistas, motivos pelos quais era perseguido e ameaçado de morte. Liberal exaltado, foi o primeiro negro brasileiro a lutar contra os ideais de branqueamento da sociedade e pelo fim da escravidão. Mesmo debilitado pela doença, saía carregado em uma maca, para atender seus clientes desejosos da liberdade. Faleceu em São Paulo, em 24 de agosto de 1882, deixando uma emocionante carta-testamento ao filho, que se configura para nós, seus leitores de hoje, como vivo exemplo de homem público e literato que, mesmo diante das vicissitudes da vida, não abandona seus ideais.

Existencial, num de seus nobres poemas indaga:

Quem sou eu?

E ele mesmo responde:

Que importa quem?
Sou um trovador proscrito, Que trago na fronte escrito Esta palavra — Ninguém! —

NOSSO COTIDIANO

Meus queridos: perdoem se acima tratei do lado um tanto sofrido e melancólico do Poeta Luiz Gama, digno patrono da Cadeira 18 desta Academia de Letras de Porto Seguro, da qual agora passo a ocupar. Mas assim o fizera no intuito de mostrar o quão a vida nos é por vezes ingrata, e o quanto diuturnamente necessitamos encontrar maneiras de dar a volta por cima, procurar reconstruir espaços mais dignos para nós e nossos filhos, e até contar com a sorte, ainda que seja a duras penas. Descrevemos acima, portanto um cenário de dois séculos atrás.

Porém quero citar neste momento, o jornalista Leonardo Sakamoto, em uma de suas recentes colunas no Uol deste Janeiro do ano do ano de 2020, século XXI:
“ Vivemos ainda hoje, em pleno século XXI - um contexto de ultrapolarização política. Nele, desumaniza-se quem defende posicionamentos diferentes dos nossos, não reconhecendo que essas pessoas tenham os mesmos direitos constitucionais. Pelo contrário, defende-se que sejam caladas e punidas por pensarem diferente. À força, se necessário. Passando por cima das leis, se preciso.”

Sem querer me alongar, faço apenas observar que os anos, as décadas, os séculos e gerações se sucedem e não conseguimos aparar as arestas, fazer as aparas do preconceito reinante num país tão grande, tão rico, tão oprimido e ao mesmo tempo opressor como é o nosso amado Brasil. Não é lástima, porque não choramos nem jamais lamentaremos em vão, e sim observações cabíveis a um grupo pensante e ativo como o nosso.

De uma coisa estamos convictos: a arte liberta, fala, é ouvida, demove, comove, impõe, modifica e nalgum momento renasce, floresce e produz seus frutos. Por isso é tão profusa, por isso tão significativa na vida de todos nós. Se existe algo que devamos diuturnamente questionar de nossos líderes e autoridades e também de nós mesmos como sociedade civil organizada - é que nos deem conta da saúde da Cultura e da Educação pelo menos dentro dos quadrantes do nosso Município. Se nos indignamos com o índice de analfabetismo em nosso gigante Brasil, quantas vezes indagamos dos nossos próceres, quantos ao alcance dos nossos olhos ainda não possuem acesso à escola, a um livro, e são privados de um mínimo de conhecimento para que possam dizer-se alfabetizados! Lembro Mario Quintana, a despeito da importância da Literatura: “O leitor que mais admiro é aquele que não chegou até a presente linha. Neste momento já interrompeu a leitura e está continuando a viagem por conta própria.” Infelizmente são tão poucos que assim procedem. Com dignas e raras exceções, nossa gente tem dificuldade de pensar porque utilizam-se poucos mecanismos de apoio e incentivo à arte e à cultura.

Em assim sendo e considerando, somando-me aos demais Confreiras e Confrades desta Academia, desejo e prometo continuar no ofício da palavra não na intenção de apresentar respostas prontas ou insensatas, mas sim permanentemente questionar o quão possível é, o que a vida faz de nós, afetos da alcunha dos versos, e o que com ela contribuímos para minorar sofrimentos e injustiças tendo a arte por instrumento, através do belo, da fantasia, da realidade, do poema, dos textos elaborados que possam instruir, comover, permitir alegrias e gerar vida pensante seja em qual for a realidade.
Que nossas letras possam até estarem chochas, nuas ou gélidas quando de certa forma incomodamos, mas jamais desconexas ou fora de contexto quando tantos pretendem que possamos a qualquer preço e custo cultuar a mudez. Afinal como diz Nietzsche, “Nada é tão nosso quanto os nossos Sonhos”.

Continuemos a falar de amor, a cantar a vida em todas as suas nuances, a cultuar o belo, o prazer e a alma, e a também saber incomodar por meio dos severos pensamentos e do aclaramento das ideias e ideais, a sonhada liberdade, quando a realidade assim exigir de nós. Que através dos nossos versos, frases, parágrafos, cadernos, livros e palestras, consigamos disseminar o belo e a fantasia, ainda que a realidade por vezes se torne inóspita. Deus nos permita um longo tempo entre vós para que sejam plenos de realizações e graça, os nossos passos. Mas caso disso venhamos a ser privados, que ao menos “seja eterno enquanto dure (Vinícius de Moraes)”.

Viva a arte, viva esse momento, vivamos todos com dignidade, decoro, honradez e humildade. Mas sobretudo, sejamos fraternos difusores da arte e necessidade do pensar.

Porto Seguro, 14 de Fevereiro de 2020.

Paulo Sergio Rosseto

Referências:
• eBiografia
• Wikipedia
• Arcodacultura
• Letras UFMG

= www.psrosseto.com.br =



Pangeia e a deriva continental


“Ex nihilo nihil fit”

Não minto quando me dispo do que poderia ser dito entre o dito e não dito do que realmente digo, sim “Eu jamais parti” mas não digo não, pois poesia não sai de mim, foi-me dada assim, é a minha água pura, a minha força motriz, nem se compara ao ar, infinito o que respiro, é o que a voz me diz, por isso direi mesmo depois do fim, serei futuro ou estarei realmente aqui, de alma e corpo “Eu jamais parti” … “Eu jamais parti”
Um hiato entre o que, ou por quem me tomo e o que sei sou ou sonho todavia subordinado a ser e será o eu verdadeiro enquanto o sonhei que na prática é o que sou e como me vejo, um resíduo, um suborno de sensações anteriores ao pós nas quais creio antever ou antecipar algo como se fosse o meu reflexo real ao espelho e eu espectador fictício de mim mesmo mas com relevo falso artificial e uma memória de outra espécie de elefante que abdicou de si mesmo para se tornar uma outra realidade ciente e sem substancia incorpórea apesar de humana ainda, quem sabe eu mesmo (arte e forma) pois sou aquele que nasceu sem se conhecer, pra quem tudo é estranho e diferente, performance magnífica ou repúdio caustico à boca de cena e ao palco.
Ando sentindo-me mímico e semi-“desfraseado” de nitidez de modo que não consigo equilibrar duas palavras que façam cabal sentido separadas ou uma de cada vez, nem temperar com sal sentidas palavras como cal e mostarda ou alho Francês , mascara-las e dividi-las por dúzias de compartimentos íntimos como se fosse eu do país do um Dali da intuição, Catalão (espero que passe breve,) assim junto algumas de um, dois mestres e uma mestrina regada a estouvados sonhos semivividos semi-sonhados, persegue-me a mim a sensação morfológica de jamais partir e assim retorno constantemente embrionário à ideia minha de verdade onírica de jamais conseguir alcançar a substancia líquida de que são feitos eles mesmos os sonhos e modelar os meus lexicalmente viventes em vividas catarses , depurações de uma alma imperfeita, impura, apesar de lúcida.
Meu caro, distinto, dilecto amigo e poeta, se é que o posso afirmar sem vitupério, me perdoe a demora argumentativa, pois lhe digo não há uma maneira apenas de escrever ou descrever um simples sentir nem um único e só sentido tem a escrita criativa e artística, somente por afirmar e dizer me sinto a pensar encruzilhadas por ser tão complexa a forma e tão curta a linguagem, não a mensagem e o traçado desta, tão completo quanto simples e se possa transmitir fio a fio, por sinais minimalistas como estes que usamos para nos influenciarmos mutuamente, a frio ou não, mas aludindo acerca da tradicional plasticidade pictórica nas línguas vivas como forma de provocar novas formas de “graffitagens” elípticas artísticas e provocativas, considero que a provocação lúcida, em si, já é uma arte maior, aliás penso que, sem provocação higiénica e higienizante ou o erro consciente e racional não existiria arte, no sentido carismático do nome e morreria de pragmatismo a lucidez, por insuficiência renal orgânica, há que ser magnífico para provocar desordem gráfica e conceptual e gástrica com artifício e sabedoria, conhecimento, e não abraçar o erro geriátrico, reles e parabólico, a imbecilidade simplória geralmente enviesada e grosseira, muito embora não devamos domar qualquer critica ou criticismo, como um acto particular e de lesa-divindade postular ou sinonimo de perseguição, apenas simples, vermículos Dantas e incultos “Crassos” Caios, se refugiam em ingratas divisórias caves, insalubres porões, em lugar de ocuparem os salões nobres, os Grão Mestres não decretam e jamais decretarão infalibilidade nem afirmarão como sofismas, misticismos decadentes a propósito da independência moral e mental de cada um, mas à parte isso “a minha pátria é a língua …” e não querendo parecer um papel normal copiado e copiando o “gosto de dizer” de outros garanto-vos,… garanto-me um intrínseco pecador verbal, pois nem que para isso tenha de infringir raízes hierarquias ortográficas e heráldicas para firmar uma tese que seja pancreática e criadora. Antes de dizer, há que merecer humanamente e hemorragicamente o que se diz, e eu digo, bem alto , bom som para deixar de ser escravo submisso de degeneradas formas de dizer e pensar unissonantes, insonsas, insignificantes e banais, libertar-me intimamente da “estabilidade relativa” sendo eu um diletante dos subúrbios subconscientes da escrita, tenho o propósito máximo como autor, como qualquer autor, de dirimir argumentos e especulações funcionais ou disfuncionais utilizando a toponímia semântica que me é dada já preenchida para posteriormente a esmagar, como chouriços e encher de fitas, fintas e outros subterfúgios de uso particular, desses de usar e pendurar ao fumeiro e nos lustres do salão de festas , na minha campa e na própria árvore de natal, nos gerânios, com outras cores, com uma diferente epistolaria geométrica, quiçá mais ousada ou curiosa, mas apesar de tudo destinada a morrer como eu, na noite seguinte ao ano novo, como é normal em todas as espécies semivivas , assim é, são as línguas vivas, a semântica e a própria arte, universal e feita de números primos e integrais complexas e belas contradições lúdico-genéticas, gerúndios de forma continuada e evolutiva pois que, nada surge do nada “Ex nihilo nihil fit”.
Fulgurante sensação esta quando ponho a ouvir-me pensar, alucinado e fora de mim, nisto de passar para a margem menos segura, coisa que o persigo dias sem fim, tentando salvar o pensamento da poluição sonora, talvez por não ter valor o que digo nem a imensidão da minha alma tenha força para abraçar com ardor o rio de pensamentos que fluem e morrem num discurso insosso como o meu é e foi sempre.
Não irei falar das formosas trilobites, nem fugirei das águas impuras da criação de vida na Terra embora polutas em que provisoriamente, faz tempo a esta parte, me tenho banhado, não por acidente ou defeito amoral e trágico, mas por hábito enraizado de escrita e pela sensação de pouca limpeza, a areia tã’necessária à escrita criativa, porquanto particular e “sui generis” me impressione “in immensum” e a sinta di-dimensionar-me, empertigar-se ante os meu olhos e os outros sentidos e aí sinto-me, ou talvez me sinta, semântica e magnificamente asseado a ponto de criar nitidezes e não ser um outro terrível ponto, desgraçado, amovível couraçado de outras guerras, ancorado a letras gordas e esperando ser desmantelado de cima a baixo por corjas de impostores auto intitulados zeladores da escrita pura quando nem escrito têm nem coisa alguma.
Elegi a emoção como opção primeira e privilegiada do meu pensamento e, na minha escrita não permito, nem permitirei, nem a febre dos fenos, nem do contágio decadente que polui de través, é e será o que constituí na minha interpretação de espaço, livre, comum de critica criativa e construtiva, excentricidades são bem vindas aos meus olhos, desde que não rocem a imbecilidade expressiva e a rudeza, as expressões poética querem-se, quero-as eu e todos nós humanos, vazias de exterioridades egoísticas, assim como a caixa onde o gato defeca diariamente se quer limpa de dejectos para que a verdade da agua pura flua e escorra por entre as vistosas pedras em cascata numa montanha livre de doenças parasitárias, malignas e esterilizáveis de pensamento e ideias, que o som das águas nos acompanhe e não o cárcere da infâmia e a lâmina da ignomínia com que muitas vezes sou reclamado a cooperar e reitero desde já um voto pelo bom funcionamento desta incivilizada civilização postuma, que posso e devo chamar assim, para que não se abra a tampa e pandora invada as nossas oníricas quimeras e as transforme em terríveis sensações decrépitas bem acima da linha do cabelo, bem hajam poetas verdadeiramente amantes da escrita…
Por fim luz ao fundo do túnel, não quero incendiar nem demais nem de-menos os ânimos, apenas desejo e apelo ao bom funcionamento de algo que pode e deve ser belo, a partilha de palavras e o desejo, egoísta mas louvável de ser ouvido e partilhado por tantos ouvido, dou as minhas toscas palavras, emprato-as, exponho-as e exponho-me em brancas paredes, no meu pensamento são úteis para me despertar e provocar outros e a exporem-se também e, ou a expressar ideias novas, e aí sim, há momentos em que temos de apagar-nos, dormir para despertar instintos adormecidos, o equilíbrio e o sonho aparecem e nos tornam numa balança, na memória do elefante e a razão ambivalente, essa que nem sempre o é, não parece nem corresponde à ideia que dela temos, não somos longos suficiente para nos validarmos nem aos nossos ideais bem ou mal seguros, não nos valemos suficientemente do inconsciente, nem justo seja o que for a consciência sabemos, dela não pudemos duvidar, mas ao duvidarmos de nós mesmos declaramos possuir faculdades mágicas e fantásticas que nos permitem descrever o belo em imaculadas paredes que mesmo sendo derrubadas são intensamente nossas, pois as mensagens são eternas como as imagens, para quem as sabe decifrar e mesmo as curtas pausas e as pontuações caladas são agentes secretos das palavras dadas, emprestadas a nós por d’outros, empratadas e assim sucessivamente até ao fim desta espécie falante mas não omnipotente, hominídeos q.b … Longa vida aos geralmente poetas,
“Não sei ser útil mesmo sentindo”, posso dizer que sinto, nem que seja porque é essa a única, minha e verdadeira causalidade, (“esse o problema de beber”), o sintagma basilar do que me resta de real, a liberdade magnifica, magnânima, mergulhada em ácido ou caustica como uma traição, a de tecer em contos fábulas e contar o que realmente é prosaico e por demais gasto, o que reside inconsciente na” consciência da passagem do tempo”.
Lembro-me da menos valia de Augusto, de Magno, César-do-mundo-anterior ao meu e do desgaste do tempo que conheço, do padrasto desgosto de não compreender no rosto a mãe da pitonisa das dores, maquilhando-se de mar e coragem à medida que se afunda no Egeu Atlântico a oeste da ilha dos Amores antes da deriva continental para poente …
Os vocais e sílabos constroem-me como se fosse eu um puzzle, uma historia desfocada de “nitidezes”, sinto-me evidente e focado face aos sírios e pálpebras de todos, que de outra forma não me concluo, nem me concluirei de facto, “nem me dá gana” continuar sustentando o insustentável, o imponderável que é, como se sabe, criar contradições e complementos a partir da bílis e do esperma e a propósito de coisa alguma e do nada mais, pois que é disso que se trata quando se constrói, destrói-se o útil e o apenas, fica o transversal, a nossa pseudo alma, o pseudónimo exuberante e vital de quando se entorta um prego, a realidade numa outra forma também básica, prosaica e de metal / ferrugem mas quiçá mais real que esta agora e de sempre que, não por se honesta, me basta.
E é isso mesmo na atitude, o escrever simplesmente, ele mesmo, o mito qual nos transforma em crianças “incompreendedoras” crónicos filósofos da graça e da descrença, ínfimos promíscuos até nos crermos inexistentes como flutuantes aliados ao infinito na forma de alheamento alado, somos maravilhosos enquanto bons pensadores e/ou escritores desafinados, assim o desejo endógeno, também ele poético.
Por palavras minhas dou hoje o sempre o que digo e escrevo, escravo das cores que não tenho, doem-me as crostas nas minhas toscas e roucas palavras, compactuas, emprato-as, exponho-as e exponho-me em francas paredes, brancas, singelas no meu pensamento, tão úteis para pensar como para me despertar, pra desertar de mim próprio e provocar noutros o sentido de intimidade exposta e a exporem-se também e/ou expressar ideias novas e há depois momentos em que temos de apagar, apagar-nos, dormir para despertar instintos adormecidos, o equilíbrio e o sonho aparecem e nos tornam numa balança, na memória do elefante e a razão ambivalente, essa que nem sempre o é, não parece nem corresponde à ideia que dela temos, não somos longos suficiente para nos validarmos nem aos nossos ideais bem ou mal seguros, não nos validamos suficientemente, nem justo seja o que for, mas ao duvidarmos de nós mesmos declaramos possuir poderes mágicos que nos permitem descrever o belo em imaculadas paredes que mesmo sendo derrubadas são intensamente nossas pois as mensagens são eternas para quem as sabe decifrar e mesmo as curtas pausas e as pontuações caladas são agentes secretos das palavras dadas, emprestadas a nós por d’outros e assim sucessivamente até ao fim desta espécie falante mas não omnipotente, hominídeos símios, q.b de bravos gloriosos e valentes tanto quanto fracos e indecisos.
Por palavras minhas e não d’outros parto à bolina num trem sem carruagens e com um semi-talento atrelado , eu sentado na esquina da maquina de escrever, (chavões à parte e às paginas tantas), algo que não controlo pleno é uma locomotiva a pleno vapor no Tejo ou no Sado eu não cometo abalroamentos quando navego à bolina , planto e dito assim mesmo, como que ao vento, também ele mau conversador, faço de bruto, um pouco menos ou mais que conversa cúmplice de maus presságios, vou de faca afiada nos dentes e já que de palavras lidas está o molhe cheio e o bote transborda aqui e acolá, por vezes vai ao fundo, as palavras são o que me fazem ser e querer ser tal como formiga d’asa.
Serve para dizer por palavras que ouço como se fossem minhas, eu próprio na musicalidade em Oboé das ramagens dos carvalho gigantes e velhos e nas coisas como fosse o som da caminhada que é conjunta e sagrada, estamos juntos nessa estrada longa que é escrever, pois escrevamos …
E viva a poesia
Não sei ser útil mesmo sentindo
“Caminho, por não ter fé …”
Uma corrente humana não passa disso mesmo, de um mega-elo verbal e metafísico e a exposição ou predisposição pretensamente panteísta desse elo, podendo ser ortodoxo ou heterodoxo (embora tente convencer-me do contrário) pode ser balizado por argumentos não actuantes, distintos da função onde assentam os meus princípios e a missão humana que serve de orientação das minhas emoções funcionais vitais mais primárias e dominantes. Essa subjacente emoção, traz consigo o que se pode considerar um selo empático, se o individuo puder explicar-se pelo pensamento e não por acções que redundam a realidade de um mal social maior, que define determinado paradigma, como amoral entre entes imorais, em que uma palavra define outra e outra, assim por diante, como um ser se define definitivamente e infinitamente como inferior ou superior, pela educação ou a irreparável falta dela, se aplicada irracionalmente, com todas as consequências. Justifico-me plenamente pela religião, pelo que ela comporta mais que pela verdade evidente, reduzo-me até ao mínimo absurdo, mas primo pelo direito de conservação da minha racionalidade espiritual e conceitual, excluindo os outros, a partir de um certo ponto, apago-os da minha existência, da minha condição de residente nos elevados subúrbios, embora viva a simplicidade das flores no quintal que cultivo. O que me distingue e á minha tese panteísta, é a função de esgaravatar buscando por almas humanas também elas na busca de outros desses eles, nos locais mais recônditos e isso implica abdicar de determinados conceitos estéticos, que vejo sendo abduzidos e reduzidos, a uma trama sem carácter, à qual não tenho outro remédio, senão disciplinarmente me afastar e conscientemente denunciar a coartação de pensar -liberdade e o direito inalienável – de me conspurcar de todos os desmandos possíveis e imagináveis á luz da verdade, liberdade, excepção e bom gosto. Sou contra quem me erguer defronte um muro, em nome da liberdade, senão contra mim que seja, e não procurar um eclectismo intelectual, talvez ilusório e teatral, revoltar-me contra mim até, se for o caso e sair deste marasmo em que me sinto tolhido e sem argumentos aumentativos, confinadamente assentes e com sentido, é este o primeiro passo para o meu progresso mental poético e argumentativo. Sempre criei poesia de base zero, anuindo natureza a dois números primos, com a hipótese de, dentro do meu espírito, o colorido tinte uma polícroma dimensão, não digo geométrica, mas volumétrica que pode ser tocada por quem do-lado-de-fora também tenha uma designação não convencional, para as duas linhas separando os olhos, servirem de interlocutor lúcido ao queixo em baixo. Sobra-me finalmente uma tristeza que é não ter eco de vozes incógnitas, ou quórum de querubins sem sexo, fazendo piruetas, mas porque havia de ter, sendo de única via a estrada que trilho e o tino igual à distância que me separa deles, externos a mim, salada em geral insone, insonsa e genericamente incomoda, que não gosto de ver nem sentir, tudo depende da minha marcada objectividade, mascarada de manufacturadas realidades, por não precisar de melhor e, deixar de escrever, não é deixar de escrever, já que o meu “phatus”, ou sentimento de imensa paixão não é feito de papel pardo ou faca, nem é jornal de forrar parede de caixote de lixo.
De facto, não me merece respeito quem não me respeita, nem os meus sinais e até rejeita esta grainha rejeitada e a relatada redacção, é a básica matéria-prima que possuo, nesta cara fria por fora e por dentro limão, e é-me tão ou mais cara que o preço de um café, sorvido apressadamente ao balcão. Falta-me qualquer argumento que qual, ainda não sei qual, mas dou-me por satisfeito e retiro-me com estas divagações redigidas à pressa, para que a vossa desatenção ou a atenção parcial não desbote, já que sobriedade não tenho, nem peço aos periféricos deuses por tal, pois perfeito é desumano e eu não desconsidero a aproximação ao sublime. Adoramos o que temos e o que não podemos ter, e eu ouço a respiração da natureza como um Endovélico Dom, ou um efeito alterado de percepção imaginária, não como uma vantagem de quem mora um andar mais alto e elevado, mais que a maioria dos inquilinos desta cidade parida dos mortos, mas que deixou de ser refúgio sacro para mim. Os pensamentos surgem-me nas mesquitas, às esquinas, nos cotovelos presentes em mesas, cadeiras e chávenas de café quente e quando menos reparam em mim, em nós outros, passageiros das passadeiras brancas e pretas, olhando no fixo do olhar vazio dos nossos semelhantes, de quem nem vê quem lá anda, quem lá passa de manso. Sinto uma inveja profunda na realidade e nas imensas coisas que tornam monótona a contemplação do mundo exterior a mim, como uma paixão visual, manifesto-me pela escrita argumentativa e na poesia não decorativa, o que diminui ainda mais o efeito ilusório da realidade, sensação congénita em mim. As coisas que procuro, não estão em relação a mim, quanto eu em ligação a elas; encolho os ombros e caminho devagar, por não ter cura para este mal-entendido com a realidade e retiro-me com o pressentimento de não voltar eu próprio, por via de me ter tornado outro mais puro e poroso, por fim magnânimo, ao ponto de nada ser igual ao que era, quando volto a cabeça e olho para trás, sobre o ombro. A propósito de charlatãos, desses que não merecem o meu respeito, antes o desprezo, servindo servis propósitos pseudo-mediáticos ou esquemas sociopáticos ainda mais obscurantistas que eles próprios conseguem conceber numa confrangedora confraria de simplórias bestificações da miséria alheia a que se associam de candeia acesa, insinuando-se beatos estudiosos com uma maior-luz dentro que os ratos de que se rodeiam, também eles roedores buscando migalhas de dispensas pobres em orfandades imundas. “Não sei ser útil mesmo sentindo”, posso dizer que sinto, nem que seja porque é essa a única, minha e verdadeira causalidade, (“esse o problema de beber”), o sintagma basilar do que me resta de real, a liberdade magnifica, mergulhada em ácido ou caustica como uma traição, a de tecer em contos fábulas e contar o que realmente é prosaico e por demais gasto, o que reside inconsciente na” consciência da passagem do tempo”. Lembro-me da menos valia de Augusto, de Magno, César-do-mundo-anterior ao meu e do desgaste do tempo que conheço, do padrasto desgosto de não compreender no rosto a mãe da pitonisa das dores, maquilhando-se de mar e coragem à medida que se afunda no Egeu Atlântico a oeste da ilha dos Amores … Os vocais e sílabos constroem-me como se fosse eu um puzzle, uma historia desfocada de “nitidezes”, sinto-me evidente e focado face aos sírios e pálpebras de todos, que de outra forma não me concluo, nem me concluirei de facto “nem me dá gana” continuar sustentando o insustentável, o imponderável que é, como se sabe, criar contradições e complementos a partir da bílis e do esperma e a propósito de coisa alguma e do nada mais, pois que é disso que se trata quando se constrói, destrói-se o útil e o apenas, fica o transversal, a nossa pseudo alma, o pseudónimo exuberante e vital de quando se entorta um prego, a realidade numa outra forma também básica, prosiaca e de metal / ferrugem mas quiçá mais real que esta agora e de sempre que, não por se honesta, me basta. E é isso mesmo na atitude, o escrever simplesmente, ele mesmo, o mito qual nos transforma em crianças “incompreendedoras” crónicos filósofos da graça e da descrença, ínfimos promíscuos até nos crermos inexistentes como flutuantes aliados ao infinito na forma de alheamento alado, somos maravilhosos enquanto bons pensadores e/ou escritores desafinados, assim o desejo, ele também. Por palavras minhas dou hoje o sempre o que digo e escrevo, escravo das cores que não tenho, doem-me as crostas nas minhas toscas e roucas palavras, compactuas, emprato-as, exponho-as e exponho-me em francas paredes, brancas, singelas no meu pensamento, tão úteis para pensar como para me despertar, pra desertar de mim próprio e provocar noutros o sentido de intimidade exposta e a exporem-se também e/ou expressar ideias novas e há depois momentos em que temos de apagar, apagar-nos, dormir para despertar instintos adormecidos, o equilíbrio e o sonho aparecem e nos tornam numa balança, na memória do elefante e a razão ambivalente, essa que nem sempre o é, não parece nem corresponde à ideia que dela temos, não somos longos suficiente para nos validarmos nem aos nossos ideais bem ou mal seguros, não nos validamos suficientemente, nem justo seja o que for, mas ao duvidarmos de nós mesmos declaramos possuir poderes mágicos que nos permitem descrever o belo em imaculadas paredes que mesmo sendo derrubadas são intensamente nossas pois as mensagens são eternas para quem as sabe decifrar e mesmo as curtas pausas e as pontuações caladas são agentes secretos das palavras dadas, emprestadas a nós por d’outros e assim sucessivamente até ao fim desta espécie falante mas não omnipotente, hominídeos símios, q.b de bravos gloriosos e valentes tanto quanto fracos e indecisos. Por palavras minhas e não d’outros parto à bolina num trem sem carruagens e com um semi-talento atrelado , eu sentado na esquina da maquina de escrever, (chavões à parte e às paginas tantas), algo que não controlo pleno é uma locomotiva a pleno vapor no Tejo ou no Sado eu não cometo abalroamentos quando navego à bolina , planto e dito assim mesmo, como que ao vento, também ele mau conversador, faço de bruto, um pouco menos ou mais que conversa cúmplice de maus presságios, vou de faca afiada nos dentes e já que de palavras lidas está o molhe cheio e o bote transborda aqui e acolá, por vezes vai ao fundo, as palavras são o que me fazem ser e querer ser tal como formiga d’asa. Serve para dizer por palavras que ouço como se fossem minhas, eu próprio na musicalidade em Oboé das ramagens dos carvalho gigantes e velhos e nas coisas como fosse o som da caminhada que é conjunta e sagrada, estamos juntos nessa estrada longa que é escrever, pois escrevamos … Viva a poesia Não sei ser útil mesmo sentindo, detesto dizer “geralmente”, não falo por falar de generalidades nem assumo o papel sagrado do mérito que me cabe por evidencia e “ipsis verbis” por excelência ou incumbência criativa, “Ipsis factus” não falarei de trilobites nem da minha própria natureza, das grandezas homéricas, mas da deriva genésica, do afastamento e da náusea limítrofe adjacente e léxica mas sim do que chamarei de “alegoria da ignorância”, da mediocridade, da cretinice genérica e genética, da “burrice mediática” e mediúnica, insalubres quanto estas águas pobres em que me banhei e teimo tal qual um Santo António tagarelando aos peixes. Defino-me como o Orfeu lúdico e lírico ou mais prosaicamente o homem que nunca existiu, a singularidade do Peloponeso telúrico, daí a sensação de deriva contínua e uma mão cheia de sísmicos argumentos para me afastar da escuridão da caverna e das trevas dos falsos líricos, dos entrincheirados leprosos que coabitam ciumentos estes canais estreitos e corruptos assumidos de antemão assim como uma assunção de indignidade assumida. Apesar de excepcionais orelhas curvas e magníficos desproporcionais probóscides estomacais vestidos a quase tudo quanto podemos ingerir e conseguimos defecar sem dificuldade por aí além mas com elevada mestria, como oleiros em potenciais olarias familiares/tradicionais, temos largos e apurados esófagos, descendentes de afegãos sorumbáticos e pagãos, somos depurados e dependurados pelos órgãos genitais por crime de divergência existencial por estrambólicos eunucos circenses, sacrificados fiduciários nas fogueiras dos maldosos e malvados argonautas do desprezo e por decreto, nem sempre presentes fisicamente mas omnipotentes, esquartejadores de consciências, somos desqualificados, silenciados, apedrejados por símios seminus e estrábicos orgânicos, expomos-mos servilmente aos mais baratos, feios, básicos escrevinhadores seminais, monossilábicos e somos agredidos das formas mais vis, humilhantes, baixas que se conhecem apesar da diarreia verbal destes ser completa, corrupta e gástrica, de refluxo semi-animal, enjoante, enojante e maldoso, maliciosos carroceiros animalescos a caminho do mercado de gado bi-semanal, sem causa básica nem amalgama que não seja escrota, repolho e feijão preto, apenas desgosto, má língua e mácula ao repasto, sem bom gosto, nem pá de porco, nem afago de vizinho naturalmente sempre bem disposto. Assumo com responsabilidade monástica e monogâmica, a desordem no feminino, como transformadora natural e dinamizante de uma sociedade recticulada e gesticuladora, naturalidade é dignidade na dimensão do humanista e “Partizan” e é minha a de conspirador, às sextas feiras á noite na mata dos medos solitários, não traio as minhas convicções nem que me deem alpiste, são tal forma humanas de maneira clara e magnânima nas minhas opiniões , sou magnífico e valente nas minhas partes genitais e magistral nas artes que ofício depois da cinco da tarde, os meus atos mais brandos bradam e ardem como se fossem fogo de artificio nos céus ao domingo de ramos, na aldeia da Piedade (que não tenho). Ponderados quanto honrosos os palavrões e chavões, os impropérios que grito aos quatro ventos, não me calo, quantos mais e ilegais e violentos estes sim, servirem a defesa da liberdade e da plenitude, sou condescendente desde tenra idade ao ponto de arrotar um obrigado mesmo que palavras Ad.Hoc me firam, sou educado q.b.. e como bolacha maria de agua e sal ao lanche, não faço dieta, nem bem nem mal faço em jejum apesar de estar disposto a tudo e até à guerrilha armada e à guerra santa como um bom Filisteu e ateu de renome que se borrifa de agua benta ao sábado se for disso o caso, dou vida aos caos aniquilador e completo se a causa for justa e a calmaria suprema no fim do embate, a bonança depois da tempestade violenta provocada pelos drusos negros “sem orelhas”, Pechenegues beligerantes e pouco afáveis ou fiáveis das florestas Andaluzas de ind’agora, franco-atiradores disfarçados, cobertos de ramos embora de chinelas suásticas gastas, suavos castanhos e pretos. Ajo para fora de mim embora a agilidade espiritual seja bem lá dentro e por fora quer seja benevolente quanto á desordem material e sem cura ou me incline pelo pacifismo beligerante em roda dos testículos escuros e pretos, sou pragmático, considero em todas as minha palavras escritas o suborno a alguém e ao além bem mais profundo e profano que a Pietá de joelhos, prostrada ou sentada com um santo indefeso e defunto ao colo com sinais de arrependimento no rosto e uma chaga no peito, presumo que em assunção da dignidade finalmente assumida por ti por mim e por todos vós outros… Não há maneira sóbria de descrever o sentir nem único o sentido, somente por eu o afirmar e dizer me sinto a pensar por ser tão complexa a forma e tão curta a linguagem não a mensagem. Fulgurante sensação quando ponho a ouvir-me pensar alucinado nisto de passar para a margem segura que persigo dias sem fim tentando me salvar talvez por não ter valor no que digo nem a imensidão da minha alma tenha força para abordar com ardor os rios de pensamentos que fluem e morrem num discurso insosso como o meu é e sempre foi…será !
Uma corrente humana não passa disso mesmo, de um mega-elo verbal e metafísico e a exposição ou predisposição pretensamente panteísta desse elo, podendo ser ortodoxo ou heterodoxo (embora tente convencer-me do contrário) pode ser balizado por argumentos não actuantes, distintos da função onde assentam os meus princípios e a missão humana que serve de orientação das minhas emoções funcionais vitais, mais primárias e dominantes.
Essa subjacente emoção, traz consigo o que se pode considerar um selo empático, se o individuo puder explicar-se pelo pensamento e não por acções que redundam a realidade de um mal social maior, que define determinado paradigma, como amoral entre entes imorais, em que uma palavra define outra e outra, assim por diante, como um ser se define definitivamente e infinitamente como inferior ou superior, pela educação ou a irreparável falta dela, se aplicada irracionalmente, com todas as consequências.
Justifico-me plenamente pela religião, pelo que ela comporta mais que pela verdade evidente, reduzo-me até ao mínimo absurdo, mas primo pelo direito de conservação da minha racionalidade espiritual e conceitual, excluindo os outros, a partir de um certo ponto, apago-os da minha existência, da minha condição de residente nos elevados subúrbios, embora viva a simplicidade das flores no quintal que cultivo.
O que distingue a minha tese panfletária, é a função de esgaravatar buscando por almas humanas também elas na busca de outros desses eles, nos locais mais recônditos e isso implica abdicar de determinados conceitos estéticos, que vejo sendo abduzidos e reduzidos, a uma trama sem carácter, à qual não tenho outro remédio, senão disciplinarmente me afastar e conscientemente denunciar a coartação de pensar -liberdade e o direito inalienável – de me conspurcar de todos os desmandos possíveis e imagináveis á luz da verdade, liberdade, excepção e bom gosto.
Sou contra quem me erguer defronte um muro, em nome da liberdade, senão contra mim que seja, e não procurar um eclectismo intelectual, talvez ilusório e teatral, revoltar-me contra mim até, se for o caso e sair deste marasmo em que me sinto tolhido e sem argumentos aumentativos, confinadamente assentes e com sentido, é este o primeiro passo para o meu progresso mental poético e argumentativo.
Sempre criei poesia de base zero, anuindo natureza a dois números primos, com a hipótese de, dentro do meu espírito, o colorido tinte uma polícroma dimensão, não digo geométrica, mas volumétrica que pode ser tocada por quem do-lado-de-fora também tenha uma designação não convencional, para as duas linhas separando os olhos, servirem de interlocutor lúcido ao queixo em baixo.
Sobra-me finalmente uma tristeza que é não ter eco de vozes incógnitas, ou quórum de querubins sem sexo, fazendo piruetas, mas porque havia de ter, sendo de única via a estrada que trilho e o tino igual à distãncia que me separa deles, externos a mim, salada em geral insone, insonsa e genericamente incomoda, que não gosto de ver nem sentir, tudo depende da minha marcada objectividade, mascarada de manufacturadas realidades, por não precisar de melhor e, deixar de escrever, não é deixar de escrever, já que o meu phatus, ou sentimento de imensa paixão não é feito de papel pardo ou faca, nem é jornal de forrar parede de caixote de lixo.
De facto não me merece respeito quem não me respeita, nem os meus sinais e até rejeita esta grainha rejeitada e a relatada redacção, é a básica matéria-prima que possuo, nesta cara fria por fora e por dentro limão, e é-me tão ou mais cara que o preço de um café, sorvido apressadamente ao balcão.
Falta-me qualquer argumento que qual, ainda não sei qual, mas dou-me por satisfeito e retiro-me com estas divagações redigidas à pressa, para que a vossa desatenção ou a atenção parcial não desbote, já que sobriedade não tenho, nem peço aos periféricos deuses por tal, pois perfeito é desumano e eu não desconsidero a aproximação ao sublime.
Adoramos o que não podemos ter, e eu ouço a respiração da natureza como um Endovélico Dom, ou um efeito alterado da percepção imaginaria, não como uma vantagem de quem mora um andar mais alto e elevado, mais que a maioria dos inquilinos desta cidade malparida, mas que deixou de ser refúgio sacro para mim.
Os pensamentos surgem-me nas mesquitas, às esquinas, nos cotovelos presentes em mesas, cadeiras e chávenas de café quente e quando menos reparam em mim, em nós outros, passageiros das passadeiras brancas e pretas, olhando no fixo do olhar vazio dos nossos semelhantes, de quem nem vê quem lá anda, quem lá passa de manso.
Sinto uma inveja profunda da realidade e de imensas coisas que tornam monótona a contemplação do mundo exterior a mim, como uma paixão visual, manifesto-me pela escrita argumentativa e na poesia não decorativa, o que diminui ainda mais o efeito ilusório da realidade, sensação congénita em mim.
As coisas que procuro, não estão em relação a mim, quanto eu em ligação a elas; encolho os ombros e caminho devagar, por não ter cura para este mal-entendido com a realidade e retiro-me com o pressentimento de não voltar eu próprio, por via de me ter tornado outro mais puro e poroso, por fim magnânimo, ao ponto de nada ser igual ao que era, quando volto a cabeça e olho para trás, sobre o ombro.
A propósito de charlatães indesejáveis, desses que não merecem o meu e o nosso respeito, antes o desprezo e a náusea, dizem eles (ou ele) que editam 150 milhões e mais, de livros, pobres livros jamais lidos, servindo servis propósitos pseudo-mediáticos ou esquemas sociopáticos ainda mais obscurantistas que eles próprios conseguem conceber numa confrangedora e antipática confraria de simplórias bestificações da miséria alheia global e globalizante a que se associam em sociedades maléficas de candeias mal acesas, insinuando-se beatos estudiosos com uma Maior-Luz central dentro do que aquela estripe de ratos de que se rodeiam, também eles roedores buscando migalhas de dispensas pobres em orfandades imundas, pobres e indigentes, cabe-me a mim e a todos denunciar a falta de argumentos argumentativos destas seitas que se dizem a luz da verdade.
Liberdade, excepção e bom gosto são estandartes nobres que não quero , não queremos ver “por terra” enquanto vivos e sediados neste mundo digital cada vez mais brutal e desumano, ladeados dos incapazes mais pequenos e sujos, subjugantes parcos e ignorantes , suínos de pocilga lembrando tristemente o “Triunfo dos Porcos”) ….
Dou livremente asas às minhas moucas palavras, ouço-as na mente, emprato-as, exponho-as e exponho-me em brancas paredes, no meu pensamento são úteis para me despertar e provocar outros e exporem-se também e ou expressar ideias novas e há momentos em que temos de apagar-nos, dormir para despertar instintos adormecidos, o equilíbrio e o sonho aparecem e nos tornam numa balança, na memória do elefante e a razão ambivalente, essa que nem sempre o é, não parece nem corresponde à ideia que dela temos, não somos longos suficiente para nos validarmos nem aos nossos ideais bem ou mal seguros, não nos validamos suficientemente, nem justo seja o que for, mas ao duvidarmos de nós mesmos declaramos possuir poderes mágicos que nos permitem descrever o belo em imaculadas paredes que mesmo sendo derrubadas são intensamente nossas pois as mensagens são eternas para quem as sabe decifrar e mesmo as curtas pausas e as pontuações caladas são agentes secretos das palavras dadas, emprestadas a nós por d’outros e assim sucessivamente até ao fim desta espécie falante mas não omnipotente, hominídeos q.b …

Longa vida aos realmente poetas

 

 

 

Jorge Santos, (aliás Joel Matos)

(Dezembro 2020)

https://namastibet.wordpress.com

http://namastibetpoems.blogspot.com
Procura-se o poeta,
Entre tantos poemas de amor,
Remexendo os escaninhos,
Esquadrinhando os pensamentos,
Cantinhos de um coração sereno,
Moldado de sentimentos.
 
Procura-se o poeta nas esquinas,
Nas trincheiras da vida,
Ferido nas batalhas mortais,
Cheio de tempo ao vento,
Passeando nas nuvens,
Colhendo letras no jardim das ilusões.

Procura-se o poeta no ades,
No purgatório de sua sina,
Sofrendo entre tantos sofrimentos,
Sangrando sem sangrar,
Parafraseando o próprio eu,
Nas págimas em branco de sua aventura.

Procura-se o poeta faminto de dor,
Artesão debaixo da chuva,
Recitando seus versos ao nada,
Repleto de sonhos quase infinitos,
Brincando de faz de conta,
Beijando a desconfiada existência.

Procura-se o poeta,
Entre seus amores interiores,
Vestido de coragem além de si,
Cavalgando o desconhecido,
Sem medo de tudo que há,
Simplesmente sendo quem é.

Procura-se o poeta entre as reticências,
Pontos,vírgulas e exclamações,
Dialogando com a liberdade poética,
Tendo nas mãos as rimas,
Embriagadas pelos versos brancos,
Tropeçando na métrica de sua ousadia..

Procura-se o poeta no poeta,
No meio do tudo e do nada,
visionando o infinito das coisas,
Brincando no meio da luz,
Olhando de longe a escuridão,
Sem medo de gritar se preciso for.

Procura-se,
o Poeta está em todas as formas,
Imitando a multidão de olhares,
Sendo o que deve ser,
Das noites ao entardecer,
Apaixonado em suas premissas.

Sirlânio Jorge Dias Gomes

















A mente humana está fadada à ilusão. É que digo pra mim todo dia em que levanto pela manhã e acendo um cigarro em jejum. Nada mais do que meras utopias nos fazendo crer que desejos sociais preencherão o vazio de nossos peitos, sob a ótica das relações de aparência. É como o endeusamento do matrimônio. Só mais um conceito de loucura distorcido de que a felicidade alheia depende do seu entendimento e dos laços sagrados, fazendo com que a porra que você goza seja responsável por dar vida à 7 bilhões de pessoas nesse majestoso planeta terra. Estamos amontoados na loucura de acreditar que a sanidade é um privilégio de poucos. Nem fodendo. Somos todos completamente esquisitos e suscetíveis a cometer atos que espantam as nobres tradições seculares de uma sociedade conservadora. Digo esse maldito monólogo para mim todo dia. Minha solidão é meu lar, minha puta e meu vício.

Aprendi tudo isso com minha prima Verônica. Linda de se ver, recatada, pronta pra ser a próxima dama da high society brasileira quando sua mãe finalmente caísse 7 palmos abaixo da terra. Como se não bastasse, Verônica foi sempre uma aluna exemplar, sendo uma das mentes mais inteligentíssimas que a academia teve o prazer ter em seu ambiente. Era o orgulho da família.

Porém, ao contrário de Verônica, eu sempre fui a ovelha negra da família. Tanto que fui morar distante de meus parentes, me comunicando apenas por carta ou telefonemas avulsos. Eu realmente evitava telefones. Odeio aqueles aparelhos metálicos em meu ouvido, com uma voz distorcida do outro lado. Fora que você tem que ficar segurando tipo o caralho de alguém que vocês está, impacientemente, esperando gozar. Sempre preferi a caligrafia. Então, a única pessoa que se dava ao trabalho me escrever era Verônica. Sempre fomos próximos desde criança. Adorava ler suas cartas contando como a vida andava sem mim naquela pacata cidade.

"Querido, primo.

Sinto saudades suas. Mas tenho uma novidade maravilhosa: Estou apaixonada. Conheci um rapaz lindo, inteligente e de boa família. Meus pais estão nas nuvens. Ele se chama Ricardo. Estamos namorando como condizem as tradições. Anseio seu retorno para apresentá-los. Tenho certeza que irão se dar muito bem.

Com amor, Verônica."

Percebi que o tempo havia passado de fato. Aquela doce e sonhadora jovem agora era uma mulher com desejos de constituir família. Ela havia chego naquela fase que evito até hoje: Como nossos pais. Entretanto, Fiquei feliz por ela, afinal foda-se o que as pessoas desejam, importante é ter suas doses de felicidade. E de todas as minhas raízes genealógicas, Verônica foi a única que nunca julgou o estilo de vida que escolhi, não seria justo que lhe julgasse. O restante da família apenas dizia que eu era um desgarrado. Caguei. Aliás, sempre gostei de ser um ponto fora da curva. Os loucos, vilões e pessoas de mentes quebradas sempre me foram mais atrativos do que o senso comum.

Bom, o tempo foi passando, mais ou menos uns 4 anos, e as cartas de Verônica foram sempre presentes em minha caixa de correio. Porém, nas últimas vezes, comecei notar um tom tristonho em suas palavras, até que ela realmente me mandou um desabafo.



"Querido, primo

Estou confusa. Acho que minha relação com Ricardo desgastou. Com o tempo ele passou a se mostrar diferente daquilo que eu conheci. É machista, arrogante, controlador e num acesso de raiva, me ofendeu e me deu um tapa no rosto. Não quero isso pra mim. Ainda mais agora que conheci o irmão de Ricardo, chamado Rafael. Você não vai acreditar! Eles são gêmeos. Iguaizinhos. Porém com personalidades totalmente opostas. Rafael é muito mais doce e sensível que Ricardo. Realmente parece a história daquele livro do Milton Hatoum: Dois irmãos. São muito opostos. Ele também esclareceu que sempre sofreu com a índole violenta. Não quero mais isso. Terminarei com Ricardo.

Com amor, Verônica."

Fiquei puto de raiva. Ora, um brutamontes batendo na minha doce prima. Que filho da puta! Uma moça tão especial e esse covarde fazendo ela de pano de chão. Minha vontade era de enfiar-lhe um cabo de vassoura no rabo.

Tentei ligar para minha Tia Helena, mãe de Verônica, para tomar parte da situação e ajudar a filha nesse momento, mas ninguém atendia aquela porra. Malditos telefones. Então, novamente troquei mais algumas cartas, desta vez aconselhando minha prima a largar o palhaço de vez e dar queixa na polícia. Mas a resposta que veio me trouxe outra grande surpresa.

"Querido, primo

Trago boas novas. Larguei Ricardo fazem 4 meses. Estou nas nuvens. A liberdade me domina. Quanto a ele, simplesmente me ignora e está comendo uma mulher casada que é sua vizinha. Não me importo. Problema dele. Aliás, tenho uma novidade surpreendente: Rafael, irmão de Ricardo, procurou-me outro dia na saída da igreja e se declarou pra mim. Disse que sempre me amou e tinha inveja do irmão. Que sofria dias e noites sabendo que eu estava me prendendo à um monstro. Ah! O Rafael é um sonho. Fiquei encantada com sua declaração e resolvi me entregar à paixão. No início, ambas as famílias não quiseram aceitar, mas tiveram que nos engolir, pois nosso amor transborda por todos os lados. Estamos noivos, primo! Estou muito feliz. Casaremos no começo do ano que vem. Mandarei o convite pra você em breve.

Com amor, Verônica."

Puta que pariu. Foi exatamente o que pensei. Se não me bastasse toda a situação que ela viveu com Ricardo, ela vai e se envolve com o irmão gêmeo. Instintivamente imaginei um ménage entre minha prima e dois gêmeos. Uma cena perturbadora até pra mim. Eu escrevi e tentei telefonar para meus parentes, principalmente para tia Helena, mas não obtive retorno. Um inferno.

Mas, com o passar dos dias, após absorver tal informação, resolvi deixar meu preconceito de lado e escrevi de volta dando apoio à Verônica. Afinal, o que me importava mesmo é que ela fosse feliz e bem tratada. E pelo tom das cartas, Rafael era uma pessoa honrada e decente.

Porém, dias antes de embarcar para o casamento, tentei novamente me comunicar com o restante da família, porém tudo fora em vão. Somente Verônica insistia em se comunicar comigo.

E assim o ano virou e junto com uma garrafa de champanhe, recebo um convite branco com letras prateadas.

"Ao meu primo preferido e melhor amigo.

Venho por meio deste lhe convidar para o momento mais feliz de minha vida: meu casamento. Será dia 23 de janeiro, a partir das 18 horas, na igreja central. Não se atrase. Eu e Rafael aguardamos sua presença com grande entusiasmo. Amo você.

Com amor, Verônica."

Mas que puta inferno. Eu odiava casamentos tanto quanto odiava telefones e ternos. E odiava ainda mais ter que voltar aquela maldita cidade, onde minha família nem ao menos fazia questão de me comunicar. Mas por apreço à Verônica, eu iria. Afinal, nem que fosse pra mandar meus parentes tomarem nos seus respectivos rabos, mas eu iria lá dar um grande abraço em Verônica.

Chegado o dia, um calor insuportável do ápice do verão, fui até um amigo e peguei um terno emprestado. Me enfiei no primeiro ônibus e parti rumo ao casamento do ano. O ônibus sacolejava, o banheiro fedia e pra piorar eu não podia fumar dentro da condução. Parece que algo sempre me impedia de voltar para aquela província.

Ao chegar na cidade, nada mudou. Tudo estava parado no tempo. Simplesmente aquele lugar parecia não andar na mesma velocidade temporal que as demais cidades. Era como se eu tivesse voltado no tempo. O silêncio nas ruas era ensurdecedor. Mas sentia uma nostalgia de voltar ao ponto onde cresci.

Caminhei até a antiga casa da minha tia Helena, e a mesma estava toda trancada. Presumi que já deviam estar todos na igreja.

Me escondi atrás de casa, troquei de roupa, pondo aquele terno maior que eu e fui andando pra igreja parecendo um defunto que levantou do caixão faziam 15 minutos. Não lembrava muito bem onde era. Parei no único boteco aberto e falei para um tiozinho que atendia no balcão:

-E aí, chefe? Me vê uma dose e pode me dizer se o casamento já começou?

Ele me serviu a dose com olhar estranho e disse.

-Não estou sabendo de casamento nenhum. O padre abandonou a paróquia há mais de 3 anos.

-Ué, mas minha prima Verônica se casa hoje...

-Filha da falecida Helena?

-Tia Helena morreu?

-Meu jovem, acho que você deveria ir até a igreja...

Engoli a dose de uísque e sai correndo pra paróquia. Não havia carros, decoração ou alma viva em torno da mesma. Pé por pé subi os degraus até ficar de frente pra porta escancarada. A poeira tomava conta do lugar.

No altar, vestida de noiva, com direito a véu, grinalda e bouquet, estava Verônica. Solitária, sorrindo e proferindo votos de fidelidade à ninguém.

Não tive reação. Não falei uma palavra. Virei às costas, sentei na escada e acendi um cigarro. Não quis saber o que tinha acontecido. Não me importo com o delírio alheio, afinal tenho ilusões demais para julgar as dos outros. Que Verônica casasse e fosse feliz com quem bem entendesse. Até mesmo com sua loucura.



Yuri Cidade



Eu vivi muitos amores
Alguns me cobriram de flores
Uns eu queriam bem
Outros só sabor que (tinham) tem...

Diferenciados de monte
Alguns me levaram à cimeira
Em uns eu bebi da fonte
Outros me serviram de acento
De prazer naquele momento...

Alguns farejaram meu cio
Do mais grosso ao gentil
Uns eram meio calados
Outros doidos esfameados...

Alguns românticos davam uma rosa
Uns devassos sorviam a gostosa
Outros só transa libidinosa...

Vivi algumas paixões belas
Mas outras só foram singelas
Para alguns eu fui um enleio
Uns beberam em meu seio
Outros só queriam me bulir
Os mesmos que eu só quis sentir...

Com alguns adentrei a madrugada
A uns me fingi extasiada
Com outros fui safada, atrevida...

Alguns em pejo, fiquei acendida
com uns fui tartada feiticeira
Com outros veloz, muito ligeira...

Enfim... Antes... depois ou durante
A minha marca eu deixei
Fui para todos voluptuosa amante
Só carnal... Meu coração eu não dei!




Cleia Fialho 
02/04/2013


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Chegamos atrasados, mas o show não havia começado. A sorte foi não existir lugar para sentar. O jeito era ficar em pé ou sentado no chão... ao lado e da mesma altura do palco. Foi simplesmente o melhor lugar para se assistir a um show musical: o 14 Bis.




Foi muito interessante testemunhar a tensão de um show. Estávamos tão próximos que os impropérios  do Claudio Venturini e Marcão pareciam endereçados a nós. Entretanto, era o “roadie” que, entre fios e botões, recebia os xingamentos, procurando a regulagem ideal do som.




Ver uma apresentação tão próximo do palco era uma experiência única, mas também frustrante, porque eu estava acostumado a assistir, de longe, a uma ilusão. Contudo, pelo contrário, o que testemunhei foi o conjunto musical, cujas letras falam de futuro, esperança e amor, distribuindo farto repertório de palavrões para o pobre funcionário. Sendo assim, a magia da música e seus significados perderam sua magia e tudo parecia uma fábrica de salsichas. Diria mais, eu paguei para testemunhar o Claudio Venturini e o Marcão agindo como quem briga no trânsito ou em um boteco. Jamais pagaria para isso. A decepção foi como visitar a cozinha de um restaurante francês e encontrar larvas, ratos e baratas.




No entanto, algo longe do concerto chamava mais a atenção. Duas moças dançavam, cabelos compridos soltos, roupas indianas e descalças. As duas pareciam estar num transe, numa dança pagã, reverenciado o Lua. Confesso, aquilo estava muito mais interessante que o show do 14 Bis e seu festival de reclamações.




O ineditismo e a inesperada performance foi notada pelo 14 Bis, de modo que o humilde roadie teve um descanso merecido. Suspeito até que o incrível número de dança ocupou a atenção do garoto. Enfim, o técnico, depois de “comer o pão que o diabo amassou”, teve seu  sossego, assistindo de graça a um show na hora do trabalho.




Justamente quando fiquei no pé do palco, teoricamente no melhor lugar, o melhor espetáculo estava na plateia.
Os Livros Silas Corrêa Leite

Silas Corrêa Leite, escritor premiado em verso e prosa, embaixador itinerante de Itararé, promotor literocultural da chamada Literatura Itarareense dentro da literatura contemporânea brasileira,  elogiado por crítica especializada até da USP e por membros da ABL-Academia Brasileira de Letras, destaque na chamada grande mídia, inclusive televisiva, presente em quase todas as redes sociais, colaborando com sites de renome, no Brasil e no exterior, inclusive na América espanhola, Europa, África e Ásia, quando ainda era pobre e garçom do Bar do Calixtrato começou a escrever com 16 anos em jornais de Itararé, das Famílias Lages e Contieri, e atingiu nesse ano de 2019 mais de trinta livros, a saber, o início:

-01)-“Raízes e Iluminuras”, Poemas Escolhidos Para a Antologia de Concurso do Prêmio Eduardo Dias Coelho, Menção Honrosa, Elos Clube, Comunidade Lusíada Internacional, Ano 1995, poemas do acervo do autor representando Itararé, o Elos Clube de Itararé, Comunidade Lusíada Internacional, Gestão Maria de Lourdes Luciano Nonvieri.

 

-02)-“Trilhas e Iluminuras”, libreto, Poemas, Coleção Prata Nova, Editora Grafite, Ano 1998, Editor Ademir Antonio Bacca, RS.

 

-03)-“Porta-Lapsos”, Poemas, Editora All-Print, Ano 2005. SP. Uma espécie de coletânea antológica de seus melhores trabalhos, inclusive premiados em concursos de renome.

 

-04)-“Os Picaretas do Brasil Real”, Poema Social, Série Cantigas de Escárnio e Maldizer, e-book free, Editora Thesaurus, Brasília-DF,  Ano 2006. Um poema social épico, crítico, feroz e voraz, bem ao estilo  politizado e humanista do autor também enquanto pensador e crítico social.

 

-05)-“Campo de Trigo Com Corvos”, Contos premiados do autor, Editora Design, Santa Catarina, Ano 2008, obra finalista do Prêmio Telecom/Ficções, Portugal. Quase todas os causos, ficções e invencionices do livro, são trabalhos  falando de Itararé que ama tanto.

 

-06)- ASSIM ESCREVEM OS ITARAREENSES, Primeira Antologia de Prosa de Itararé, Editora All-Print, São Paulo, Idealizador, Editor e Organizador Silas Correa Leite, com co-organizadora a Professora Maria Apparecida S. Coquemala, obra que expõe as vertentes da literatura Itarareense, de iniciantes, emergentes a consagrados.

 

-07)-“O Rinoceronte de Clarice”, ebook de sucesso, primeiro Livro Interativo da Rede Mundial de Computadores, único no gênero e de vanguarda, com contos fantásticos, cada ficção com três finais, um final feliz, um final de tragédia e um terceiro final politicamente incorreto, Editora Hotbook, Rio de Janeiro. Foi destaque na mídia (Estadão, Jornal da Tarde, Diário Popular, Revista Época, JBonline, Poetry Magazine (EUA), Revista Kalunga, Revista da Web, Revista Ao Mestre Com Carinho, Minha Revista (RJ), CBN RJ, Programa Momento Cultural/Jornal da Noite, TV Bandeirantes, Márcia Peltier, Programa de TV “Na Berlinda”, Canal 21, Programa Metrópolis, TV Cultura de SP e Programa Provocações (Antonio Abujamra), TV Cultura de SP. E-book recomendando como leitura obrigatória na matéria Linguagem Virtual, no Mestrado de Ciências da Linguagem, na UNICSUL, Santa Catarina, tese de Mestrado na Universidade de Brasília e Tese de Doutorado em Semiótica na UFAL-Universidade Federal de Alagoas, com o Tema: “O Livro depois do livro: a Experiência Literária Hipertextual”. Obra disponível no site: www.biblioteca.universia.net/ - A Tese de Doutorado do ebook (livro virtual) “O RINOCERONTE DE CLARICE”, contos surrealistas e fantásticos, está disponível atualmente no link do site:  http://bdtd.ufal.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=197

 

-08)-“O Homem Que Virou Cerveja”, Crônicas Hilárias de Um Poeta Boêmio, Editora Giz/Primus, SP, Prêmio “Valdeck Almeida de Jesus” (Salvador, Bahia), Ano 2009. Causos hilários, de humor e de crítica social do autor.

 

09)- “BULBOS TRANSVERSOS” Poemas e Desconcertezas – Abril, 2013 – Um mosaico bem contemporâneo de vários poemas  do autor, obra disponível no site: https://www.clubedeautores.com.br/livro/bulbos-transversos#.XNstMBRKiUk

 

10)-DESVAIRADOS INUTENSILIOS, Poemas do Mundo da Web, Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2013. Outro livro de poemas modernos do autor, de sua safra contemporânea e universal.

11)- ESTADOS DA ALMA, Acordes Dissonantes de "Mins", ebook, free, pelo site de Portugal WWW.carmovasconcelos-fenix.org/Escritor/silas-correa-leite-02.htm

 

12)-GOTO, Romance, A Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, Editora Clube de Autores – www.clubedeautores.com.br. Obra considerada pela crítica especializada como o melhor livro do autor.  Crítica da obra (fragmento): “Mais de oitenta anos depois, a bucólica Itararé agora entra pela porta da frente da Literatura Brasileira e ganha foro comparável ao do Yoknapatawpha County de William Faulkner (1897-1962) na literatura norte-americana, e de Macondo de Gabriel García Márquez (1927-2014) e de Santa Maria de Juan Carlos Onetti (1909-1994) na literatura latino-americana. A paulista Itararé é o palco das aventuras contadas por Aristides, ou Ari, ou ainda Goto, personagem do romance Goto – o reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé. Obra do século XXI, em que toda a coerência formal da narrativa já foi desrespeitada, Goto surge como romance pós-moderno, ou seja, é fragmentado, desintegrado e de linguagem rebelde, assumindo-se como não-romance ou anti-romance, ao romper com as fôrmas literárias do Romantismo e do Modernismo, como diria o insuperável professor e ensaísta Massaud Moisés (1928).  Afinal, o barqueiro, em seu trabalho de levar gente de uma margem para outra do rio Itararé, contava para o que ouvia, mas falando na primeira pessoa, exatamente do mesmo modo como havia ouvido o caso.  Com isso, o romance adquire também um sentido polifônico, ou seja, composto por muitas vozes que não a do autor, tal como definiu o crítico literário e filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), ao analisar a obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). É nesse sentido que se pode dizer que Goto alcança o status de pós-moderno. (Adelto Gonçalves, Professor da USP), Link:https://www.academia.edu/30183759/LETRASRESENHA_CR%C3%8DTICA_GOTO_DE_SILAS_CORREA_LEITE

 

13)-TROIOS PERIGRITANTES, Microcontos, 2014, Editora Clube de Autores. Alguns dos melhores microcontos do autor, inclusive o seu na categoria literária do menor microconto do mundo e trabalhos premiados.

 

14)-O TAO DA POESIA, Poemas na Linha de Tao, 2014, Editora Clube de Autores – Poemas na linha de TAO do autor.

 

15)-NÃO DEIXEM QUE TE TIREM A PRIMAVERA, Livro de Alta Ajuda, 2014, Editora Clube de Autores

 

00)-VISTA A MINHA PELE, Afropoemas do autor, inclusive o próprio poema com o nome do livro que foi usado em mestrado cadernos didáticos, projetos pedagógicos, revistas de educação, teses de TCC e também usado em palestras e mesmo em concursos literários de comunidade afrodescendente.

 

16)-PENSATAS, Ensaios literoculturais. Vários textos, artigos e ensaios sobre cultura, literatura, comportamento social e afins, entre inéditos e publicados em sites, revistas, etc.

 

17)-PIRILAMPADAS, Poemas Infanto-juvenis, Editora Pragmatha, 2014. Coletânea de poemas infantis e infanto-juvenis do ator.

18)-SURTAGENS, Microcontos, Editora Tinta Livre, ebook: in http://www.tintalivre.com/surtagens?search=Surtagens - Site para comprar: http://www.tintalivre.com/

 

19)-O MENINO QUE QUERIA SER SUPER-HEROI, Romance Infanto-juvenil do autor, 2014, site Amazon, ebook:  http://www.amazon.com.br/MENINO-QUE-QUERIA-SUPER-HER%C3%93I-Infantojuvenil-ebook/dp/B00K9EECBK

 

20)-Se as árvores pudessem falar, 2017, ebook pela Editora Saraiva-SP, poema épico do autor, sobre a linguagem das arvores.

 

21)-GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, Romance Infantojuvenil, Autografia Editora, Rio de Janeiro. Também considerado um dos melhores livros do autor, sobre uma criança na barriga gestora da mãe contando como é lá dentro. Um dos livros mais elogiados e mais vendidos do autor. Alguns comentários sobre a obra: Resumos (fragmentos) de Críticas do romance GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, Romance, de Silas Correa Leite, Editora Autografia, RJ

01.GUTE GUTE, BARRIGA EXPERIMENTAL DE REPERTÓRIO, Editora Autografia, O ROMANCE DE SILAS CORREA LEITE

 “(...) Como em tudo o que faz, Silas Corrêa Leite é atrevido e criativo. Desta vez, nos aparece com este experimento ficcional, ao revés de René Chateaubriand, nas suas "Memórias de Além Túmulo" - são as sensações e questionamentos do nascituro. Um ser, supostamente em formação, mas com a personalidade pronto e a linguinha bem afiada.  Humoroso - no sentido bergsoniano mas também dos humores corpóreos - e crítico, Gute Gute é uma reflexão uterina, se me perdoam o trocadilho, sobre a vida, o tempo, as relações sociais. Uma autorreflexão, se quiserem, porque o autor está dentro, perdoem de novo, do livro e do útero do mundo. Com a sua linguagem solta, coloquial, Silas Corrêa Leite nos traz gostosuras do tipo "contentezas", "brincadezas", "barrigal", "meda", "sexteen", "as fuselagens das minha mãe" etc. Mas não se engane o leitor. Silas vai a profundidades filosóficas, e mostra exemplos de erudição, formando quase um roteiro pedagógico. É ler para crer.(...) Joaquim Maria Botelho – Presidente da UBE-União Brasileira de Escritores. Jornalista, tradutor e professor. 

02.Flora Figueiredo Sobre GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertorio, Romance de Silas Corrêa Leite - Olá, Silas. Neste final de semana li seu trabalho. Imediatamente, me conectei com esse bebê que pensa, age e se comunica com agilidade e graça. O texto fluente, espontâneo, atual,  faz com que o leitor se apegue às mirabolâncias do Gregório/ Thiago/Pedro/Caetano Frederico. Fica-se na expectativa do que virá a seguir, dentro da flutuação que se opera no ventre da mãe. Sua inventividade nos ata ao cordão umbilical da criança e é tão vívida que, sem perceber, fiquei ansiosa pela hora do parto. Parabéns pela ideia e pela maneira como a desenvolveu. Fique com meu aplauso, FLORA FIGUEIREDO é Poetisa, cronista e tradutora paulista, autora de Florescência, Calçada de Verão e Amor a Céu Aberto (1992).

03.Professor Universitário opina sobre GUTE GUTE, Romance - “Olá Silas, GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório é gostozinho de Ler, mas muito pequeno... A gente queria continuar. O que torna a leitura mais agradável é a familiaridade que a gente tem com seu vocabulário, neologismos, frases peculiares, exclusivas”. Samuel Barbosa, Professor, graduou-se em Letras, Pedagogia, Supervisão Escolar e Especialização em Língua Portuguesa com produtiva carreira acadêmica. 

04.O romance  Gute  Gute do  prosador e poeta itarareense Silas Corrêa Leite, se constitui de relatos da vida de um bebê de altíssimo QI, no útero materno, em fase final de gestação. E que relatos! Que vidinha venturosa e aventureira.Aventureira? Sei que vão estranhar, mas acreditem, assim viveu esse guri no útero da mãe que o poeta chamou de troninho - onde ele se aninhava, qual passarinho no ninho agasalhante - até que chegasse a hora do parto, ou melhor, da partida para a realidade aqui fora. A vida do guri não se limitava ao interior e exterior do útero na barriga materna. Extrapolava, captando tanto o mundo físico como o psicológico das gentes lá fora. Ou seja, as limitações impostas pelas paredes uterinas não o impediam de ter contato com outros meninos e meninas de outros úteros, inclusive no mundo virtual. E a linguagem? Via de  regra hilária, entre os bebês comodamente instalados nos seus troninhos. É mesmo para gargalhar. E quanta fofocas entre eles, quantos namoricos... Leiam o livro. Vão divertir-se muito, comover-se também, pois o Silas sabe muito bem como despertar o interesse e a emoção de seus leitores.  Maria A.S. Coquemala é professora de Língua e Literatura Portuguesa, especializada em Linguística e pedagogia, formada pela PUC-Campinas. 

05.Gute Gute: Reflexões e Impressões de um Bebê na Barriga da Mãe - Livro de Silas Corrêa Leite nos inspira a imaginar o mundo de onde viemos e para o qual queremos, em algum momento de nossa vida, voltar: o útero materno. Gute Gute – Barriga Experimental de Repertório é um romance cuja originalidade nasce já no argumento de traçar linhas sobre fantasias, peripécias, experiências, sensações e impressões de um ser em gestação. Pensar sobre esta primeira fase da experiência humana é inerente às questões sobre nossa existência: de onde viemos, por que viemos, do que somos feitos, para onde vamos? Contudo, embora imaginar o que acontece dentro de uma barriga em processo de gestação seja uma curiosidade comum, apontar caminhos e se arriscar palpites que viram frases e poesias é algo original e inspirador. Daí o subtítulo “Barriga Experimental de Repertório”: o autor reúne questionamentos sobre vocabulários, canções e sons que ouve de dentro da barriga da mãe e que servem para o ser como indicações sobre como será a “vida lá fora”. Gute Gute- Barriga Experimental de Repertório, o romance com um olhar questionador sobre alguém que ainda está para nascer, vem acrescentar à prateleira de livros próprios do poeta e escritor premiado em concursos e autor de outros livros em prosa e verso. Clélia Gorski – Publicitária e autora do livro Separada & Dividida (Novo Século), Jornalista e apresentadora da Rede Bandeirantes

06. Silas Corrêa Leite, além de professor, é escritor eclético com obras literárias as mais variadas, de crônicas, contos, poesias a romances de refinado bom-gosto. Premiado dezenas de vezes por seu trabalho jornalístico, crítico literário e bom resenhista, Silas se inscreve entre os escritores mais produtivos com obras de grande alcance social e cultural. Sebastião Pereira da Costa - jornalista/escritor, autor entre outros de “A História Oculta” e “Não Verás Nenhum País Como Este”, Editora Record (RJ).

07. Opinião de um Cineasta de Renome:

GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, Editora Autografia, RJ, Romance, de SILAS CORRÊA LEITE: Esta obra de Silas Corrêa Leite pressupõe um bebê especial (Asperger? Autista?), de inteligência precoce, relacionando-se – já no ventre materno - com o mundo, as pessoas e as coisas, mesmo ainda sem uma noção precisa de como funciona aquele universo pré (ou será pós?!) qualquer coisa que ainda não se sabe. Essa ideia de Silas, uma barriga experimental de repertório, é um achado. Mas não pensem os leitores em encontrar na obra grandes reflexões filosóficas ou quânticas, mesmo sendo os pais da criança Doutora em Filosofia e Psicóloga, ela, e Professor de Filosofia e Filólogo, ele. Sobram, sim, frases de efeito, ditos populares, palavrório regional paulista de Itararé e farto uso de citações da música popular e de heróis de histórias em quadrinhos. Não são palavras jogadas ao vento, é bom notar. O estilo anárquico do autor comporta sentidos que se alinham e realinham ao longo de suas duzentas e poucas páginas, conferindo à obra o mérito de prender de fato a atenção do leitor. Os capítulos, abertos com citações que vão de Michael Jackson a Octavio Paz, de Walt Disney a Fernando Pessoa, se sucedem à espera do parto (ou “chego”, conforme prefere o recém-nascido), apontando para a vida lá fora, repleta de paredes que, ao contrário do ventre materno, não dá mais para ver. “Macacos me mordam”, como diz o bebê na ruptura do cordão umbilical. Como disse, a ideia é um achado. Mas não se encerra aqui. Mais que um romance acabado, Gute Gute pode ser visto como a barriga experimental, ou melhor, como texto—base de um filme de animação em 3D, cuja equipe se encarregaria de um traçado audiovisualmente equivalente ao que Silas compôs com suas anárquicas palavras.

Gregorio Bacic – Diretor de Tevê e de Cinema, Escritor, Pensador, Crítico.

08. LETRAS/Crítica:

O antirromance de quem ainda vai nascer: Gute Gute, Barriga Experimental de Repertório, de Silas Corrêa Leite: Depois de publicar Goto – o reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé (Joinville-SC: Editora Clube de Autores, 2014), obra nitidamente do século XXI, em que toda a coerência formal da narrativa já foi desrespeitada, o poeta e ficcionista Silas Corrêa Leite ressurge agora com Gute Gute – Barriga Experimental de Repertório (Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2015), outro romance pós-moderno, igualmente fragmentado, desintegrado e de linguagem rebelde, que se apresenta como não-romance ou antirromance, assumindo um rompimento definitivo com as fôrmas literárias do Romantismo e do Modernismo. Conhecido como ciberpoeta, Silas, um dos mais originais escritores deste Brasil pós-moderno, surpreende, mais uma vez, com um relato fragmentário de um bebê de altíssimo quociente intelectual (QI) que, ainda no útero materno, mas em fase final de gestação, já demonstra sentimentos, reações e faz citações, algumas de raízes populares e outras de poetas e pensadores famosos. Abusando do recurso da intertextualidade, o romancista faz o seu personagem ainda sem nome questionar não só momentos íntimos da mãe como manifestar algumas reflexões e impressões a respeito do mundo que há de viver fora do útero.

Com tanta originalidade, por certo, Gute Gute – Barriga Experimental de Repertório começa a atrair os leitores desde as primeiras linhas, ao fazer questionamentos sobre termos, canções e sons que o protagonista ouve de dentro da barriga da mãe. Como diz o autor na introdução, o romance trata da relação da criança, ainda na forma fetal, com tudo o que a cerca: “o lar, as barulhanças nos derredores, as tristices e contentezas de formação, as formatações e configurações evolutivas de meio, os sentimentos de base e aprumo, a sensibilidade generalizada de compreender e ser inteirado da vida intrauterina a partir do que rola lá fora, no exterior, a partir do que sente no colmeial do adjacente barrigal”.

Dividida em seu quatro livros e subdividida em muitas partes, esta obra reproduz também as angústias de uma futura mãe ainda adolescente, que se deixou engravidar por quem não pretende assumir o filho. Lê-se: “(...) – Eu não estava no programa... falhou o calendário, a cartelinha, alguma coisa que deveria estar vestido e não estava, alguma coisa que deveria ter usado, sei lá mais o quê... Eu fui um acidente de encontro... Acidente de percurso, sei lá... (...). Como se percebe, o poeta Silas Corrêa Leite, com muita criatividade, atrai o leitor com uma linguagem do dia-a-dia brasileiro, ou melhor, do mundo caipira do interior de São Paulo e do Paraná, colocando novamente em evidência a cidadezinha de Itararé, com suas ruas de pedras, onde nasceu, na divisa entre estes dois Estados, e com a qual mantém vínculos familiares e sentimentais até hoje. Como dele já escreveu o romancista Moacir Scliar (1937-2011), percebe-se que Silas Corrêa Leite sente prazer em narrar, “prazer este que se transmite ao leitor como um forte apelo – o apelo que se espera da verdadeira literatura”.

 (*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP): LINK: http://port.pravda.ru/sociedade/cultura/29-11-2016/42217-antirromance-0/

 

23)-MOCORONGOS, microcontos, ebook: Veja versão free: https://www.widbook.com/ebook/read/mocorongos

 

24)-ILUMIDEIAS – Coletânea de Haicais, poemetos estilo japonês, em três versos/tercetos, do autor, escritos ao longo de mais de cinquenta anos.

 

25)-ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS – Sendas Edições, Romance ecumênico, o segundo livro escrito pelo autor.  Primeira de uma anunciada trilogia, a obra preserva o estilo anárquico e demolidor do seu autor, no campo místico. Resenha crítica da obra no LINK:

https://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/silas-correa-leite-retorna-a-cena-literaria-com-ele-esta-no-meio-de-nos-167882/

 

26)-PLANETA BOLA, Causos e acontecências do futebol, Editora Simplíssimo. O autor diz de seu amor pelo futebol, de seu fanatismo pelo Corinthians.

 

27)-MUITO ALÉM DO CORAÇÃO SELVAGEM DA COISA, Wathpadd. Livro escrito nessa plataforma da internet, a partir de um inicial depoimento de um aluno problemático, querendo fugir de casa, de si, do mundo. Com final fantástico.

 

28)-DESVÃOS DE ALMAS, Editora Penalux, microcontos do autor, na sua linha e estilo de nanonarrativas impactantes e com desaforismos e escárnios.

 

29)-O MARCENEIRO, A ULTIMA TENTATIVA DE CRISTO, Romance, Editora Viseu. O surpreendente e assustador primeiro livro escrito pelo autor, mais de trinta anos atrás, só agora pode ser finalmente lançado. Você vai ler e não vai acreditar. Polêmico, diferenciado, conta de Cristo no Brasil, de discos-voadores, do Papa Carol, do FBI, de milagres, viagens interestelares, pandimensionais, diz de profecias, registros contundentes da história sendo revelados depois de tudo e apesar de toda história ser remorso, como diria o poeta Drummond.

 

30)-DESJARDIM, Muito além do farol do fim do mundo, romance, ebook no link:

https://www.amazon.com.br/DESJARDIM-Muito-Al%C3%A9m-Farol-Mundo-ebook/dp/B074T3HG4Q

31)-O lixeiro e o presidente, Romance Social, ainda no prelo. Quem é o lixeiro, tipo aspone? Quem é o Presidente que jogou sua história no lixo? (“Esqueçam tudo o que eu falei”). E de Fernando em Fernando, o Brasil foi se ferrando. Mordaz, o autor conta de bastidores sórdidos dos antros palaciais de picaretas o Brasil S/A de podres poderes, em que o inimigo do povo está no governo.

 

32)-VACA PROFANA, microcontos estranhos, uma soma de continhos, contículos, trabalhos curtos em prosa, ficção apurada do autor, incluindo o premiado menor microconto do mundo. Ler para se assustar.

 

33)-LAMPEJOS, livreto, Poemas, editado na Argentina pela Sangre Editorial

-Esse é um imediato apanhado generalizado do Itarareense Silas Corrêa Leite. Ler para crer.  Contatos com o autor: poesilas@terra.com.br Assessoria de Imprensa, CULT-NEWS Divulgação:La-goeldi@bol.com.br Site: www.artistasdeitarare.blogspot.com/

O
TAL DA POESIA, O POETA SILAS CORREA LEITE

Silas
Correa Leite de bóia-fria a cyber poeta premiado em verso e prosa; o guri que
vendia pipoca, banana, garapa e dolé de groselha preta, de origem humilde,
tornou-se professor e doutor. O rapaz que amava os Beatles e Tonico e Tinoco, acabou
promovendo Itararé que adora tanto e que foi seu berçário e ninhal, onde teve a
infância como o seu melhor tesouro. Ganhou prêmios de renome como poeta e
ficcionista, até no exterior, lançando livros, até um ebook de sucesso -
primeiro livro interativo da internet
que virou tese de mestrado em Semiótica e doutorado em ciência da
linguagem (linguagem virtual) como hipertexto - estando em mais de 800 sites,
em todas as redes sociais, tachado pelo site Capitu de O Rei da Internet,
aparecendo na chamada grande mídia, jornais, revistas, suplementos culturais e
mesmo entrevistado e reportagem na televisão nos programas Metrópolis e Provocações,
TV Cultura de SP. O piá foi longe, ou longe é um lugar que não existe? Escrevendo
sempre, em folhas de papel de pão, em papelões de caixas de sapatos e chapéus
do pai maestro, em retalhos de compensado e de eucatex, hoje com mais de mil
cadernos de rascunhos poéticos, vem dando testemunho de seu tempo. Poeta
zenboêmico credita na arte como libertação, na poesia como respiração da alma,
e o TAO DA POESIA uma ins/Piração que é luz, amor, natureza; tudo é TAO. O
autor procurou na arte, principalmente na literatura, sendo também ensaísta,
resenhista, trovador e contador de causos, ser o Tal da Poesia. Seu verso
identidade é: Ser Poeta é a minha maneira/De chorar escondido/Nessa existência
estrangeira/Que me tenho havido". Suas frases lapidares estão na web, em
cadernos de alunos, álbuns de formatura, convites de casamentos ou bodas, e em
tudo dá testemunho da arte de sobreviver muito além do Eu de si e suas
circunstancias. O Livro TAO DA POESIA é escrito ao longo de quase cinquenta
anos com sangue, suor e lágrimas. A poesia na escuridão é luz, a palavra é remo
no ar, e assim o autor, feito um Rimbaud pós-moderno, dá testemunho de seu
tempo. Se o poeta é o ladrão do fogo, Silas Correa Leite Leite faz plantação de
fogo no canteiro da espécie.O TAO DA POESIA é exatamente isso.





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�d��h outra coisa; todas as coisas, no entanto, são parte do Tao e as formas
do TAO se expressar. Pois o diferenciado Escritor premiado em verso e prosa
Silas Correa Leite bolou assim de literariamente como cyber poeta também se
expressar na linha de TAO, tomar esse partido, essa filosofia-conceito-busca
(caminhança), até porque sempre foi mesmo zenboêmico, contraditório, paradoxal,
ou como ele mesmo prega com seus 'surtos circuitos', de microcopoemas a
haicais, de twittercontos a pensagens (pensamentos mensagens) de pensadilhos
(pensamentos trocadilhos) e haicais tropicais, para não dizer da ironia em seus
links chamados de Silas e suas "siladas", em que filosofa, cintila, provoca,
toca, clarifica, salma, evoca e destila em pensaversos e outras criações entre
seu lado socrático e mesmo ético-humanista, sonhando assim, depois do chamado
fim das utopias por um humanismo de resultados.

O
Tao é o caminho perfeito, palavra, projeção, logos, razão. A Poesia somente uma
luz. Poesia como Poesilha tem a ilha como uma espécie de esconderijo do ser-se
de si. O Tao da Poesia é o caminho do poeta para um lugar que só existe no seu
fazer poético, talvez, muito além do sol, na busca do arco-íris, quem sabe
escondido numa curva de uma estrada de tijolos amarelos, uma Shangri-lá, uma
Pasárgada, uma Neverland, Uma Estância Boêmia de Santa Itararé das Artes,
Letras e Músicas, Imagens e Palavras. Mas não há explicações para a busca. Há
um caminho e o caminhar, o caminhante, a peregrinação, a caminhadura, a
caminhação. A poesia é somente uma fuga do sensível, tocando um Deus quando se
cria o confeito imagético da lírica alma humana, a arte como
libertação/levitação. O Tal da Poesia é o peregrino buscador que semeia o que
escreve. O livro é isso. Poemas feito em cima dos ditames de TAO e sua
iluminação. Os poemas do TAO DA POESIA também tem iluminura toda própria, e o
autor novamente surpreende com seus poemas-iluminuras em solo e luz de TAO.

Compre
o livro no site:

https://clubedeautores.com.br/book/151229--O_TAO

Entrevista
com o autor:

http://fm.fafit.com.br/podcast/entrevista-com-silas-correa-leite/













































Se deixar amar.
Ainda querendo0 sentir.
Ainda tentando estar.
Apenas me fiz em seu lindo caminho.
Sonhando com a felicidade.
Esperando carinho.
E nada se fez.

Mais sei que sou o único culpado.
Se fui amado um dia.
Se fiz do sonho as palavras.
Hoje me resta a espera.
Só a espera por outra vez.
Quem sabe um dia eu volte a ser assim.
Ou nada se realiza como sempre.
Desta vida não posso esperar muito.
Nem a certeza do existir.

Nem o sentimento que venha a me libertar.
Cansado.
Não só vivendo do dias e noites.
Mais querendo seguir em seu caminho.
Mesmo sem pode seguir.
Amar se fez um dia.
E nem mesmo posso fazer de conta que desisti.
Mais amo com um amor que não foi lhe mostrado antes.
E agora tudo é confuso.

Você não pode me dar amor.
E eu não posso querer que o faça.
De um sentiento me fiz lagrimas.

E destas a força de minha vida inteira.
Sendo um homem e poeta.
Sendo lembranças.
Talvez solidão por ter sido abandonado por tudo o que quis ser em sua vida.
Mesmo assim eu não culpo você.

E sim te acho incrivél sempre.
E a sua beleza não muda.
Poderia eu me interessar por seu corpo.
Mais não sou assim.
Minha vida vai além do querer uma noite ao seu lado.

E de me deixar apenas sentir seu calor por horas.
Gostaria de saber sobre o amor.
Principalmente deste que não tenho.
De um amar que jamais me prometes-te, mas que sinto.
Sem saber de onde nem de que lugar ele surgi.

Apenas amo.

Sinto que não estou muito bem.
Que muito do que lhe disse vai e fazer desistir de sentir.
Que o meu medo vai ressurgir.
E as duvidas sobre o que fui continuaram a me afastar de você e de mim.
Não quero ter que me esconder.
Ainda sendo simplesmente um amigo.
Ainda me fazendo ser bom no que escrevo.

Sou apenas o homem que não te encherga corpo, rosto, seios e bumbum.
Mais o homem que te vê alma bondoza e que ferida se fez um dia por ter sido amada por outro.
Eu me pergunto se posso amar?
Se eu posso continuar a esperar que me digam Te Amo?
Já não tenho certeza do que posso?
Se é que um dia pude!
Então me fiz assim escondido.
E segui esse caminho sem me deixar ser bom ou ruim.

Tentei consegui outro sentimento e tive o de revolta.
Mais não por um sonho, mas por ter escondido do mundo quem me fez amar e ser simplesmente um.
Mais de tudo o que sentia nada mudou.
Se deixar amar.
Se deixar sofrer.
Se permitir que eu sinta paixão.
Me faça sorrir ainda que eu chore.

Me faça cantar ainda que a letra não decore.
Me faça seu escravo.

Me deixe ser apaixonado.
E no silêncio me perca por ter amado.
Sem motivo me afasto.
E quem sabe um dia volte a te ver.
A falar como até falei.
Sendo qualquer um.
Ou mesmo de qualquer maneira.
Eu não escondi o que sentia e sinto.
Achei que a minha maneira de dizer muito em poucas palavras tinha chegado até você.

Bom hoje já sabe o que sinto.

Quis ouvir o que escondi de certa forma.

Eu sempre fui assim.
Um homem com medo de deixar ser por tudo o que sentia.
Mais não consigo mais viver.
Nem devo seguir.
A minha vida tende seguir como até agora foi a vida de um homem sozinho.
Sem que alguém possa se preocupar com o que fui.

SVMV.

Eu não quis chorar
por amar.

Nem quis que ficasse pensando no que lhe disse.
Minhas lagrimas um vão deixar de existir e o sentimento de amor não vai prevalecer.
Sei o quanto sinto amor.

Sei o quanto quis estar perto para te proteger de tudo.
E não o fiz.
Estava longe.
E ainda continuo, mas não deixei de amar.
Nem deixei de querer te proteger.
Mais a diferença agora é que sei que não posso.

Sei que em sua
vida não há espaço para mim e para mim tudo bem.
Vamos ser bons amigos quando conseguir ser e viver nossas vidas da forma que nos for deixado.
Realmente isso se faz bom.
E não quero mudar isso, por mais que eu a AME não posso querer que me faça mais que um bom amigo.

Mesmo sendo o Ale que você acha fofo.
Obrigado por isso.
Agora cada poesia que faço é diferente.
Cada pensamento publicado um sofrer.
E mesmo assim o continuar existe.
Sem que eu queira seu amor.

Sem te dar a
segurança que um dia quis dar.
Mais não!
Não é sua culpa.
Nem quero que pense desta maneira.

Poderei ser poeta uma outra vez.
Em outra história
que não terá final feliz.
Ou onde a palavra
Eu Te Amo seja por mim ouvida.

Adorei esses
nossos bate papos.

Poder falar abertamente que sinto um amor sem tamanho ou melhor sem dimensões para que este
seja comparado.

Quando do silêncio não me fiz prisioneiro nem escravo e principalmente ter a sua atenção.

Espero que nada mude ou deixe de ser bom em sua vida.
Que você continue a ser para seus alunos a pessoa que foi importante em minha vida.
Que Deus te abençoe em suas manhãs e durante toda a tarde
e nas noites onde procurar o motivo que me fizeram ser o novo esquecimento em
sua vida, mas por não merecer existir em sua vida.
Tenha sempre um dia bom.
Semanas maravilhosas.
Um namorado que te entenda assim será feliz mais que no seu dia atual.
Sempre vou sentir o que sinto e amar como Te Amo.

Pois você é a minha linda amiga e sempre vou te guardar em minha vida.

És abençoada e sempre foi.
Com carinho e admiração
sempre.



Alexandre Marcondes(ale).


A Mentira Pronunciada Pelos Lábios De Quem Nunca Teve #NadaAPerder São Conjugadas Pelos Meios Mágicos E Sobrenaturais, A Contradição Dos Interesses Ficam A Reboque Dos Acontecimentos, Kudza- Se As Ideias São Transmissíveis Porque Que Não Somos Todos Geniais? Enquanto O Coletivo Pensa Sem Pensar, Kedson Permanece Solitário Perante O#RaciocínioAbstracto Do Eu Platão, O Idealismo Dos Pacifistas Não Toma Precauções Antes De Encorajar, Porque O Sentido Da Palavra É Uma Grosseira Falsificação, O Estudo Da Queda Dos Corpos Restauram As Velhas Teorias Políticas Já As Tendências Do Inconsciente São UmDisparo Acidental As Raríssimas Histórias De Embalar, Kudza- Ainda Assim... Luto Para Me Desencadear Perante Essas Forças Repressivas O Klan É O Nosso Asilo Nosso Minúsculo Oásis Da Felicidade, Eu Sou A Maça Que Já Passou Pela #CaraDaIdade Mas Não Me Deixo Cair Da Árvore, Porque O Fascínio Da Imagem É Uma Frequente Agressão A Minha Falsa Popularidade, A Tua Correspondência Para O Klan É Necessária, Traz-nos Uma Leitura Funcional E Para De Expor As Faltas De Oportunidades E De Informações, Onde Pensas Que Iras Chegar Com Essa Escrita Irresponsável E Indisciplinada Parece Uma Retardada Decomposição Do #LixoBiológico Adulterado Pelas Rotundas Das Minhas Internas Convulsões.

"Perdi O Meu Interesse Na Modernidade E Na Sua Solução Inventiva, #PublicasHumilhaçõesSão Rituais Para A Aniquilação Da Alma, As Primeiras Gerações São Ridicularizadas Porque As Músicas, O Vestuário E O Vocabulário Não Alcançam A Altura Do Tempo, Para Todos Que Lutaram Na #LinhaDaFrente, O Vosso Esforço Não Será Esquecido, Para Quem Hoje Não Voltou Para Casa, O Teu Esforço Não Será Esquecido, Por Mais Sofisticada Que Seja Essa Nova Versão, Kedson- Eu Continuo Ocupado Em Tornar O Velho Sonho Realidade" Os Conselhos Que Eu Mais Oiço São Kudza Desiste, Estás Dificuldades Apenas Provam O Quão"#AlexandreOGrande" Eu Sou... Por Isso Kudza Insiste, Quero Conhecer O Meu Poder E O Meu Lugar Neste Percurso Cheio De Inspeções Medievais Sem Seguro, Somos A Pequena Parcela Da Realidade Que Procura #RomperOSofrimento Que Asfixia A Atmosfera! Contem A Respiração Mental Até Que O Plano Volte A Vida, Se Constantemente Evitamos As Diferentes Dificuldades Que Não Podemos Controlar Então... Quem Controla O Nosso Futuro, Kudza- Ninguém Ira Faze-lo Por Ti... Salva A Tua Própria Vida.

Se O Hoje É Uma Batalha. Será Que O Amanhã Representará A Minha Ultima Síntese.

"Amar É Viver Repetindo O Nosso #RefrãoFavorito, Ser Amado É Procurar Memorizar As Letras Da Mesma Canção" O Amor Vulgar Decorre Imediatamente Depois De Fazer Asneira, O Erro Secular É Tentar Dominar A Sua Natureza Com #MeiosTécnicos Em Que O Detalhe É Revalorizado Pela Face Expressão, Kedson- Gosto!!! De Como Ela Se Apresentou Sem Acréscimos Estranhos Talvez Essa Manifestação Cega Tenha Carreira, A Minha Análise De Todos Os Seus Concretos Gemidos De Prazer Elevou O Grau De Aperfeiçoamento Da Sua Beleza, O Movimento Em Espiral Passou-me De Uma Massa Inerente Passiva E Sem Forma Para Um Ser #ApaixonadamenteInvencível Kudza- Ela Foi Basicamente Um Assalto Direto A Minha Fonte De Tristeza, Tu Serás A Base Da Minha Universal Infinita Vontade, Apenas Ama-me De Volta E Positivamente Viverás, O Ultimo Texto Foi Um S.O.S E Sophia Respondeu, Os #EscalõesSuperiores Elucidam O Perturbante Relativismo Entre A Nossa Identidade, Espero Que As Noções Do Senso Comum Tenham Razão! Da Mesma Maneira Que Sophia Respondeu... Espero Que Também Me Responderás.

"Para Todos Os Filhos E Filhas Da #ProdigiosaEvolução, Porque Que Têm O Euro No Lugar Da Consciência!! A Primeira Iluminação Traz Com Ela A Repetição Da Circulação Do Novo Dia, Vou Aprendendo Coisas Novas, E Sigo Evoluindo E Me Contradizendo, Ontem Fui Ao Cemitério Escavar Sonhos, Muitas Das Pessoas Levam O Seu Dom Para A Terra Porque Têm Medo De Seguir O #InstintoDivino, As Tuas Limitações Não São Minhas, O Que Ganhas Em Desistir De Ti Mesmo, Kedson- Confia Em Ti Mesmo! Kudza É O Tipo De Ser Que Corre De#BraçosAbertos Para Todas As Coisas Desencorajadoras Que Afastam Todos Os Navios Menos O Meu, Tudo Isso Porque Ela Decidiu Mentir, Quase Acreditei Que Poderias Ter Sido A Minha Raqiya, Eu Só Quero Amar-te Uma Única Vez... Pois O Tempo Por #NinguémEspera, O Forjador De Toda A Minha Sorte Esta Prestes A Trazer A Origem Dos Tempos Para A Sua Época Atual"

Sinto A Falta Das #MinhasSaudades... Kudza- Por Favor Voltem, Sinto A Falta Das Tuas Saudades E Sinto A Falta Das Nossas Saudades, Kedson- Essas Por Favor Não Voltem! O Estado Das Coisas Que Oferecem Vantagens Pretendem Desenvolver E Sustentar A Vontade Providencial Dos Fenómenos Materiais Dos #FalsosÍdolos E As Suas Falsas Mensagens, Ela É O Meu Papel Primordial Mas Encontra-se Perpetuada Pela Eterna Transformação Do Mundo, Se Nada Disso É Real Apenas Beija-me Até Que A Morte Pare De Correr Atrás De Mim E Mude O Seu Rumo, Kedson- Falo Neste Exato Segundo! Vivo Questionado Pela Dor Deste #ConfusoCarrossel Que Não Tem Fim, Apenas Deixa-me Abraçar-te Fortemente Antes Que O "Furação Ana" Te Leve Longe De Mim, O Facto De Estar Perto Dela E Saber Que Não A Poderei Ter Isso Já Me Causam Hematomas No Coração, Só Espero Cair Num Sono Profundo Porque A Viração Do Dia Faz-me Derramar Os Oceanos De Sangue Que Foram Consumidos Pela #AtómicaExplosão, Não Deixes As Pessoas Ensinar-te O Que Pensar, A Necessidade De Evitar O Medo E Procurar O Prazer, Fez-me Mergulhar Tão Fundo Nesta Loucura Que Quando Foi A Superfície Respirar... Kesdon- Esqueci-me De Como O Fazer.

Podes Levar O Que Quiseres. Eu... Já Não Preciso De Mim.

A Importância Prática Do Quadro Eloquente Das Minhas Atitudes Redesenha Todas As Dificuldades Anteriormente Assinaladas, Essas Relações Relacionam-se Com Os Condicionamentos Dos Fenómenos Onde A Tua Forma É Determinada Pelo Conteúdo Das Barras Que Por Ti São Interpretadas, Kudza- Ouve-me... Para De Sofrer, Para De Me Fazer Sofrer, E Para De Nos Fazer Sofrer, Kedson- #ApenasPara... E Diz-me Como Posso Eu Te Entreter "Eu Não procuro Ser Umas Destas Estrelas Caídas Danificadas Pelo Brilho Do Seu Próprio Sucesso" Todos Os Avisos De Recessões São Semanalmente Publicados Pelas Redes Sociais Nem São Compreendidos Nem #CorrectamenteDominados, Espero Que O Decreto Presidencial Normativo Ao Criacionismo Venha A Assinar A Minha Dupla Extradição Porque Este Ano Já Estamos Terminados! O Começo Do Inicial Movimento É Uma Prioridade Fundamental Possuidora De Um Dinamismo Interno, As #VirtudesDormitivas Esticaram-me Sobre As Montanhas Da Minha Zona De Aconchego, Kudza E Kedson Duas Realidades Entre Si Distintas Que Procuram Ainda Revelar As Suas Leis Perante A Resistência Que Apoderou-se Do Paraíso E Transformo-lhe No Planeta Inferno, #SeresImaginários Povoam A Órbita Dos Sonhos Porque A Esfera Tem Infinitamente Mais Ego Do Que Tráfego.

Esse Pensamento É Encarnado De Um Mecanismo Perfeitamente Regulado, Nós Somos O Reflexo De Um #PlanoDivino Segue Em Frente Pois A Prosperidade Vem Do Virar Da Esquina Mantém O Elemento De Discordância Atentamente Desnivelado, Kudza É O Sujeito Pensante Que Telegrafa Fora Das Dimensões Existentes, As Funções Cerebrais São Comandadas Pelo Laço Neural Elas... Juntamente Interrogam A Esfinge Na Esperança De Converter O Idealismo Numa Abstração De Puros Atos Divergentes, Para Aqueles Que Só Chegam Perto Para Poder Espalhar O Meu Falso Testamento Percebi... Melhor Do Que Entendi! Os Barulhos Que Propelam Em Torno Da Minha Agressividade, Só Me Faz Lembrar De Que Quanto Maior For O Meu Desafio, Maior Será #AMinhaVitória, Kedson- Percebi... Melhor Do Que Entendi! Os Testes Titulados Pela Vergonhosa Palavra Da Ordem, Fazem-me Querer Levar Esses Bandalhos Para O Preparatório, Os Seus Fracos Interesses Apenas Visam A Intensificar A Maldade E A Desordem, A Tua Instância É Precária E Frágil, Similar Ao Resto Da Tua Conceção, Essa Sombra É Um Projeto De Um Espírito Notório, Estou Desligado De Todas #EssasCausas, Animais Que Não Dão A Pata Só Abanam As Caudas, Não Curto Deste Tratos Jamais Terão A Minha Fidelização, Kudza- Percebi... Melhor Do Que Entendi, Não Grites Tão Alto Ainda Corres O Risco De Ter Um Android Prematuro As Tuas Costas Só Estão Quentes Porque A Tua Bunda Está A Pegar Brasa, Kedson- Olha... Mais O Passarinho Inseguro Que Já Não Voa Porque Partiu A Asa, Percebi.. Melhor Do Que Entendi!

Quando Eu Acordar E Vir A Descobrir Que Deus É Um Cientista... Kudza- Eu Juro Que Acabo Com Aquele Velho.

Kedson

A CURVA DO SORRISO

A Curva do Sorriso não está restrita à região bucal. Os olhos sorriem energizando todo um ambiente. Os braços sorriem ao curvarem-se diante de um caloroso abraço. O Sorriso que só é possível ser manifesto através de curvas que influenciam satisfatoriamente todas as demais curvas do corpo.

A Curva do Sorriso está até em posturas menos conscientes como num aperto de mãos, ou beijo no rosto, ou num aceno de despedida ou mesmo num aplauso espontâneo.

O cérebro, composto por centenas de curvas, sorri diante de imagens e/ou visualizações proativas liberando elementos energéticos que alimentam os mais diversos paradigmas gerando efeitos psicossomáticos importantes para o bem estar.

Até nas relações íntimas as Curvas do Sorriso estão presentes, seja na recepção, nos toques e/ou na reação típica do prazer. Os lábios das partes íntimas do corpo sorriem conforme suas configurações provocando reações de satisfação, prazer e felicidade. Prova disto são os hormônios gerados durante o ato sexual, que só pode ser entendido e manifesto sob clima do bom humor, ou do sorriso e jamais sob cenários de tensão ou estresse.

A Curva do Sorriso é paradigma inerente ao Ser Humano Inteligente, sob ponto de vista Emocional. Ser Inteligente Emocional é cursar as Curvas do Sorriso, pois o oposto desta premissa é algo similar à Depressão, ao Mau Humor, ao Pessimismo; quadros estes que somente se justificam serem praticados pelas pessoas com limitações afetivo-emocionais.

Curtir as Curvas do Sorriso é no mínino não se tornar declaradamente medíocre e prisioneiro de estados negativistas que não produzem resultados proativos.

Claro que durante a vida temos momentos ou fatos que geram dores, tristeza, ou sofrimentos. Tais situações fazem parte de nossas vivências, mas nada está declarado que temos que nos fixar em tais quadros para os momentos posteriores. Por exemplo, enlutar-se para o resto da vida, diante da perda de alguém muito querido, não é saudável e muito menos decisão inteligente no aspecto emocional.

A prática da Curva do Sorriso passa por uma seqüência mental que resumidamente pode ser entendida nas fases: da imaginação ou visualização de imagens proativas + sensibilização + expressão manifesta e sentimentos de satisfação ao sorrir.

A escolha é sua!

                                      

A CURVA DO SORRISO: Meus avôs e Wando

Embora tenha como componentes a simplicidade e naturalidade a chamada aqui “Curva do Sorriso”, facilmente compreendida em sua importância, ainda não é devidamente praticada ou explorada em diversos cenários humanos. Como referência, ainda é muito comum a falta desta ‘figura inventada’ nos ambientes comerciais, nos quais atendentes e/ou vendedores parecem ter dificuldade em entender que tal prática faz bem para si mesmos e para o eventual cliente.

Atender alguém com ‘cara fechada’, como se diz popularmente é um atestado de limitação quanto a excelência organizacional principalmente hoje em dia, em tempos de concorrência, lucratividade e fidelidade.

Mais grave ainda é a tal ‘cara fechada’ gerando, ao longo dos anos, reações invisíveis e doentias à saúde emocional do próprio funcionário, pois este ser humano, supostamente inteligente, não percebe que está sendo corrido pela falta costumeira das Curvas do Sorriso.

Esta comparação me fez lembrar quando pré-adolescente, dos tempos de coroinha de uma igreja, na qual o padre, que era merecedor de muito respeito e consideração da população, jamais emitiu diante de mim um sorriso. Sempre sisudo e cabisbaixo nos passava uma imagem que gerava medo também. Bem diferente do perfil de alguns líderes religiosos dos tempos atuais, como exemplo o Padre Marcelo.

Outro cenário interessante que está vinculado à Curva do Sorriso é nas relações conjugais e nos meios organizacionais. Na maioria das vezes, depois de alguns anos de convivência, parece que uma lei invisível é aplicada: a do mau humor e/ou das críticas. Em alguns casos ocorrem o registro do que chamo “Sorriso Falso” que é mera figura de expressão para ‘fazer de conta’ que se é gentil ou educado.

A ausência da prática da Curva do Sorriso nos meios grupais, organizacionais e conjugais é costume medíocre   que só tem como resultado a quebra das relações ou vínculos mais saudáveis. Parece-me que em tempos passados, nos tempos de meus bisavós, muitos casais ‘ficavam’ juntos, depois de anos de casados, sem ao menos trocarem momentos de sorrisos e elogios. Vivenciei parte deste cenário com meu avô, que vivia conosco. Embora um profissional da mais alta qualidade em sua ocupação, não emitia nenhuma palavra diante de nós, jamais sorriu e refletia uma fisionomia de mau humor declarado. Na hora do jantar, todos sentados ao redor da mesa, os únicos sons que me lembro eram dos talheres para tomar a sopa de caldo de feijão. Somente quando o ‘nôno’ levantava da mesa era que ‘podíamos’ conversar, pois o perfil, mesmo sem declaração alguma, impunha o silencio durante a soja.

Claro que naqueles tempos tínhamos exceções e também tenho registro até hoje de uma delas. Esta referência é em relação ao outro avô, paterno, que era uma figura atraente, cativante e candidato a ‘rei da Curva do Sorriso”. A começar pelo seu apelido: Bastião Peludo. Personagem sempre caloroso e sorridente que resultava em relações de aconchego familiar, tanto entre os filhos, netos e bisnetos.

'Bastião Peludo' era uma figura marcante nos contatos e certamente seu bom humor lhe fazia enfrentar as dificuldades e obstáculos do trabalho com mais energia proativa.

Estes dois casos reais mostram algo que a presença ou ausência da Curva do Sorriso gera: memória emocional! Eis aqui mais um detalhe que poucos levam em consideração em suas caminhadas ou vivências. Optar por alimentar memórias negativistas, dramáticas, de perdas e/ou sofrimento não geram outra coisa a não ser renovação da dor emocional.

A Curva do Sorriso é de outra forma alimento para memórias proativas, positivas, alegres e saudáveis que nutrem o sistema corpo-mente-espírito. Creio que daqui há algumas décadas ou séculos algum legislador irá propor que os maus humorados e os negadores da Curva do Sorriso deverão pagar impostos pois geram problemas reais ao nível social e de saúde emocional. Por outra forma, no mesmo projeto poderia constar que os praticantes da Curva do Sorriso teriam descontos nos impostos de rendas e prioridade nas filas de espera, pois contaminam positivamente seus círculos de contatos. Alguns poderiam até ser contratados para praticarem as Curvas do Sorriso nas salas de espera de hospitais e unidades de saúde, assim diminuindo relatos de acidentes, doenças e negativismo hoje muito comum.

Finalizando me lembro de um exemplar modelo típico da depressão que é cantado por Wando, na canção “Aquele Amor Que Faz Gostoso Me Deixou”. O Saudoso cantor declara na letra: “E isso dói demais, Ô ô ô, De dia eu chorei, De tarde eu penei, De noite não tem mais”.

Mas temos escolha e aproveito o próprio cantor em outro exemplo mais proativo, que nos encanta com a canção: Na Sombra de Uma Árvore, quando declara a letra: 

“Larga de ser boba e vem comigo, 

Existe um mundo novo e quero te mostrar, 

Que não se aprende em nenhum livro, 

Basta ter coragem pra se libertar, viver, amar“

Então praticantes do mau humor ou do Sorriso Falso é só ter a coragem para se libertar, viver e amar.

Então cante....e com a Curva do Sorriso é mais fácil.

 

5 - Retrospectiva no paraíso verde 

Após alguns meses de convivência, Clodoaldo vai tirar férias e, acaba compadecendo-se de Carlos, convidando-o a uma pescaria lá pelos estados de Mato Grosso, e assim lá se foram para ficar quinze dias numa bela pousada e tudo mais. Nas barrancas do rio, de caniço e samburá, Carlos estava fazendo um bela psicoterapia, quando resolve perguntar ao tio Clodoaldo sobre sua infância e puberdade. Clodoaldo não esperava tal inquirição e ficou em palpos de aranha, mas foi bastante sincero ao dizer: 
- Carlos você tem certeza de que quer falar mesmo sobre isso? 
- Sim, quero e peço encarecidamente que não me sonegue nada daquilo que você sabe a meu respeito! 
- Sendo cinco anos mais velho do que você, não pude palmilhar os mesmos passos que você, mas acompanhei de perto os fatos ocorridos. 
- O que você quer saber exatamente, daquilo que você mesmo não sabe? 
- Fale-me um pouco de Clodomir e de seu pai, Antonio Fortes.
Clodoaldo ficou rubro e em seguida empalideceu diante daquela pergunta que jamais esperava fosse perguntada. 
- Nossa... Que pergunta difícil você me faz, rapaz, não dá para você esquecer essa pergunta e me fazer uma outra?
- Por que, o que há nela tão difícil de responder?
- Na realidade o meu santo nunca bateu com o santo do Clodomir, sempre o achei falso, apesar de ter de respeitá-lo como um pessoa da família, você sabe como é né, ele sempre foi muito íntimo da nossa família, sendo considerado meio parente da gente. 
- Mas o que é que há com esse cara que ninguém fala dele abertamente, tornando-se uma incógnita na minha cabeça.
- Esse traidor me roubou Sílvia, meu verdadeiro amor e mãe dos meus filhos.
- Carlos, você está aqui para espairecer a mente, vamos mudar de assunto, pois, não quero vê-lo infeliz, esqueça, vamos falar sobre outro assunto. 
Aquele suposto descanso estava se tornando um verdadeiro inferno para Carlos que fora até aquele paraíso verde para descansar, pois, estava em deletério profundo. Aquela pergunta tornou-se contundente, pois, Carlos insistiu com todas suas forças, porém, Clodoaldo foi evasivo, tirando de letra, resvalando na sua prosa a qual não convenceu Carlos, que de bobo não tinha nada. 
Naquele dia a pescaria rendeu-lhes alguns pintados, peixe muito saboroso.
Difícil estava sendo para Clodoaldo evitar que Carlos bebesse, tornando-se abstêmio na nobre causa de ajudar o sobrinho naqueles momentos difíceis. Naquele mesmo dia, no mesmo quarto da pousada, onde dividiam o mesmo espaço, assistiam televisão e num desses programas sensacionalistas, onde a hipocrisia campeia à solta, o apresentador chama ao palco uma senhora, que não conhecia sua única filha, era uma senhora religiosa e celibatária naquele momento. O sonho daquela mãe era realmente conhecer a sua filha, até para desencargo de consciência, pois, no leito de maternidade, em conluio com uma das enfermeira, simularam um sequestro do bebê o qual viria ser criado em outro estado do país pela sua irmã abastada e que era estéril.
Há trinta longos anos, aquela religiosa sofrera quotidianamente por aquele sacrilégio e, pela fé em Deus esperava resgatar o seu erro de mãe desnaturada. Bem, se aquela história era muito triste e emocionante, então pela apresentação daquele bom apresentador ficara fascinante, prendendo a atenção dos telespectadores. Aquele definitivamente não era um programa para Carlos ver, pois, o apresentador fazia o suspense exato para aquele episódio de sua vida real. 
Seria esta a filha de dona Marilda?
Apontando para alguém do auditório. 
- O que a senhora acha, seria porventura esta bela jovem? 
Como é de praxe para se aumentar o ibope, e com certeza a rentabilidade comercial, aquele apresentador interrompe aquela novela real, alegando ter estourado o tempo do seu programa, ficando o resultado para o dia seguinte. Tática sedutiva emocional. É o poder hipnótico da palavra!
Aquela noite foi para Carlos uma noite de profunda leitura, cumprindo até uma lei natural que diz: "O igual atrai o igual". Carlos leu num pequeno livro, um romance, onde identificara-se profundamente com o personagem que, como ele fora traído pela sua amada e tivera sua família destruída também, já que aquele varão era um caixeiro-viajante, ficando meses e meses longe da família, dando vazão à esposa para praticar o concubinato com um de seus "melhores" amigos e acabaram por amancebarem-se por muito tempo, e assim, fazendo a cabeça de seus filhos apropriaram-se de suas amizades. Como qualquer um de nós mortais vemos muitas coisas coincidirem, porém, desatentos deixamos passar importantes informações, até por ignorarmos este catártico e osmótico assunto virtual, redundando neste palavreado, somente para dizer a simples frase: Deus está sempre nos mostrando o caminho pelo qual devemos andar, porém, relapsos não prestamos atenção, ou não queremos ver a verdade que às vezes dói.
Naquela manhã ao abrir a janela, sob o mavioso gorjeio de um casal de passarinhos, que aos amores saudava a majestosa manhã ensolarada. Carlos meditou muito sobre a beleza natural do paradisíaco lugar, mas incontinente veio à baila seus dias felizes junto de sua amada Sílvia que, agora encontrava-se nos braços de ferro do carrasco: Coração de Pedra, seu rival Clodomir.
Mais um dia de entretenimento e de perguntas insolúveis feitas ao tio Clodoaldo, que já estava arrependido daquele passeio verde, nas matas e águas daquele santuário natural. Carlos não se continha ao esperar o horário do programa televisivo no desfecho tão esperado daquela mãe desesperada a encontrar a filha que não via há trinta anos.
Estavam numa lancha alugada da própria pousada e, embrenhando-se no pantanal mato-grossense, acabaram atolados nos aguapés da daquele rio, correndo risco de morte, pois, não puderam retornar naquela noite, apavorados ficaram abraçados o tempo todo, com seus faroletes a alumiar os brilhantes olhos dos crocodilos ou seriam jacarés? Os quais cercavam aquela frágil embarcação, ali pelas cinco horas da manhã chegaram os funcionários da pousada acostumados com tais situações, vieram socorrê-los. Intrigado Carlos, queixava-se ao tio por ter perdido aquele final novelesco da televisão, e pediu a Clodoaldo que não o importunasse, pois, iria fazer um curto retiro debaixo de uns pés de cambará que circundavam a pousada.
Dizia Clodoaldo:
Venha dormir Carlos, passamos a noite acordados, deixe esse negócio de meditar, rapaz.
Ali pela hora do almoço acorda Clodoaldo e sai à procura do sobrinho e o encontra aos plantos, sentado no chão debaixo de um cambará. Chorava copiosamente, pois, adormecerá profundamente e em sonho terminara de assistir o desfecho do encontro daquela mãe com a filha, fato onírico, porém muito afetivo e sensível para quem estava com o coração quebrantado pela dor de uma separação. Depois, menos inebriado pelo sonho, relatou-o, ainda emocionado, que naquele palco sob a égide do grande apresentador, surge por trás daquela mãe a filha que a surpreende aos plantos, e o animador do programa também tomado de emotividade encerra a sua apresentação, sem poder conduzi-la, sendo substituído por outro colega, enfim a emoção fora fantástica causando-lhe uma síncope.
Acontecem certas coisas que ficam encerradas nas memórias ocultas de nossos irmãos, e que são externadas de maneiras distorcidas, e nós impacientemente não queremos entender, desdenhando-as, pois, simplesmente não nos interessam. Então somos pegos pela intolerância para com o próximo. Deveriamo-nos colocar no seu lugar e sentirmos suas dores e compreenderíamos essas situações. Apesar dos pesares, aqueles dias foram amenos, sendo que Carlos saíra da rotina do burburinho citadino, daquele que é um dos maiores centros movimentados do planeta. Apesar de nostálgico, já estava pensando em não mais voltar ao nefasto local de sua residência, mas sentia-se solitário, demasiadamente solitário e acovardado por esconder-se de uma situação ainda não solucionada.
Como enfrentar Clodomir, o Coração de Pedra?
Mas, e o maldito segredo?
Volta a instigar o tio: Aldo, como era carinhosamente chamado, teve de aturar à duras penas a inquisição enfática de Carlos: Aldo, pare de mentir para mim, fale a verdade sobre minha mãe, sua cunhada, pelo amor de Deus, e o desgraçado segredo sobre Clodomir, fale, estou ficando mais louco do que normalmente já sou.
Aquele palavreado de Carlos ficou até jocoso, como se pudesse ser louco normalmente. Situação esdrúxula, hilária ou estapafúrdia que nada mais é que, engraçada. Clodoaldo já não aguentava mais aquela pressão alucinada de Carlos. A consciência de Clodoaldo falava mais alto, pois, em análise profunda sobre a infância de Carlos chegava ao consenso de que, poderia acarretar-lhe enorme sequela, ainda mais a quem já estava em deletério profundo, seria talvez o golpe de misericórdia, mas não queria ser cúmplice de uma fatalidade sem retorno, pensava o tio Aldo. Conjeturando melhor, percebia também que o sofrimento do sobrinho poderia ser amenizado se lhe fosse revelado a causa de seu sofrimento. 
 
Do livro: O coração de pedra 
 
jbcampos
O Causo do o do u

 
Que não sendo buraco seja fenda, porque a introdução do poema precisa referência,

E os meus olhos sentem a carência de sentir de perto, ponto por ponto, vírgula por vírgula, 

Que não sendo a tua pele sejam os teus pelos, pois pelo menos o que escrevo carece de penugens, de plumagem de algum apelo que seja do teu corpo nu

Que não sendo rua seja nua, pois eu troco as letras com frequência e a senda sendo a linha há de querer se escrita, mas que se esse(S) for efe (F), pode ser por onde a boca úmida comece, a dar forma às palavras orais, verbalmente ditas, sentidamente proferida, ou intencionalmente confundida, sendo fundida com ungida e benta, sacrilegamente penetrada como uma saída à falta de rima nobre, mas tendo a indecência busca dar algum uso aos confusos pensamentos de quem desorientado pensa que saída é entrada e entra.

Que não sendo jardins seja rosa, de preferência amarelo bem forte, para preencher o poema de ardência e amplidão, e que não sendo folha seja pétala cedida à cadência do poeta e que fingido acredita que ela é flor, ainda que sendo mulher

Faz poesia acreditando que perfume é tinta e pinta a escrita como flor, enquanto com ela faz amor

 Do meu livro Causos Complicados
Nessa linha desenhada

Pela mão sendo traçada

Amada

Delicada

Fina

Suave

Perfumada…

 

Por sonhos de alvorada

 

Pela seda mais fina

Transparecida

Pela luz da madrugada

 

Assim em traços

cintilantes

Desenhada

 

Qual estrada

No firmamento

Periclitante

Nesse alento

Algo sedento

Dessa água salgada

Que nos anima e nos afaga

Que nos fulmina para ser lavrada

 

Entre gotas

Dessa tinta

Íntima

Tão amada

 

Deixada

À solta

Nessa volta

Do destino

 

Que dá brilho

E equilíbrio

A esse princípio

Não nascido

Assim recriado

 

Pelo artista

Mais Divino

 

Em graça

Que se não passa

Se entretece

E se abraça

 

Se doa

Ainda que a mágoa

Esteja instilada

 

Entre cada pincelada

Dessa tela esbranquiçada

Esperando ser rasgada

Pela realidade mais amada

 

Ou ainda

Bafejada

Qual imagem espelhada

Assim sendo esbatida

Qual aquarela renascida

Nessa orla orvalhada

 

Onde se deixava

Prendada

Em gotas

pingentes

Transparentes

Frio fio fino

Que se destilava

 

Entre o suor

Bem quente

Que em areolas

Perladas

Se elevava

 

Calor de quem se amava

 

E nessa folha

Tão suavemente poisada

 

Na palma da mão

Sendo levada

 

No coração

Ainda guardada

 

Esperava

A palavra

 

Verbo distante

O ser substrato

Nesse solo

humidade

humanidade

sorvida qual apelo

pela pele sem segredo

 

revelada

nesse mais fino facto

 

Que se sonhava

E na realidade

A barca varada

Que se imaginava

 

E nas margens

Dessa fina folha

Ainda vogava

 

O mar de amores

Que se preparava

 

Nessas areias

Sendo aquecidas

Pelas peugadas

Assim levadas

Pelo som

Desse emoção

Quais vagas

 

Densas

Perfumadas

 

Pelo som da maré

a teu pé

nesse sopé

cume sem nome

 

Sendo lavrada

 

A imagem

Em ponto claro

Desse algo

Que se tenha amado

 

E nessa transparência

Doce sentença

Que se disfarça

 

Aparecem

Arcos de volta

E arcadas

 

E nessas letras

Sonhadas

 

Sem se deixar

Assim desenhar

Abraçadas

Nesses olhares…

Se chegar a entrever

 

Olhares de crer

E mais bem querer

 

Nesse voltar

Sem se saber

 

Nesse descobrir

Sem querer

 

Assim tanto

Se vai voltando

 

A escrever

 

O por enquanto

O momento

Que vai ficando

 

E entre tanto

Se vai passando

 

Esse fio

Mais fino

Que o cabelo

Mais pristino

Orlado

Dessas gotas

De mais puro cristal

que se têm emanado

 

Suor desse amor

Que se tem prezado

 

Calor dessa imensidão

Qual maior união

Nesse abraço dado

 

E nessa orvalho

Qual flor silvestre

Em pétalas de vestes

Que se tenham

assim desenhado

 

Nesse teu ser

Que veja sem ver

 

Nesse algo

Que ainda

chegará a o ser

 

E nesse veludo

Mais bem calado

 

Que fala e nos diz

O que nos tem contado

(…)