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ELEGIA NA SOMBRA

Lenta, a raça esmorece, e a alegria
É como uma memória de outrem. Passa
Um vento frio na nossa nostalgia
E a nostalgia touca a desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E o sonhar
A alma encontra sempre o mesmo muro,
E encontra o mesmo muro ao despertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo
De que magia incógnita e suprema
Nos enche as almas de dolência e medo
Nesta hora inútil, apagada e extrema?

Os heróis resplandecem à distância
Num passado impossível de se ver
Com os olhos da fé ou os da ânsia;
Lembramos névoas, sonhos a esquecer.

Que crime outrora feito, que pecado
Nos impôs esta estéril provação
Que é indistintamente nosso fado
Como o sentimos bem no coração?

Que vitória maligna conseguimos –
Em que guerras, com que armas, com que armada? –
Que assim o seu castigo irreal sentimos
Colado aos ossos desta carne errada?

Terra tão linda com heróis tão grandes,
Bom Sol universal localizado
Pelo melhor calor que aqui expandes,
Calor suave e azul só a nós dado.

Tonta beleza dada e glória ida!
Tanta esperança que, depois da glória,
Só conhecem que é fácil a descida
Das encostas anónimas da história!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguém volta? No mundo subterrâneo
Onde a sombria luz por nula dói,
Pesando sobre onde já esteve o crânio,

Não restitui Plutão sob o céu
Um herói ou o ânimo que o faz,
Como Eurídice dada à dor de Orfeu;
Ou restituiu e olhámos para trás?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das mágoas,
Como nas tardes baças, no mar morto,
A dolorosa solidão das águas.

Povo sem nexo, raça sem suporte,
Que, agitada, indecisa, nem repare
Em que é raça e que aguarda a própria morte
Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de doidos, descrença
Da própria consciência de se a ter,
Nada há em nós que, firme e crente, vença
Nossa impossibilidade de querer.

Plagiários da sombra e do abandono,
Registramos, quietos e vazios,
Os sonhos que há antes que venha o sono
E o sono inútil que nos deixa frios.

Oh, que há-de ser de nós? Raça que foi
Como que um novo sol ocidental
Que houve por tipo o aventureiro e o herói
E outrora teve nome Portugal...

(Fala mais baixo! Deixa a tarde ser
Ao menos uma extrema quietação
Que por ser fim faça menos doer
Nosso descompassado coração.

Fala mais baixo! Somos sem remédio,
Salvo se do ermo abismo onde Deus dorme
Nos venha despertar do nosso tédio
Qualquer obscuro sentimento informe.

Silêncio quase? Nada dizes! Calas
A esperança vazia em que te acho,
Pátria. Que doença de teu ser se exala?
Tu nem sabes dormir. Fala mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro
Em que o rei morto vivo tornará
Ao povo ignóbil e o fará inteiro –
És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado,
Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lúcidos do Fado?

Quando é que soa, no deserto de alma
Que Portugal é hoje, sem sentir,
Tua voz, como um balouço de palma
Ao pé do oásis de que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme
Verá, desfeita a tua cerração,
Surgir um vulto, no nevoeiro informe,
Que nos faço sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancolia
Das horas sucessivas que a alma tem
Enche de tédio a noite e chega o dia
E o tédio aumenta porque o dia vem.

Pátria, quem te feriu e envenenou?
Quem, com suave e maligno fingimento
Teu coração suposto sossegou
Com abundante e inútil alimento?

Quem faz que durmas mais do que dormias?
Que faz que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mão do meu ser que tu amas, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste...
Mas a vida que vives é um sono
Em que indistintamente o teu ser veste
Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos de vez. O Desejado
Talvez não seja mais que um sonho louco
De quem, por muito ter, Pátria, amado,
Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber
Presa da inquietação que não tem nome
E nem revolta ou ânsia sabes ter
Nem da esperança sentes sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,
Colheremos, inúteis e cansados,
O agasalho do amor que ainda pomos
Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Pátria, nula e postergada,
E, se um sonho de esperança te surgir,
Não creias nele, porque tudo é nada,
E nunca vem aquilo que há-de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme que as pálpebras do mundo incerto
Baixam solenes, com a dor que têm,
Sobre o mortiço olhar inda desperto.

Dorme que tudo cessa, e tu com tudo,
Quererias viver eternamente,
Ficção eterna ante este espaço mudo
Que é um vácuo azul? Dorme, que nada sente

Nem paira mais no ar, que fora almo
Se não fora a nossa alma erma e vazia,
Que o nosso fado, vento frio e calmo
E a tarde de nós mesmos, baça e fria

Como longínquo sopro altivo e humano
Essa tarde monótona e serena
Em que, ao morrer, o imperador romano
Disse: Fui tudo, nada vale a pena.


02/06/1935
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
Uma vara canta branco.
Uma cidade canta luzes.
Penso agora que é profundo encontrar as mãos.
Encontrar instrumentos dentro da angústia:
clavicórdios e liras ou alaúdes
intencionados.
Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro.
Cantar o sangrento nevoeiro.
O amor atravessado por um dardo
que estremece o homem até às bases.

Cantar o nosso próprio dardo atirado
ao bicho que atravessa o mundo.
Ao nome que sangra.
Que vai sangrando e deixando um rastro
pela culminante noite fora.
Isso é o nome do amor que é o nome
do canto. Canto na solidão.
O amor obsessivo.
A obsessiva solidão cantante.
Deito-me, e é enorme. E enorme levantar-se,
cegar, cantar.
Ter as mãos como o nevoeiro a arder.

As casas são fabulosas, quando digo:
casas. São fabulosas
as mulheres, se comovido digo:
as mulheres.
As cortinas ao cimo nas janelas
faíscam como relâmpagos. Eu vivo
cantando as mulheres incendiárias
e a imensa solidão
verídica como um copo.
Porque um copo canta na minha boca.
Canta a bebida em mim.
Veridicamente, eu canto no mundo.

Que falem depressa. Estendam-se
no meu pensamento.
Mergulhem a voz na minha
treva como uma garganta.
Porque eu tanto desejaria acordar
dentro da vossa voz na minha boca.
Agora sei que as estrelas são habitadas.
Vossa existência dura e quente
é a massa de uma estrela.
Porque essa estrela canta no sítio
onde vai ser a minha vida.

Queimais as vossas noites em honra
do meu amor. O amor é forte.
Que coisa forte que é a loucura.
Porque a loucura canta minada de portas.
Nós saímos pelas portas, nós
entramos para o interior da loucura.
As cadeiras cantam os que estão sentados.
Cantam os espelhos a mocidade
adjectiva dos que se olham.
Estou inquieto e cego. Canto.
A morte canta-me ao fundo.
E um canto absoluto.

Imagino o meu corpo, uma colina.
Meu corpo escada de estrela.
Nata. Flecha. Objecto cantante.
Corpo com sua morte que canta.
Imagino uma colina com vozes.
Uma escada com canto de estrela.
Imagino essa espessa nata cantante.
Uma que canta flecha.
Imagino a minha voz total da morte.
Porque tudo canta e cantar é enorme.

Imagino a delicadeza. A subtileza.
O toque quase aéreo, quase
aereamente brutal.
Ser tocado pelas vozes como ser ferido
pelos dedos, pelos rudes cravos
da planície.
Ser acordado,acordado.
Porque cantar é um subterrâneo.
Depois é um pátio.
Imagino que as vozes são escadas.
Vozes para atingir o canto.
O canto é o meu corpo purificado.

Porque o meu corpo tem uma sua morte
tocada incendiariamente.
A morte — diz o canto—é o amor enorme.
E enorme estar cego.
Canta o meu grande corpo cego.
Reluzir ao alto pelo silêncio dentro.
O silêncio canta alojado na morte.
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
"E o sexto anjo derramou a sua taça
sobre aquele grande rio Eufrates..."
Apocalipse XVI, 12

Somos verdadeiramente pessoas seguras de si
Longe de nós - que fará ele aqui? - o pensamento
de um dia deixarmos atrás de nós um corpo
lembranças nossas em alguém vazios os lugares onde estivemos
Quem nos dirá a nós que lá no mar as ondas
não venham ainda a precisar de serem vistas
para continuar a nascer e a rebentar?
Vamos ao ponto de dar nomes de mortos às ruas
como se os mortos não pudessem voltar a morrer
o que afinal a gente vê todos os dias
Escondemos-lhes os ossos. Algum de nós era digno
de saber o que resta do seu grande segredo?
Não queiras levantar agora a capa da terra
só para os veres dormir seu vasto sono horizontal
Trincamos tudo: o pão que nos pertence o pão alheio
e o mais que os nossos dentes encontrem à disposição
Nem nos perturba essa pesada dignidade
de recebermos de pé em plena face as estações
e de saudarmos à passagem os homens e o tempo
Precisámos que alguém nos ensinasse onde olhar as mulheres
de corpos excessivos para algumas pás de terra
e que lugar no coração lhes dar?
Olhai que bem nos fica andar na rua
pelo braço de alguma ideia respeitável
ousada sem excessos devidamente garantida
Dispomos de nomes para todas as coisas conhecemos
todos os cheiros todas as promessas
temos na vida uma situação privilegiada
É ver quem ao morrer põe mais anúncios no jornal
como se de outras tantas vidas dispusesse
ou pudesse morrer um pouco mais em cada uma delas
Se até há entre nós quem faça versos
com todas as licenças necessárias
Ao de cimo da pele - da pele sim minha senhora -
ainda temos bolsos e canetas nos bolsos
e muitos outros pequeninos objectos
e soluções nos bolsos para a vida e para a morte
Somos verdadeiramente pessoas seguras de si

Como vagas rebentam nesta vida as gerações
Por elas pelas palavras que não foram proferidas
pelos mortos na estrada pelo preto
que acaba de saltar dois metros ou mais em altura
por quem à despedida quis ouvir a nona sinfonia de beethoven
pelas mulheres de leopoldville pelos directores gerais interinos
pelo sexo que trouxe até nós que fomos no princípio
apenas dois
nossos primeiros pais
pelos excessos do estio que obrigam os poetas
a escrever em julho os poemas de natal
ou na páscoa seguinte aqueles que celebram o pai morto
imolando às imagens o que fora delas pereceu
por todo o sangue justo derramado na terra
depois de abei mesmo depois muito depois de zacarias
filho de baraquias morto entre o templo e o altar
oh como é digno de louvor o velho que regressa
na hora de partir aos seus gestos mais simples
ou as crianças que ainda se olham cheias de surpresa
no corpo recentemente adquirido
Oh como é doce para mim saudar-te
a certas horas quando a chuva cai
e me é dado adivinhar-te por trás das palavras
ditas apenas para orientar o coração
Vejo-te então
preparada e tensa como um arco
e a inclinação com que solícita me atendes acompanha
a forma leve e sinuosa do que temos a dizer
Tão fresco é o teu riso
que quase te direi recém-nascida
Enquanto eu mordo contra o muro a cúpula do riso
inclinas tanto os vagarosos braços
que a tarde desce sensivelmente por eles
até configurar-se em tuas mãos
E o teu olhar está tanto nos teus olhos
profundamente abertos neste vale de lágrimas
que em duas gotas negras ele cai
nas minhas faces mortais
Num sobressalto de pálpebras
abriu-se o céu de um poema

Dia a dia mal o sol subir pela manhã acima
e alcançar conveniente altura
escreverei em tua honra esse poema a que a tarde virá pôr
um ponto final tão rubro como um poente
e chamar-lhe-ei o poema de um dia

Todos os dias são poucos para chorar o homem
embora ele chame em seu auxílio as árvores
ou se descubra sempre que a tarde passar
O homem que depois do poema não diga
«agora já posso morrer tranquilo» nem deseje
ideias regulares como as horas de trabalho
na paz relativa das derrotas adiadas
Seja quem for que nunca peça
«depressa um carro o mais descapotável possível»

Deixará o poeta anónimas algumas
das palavras que deus lhe pôs na boca
ou esses longos versos onde cabe a emoção?
Quantas vezes nesse obscuro instinto de escrever
o poema terá sido para ele
mais que o lugar onde ia ver-se livre
das palavras que o sobrecarregavam?
Estará ele disposto a abandonar o requintado gosto
que têm as leituras junto ao vão da janela?

Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta

Há salas espaçosas em muitas das palavras
Quantos de nós não me dirão andam na vida
seriamente à procura de um nome?
O mal deve afinal estar em sermos
quem somos e não querermos sê-lo
Nascemos e morremos e nada acontece
da primeira à última palavra sempre que entre nós falamos
Não há ideia que não puxemos para de baixo do sol
esse sol que de muitos cresta a pele
nas exóticas praias das antilhas
entre palavras postas onde fora o coração
Por vezes nem coração nem palavras sequer
apenas mornos sentimentos como gatos
bons para nos levar a atravessar o dia
Alguém conseguirá ser mais prudente que nós?
Houve algum sábado em que não deixássemos
a bandeira da repartição a meia haste por aqueles
que haviam de morrer só no domingo?
Fazemos colecção de impulsos ternos
e a vida sobre a terra é uma questão de tempo
Demos outrora um nome a cada coisa
houvemo-las assim por nossas e opusemo-las
dentro de nós à natureza exterior
Em cada telefone levantámos uma esperança
Passámos nos vidros das montras das cidades
e o breve tempo que passámos ficámos
Quando o silêncio um dia nos unir
então seremos todos nós palavras
Ainda hoje há muitos que procuram paz
essa paz que se sente ao descer na estaçãozinha de província
curiosamente chamada emaús
Entremos nos correios ao domingo que talvez
certo postal nos leve a dar por ganho o dia
A verdade a verdade o que é a verdade?
Banhamo-nos às vezes num olhar
que faz lembrar aquele antigo rio
quando não era ainda o chão o necessário porto
onde vão dar as coisas os seres e as folhas
e o homem depois de morto
Mas permanentemente não nos é possível
(um dia outra vez o princípio
os telefones tocarão interminavelmente
e correrão sem fim todas as fontes
pelas imensas manhãs de amanhã)
ter a cidade de Jerusalém na frente
ó meu senhor da face persistente
Inútil nos seria buscar quem aquém do rio
de todo em nós jogasse aquela vida
que plenamente existe só na nossa voz
A verdade meu deus é a cidade
que nasce onde e porque os teus
olhos e os meus após chorar se olharam

E vejo-te mulher sair dos velhos dias
e ajoelhar numa nuvem de névoa com os teus joelhos puros
sobre a nossa miséria de homens de medos
e o nosso ser caído e pelo ferro corroído
erguê-lo à altura do teu filho
que nem sequer pode estender os braços
contra os nossos templos domésticos
e até lhe escondemos a face entre paredes
E procuras no túnel da grande cidade
esse teu filho perdido há já três dias
entre as minhas palavras
e não o podes encontrar porque elas têm
tantos ombros pelo menos como a multidão
e porque eu para ti até aqui não tinha mais
que algumas palavras primordiais
tontas palavras pedidas emprestadas
às modernas doutrinas estéticas

Dois braços dois olhos vinte dedos na melhor das hipóteses
eis os limites do sonho do homem
Sentado deitado de joelhos de pé
eis as suas possíveis atitudes
E em caso de necessidade
é o mesmo o local onde se irá sentar
Ah a grande solidariedade que nos vem da mesma carne
de termos iguais braços e de abrirmos
os mesmos olhos sobre os telhados e a vida
o mesmo ouvido para ouvirmos o trovão
na noite em que se isolam todas as palavras
O que nós temos é principalmente sono
Planetas sem luz própria ilumina-nos
pontualmente a aurora. Novos passos
levarão a nossa morte diária
vinte e quatro horas mais longe
Já na cidade começam os despertadores
a disputar o cântico harmónico dos galos
Ainda agora havíamos morrido
e já saltamos novos dos lençóis da aurora
Vai funcionário arranjado e composto inaugurar o teu dia
com prateleiras para todas as ideias
por estas ruas que começam a movimentar-se
Se vês passar a camioneta para a ericeira
vai mesmo assim para o emprego e não para a ericeira
e afasta a tentação de sempre seres outra coisa
porque é de deus este e qualquer outro dia
Somos do povo nós ó funcionário. Ainda bem
Sentimos sob os pés a terra
Eles lá nos ministérios porém
com tão ampla vista sobre o tejo
julgam ter deus mesmo à mão
E este o cais. Daqui modernos épicos
navegações verbais praticaremos
a bordo de um conceito ou de um perfume
e lentamente ingressaremos no dia e na neblina
A mulher que por nós passa tem cara todos nós
residentes e domiciliados num corpo temos cara
e ter cara é uma responsabilidade enorme
Entrarmos na garagem talvez diga alguma coisa
a quem mais que em si próprio encontra em nós
que assim vistos de costas só por fora somos
aquilo que no íntimo tanto foi que nunca o foi
Atenção meu amigo às modernas quadrigas
que o sol nascente manda pelas ruas
Olha uma raça assim de santos e heróis
em linha pelas ruas da cidade
a alimentar o ritmo regular do trânsito
Momentaneamente libertos da noite
armamo-nos de coração para o dia
que mesmo agora abriu em pássaros
Morreu antónio arroio e hoje
os meninos da escola antónio arroio
são tão estúpidos como todos os meninos
e esquecem-se que ali morreu um homem
Aqui estamos nós homens sujeitos ao tempo
Que lindos corpos temos com que graça
os libertamos do inverno e vamos por aí
Sabes dizer-me amigo que interesses
serve o riso que nasce nas faces das crianças?
Não terás quem te empreste um cego lastimável?
- o sábado é o dia em que saem para a rua -
talvez assim mereças piedade
Longe vai o tempo em que tu homem sem amanhã
trincavas à socapa o milho à porta da mercearia
na remota aldeia
E aí vamos nós cheios de música
nostálgicos de ausência ricos de horizontes
com o nível de vida expresso no olhar
Em quem tem carro dispensa-se a virtude
ele afasta de nós qualquer obstáculo
- pensam os intelectuais da venda de automóveis
olhando-se no espelho lívido do stand
Comamos e bebamos que amanhã morreremos
Diverte-te noite e dia gilgamesh
desfruta do espectáculo das crianças
mais atraente na verdade que o das sombras
quando atravessam o rio houbour
Oh as falas sem futuro de manhã no autocarro
um autocarro de reivindicações
Caminhamos para a morte sobre os pés
As novas casas vêm apagar em nós a memória das velhas
A quem darão estas faces anónimas que passam
- oh este homem de pé um homem velho
não no deixes perder senhor tu que o criaste -
pequenas alegrias ao chegar a casa?
Alegrias sem conto terá hoje a cidade
Deixai senhoras que passais para o mercado
cair o coração na esquina
junto à mulher que sofre entre folhas de outono
Ela merece muito mais que os velhos que ali estão
completamente ao sol quais crianças ou choupos
Somos a solidão onde a chuva acontece
e essa gota de água em nós é um acontecimento
Tão rápidas vieram as chuvas este ano
que conseguiram surpreender ainda pelas ruas
os braços das mulheres. Já entre as árvores cessou
a troca habitual dos pássaros
Santa teresa com desejos de comungar
e a chuva a não a deixar sair
O pecador já com um pé na direcção do mal
e a chuva a não o deixar sair
Amanhã passaremos sob a água
com um chapéu aberto e um cão pela trela
e insensivelmente meteremos
por paisagens de litografia inglesa
Dia de chuva e nós assim tão sós
no pórtico do templo há tantos anos:
mil, dois mil, novecentos e cinquenta e tantos?
A cem séculos de distância meto moedas no saco
Não tem nome o mistério do fogo
que lambe lábil como o pensamento
quem no outro inverno fomos
O tempo tem passado extraordinariamente
Agora que a aragem fria vem de novo quebrar
uma ânfora de memórias na linha dos umbrais
e roçar antigas asas contra a nossa pele
talvez possamos desfraldar as palavras necessárias
à sensibilidade do tempo que ao longo da avenida
certas tardes cai tão concentrado como uma pedra
a dois passos de nós. Alguém arrasta
periféricos véus sobre as searas e passa
mãos cheias de dedos pelo fumo das casas
Alguém passou por aqui
decerto alguém passou por aqui. Não vedes mortas
folhas que não há muito tinham coração
e manchado de sangue o caminho que leva
à cidade que há para além das montanhas
Eu sei que são inúteis
os nossos raciocínios e as propostas de caminhos rectos
E se ele passar por aqui (ou por outro sítio)
dentro de um mês ou de um ano
talvez veja em nós as mesmas faces orientadas
que insistem suavemente na direcção da cidade
Não deu o calceteiro a volta ao quarteirão
nem a flor da sacada emitiu catorze folhas
- só nove bastariam -
sem o inverno vir
Quando o tempo traz de novo às árvores o fruto
erguemos as cabeças dignamente A primavera sempre quando chega
estende sobre nós uma toalha de esperança
e o céu começa logo acima das cabeças
Não estamos sós
há vida sobre a terra
Bóia no ar da tarde um assobio
e o próprio vento não nos é desconhecido
Há um homem à sombra das árvores de junho
tem uma certa forma de olhos onde nasce deus
e é tão surpreendente tão desprevenido como uma criança
O ser que amamos nesses meses enche toda a rua
Se uma mão de calor nos mata de cansaço
e as planícies se lavam no nascer do sol
entregamos os corpos à ventura
Não és tu a minha estação ó verão instalado
Afastamos com água das árvores o outono
Já os dias começam a diminuir
ouve-se ao longe o búzio da azeitona
- deixa cair agora os gestos mais simples
com que te defendias de inimigos como
as plantas as crianças e os dias
Colheram as maçãs ainda não choveu
e o manto da inocência cobre como antes a criança
que ainda não quer ver o nome nos jornais:
o olhar é para ela só olhar
e não possível ponto de partida do poema
Iremos até onde as folhas caem
é possível que o outono seja lá
Que bem estamos em nós nem outrem nos sonhamos
são impossíveis qualquer passado ou futuro
Enfeitamos com trapos nossos símbolos os paus
e aproximamos o pássaro da rosa
enquanto fores mandando ao nosso encontro dias
e não chegar a hora de sairmos da história
como o sol sai agora por detrás do mar
E o mar sempre lá
no lugar onde está
fronteiro à face momentânea dos homens
Que mágicos não são prédios em construção
abandonados ao anoitecer
E outra vez nós temos sobretudo sono

Ah o movimento súbito dos carros rente à noite
e os amantes a medo preparando as novas mortes de cristo
pelos meios que a técnica lhes veio proporcionar
As nossas cidades ao cair da tarde
Talvez estas estradas consintam jesus cristo
um entre nós na nossa freguesia
mas dando ao mesmo tempo sentido a tudo isto
Tu és senhor um deus verdadeiramente ofendido
Andaste nestas regiões de terra para terra
é mentiroso todo aquele que te nega
o mundo passa é a última hora
É inútil repito. As ruas da cidade
de tão orientadas não vão dar ao coração
Os versos que erguemos ao longo dos passeios
coagularam em ilhas que a indiferença
rodeou de silêncio e ao roçar o asfalto
até adquiriram seguras cotações
nos mercados onde vendem as palavras
Os homens passam de mãos nos bolsos
com a despreocupação de quem escarra
poentes em bocas rubras comprometendo assim
uma esperança municipal em cada esquina
Não é possível quando o autocarro passa
configurar o sentimento
e atravessar com ele pela mão
e chamar-lhe mulher como se o fosse
Quantos de nós senhor exigimos mais espaço
- muito menos decerto bastaria
para estar à vontade no teu reino
a troco de uma renda razoável
Desses-nos tu somente o corpo indispensável
para sentir o vento quando passa
e para devolver-te o tempo que nos deste
Longe do dia definitivo poupamos gestos
(no fundo só as crianças os sabem perder)
demos a volta à cidade em tardes de domingo
todos tínhamos sítios precisos onde ir
Afasta-nos senhor do caminho e dos olhos essa cruz
lembra-te ao menos da nossa honesta cidade
onde todas as ruas têm um sentido
e os homens sabem bem aonde se dirigem
todos eles o sabem só tu não
Olha que acontecimentos nos esperam
ao fim da rua ou ao fim da semana
Vamos compondo hoje e amanhã a face
que havemos de mostrar aos outros
na nossa habitual órbita de astros
Tem cães e gatos tem espinhas o nosso dia:
ousaremos aproximá-lo de ti queimá-lo nesses lábios onde
todo o tempo tem oriente e poente nascimento e morte?
Terras de zabulon e de neftali mesmo cafarnaum
nalguma delas foste assim estrangeiro?
Triste destino o teu: morreres na minha boca
tu que és o responsável pelo vento
que tinhas os teus ombros sem regresso
prometidos ao céu sobre Jerusalém
És o mais singular dos meus amigos
oferecendo ao tempo a arca do teu peito quando ainda
limite algum de idade te atingira
Quererás tu recolher nossos dias iguais?
Olha a pressa com que os dias se sucedem uns aos outros
nesta terrível terra que uma vez
teus pés senhor pisaram e deixaram
Poucos são os que vêem ser vistos por ti
único olhar que não se cruza nestas ruas
onde todos nasceram e vão desaguar
Mas como aproximar-te nestes dias de vento
se a vista se nos prende a todos os joelhos
desde logo uma altura muito inferior aos teus olhos?
Baixássemos senhor o nosso pobre olhar
em vez de o deixarmos exceder
o nível médio das águas do mar

Como era o teu rosto?
Saberão muitos hoje os caminhos que a ele vão dar?
E quantos há que fogem a dobrar
diante de ti seu pobre joelho esfolado?
Todos fazem render estavelmente o rosto que lhes deste
ninguém te ama além do combinado
ou fora de um prudente horário de trabalho
Raros aqueles que feridos pelos homens
regressam findo o dia ao teu convívio
E atrás de nós um monstro - uma besta escarlate? - lentamente se elabora
também ele beberá do cálice da tua ira
Deixámos-te só senhor deixámos-te só
de braços estendidos contra os nossos dias
abolindo as mais sólidas paredes
- quem não for irmão dos meus irmãos nem mesmo é meu irmão
Fomos todos ao encontro de nós próprios
se olhamos para o céu é na expectativa do que nos possa trazer alguma lua nova
- já o santo o sabia nesse tempo
os homens sempre foram os mesmos
Não saberás de algum remédio convincente
para abalar um coração tristemente contente?
Terás no fim para nós uma morte tão funda
que nos separe de todo o mal que fizemos
e assim nos aproxime do bem que desejámos?
Quando vieres pela estrada de sião
então afastarás de nós a impiedade
Nós somos os das tendas aqueles para quem
não é possível a transfiguração
Só duvidam um pouco de si aqueles a quem
já tu senhor pediste alguma vez alguém
O nosso deus é um deus ofendido



Ruy Belo | "Obra Poética de Ruy Belo" - Vol. 1, págs. 58 a 69 | Editorial Presença Lda., 1984
Os Libertadores
Aqui vem a árvore, a árvore
da tormenta, a árvore do povo.

Da terra sobem os heróis
como as folhas pela seiva
e o vento despedaça as folhagens
de multidão rumorosa,
até que cai a semente
do pão outra vez na terra.


Aqui vem a árvore, a árvore
nutrida por mortos desnudos,
mortos açoitados e feridos,
mortos de rostos impossíveis,
empalados sobre uma lança,
esfarelados na fogueira,
decapitados pela acha,
esquartejados a cavalo,
crucificador na igreja.


Aqui vem a árvore, a árvore
cujas raízes estão vivas,
tirou salitre do martírio,
suas raízes comeram sangue,
extraiu lágrimas do céu:
elevou-as por suas ramagens,
repartiu-as em sua arquitetura.

Foram flores invisíveis,
às vezes flores enterradas,
outras vezes iluminaram
suas pétalas, como planetas.


E o homem recolheu nos ramos
as corolas endurecidas,
entregando-as de mão em mão
como magnólias ou romãs
e logo abriram a terra,
cresceram até as estrelas.


Esta é a árvore dos livres.

A árvore terra, a árvore nuvem.

A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.

Afoga-a a água tempestuosa
de nossa época noturna,
mas seu mastro faz balançar
o círculo de seu poder.


Outras vezes de novo tombam
os ramos partidos pela cólera,
e uma cinza ameaçadora
cobre a sua antiga majestade:
foi assim desde outros tempos,
assim saiu da agonia,
até que uma secreta razão,
uns braços inumeráveis,
o povo, guardou os fragmentos,
escondeu troncos invariáveis,
e seus lábios eram as folhas
de imensa árvore repartida,
disseminada em todas as partes,
caminhando com suas raízes.

Esta é a árvore, a árvore
do povo, de todos os povos
da liberdade, da luta.


Assoma-te a sua cabeleira:
toca seus raios renovados:
mergulha a não nas usinas
de onde seu fruto palpitante
propaga a sua luz de cada dia.

Levanta esta terra em tuas mãos,
participa deste esplendor,
toma o teu pão e a tua maçã,
teu coração e teu cavalo
e monta guarda na fronteira,
no limite de suas folhas.


Defende o fim de suas coroas,
comparte as noite hostis,
vigia o ciclo da aurora,
respira a altura estrelada,
amparando a árvore, a árvore
que cresce no meio da terra.



I
Cuahtémoc (1520)

Jovem irmão há tempos e tempos
nunca dormido, nunca consolado,
jovem estremecido nas trevas
metálicas do México, em tua mão
recebo o dom de tua pátria nua.


Nela nasce e cresce o teu sorriso,
uma linha entre a luz e o ouro.


São os teus lábios unidos pela morte
o mais puro silêncio sepultado.


O manancial submerso
sob todas as bocas da terra.


Ouviste, ouviste, acaso,
no Anáhuac longínquo,
um rumo de água, um vento
de primavera destroçada?
Era talvez a palavra do cedro.

Era uma onda branca de Acapulco.


Porém na noite fugia
teu coração como um cervo
até as fronteiras, confuso,
entre os monumentos sanguinários,
sob a lua soçobrante.


Toda a sombra preparava sombra.

Era a terra uma escura cozinha,
pedra e caldeira, vapor negro,
muro sem nome, injúria
que te chamava dos noturnos
metais de tua pátria.


Mas não há sombra em teu estandarte.


Chegou a hora assinalada
e ao meio de teu povo
és pão e raiz, lança e estrela.

O invasor sustou o passo.

Não é Moctezuma extinto
como taça morta,
é o relâmpago e sua armadura,
a pluma de Quetzal, a flor do povo,
o elmo aceso entre as naus.


Mas a mão dura como séculos de pedra
apertou a tua garganta.
Não fecharam
o teu sorriso, não fizeram
tombar os grãos do milho
secreto, e te arrastaram,
vencedor cativo,
pelas distâncias de teu reino,
entre cascatas e cadeias,
sobre areais e aguilhões,
como uma coluna incessante,

como testemunha dolorosa,
até que uma corda enredou
a coluna da pureza
e dependurou o corpo suspenso
sobre a terra desgraçada.




II
Frei Bartolomé de las Casas

A gente pensa, ao chegar a casa, à noite, cansado,
entre a névoa fria de maio, à saída
do sindicato (na esmiuçada
luta de cada dia, a estação
chuvosa que goteja do beiral, o surdo
latejar do constante sofrimento),
esta ressurreição mascarada,
astuta, envilecida,
do encadeador, da cadeia,
e quando sobe a angústia
até a fechadura para entrar contigo,
surge uma luz antiga, suave e dura
como um metal, como um astro enterrado.

Padre Bartolomé, obrigado por esta
dádiva da crua meia-noite,
graças porque teu fio foi invencível:
pôde morrer massacrado, comido
pelo cão de fauces iracundas,
pôde ficar na cinza
da casa incendiada,
pôde cortá-lo a lâmina fria
do assassino inumerável
ou o ódio administrado com sorrisos
(a traição do próximo cruzado),
a mentira arremessada na janela.

Pôde morrer o fio cristalino,
a irredutível transparência
convertida em ação, em combatente
e despenhado aço de cascata.

Poucas vidas dá o homem como a tua, poucas
sombras há na árvore como a tua sombra, nela
todas as brasas vivas do continente acodem,
todas as arrasadas condições, a ferida
do mutilado, as aldeias
exterminadas, tudo sob a tua sombra
renasce, do limite
da agonia fundas a esperança.

Padre, foi sorte para o homem e sua espécie
que tivesses chegado à plantação,
que mordesses os negros cereais
do crime, que bebesses cada dia a taça da cólera.

Quem te pôs, mortal despido,
entre os dentes da fúria?
Como assomaram outros olhos,
de outro metal, quando nascias?

Como se cruzam os fermentos
na oculta farinha humana
para que o teu grão imutável
se amassasse no pão do mundo?

Eras a realidade entre fantasmas
encarniçados, eras
a eternidade da ternura
sobre a rajada do castigo.

De combate em combate a tua esperança
converteu-se em precisas ferramentas:
a solitária luta fez-se um ramo,
o pranto inútil agrupou-se em partido.


Não valeu a piedade.
Quando mostravas
tuas colunas, tua nave amparadora,
tua mão para abençoar, teu manto,
o inimigo pisoteou as lágrimas,
e violou a cor da açucena.

Não valeu a piedade alta e vazia
como uma catedral abandonada.

Foi a tua invencível decisão, a ativa
resistência, o coração armado.


Foi a razão o teu material titânico.


Foi flor organizada a tua estrutura.


De cima quiseram contemplar-te
(de sua altura) os conquistadores,
apoiando-se como sombras de pedra
sobre seus espadões, esmagando
com os seus sarcásticos escarros
as terras de tua iniciativa,
dizendo: “Ali vai o agitador”,
mentindo: “Foi pago
pelos estrangeiros”,
“Não tem pátria”, “Traidor”,
mas a tua prédica não era
frágil minuto, peregrina
pauta, relógio do passageiro.

Tua madeira era bosque combatido,
ferro em sua cepa natural, oculto
a toda luz pela terra florida,
e ainda mais, era mais fundo:
na unidade do tempo, no transcurso
da vida, era a tua mão antecipada
estrela zodiacal, signo do povo.

Hoje, padre, entra nesta casa comigo.


Vou mostrar-te as cartas, o tormento
de meu povo, do homem perseguido.

Vou mostrar-te as dores antigas.

E para não tombar, para firmar-me
sobre a terra, continuar lutando,
deixa em meu coração o vinho errante
e o pão implacável de tua doçura.




III
Avançando nas trevas do Chile

Espanha entrou até o sul do mundo.
Opressos
exploraram a neve os altos espanhóis.

O Bío-Bío, grave rio,
disse à Espanha: “Pára”,
o bosque de maitenes cujos fios
verdes pendem como um tremor de chuva
disse à Espanha: “Não prossigas”.
O lariço,
titã das fronteiras silenciosas,
disse em um trovão a sua palavra.

Mas até o fundo da pátria minha,
punho e punhal, o invasor chegava.

Pelo rio Imperial, em cuja margem
meu coração amanheceu no trevo,
entrava o furacão pela manhã.

O largo leito das garças seguia
das ilhas para o mar furioso,
cheio como taça interminável,
entre as margens do cristal sombrio.

Em suas barrancas eriçava o pólen
uma alfombra de estames turbulentos
e desde o mar a brisa comovia
todas as sílabas da primavera.

A aveleira da Araucania
embandeirava fogueiras e racimos
lá onde a chuva deslizava
sobre o agrupamento da pureza.

Tudo estava enredado de fragrâncias,
empapado de luz verde e chuvosa,
e cada matagal de odor amargo
era um ramo profundo do inverno
ou uma extraviada formação marinha
ainda cheia do orvalho oceânico.

Dos barrancos se erguiam
torres de pássaros e plumas
e um ventarrão de solidão sonora,
enquanto na molhada intimidade
entre as cabeleiras encrespadas
do feto gigante, era a topa-topa florescida
um rosário de beijos amarelos.




IV
Surgem os homens
Ali germinavam os toquis.

Daquelas negras umidades,
daquela chuva fermentada
na taça dos vulcões
saíram os peitos augustos,
as claras flechas vegetais,
os dentes de pedra selvagem,
os pés de estaca inapelável,
a glacial unidade da água.


O Arauco foi um útero frio,
feito de feridas, massacrado
pelo ultraje, concebido
entre os ásperos espinhos,
arranhado nos montões de neve,
protegido pelas serpentes.


Assim a terra extraiu o homem.


Cresceu como fortaleza.

Nasceu do sangue agredido, eriçou a cabeleira
como um pequeno puma rubro
e os olhos de pedra dura
brilhavam na matéria
como fulgores implacáveis
saídos da caçada.




V
Toqui Caupolicán

Na cepa secreta do raulí
cresceu Caupolicán, torso e tormenta,
e quando contra as armas invasoras
seu povo dirigiu,
andou a árvore,
andou a árvore dura da pátria.

Os invasores viram a folhagem
mover-se ao meio da bruma verde,
os grossos ramos e as vestimentas
de inumeráveis folhas e ameaças,
o tronco terrenal fazer-se povo,
as raízes saírem do território.


Souberam que a hora havia soado
para o relógio da vida e da morte.


Outras árvores vieram com ele.


Toda a raça de ramagens rubras,
todas as tranças da dor silvestre,
todo o nó do ódio da madeira.

Caupolicán, sua máscara de lianas
defronta o invasor perdido:
não é a pintada pluma imperadora,
não é o trono das plantas olorosas,
não é o reluzente colar do sacerdote,
não é a luva nem o príncipe dourado:
um é o rosto da mata,
uma carranca de acácias arrasadas,
uma figura ferida pela chuva,
uma cabeça com trepadeiras.


De Caupolicán, o toqui, é o olhar
fundido, de universo montanhoso,
os olhos implacáveis da terra,
e as faces do titã são muros
escalados por raios e raízes.




VI
A Guerra Pátria

A Araucania estrangulou o cantar
da rosa no cântaro, cortou
os fios
no tear da noiva de prata.

Desceu a ilustre Machi de sua escada,
e nos rios dispersos, na argila,
sob a copa hirsuta
das araucárias guerreiras,
foi nascendo o clamor dos sinos
enterrados.
A mãe da guerra
saltou as pedras doces do arroio,
deu asilo à família pescadora,
e o noivo lavrador beijou as pedras
antes que voassem à ferida.


Atrás do rosto florestal do toqui
Arauco amontoava a sua defesa:
eram olhos e lanças, multidões
espessas de silêncio e ameaça,
cinturas indeléveis, altaneiras
mãos escuras, punhos congregados.


Atrás do alto toqui, a montanha,
e na montanha, o inumerável Arauco.


Arauco era o rumor da água errante.


Arauco era o silêncio tenebroso.


O mensageiro em sua mão cortada
ia juntando as gotas de Arauco.


Arauco foi a onda da guerra.

Arauco os incêdios da noite.


Tudo fervia atrás do toqui augusto,
e quando ele avançou, foram trevas,
areias, bosques, terras,
unânimes fogueiras, furacões,
aparição fosfórica de pumas.




VII
O empalado

Caupolicán porém chegou ao tormento.


Ensartado na lança do suplício,
entrou na morte lenta das árvores.


Arauco redobrou o seu ataque verde,
sentiu nas sombras o calafrio,
cravou na terra a cabeça,
ocultou-se com as suas dores.

O toqui dormia na morte.

Um ruído de ferro chegava
do acampamento, uma coroa
de gargalhadas estrangeiras,
e junto aos bosques enlutados
somente a noite palpitava.


Não era a dor, a dentada
do vulcão aberto nas vísceras,
era só um sonho da mata,
a árvore que sangrava.


Nas entranhas de minha pátria
entrava a ponta assassina
ferindo as terras sagradas.

O sangue queimante tombava
de silêncio em silêncio, abaixo,
até onde a semente está
à espera da primavera.


Mais fundo tombava este sangue.


Caía sobre as raízes.


Caía sobre os mortos.


Sobre os que iam nascer.



VIII
Lautaro (1550)

O sangue toca um corredor de quartzo.

A pedra cresce onde a gota tomba.

Assim nasce Lautaro da pedra.




IX
Educação do cacique

Lautaro era uma flecha delgada.

Elástico e azul foi o nosso pai.

Foi sua primeira idade só silêncio.

Sua adolescência foi domínio.

Sua juventude foi um vento dirigido.

Preparou-se como uma longa lança.

Acostumou os pés nas cachoeiras.

Educou a cabeça nos espinhos.

Executou as provas do guanaco.

Viveu pelos covis da neve.

Espreitou as águias comendo.

Arranhou os segredos do penhasco.

Entreteve as pétalas do fogo.

Amamentou-se de primavera fria.

Queimou-se nas gargantas infernais.

Foi caçador entre as aves cruéis.

Tingiram-se de vitórias as suas mãos.

Leu as agressões da noite.


Amparou o desmoronamento do enxofre.


Se fez velocidade, luz repentina.


Tomou as vagarezas do outono.

Trabalhou nas guaridas invisíveis.

Dormiu sobre os lençóis da nevasca.

Igualou-se à conduta das flechas.

Bebeu o sangue agreste dos caminhos.

Arrebatou o tesouro das ondas.

Se fez ameaça como um deus sombrio.

Comeu em cada cozinha de seu povo.

Aprendeu o alfabeto do relâmpago.

Farejou as cinzas espalhadas.

Envolveu o coração de peles negras.

Decifrou o fio espiral do fumo.

Construiu-se de fibras taciturnas.

Azeitou-se como a alma da azeitona.

Fez-se cristal de transparência dura.

Estudou para vento furacão.

Combateu-se até apagar o sangue.


E só então foi digno de seu povo.




X
Lautaro entre invasores

Entrou na casa de Valdivia.

Acompanhou-o como a luz.

Dormiu coberto de punhais.

Viu seu próprio sangue derramado,
seus próprios olhos esmagados,
e dormindo nos pesebres
acumulou o seu poderio.

Não se mexiam os seus cabelos
examinando os tormentos:
olhava para além do ar
para a sua raça debulhada.


Velou aos pés de Valdivia.


Ouviu o seu sonho carniceiro
crescer na noite sombria
como uma coluna implacável.

Adivinhou esses sonhos.

Pôde levantar a dourada
barba do capitão adormecido,
cortar o sonho na garganta,
mas aprendeu - velando sombras -
a lei noturna do horário.


Marchou de dia acariciando
os cavalos de pele molhada
que se iam afundando em sua pátria.

Adivinhou esses cavalos.

Marchou com os deuses fechados.

Adivinhou as armaduras.

Foi testemunha das batalhas,
enquanto entrava passo a passo
no fogo da Araucania.




XI
Lautaro contra o Centauro (1554)

Atacou então Lautaro de onda em onda.

Disciplinou as sombras araucanas:
antes entrou o punhal castelhano
em pleno peito da massa vermelha.

Hoje foi semeada a guerrilha
sob todas as alas florestais,
de pedra em pedra e de vau em vau,
olhando dos copihues,
espreitando sob as rochas.

Valdivia quis voltar.

Era tarde.

Chegou Lautaro com traje de relâmpago.

Seguiu o conquistador aflito.

Abriu caminho nas úmidas brenhas
do crepúsculo austral.

Chegou Lautaro
num galope negro de cavalos.


A fadiga e a morte conduziam
a tropa de Valdivia na folhagem.


Aproximavam-se as lanças de Lautaro.

Entre os mortos e as folhas ia
como em um túnel Pedro de Valdivia.


Nas trevas chegava Lautaro.


Pensou na Extremadura pedregosa,
o dourado azeite, a cozinha,
o jasmim deixados em ultramar.


Reconheceu o uivo de Lautaro.


As ovelhas, as duras granjas,
os muros brancos, a tarde extremenha.


Sobreveio a noite de Lautaro.


Seus capitães cambaleavam ébrios
de sangue, noite e chuva para o regresso.


Palpitavam as flechas de Lautaro.


De queda em queda a capitania
ia retrocedendo dessangrada.


Já se tocava o peito de Lautaro.


Valdivia viu chegar a luz, a aurora,
talvez a vida, o mar.

Era Lautaro.




XII
O coração de Pedro de Valdivia

Levamos Valdivia para debaixo da árvore.


Era um azul de chuva, a manhã com frios
filamentos de sol desfiado.


Toda a glória, o trovão,
turbulentos jaziam
num montão de aço ferido.

A caneleira erguia a sua linguagem
num fulgor de vaga-lume molhado
em toda a sua pomposa monarquia.


Trouxemos pano e cântaro, tecidos
grossos como as tranças conjugais,
jóias como amêndoas da lua,
e os tambores que encheram
a Araucania com sua luz de couro.

Enchemos as vasilhas de doçura
e dançamos calcando os torrões
feitos da nossa própria estirpe escura.


Depois calcamos o rosto inimigo.

Depois cortamos o valente pescoço.


Que bonito foi o sangue do verdugo
repartido entre nós como romã
enquanto ainda vivo ardia.

Depois, no peito enfiamos uma lança
e o coração alado como os pássaros
entregamos à árvore araucana.

Subiu um rumor de sangue até a copa.


Então, da terra
feita de nossos corpos, nasceu o canto
da guerra, do sol, das colheitas.

Então repartimos o coração sangrento.

Eu meti os dentes naquela corola
cumprindo o rito da terra:
“Dá-me o teu frio, estrangeiro malvado.

Dá-me o teu valor de grande tigre.

Dá-me em teu sangue a tua cólera.

Dá-me a tua morte para que me siga
e leve o espanto até os teus.

Dá-me a guerra que trouxeste.

Dá-me o teu cavalo e os teus olhos.

Dá-me a treva retorcida.

Dá-me a mãe do milho.

Dá-me a pátria sem espinhos.

Dá-me a paz vencedora.

Dá-me o ar onde respira
a caneleira, senhora florida”.




XIII
A dilatada guerra

Depois, terra e oceanos, cidades,
naves e livros, conheceis a história
que desde o território rude
como uma pedra lançada
encheu de pétalas azuis
as profundezas do tempo.

Três séculos esteve lutando
a raça guerreira do carvalho,
trezentos anos a centelha
de Arauco povoou de cinzas
as cavidades imperiais.

Três séculos tombaram feridas
as camisas do capitão,
trezentos anos despovoaram
os arados e as colméias,
trezentos anos açoitaram
cada nome de invasor,
três séculos rasgaram a pele
das águias agressoras,
trezentos anos enterraram
como a boca do oceano
tetos e ossos, armaduras,
torres e títulos dourados.

Às esporas iracundas
das guitarras adornadas
chegou um galope de cavalos
e uma tormenta de cinza.

As naus voltaram ao duro
território, nasceram espigas,
cresceram olhos espanhóis
no reinado da chuva,
mas Arauco desceu as telhas,
moeu as pedras, abateu
os paredões e as vides,
as vontades e as roupas.

Vede como tombam na terra
os filhos ásperos do ódio,
Villagras, Mendozas, Reinosos,
Reyes, Morales, Alderetes,
rolaram para o fundo branco
das Américas glaciais.

E na noite do tempo augusto
caiu Imperial, caiu Santiago,
caiu Villarrica na neve,
rolou Valdivia pelo rio,
até que o reinado fluvial
do Bío-Bío se deteve
sobre os séculos do sangue
e estabeleceu a liberdade
nas areias dessangradas.




XIV
(Intermédio)
A Colônia cobre nossas terras (1)

Quando a espada descansou e os filhos
da Espanha dura, como espectros,
dos reinos e das selvas, até o trono,
montanhas de papel com uivos
enviaram ao monarca ensimesmado:
depois que na viela de Toledo
nu do Guadalquivir na esquina,
toda a história passou de mão em mão,
e pela boca dos portos andou
a mecha esfarrapada
dos conquistadores espectrais,
e os últimos mortos foram postos
dentro do ataúde, com procissões,
nas igrejas construídas com sangue,
a lei chegou ao mundo dos rios
e vejo o mercador com a sua bolsinha.


Ficou escura a extensão matutina,
roupas e teias de aranha propagaram
a escuridão, a tentação, o fogo
do diabo nas habitações.

Uma vela iluminou a vasta América
cheia de nevadas e favos de mel,
e por séculos falou ao homem em voz baixa,
tossiu trotando pelas ruazinhas,
persignou-se perseguindo centavos.

Chegou o nativo às ruas do mundo,
extenuado, levando as valas,
suspirando de amor entre as cruzes,
buscando o escondido
caminho da vida
sob a mesa da sacristia.

A cidade no esperma do cerol
fermentou, sob os panos negros,
e das raspaduras da cera
elaborou maçãs infernais.


América, a copa de acaju,
foi então um crepúsculo de chagas,
um lazareto alagado de sombras,
e no antigo espaço do frescor
cresceu a reverência do verme.

O ouro ergueu sobre as pústulas
maciças flores, heras silenciosas,
edifícios de sombra submersa.


Uma mulher coletava pus,
e o copo de substância
bebeu em honra do céu cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos.


Nas sombras do dia tenebroso
o mercador fez o seu reino
apenas iluminado pela fogueira
em que o herege, retorcido,
feito fagulhas, recebia
sua colheradazinha de Cristo.


No dia seguinte as senhoras,
ajeitando as entretelas,
relembravam o corpo enlouquecido,
atacado e devorado pelo jogo,
enquanto o aguazil examinava
a minúscula mancha do queimado,
graxa, cinza, sangue,
que os cachorros lambiam.




XV
As fazendas (2)

A terra andava entre os morgadios
de dobrão em dobrão, desconhecida,
massa de aparições e conventos,
até que toda a azul geografia
dividiu-se em fazendas e encomiendas.

Pela espaço morto andava a chaga
do mestiço e o chicote
do reinol e do negreiro.

O nativo era um espectro dessangrado
que recolhia as migalhas,
até que estas reunidas
dessem para comprar um título
pintado de letras douradas.


E no carnaval tenebroso
saía vestido de conde,
orgulhoso entre outros mendigos,
com um bastãozinho de prata.




XVI
Os novos proprietários (3)

Estancou-se assim o tempo na cisterna.

O homem dominado nas vazias
encruzilhadas, pedra do castelo,
tinta do tribunal, povoou de bocas
a cerrada cidade americana.

Quando já era a paz e a concórdia,
hospital e vice-rei, quando Arellano,
Rojas, Tapia, Castillo, Núnez, Pérez,
Rosales, López, Jorquera, Bermúdez,
os últimos soldados de Castela,
envelheceram atrás da Audiência,
tombaram.
mortos debaixo do cartapácio,
foram com os seus piolhos para a tumba
onde fiaram sonho
das adegas imperiais, quando
era a ratazana o único perigo
das terras encarniçadas,
assomou-se o biscainho com um saco,
o Errázuriz com suas alpargatas,
o Fernández Larraín a vender vedas,
o Aldunate da baeta,
o Eyzaguirre, rei das meias.


Entraram todos como povo faminto,
fugindo das pancadas, do policia.

Logo, de camiseta em camiseta,
expulsaram o conquistador
e estabeleceram a conquista
do armazém de importados.

Aí adquiriram o orgulho
comprado no mercado negro.

Apropriaram-se
das fazendas, chicotes, escravos,
catecismos, camisarias,
cepos, cortiços, bordéis,
e a tudo isto denominaram
santa cultura ocidental.




XVII
Comuneiros do Socorro (1781)

Foi Manuela Beltrán (quando rasgou os bandos
do opressor e gritou: “Morram os déspotas”)
quem derramou os novos cereais
por nossa terra.

Foi em Nova Granada, na Vila
do Socorro.
Os comuneiros
balançaram o vice-reinado
num eclipse precursor.


Uniram-se contra os estancos,
contra o sujo privilégio,
e levantaram a cartilha
das petições foreiras.

Uniram-se com armas e pedras,
milícia e mulheres, o povo, ordem e fúria, encaminhados
para Bogotá e sua linhagem.


Aí desceu o arcebispo.

“Tereis todos os vossos direitos,
em nome de Deus vos, prometo.


O povo juntou-se na praça.


O arcebispo celebrou
uma missa e um juramento.


Ele era a paz justiceira.


“Guardai as armas.
Cada um
em sua casa”, sentenciou.


Os comuneiros entregaram
as armas.
Em Bogotá
festejaram o arcebispo,
celebraram a sua traição,
seu perjúrio, na missa pérfida,
e negaram pão e direito.


Fuzilaram os caudilhos,
repartiram entre os povoados
suas cabeças recém-cortadas,
com as bênçãos do prelado
e os bailes do vice-reinado.


Primeiras, pesadas sementes
lançadas às regiões,
permaneceis, cegas estátuas,
chocando na noite hostil
a insurreição das espigas.




XVIII Tupac-Amaru (1781)

Condorcanqui Tupac-Amaru,
sábio senhor, pai justo,
viste subir a Tungasuca
a primavera desolada
dos patamares andinos
e, com ela, sal e desdita,
iniqüidades e tormentos.


Senhor Inca, pai cacique,
tudo em teus olhos se guardava
como num cofre calcinado
pelo amor e pela tristeza.

O índio te mostrou o ombro
no qual as novas mordidas
brilhavam nas cicatrizes
de outros castigos apagados,
e era um ombro e outro ombro,
todas as alturas sacudidas
pelas cascatas do soluço.


Era um soluço e outro soluço.

Até que armaste a jornada
dos povos cor de terra,
recolheste o pranto em tua taça
e endureceste as veredas.


Chegou o pai das montanhas,
a pólvora levantou caminhos,
e às aldeias humilhadas
chegou o pai da batalha.

Jogaram a manta na poeira,
uniram-se os velhos punhais,
e o búzio matinho
chamou os vínculos dispersos.

Contra a pedra sanguinária,
contra a inércia desgraçada,
contra o metal das correntes.

Porém dividiram o teu povo,
e irmão contra o irmão
mandaram, até que tombaram
as pedras da tua fortaleza.

Ataram os teus membros cansados
a quatro cavalos raivosos
e esquartejaram a luz
do amanhecer implacável.


Tupac-Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o sol do mar
uma luz desaparecida.

As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac germina na terra.




XIX
América insurrecta (1800)

Nossa terra, vasta terra, soledades,
povoou-se de rumores, braços, bocas.

Uma calada sílaba ia ardendo,
congregando a rosa clandestina,
até as campinas trepidarem
recobertas de metais e galopes.


Foi dura a verdade como um arado.


Rompeu a terra, estabeleceu o desejo,
mergulhou suas propagandas germinais
e nasceu na secreta primavera.

Foi silenciada a sua flor, foi rechaçada
sua reunião de luz, foi combatido
o fermento coletivo, o beijo
das bandeiras escondidas,
porém surgiu derrubando as paredes,
apartando os cárceres do chão.


O povo escuro foi a sua taça,
recebeu a substância rechaçada,
propagando-a aos limites marítimos,
repisando-a em almofarizes indomáveis.

E saiu com as páginas feridas
e com a primavera do caminho.

Hora de ontem, hora do meio-dia,
hora de hoje outra vez, hora esperada
entre o minuto morto e o que nasce
na eriçada idade da mentira.


Pátria, nasceste dos lenhadores,
de filhos sem batizar, de carpinteiros,
dos que deram qual uma ave estranha
uma gota de sangue voador
e hoje duramente nascerás de novo,
lá onde o traidor e o carcereiro
te acreditam submersa para sempre.


Hoje do povo nascerás como outrora.


Hoje sairás do carvão e do orvalho.

Hoje chegarás a sacudir as portas
com mãos maltratadas, com pedaços
de alma sobrevivente, com racimos
de olhares que a morte não extinguiu,
com ferramentas agrestes
armadas entre farrapos.




XX
Bernardo O'Higgins Riquelme (1810)

O'Higgins, para celebrar-te
à meia-luz há que iluminar a sala.

À meia-luz do sul no outono
com tremor infinito de álamos.


És o Chile, entre patriarca e cavaleiro,
és um poncho de província, um menino
que ainda não sabe o seu nome,
um menino férreo e tímido na escola,
um rapazinho triste de província.

Em Santiago te sentes mal, te espiam
a roupa negra que te sobra,
e ao cruzar-te a fita, a bandeira
da pátria que nos fizeste,
tinha um cheiro de joio matutino
para o teu peito de estátua campestre.


Jovem, teu professor Inverno te acostumou à chuva
e na universidade das ruas de Londres
a névoa e a pobreza te outorgaram seus títulos
e um elegante pobre, errante incêndio
da nossa liberdade,
te deu conselhos de águia prudente
e te embarcou na história.


“Como se chama o senhor?”, riam
os “cavalheiros” de Santiago:
filho de amor, de uma noite de inverno,
a tua condição de abandonado
te construiu com argamassa agreste,
com seriedade de casa ou de madeira
trabalhada no sul, definitiva,
Tudo o tempo muda, menos o teu rosto.


És, O'Higgins, relógio invariável
com uma só hora em tua cândida esfera:
a hora do Chile, o único minuto
que permanece no horário vermelho
da dignidade combatente.

Assim o mesmo estarás entre os móveis
de goiabeira e as filhas de Santiago
ou em Rancagua rodeado de morte e pólvora.


És o mesmo sólido retrato
de quem não tem pai, só tem a pátria
de quem não tem noiva, só tem aquela
terra de flor de laranjeira
que te conquistará a artilharia.


Te vejo no Peru escrevendo cartas.

Não há desterrado igual, maior exílio.

É toda a província desterrada.


O Chile iluminou-se como um salão
quando não estavas.
Em dissipação
um rigodão de ricos substitui
a tua disciplina de soldado ascético,
e a pátria ganhada pelo teu sangue
sem ti foi governada como um baile
que o povo faminto espia de fora.


Já não podias entrar na festa
com suor, sangue e pó de Rancagua.

Não teria sido de bom-tom
para os cavalheiros capitais.

Teria contigo entrado o caminho,
um cheiro de suor de cavalos,
o cheiro da pátria na primavera.


Não podias estar neste baile.

A tua festa foi um castelo de explosões.

O teu baile desgrenhado é a contenda.


Teu fim de festa foi a sacudidela
da derrota, o porvir aziago
para Mendoza, com a pátria nos braços.


Olha agora no mapa para baixo,
para o delgado cinturão do Chile
e coloca na neve soldadinhos,
jovens pensativos na areia,
sapadores que brilham e se apagam.


Fecha os olhos, dorme, sonha um pouco,
o único sonho, o único que volta
a teu coração: uma bandeira
de três cores no sul, a chuva
caindo, o sol rural sobre a tua terra,
os disparos do povo em rebeldia
e duas ou três palavras tuas quando
fossem estritamente necessárias.

Se sonhas, o teu sonho hoje está cumprido.

Sonha-o, pelo menos, em teu túmulo.

Nada mais saibas porque, como antes,
depois das batalhas vitoriosas,
dançam os señoritos no palácio
e o mesmo rosto faminto
espia da sombra das ruas.


Porém herdamos a tua firmeza,
o teu inalterável coração calado,
a tua indestrutível posição paterna,
e tu, entre a avalancha cegadora
de hussardos do passado, entre os ágeis
uniformes azuis e dourados,
estás hoje conosco, és nosso,
pai do povo, imutável soldado.




XXI
San Martín (1810)

Andei, San Martín, tanto e de lugar em lugar,
que descartei o teu traje, tuas esporas, sabia
que algum dia, andando pelos caminhos
feitos para voltar, nos finais
de cordilheira, na pureza
da intempérie que de ti herdamos,
acabaríamos nos vendo de um dia para outro.


Custa distinguir entre os nós
de ceibo, entre raízes,
entre veredas assinalar o teu rosto,
entre as aves distinguir o teu olhar,
encontrar no ar a tua existência.


És a terra que nos deste, um ramo
de cedrón que fere com o seu aroma,
que não sabemos onde está, de onde
chega o seu odor de pátria às pradarias.

Te galopamos, San Martín, saímos
amanhecendo a percorrer o teu corpo,
respiramos hectares de tua sombra,
fazemos fogo sobre a tua estatura.


És extenso entre todos os heróis.


Outros foram de planície em planície,
de encruzilhada em torvelinho,
tu foste construído de confins
e começamos a ver a tua geografia,
tua planície final, teu território.


Enquanto amadurecido o tempo dissemina
como água eterna os torrões
do rancor, os afiados
abraços da fogueira,
mais terreno compreendes, mais sementes
de tua tranqüilidade povoam os montes,
mais extensão dás à primavera.


O homem que constrói é logo o fumo
do que construiu, ninguém renasce
de seu próprio braseiro consumido:
de sua diminuição fez estoque, caiu quando somente teve o pó.


Tu abarcaste na morte mais espaço.


Tua morte foi um silêncio de celeiro.

Passou a vida tua, e outras vidas,
portas se abriram, muros se ergueram,
e a espiga saiu para ser derramada.


San Martín, outros capitães
fulguram mais do que tu, levam bordados
seus pâmpanos de sol fosforescente,
outros ainda falam como cachoeiras,
mas não há nenhum como tu, vestido
de terra e solidão, de neve e trevo.

Te encontramos no retorno do rio,
te saudamos na forma agrária
da Tucumania florida,
e nos caminhos, a cavalo,
te cruzamos correndo e levantando
a tua vestimenta, pai poeirento.


Hoje o sol e a lua, o vento grande
maduram a tua estirpe, a tua singela
composição: a tua verdade era
verdade de terra, arenoso amassilho,
estável como o pão, lâmina fresca
de argila e cereais, pampa puro.


E assim és até hoje, lua e galope,
estação de soldados, intempérie,
por onde vamos mais uma vez guerreando,
caminhando entre vilas e planuras,
instituindo a tua verdade terrestre,
esparzindo o teu germe espaçoso,
abanando as páginas do trigo.


Assim seja, e que não nos acompanhe
a paz até que entremos
depois dos combates em teu corpo
e durma a medida que tivemos
em tua extensão de paz germinadora.




XXII
Mina (1817)

Mina, das vertentes montanhosas
chegaste como um fio de água dura.

Espanha clara, Espanha transparente
te pariu entre dores, indomável,
e tens a dureza luminosa
da água torrencial da montanha.


Longamente, nos séculos e nas terras,
sombra e fulgor em teu berço lutaram,
unhas rampantes degolavam
a claridade do povo,
e os antigos falcoeiros,
em suas ameias eclesiásticas,
espreitavam o pão, negavam
entrada ao rio dos pobres.


Mas sempre na torre impiedosa,
Espanha, existe um espaço
para o diamante rebelde e sua estirpe
de luz agonizante e renascente.


Não em vão o estandarte de Castela
tem a cor do vento comuneiro,
não em vão por teus vales de granito
corre a luz azul de Garcilaso,
não em vão em Córdoba, entre aranhas
sacerdotais, deixa Góngora
as suas bandejas de pedrarias
aljofaradas pelo gelo.


Espanha, entre as tuas garras
de cruel antigüidade, o teu povo puro
sacudiu as raízes do tormento,
sufragou as azêmolas feudais
com invencível sangue derramado,
e em ti a luz, como a sombra, é velha,
gastada em devorantes cicatrizes.

Junto à paz do pedreiro cruzada
pela respiração dos carvalhos,
junto aos mananciais estrelados
nos quais fitas e sílabas reluzem,
sobre a tua idade, como um tremor sombrio,
vive em sua escalinata um gerifalte.


Fome e dor foram a sílica
de tuas areias ancestrais
e um tumulto surdo, enredado
às raízes de teus povos,
deu à liberdade do mundo
uma eternidade de relâmpagos,
de cantos e de guerrilheiros.


As ribanceiras de Navarra
guardaram o raio recente.

Mina arrancou do precipício
o colar de seus guerrilheiros:
das aldeias invadidas,
das povoações noturnas
extraiu o fogo, alimentou
a abrasadora resistência,
atravessou fontes nevadas,
atacou em rápidas voltas,
surgiu dos desfiladeiros,
brotou das pradarias.


Foi sepultado em prisões,
e ao alto vento da serra
retornou, revolto e sonoro,
seu manancial intransigente.


À América o leva o vento
da liberdade espanhola,
e de novo atravessa bosques
e fertiliza as campinas
seu coração inesgotável.


Em nossa luta, em nossa terra
se sangraram seus cristais,
lutando pela liberdade
indivisível e desterrada.


No México ataram a água
das vertentes espanholas.

E ficou imóvel e calada
a sua transparência caudalosa.




XXIII
Miranda morre na névoa (1816)

Se entrais na Europa tarde com cartola
no jardim condecorado
por mais de um outono junto ao mármore
da fonte enquanto caem folhas
de ouro andrajoso no Império
se a porta recorta uma figura
sobre a noite de São Petersburgo
tremem os cascavéis do trenó
e alguém na soledade branca alguém
o mesmo tempo a mesma pergunta
se sais pela florida porta
da Europa um cavalheiro sombra traje
inteligência signo cordão de ouro
Liberdade Igualdade olha seu rosto
entre a artilharia que troveja
se nas ilhas a alfombra o conhece
a que recebe oceanos Passe o Senhor Já o creio
Quantas embarcações E a névoa
seguindo passo a passo a sua jornada
se nas cavidades de lojas livrarias
há alguém luva espada com um mapa
com a pasta petulante cheia
de povoações de navios de ar
se em Trinidad pela costa o fumo
de um combate e de outro o mar de novo
e outra vez a escada de Bay Street a atmosfera
que o recebe impenetrável
como um compacto interior de maçã
e outra vez esta mão patrícia este azulado
guante guerreiro na ante-sala
longos caminhos guerras e jardins
a derrota em seus lábios outro sal
outro sal outro vinagre ardente
se em Cádiz amarrado ao muro
pela grossa corrente seu pensamento o frio
horror de espada o tempo o cativeiro
se baixas a subterrâneos entre ratazanas
e a alvenaria leprosa outro ferrolho
num caixão de enforcado o velho rosto
onde morreu afogada uma palavra
uma palavra nosso nome a terra
aonde queriam ir seus passos
a liberdade para seu fogo errante
o descem com cordéis à molhada
terra inimiga ninguém saúda faz frio
faz frio de tumba na Europa.




XXIV
José Miguel Carrera (1810)


EPISÓDIO Disseste Liberdade antes de ninguém,
quando o sussurro ia de pedra em pedra,
escondido nos pátios, humilhado.


Disseste Liberdade antes de ninguém.

Libertaste o filho do escravo.

Iam como as sombras mercadores
vendendo o sangue de mares estranhos.

Libertaste o filho do escravo.


Fundaste a primeira imprensa.

Chegou a letra ao povo obscurecido,
a notícia secreta abriu os lábios.

Fundaste a primeira imprensa.

Implantaste a escola no convento.


Retrocedeu a gorda teia de aranha
e o rincão dos dízimos sufocantes.

Implantaste a escola no convento.



CORO
Conheça-se a tua condição altiva,
senhor cintilante e aguerrido.

Conheça-se o que tombou brilhando
de tua velocidade sobre a pátria.

Vôo bravio, coração de púrpura.


Conheçam-se as tuas chaves desbeiçadas
abrindo os ferrolhos da noite.

Ginete verde, raio tempestuoso.


Conheça-se o teu amor de mãos cheias,
a tua lâmpada de luz vertiginosa.

Racimo de uma cepa transbordante.

Conheça-se o teu esplendor instantâneo,
o teu errante coração, o teu fogo diurno.


Ferro iracundo, pétala patrícia.

Conheça-se o teu raio de ameaça
destroçando as cúpulas covardes.

Torre de tempestade, ramo de acácia.

Conheça-se a tua espada vigilante,
a tua fundação de força e meteoro.

Conheça-se a tua rápida grandeza.

Conheça-se a tua indomável compostura.



EPISÓDIO Vai pelos mares, entre idiomas,
vestidos, aves estrangeiras,
traz naves libertadoras,
escreve fogo, ordena nuvens,
desentranha sol e soldados,
cruza a névoa em Baltimore
consumindo-se de porta em porta,
créditos e homens o desbordam,
todas as ondas o acompanham.

Junto ao mar de Montevidéu,
em sua casa desterrada,
abre uma oficina, imprime balas.

Rumo ao Chile vive a flecha
de sua direção insurgente,
arde a fúria cristalina
que o conduz, e endereça
a cavalgada do resgate
montado nas crinas ciclônicas
de sua despenhada agonia.

Seus irmãos aniquilados
gritam para ele do paredão
da vingança.
Sangue seu
tinge como labareda
nos adobes de Mendoza
seu trágico trono vazio.

Sacode a paz planetária
do pampa como um circuito
de vaga-lumes infernais.

Açoita as cidadelas
com o uivo das tribos.

Enfeixa as cabeças cativas
no furacão das lanças.

Seu poncho desatado
relampeja na fumarada
e na morte dos cavalos.


Jovem Pueyrredón, não relates
o desolado calafrio
de seu final, não me atormentes
com a noite do abandono,
quando o levam a Mendoza
mostrando o marfim de sua máscara
a solidão de sua agonia.



CORO Pátria, preserva-o em teu manto,
acolhe este amor peregrino:
não o deixes rolar para o fundo
de sua tenebrosa desgraça:
ergue a teu rosto este fulgor,
esta lâmpada inolvidável,
prega de novo esta renda frenética,
chama esta pálpebra estrelada,
guarda o novelo deste sangue
para as tuas teias orgulhosas.

Pátria, recolhe esta carreira,
a luz, a gota malferida,
este cristal agonizante,
este vulcânico anel.

Pátria, galopa para defendê-lo,
galopa, corre, corre, corre.



ÊXODO Levam-no até os muros de Mendoza,
à árvore cruel, à vertente
de sangue inaugurado, ao solitário
tormento, ao final frio da estrela.

Vai pelos caminhos inconclusos,
sarça e taipais desdentados,
álamos que lhe atiram ouro morto,
rodeado por seu orgulho inútil
como por uma túnica andrajosa
a que o pó da morte chega.

Pensa em sua dessangrada dinastia,
na luta inicial sobre os carvalhos
desgarradores da infância,
a escola castelhana e o escudo
rubro e viril da milícia hispânica,
sua tribo assassinada, a doçura
do matrimônio, entre as flores de laranjeira,
o desterro, as lutas pelo mundo,
O'Higgins enigma embandeirado,
Javiera sem saber nos remotos
jardins de Santiago.

Mendoza insulta sua linhagem negra,
ataca a sua vencida investidura,
e entre as pedras lançadas sobe
para a morte.


Nunca um homem teve
um final mais exato.
Das ásperas
investidas, entre vento e animais,
até a azinhaga onde sangraram
todos os de seu sangue.

Cada degrau
do cadafalso o ajusta ao seu destino.

Já ninguém pode continuar a cólera.

A vingança, o amor fecham as portas.

Os caminhos amarraram o errante.

E quando disparam, e através
de seu pano de príncipe do povo
assoma sangue, é sangue que conhece
a tetra infame, sangue que chegou
aonde tinha de chegar, ao chão
de lagares sedentos que esperavam
as uvas derrotadas de sua morte.

Indagou pela neve da pátria.

Tudo era névoa nos eriçados altos.


Viu os fuzis cujo ferro
fez nascer o seu amor desmoronado,
sentiu-se sem raízes, passageiro
do fumo, na batalha solitária,
e caiu envolto em pó e sangue
como em dois braços de bandeira.



CORO Hussardo infortunado, jóia ardente,
sarça acesa na pátria nevada.

Chorai por ele, chorai até que molhem,
mulheres, as vossas lágrimas a terra,
a terra que ele amou, a sua idolatria.

Chorai, guerreiros ásperos do Chile,
acostumados à montanha e à onda,
este vazio é qual uma nevada,
esta morte é o mar que nos atinge.

Não pergunteis por quê, ninguém diria
a verdade destroçada pela pólvora.

Não pergunteis quem foi, ninguém arrebata
o crescimento da primavera,
ninguém matou a rosa do irmão.

Guardemos cólera, dor e lágrimas,
enchamos o vazio desolado
e que recorde a fogueira na noite
a luz das estrelas falecidas.

Irmã, guarda o teu rancor sagrado.

A vitória do povo necessita
a voz de tua ternura triturada.

Estendei mantos em sua ausência
para que possa - frio e enterrado -
com o seu silêncio sustentar a pátria.


Mais de uma vida foi a sua vida.

Buscou a integridade como uma chama.

A morte foi com ele até deixá-lo
para sempre completo e consumido.



ANTÍSTROFE Guarde o loureiro doloroso a sua extrema substância de inverno.

A sua coroa de espinhos levemos areia radiante,
fios de estirpe araucana resguardem a lua mortuária,
folhas de boldo fragrante resolvam a paz de sua tumba,
neve nutrida nas águas imensas e escuras do Chile,
plantas que amou, melissas em xícaras de argila silvestre,
ásperas plantas amadas pelo amarelo centauro,
negros racimos transbordantes de elétrico outono na terra,
olhos sombrios que arderam sob os seus beijos terrestres.

Levante a pátria as suas aves, suas asas injustas, suas pálpebras rubras,
voe até o hussardo ferido a voz do queltehue na água,
sangre a loica a sua mancha de aroma escarlate rendendo tributo
àquele cujo vôo estendera a noite nupcial da pátria
e o condor suspenso na altura imutável coroe com plumas sangrentas
o peito adormecido, a fogueira que jaz nos degraus da cordilheira,
parta o soldado a rosa iracunda esmagada no muro esmagado,
pule o camponês ao cavalo de negra montaria e focinho de espuma,
volte ao escravo do campo a sua paz de raízes, o seu escudo enlutado,
levante o mecânico a sua pálida torre tecida de estanho noturno:
o povo que nasce no berço torcido de vimes e mãos de herói,
o povo que sobe de negros adobes de minas e bocas sulfúricas,
o povo levante o martírio e a urna e envolva a lembrança
com a sua ferroviária grandeza e a sua eterna balança de pedras e feridas
até que a terra fragrante decrete copihues molhados e livros abertos,
ao menino invencível, à lufada insigne, ao terno temível e acerbo soldado.

E guarde seu nome o duro domínio do povo em sua luta,
como o nome da nave resiste ao combate marinho:
a pátria em sua proa o inscreva e o beije o relâmpago
porque assim foi a sua livre e delgada e ardente matéria.




XXV
Manuel Rodríguez

CUECA Senhora, dizem que onde,
minha mãe dizem, disseram,
a água e o vento dizem
que viram o guerrilheiro.



Vida
Pode ser um bispo,
pode e não pode,
pode ser só o vento
sobre a neve:
sobre a neve, sim,
mãe, não olhes,
que chega a galope
Manuel Rodríguez.

Já vem o guerrilheiro
pelo ribeiro.



CUECA Saindo de Melipilla,
correndo por Talagante,
cruzando por San Fernando,
amanhecendo em Pomaire.



Paixão
Passando por Rancagua,
por San Rosendo,
por Cauquenes, por Chena,
por Nacimiento:
por Nacimiento, sim,
desde Chiñigüe,
por toda parte vem
Manuel Rodríguez.

Este cravo lhe damos,
com ele vamos.


CUECA Que se apague a guitarra,
que a pátria está de luto.

Nossa terra fica escura.

Mataram o guerrilheiro.



E Morte
Em Til-Til foi morto
por assassinos,
suas costas sangram
pelo caminho:
pelo caminho, sim.


Quem o diria,
ele que era o nosso sangue,
nossa alegria.


A terra está chorando.

Vamos nos calando.




XXVI
Artigas

(I)
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuosa
a sua passagem porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do ermo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaiano rocio.



(II)
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves tagarelas, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavalheiros amargos
que pela fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota,
estende-se o uníssono nome de pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.



(III)
Ó Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
o teu poncho estrelado de constelações que conhecias,
até que o sangue corrompesse e redimisse a aurora, e acordassem teus homens
marchando vergados pelos poeirentos entrançados do dia.

Ó pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!


(IV)
Passaram os dias de um século e seguiram as horas atrás de teu exílio:
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro:
atrás do silêncio no qual só tombavam os frutos apodrecidos sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desatada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do chicote, os cepos, os corpos roídos de escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com os seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.



(V)
“Amargo trabalha o exílio”, escreveu esse irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
opresso no imóvel olhar de vidro de um déspota num reino vazio.



(VI)
A América tua tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus, corriam até o [sacrifício:
morriam, nasciam, caíam: os olhos do cego matavam: a voz dos mudos
falava.
Os mortos, por fim, encontraram partido,
por fim conheceram o seu bando patrício na morte.

E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fileira: a terra não tem adversários.



(VII)
Uruguai é palavra de pássaro, o idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques na máscara azul do Atlântico.

Uruguai é a roupa estendida no ouro dum dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.



(VIII)
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas, te devia,
[Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta,
[recolhi os herbários do rio,
afundei a minha cabeça em tua areia e na prata dos peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desarrumados mercados
me purifiquei, até sentir-me devedor de teu olor e teu amor.

E talvez esteja escrito o rumor que teu amor e teu olor me conferiram
nestas palavras obscuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.




XXVII
Guayaquil (1822)

Quando entrou San Martín, algo noturno
de caminho impalpável, sombra, couro,
entrou na sala.


Bolívar esperava.

Bolívar farejou o que chegava.

Era aéreo, rápido, metálico,
todo antecipação, ciência do vôo,
seu contido ser tremulava
ali, no quarto imobilizado
na escuridão da história.


Vinha das alturas indizíveis
da atmosfera constelada,
ia seu exército em frente
quebrando noite e distância,
capitão de um corpo invisível,
da neve que o seguia.

A lâmpada tremeu, a porta
atrás de San Martin manteve
a noite, seus ladridos, seu tumor
tíbio de desembocadura.


As palavras abriram uma trilha
que neles mesmos ia e vinha.

Aqueles dois corpos se falavam,
se rechaçavam, se escondiam,
se incomunicavam, se fugiam.


San Martín trazia do sul
um saco de números cinzentos,
a solidão das montarias
infatigáveis, os cavalos
batendo terras, agregando-se
a sua fortaleza arenária.

Entraram com ele os ásperos
arrieiros do Chile, um lento
exército ferruginoso,
o espaço preparatório,
as bandeiras com apelidos
envelhecidos no pampa.


O quanto falaram caiu de corpo a corpo
no silêncio, no fundo interstício.

Não eram palavras, era a profunda
emanação das terras adversas,
da pedra humana que toca
outro metal inacessível.

As palavras voltaram a seus lugares.


Cada um, diante de seus olhos
via as suas bandeiras.

Um, o tempo com flores deslumbrantes,
outro, o roído passado,
os farrapos da tropa.


Junto a Bolívar uma mão branca
o esperava, o despedia,
acumulava o seu acicate ardente,
estendia o linho no tálamo.

San Martín era fiel a seus prados.

Seu sonho era um galope,
uma rede de correias e perigos.

Sua liberdade era um pampa unânime.

Uma ordem cereal foi a sua vitória.


Bolívar construía um sonho,
uma ignorada dimensão, um fogo
de velocidade duradoura,
tão incomunicável que o fazia
prisioneiro, entregue à sua substância.


Caíram as palavras e o silêncio.


Abriu-se outra vez a porta, outra vez toda
a noite americana, o largo rio
de muitos lábios palpitou um segundo.


San Martín regressou daquela noite
às soledades e ao trigo.

Bolívar continuou só.




XXVIII
Sucre

Sucre nas altas terras desbordando
o amarelo perfil dos montes,
Hidalgo tomba, Morelos recolhe
o ruído, o tremor de um sino
propagado na terra e no sangue.


Páez percorre os caminhos repartindo o ar conquistado,
cai o orvalho em Cundinamarca
sobre a fraternidade das feridas,
o povo insurge inquieto
desde a latitude à secreta
célula, emerge um mundo
de despedidas e galopes,
nasce a cada minuto uma bandeira
qual uma flor antecipada:
bandeiras feitas de lenços
sangrentos e de livros livres,
bandeiras arrastadas pelo pó
dos caminhos, destroçadas
pela cavalaria, abertas
por estampidos e relâmpagos.



As bandeiras
Nossas bandeiras daquele tempo
fragrante, bordadas apenas,
nascidas apenas, secretas
como um profundo amor, de súbito
encarniçadas ao vento
azul da pólvora amada.


América, extenso berço, espaço
de estrela, romã madura,
de súbito encheu-se de abelhas
a tua geografia, de sussurros
conduzidos pelos adobes
e pelas pedras, de mão em mão,
encheram-se de roupas as ruas
como colméia atordoada.


Na noite dos disparos
v baile brilhava nos olhos,
subia como uma laranja a flor de laranjeira pelas muralhas,
beijos de adeus, beijos de farinha,
o amor amarrava beijos,
e a guerra cantava com
a sua guitarra pelos caminhos.




XXIX
Castro Alves do Brasil

Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?
Para a flor cantaste? Para a água
cuja formosura diz palavras às pedras?
Cantaste para os olhos, para o perfil recortado
da que então amaste? Para a primavera?

Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho,
aquelas águas negras não tinham palavras,
aqueles olhos eram os que viram a morte,
ardiam ainda os martírios por detrás do amor,
a primavera estava salpicada de sangue.


- Cantei para os escravos, eles sobre os navios,
como um cacho escuro da árvore da ira
viajaram, e no porto se dessangrou o navio
deixando-nos o peso de um sangue roubado.


- Cantei naqueles dias contra o inferno,
contra as afiadas línguas da cobiça,
contra o ouro empapado de tormento,
contra a mão que empunhava o chicote,
contra os dirigentes de trevas.


- Cada rosa tinha um morto nas raízes.

A luz a noite, o céu, cobriam-se de pranto,
os olhos apartavam-se das mãos feridas
e era a minha voz a única que enchia o silêncio.


- Eu quis que do homem nos salvássemos,
eu cria que a rota passasse pelo homem,
e que daí tinha de sair o destino.

Cantei para aqueles que não tinham voz.

Minha voz bateu em portas até então fechadas
para que, combatendo, a liberdade entrasse.


Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro
torna a nascer para a terra livre,
deixa-me a mim, poeta da nossa América,
coroar a tua cabeça com os louros do povo.

Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens.

Cantaste bem.
Cantaste como se deve cantar.




XXX
Toussaint L'Ouverture

Haiti, de sua doçura emaranhada,
extrai pétalas patéticas,
retitude de jardins, edifícios
de grandeza, arrulha
o mar como um avô escuro
sua velha dignidade de pele e espaço.


Toussaint L'Ouverture ata
a vegetal soberania,
a majestade acorrentada,
a surda voz dos tambores,
e ataca, cerra o passo, sobe,
ordena, expulsa, desafia
como um monarca natural,
até que cai na rede tenebrosa
e o levam pelos mares
arrastado e atropelado
como o regresso de sua raça,
atirando à morte secreta
das sentinas e dos sótãos.


Mas na ilha ardem as penhas,
falam os ramos escondidos,
se transmitem as esperanças,
surgem os muros do baluarte.

A liberdade é o bosque teu,
escuro irmão, preserva
a tua memória de sofrimentos
e que os heróis passados
custodiem a tua mágica espuma.




XXXI
Morazán (1842)

Alta noite e Morazán vela.

É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.

Fita central, América angustura que os golpes azuis de dois mares
foram fazendo, levantando no ar
cordilheiras e plumas de esmeralda:
território, unidade, delgada deusa
nascida no combate da espuma.


Desmoronam-se filhos e vermes,
estendem-se sobre ti as alimárias
e uma tenaz te arrebata o sonho
e um punhal com teu sangue te salpica
enquanto se despedaça o teu estandarte.


Alta é a noite e Morazán vela,

Já vem o tigre brandindo um machado.

Vêm para devorar-te as entranhas.

Vêm para dividir as estrelas.

Vêm,
pequena América olorosa,
para cravar-te na cruz, para desolar-te,
para derrubar o metal de tua bandeira.


Alta é a noite e Morazán vela.


Invasores encheram a tua casa.

E te partiram como fruta morta,
e outros carimbaram em tuas costas
os dentes de uma estirpe sanguinária,
e outros te saquearam nos portos
carregando sangue sobre as tuas dores.


É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.


Irmãos, amanhece.
(E Morazán vela.
)



XXXII
Viagem pela noite de Juárez

Juárez, se recolhêssemos
o íntimo estrato, a matéria
da profundidade, se cavando tocássemos
o profundo metal das repúblicas,
esta unidade seria a tua estrutura,
a tua impassível bondade, a tua mão teimosa.


Quem olha a tua sobrecasaca,
a tua parca cerimônia, o teu silêncio,
o teu rosto feito de tetra americana,
se não é daqui, se não nasceu nestas
planícies, na argila montanhosa
de nossas soledades, não entende.

Te falarão divisando uma pedreira.

Te passarão como se passa um rio.

Darão a mão a uma árvore, a um sarmento,
a um sombrio caminho da terra.


Para nós és pão e pedra,
forno e produto da estirpe escura.

Teu rosto foi nascido em nosso barro.

Tua majestade é a minha região nevada,
teus olhos a enterrada olaria.


Outros terão o átomo e a gota
do elétrico fulgor, de brasa inquieta:
tu és muro feito de nosso sangue,
tua retidão impenetrável
sai de nossa dura geologia.


Nada tens para dizer ao ar,
ao vento de ouro que vem de longe,
que o diga a terra ensimesmada,
a cal, o mineral, a levedura.


Visitei eu os muros de Querétaro,
toquei cada penhasco na colina,
a distância, a cicatriz e a cratera,
o cacto de ramagens espinhosas:
ninguém persiste ali, foi o fantasma,
ninguém ficou dormido na dureza:
só existem a luz e os aguilhões
do matagal, e uma presença pura:
Juárez, a tua paz de noite justiceira,
definitiva, férrea e estrelada.




XXXIII
O vento sobre Lincoln

À s vezes o vento do sul resvala
sobre a sepultura de Lincoln trazendo
vozes e brisas de cidades e árvores
nada se passa em sua tumba as letras não se mexem
o mármore se suaviza com a lentidão de séculos
o velho cavaleiro já não vive
não existe o buraco de sua antiga camisa
se mesclaram as fibras do tempo e o pó humano
que a vida tão realizada diz uma tremelicante
senhora da Virgínia uma escola que canta
mais de uma escola canta pensando em outras coisas
mas o vento do sul a emanação de terras
de caminhos às vezes se detém na tumba
sua transparência é um periódico moderno
chegam surdos rancores lamentos como aqueles
o sonho imóvel vencedor jazia
sob os pés cheios de barro que passaram
cantando e arrastando fadiga e sangue
pois bem nesta manhã volta ao mármore o ódio
0 ódio do sul branco pelo velho adormecido
nas igrejas os negros estão sozinhos com Deus
com Deus conforme acreditam nas praças
nos trens o mundo tem certos letreiros
que dividem o céu a água o ar
que vida mais perfeita diz a delicada
senhorita e na Geórgia matam a pau
todas as semanas um jovem negro
enquanto Paul Robeson canta como a terra
como o começo do mar e da vida
canta sobre a crueldade e os anúncios
de coca-cola canta para os irmãos
de mundo a mundo entre os castigos
canta para os novos filhos para
que o homem ouça e suste o seu chicote
a mão cruel a mão que Lincoln abatera
a mão que ressurge como branca víbora
o vento passa o vento sobre a tumba traz
conversações restos de juramentos algo
que chora sobre o mármore como chuva fina
de antigas e esquecidas dores insepultas
o Klan matou um bárbaro perseguindo-o
enforcando o pobre negro a uivar queimando-o
vivo e esburacado pelos tiros
debaixo dos capuzes os prósperos rotarianos
não sabem assim crêem que são só verdugos
covardes carniceiros detritos do dinheiro
com a cruz de Caim regressam
para lavar as mãos e rezar no domingo
telefonam ao Senado contando suas façanhas
disto nada fica sabendo o morto de Illinois
porque o vento de hoje fala uma linguagem
de escravidão de fúrias de cadeias
e através das lousas o homem já não existe
é um esmiuçado polvilho de vitória
de vitória arrasada depois do triunfo morto
não só a camisa do homem se gastou
não só o buraco da morte nos mata
mas também a primavera repetida o transcurso
que rói o vencedor com o seu canto covarde
morre o valor de ontem derramam-se de novo
as furiosas bandeiras do malvado
alguém canta junto ao monumento é um coro
de meninas de escola vozes ácidas
que sobem sem tocar o pó externo
que passam sem descer ao lenhador adormecido
à vitória morta sob as reverências
enquanto burlão e viajeiro sorri o vento sul.




XXXIV
Martí (1890)

Cuba, flor espumosa, efervescente
açucena escarlate, jasmineiro,
custa-se a encontrar sob a rede florida
o teu sombrio carvão martirizado,
a antiga ruga deixada pela morte,
a cicatriz coberta de espuma.

Porém dentro de ti como clara
geometria de neve germinada,
onde se abrem tuas últimas cortiças,
jaz Martí como pura amêndoa.


Está no fundo circular da aragem,
está no centro azul do território,
e reluz como uma gota d'água
sua adormecida pureza de semente.


É de cristal a noite que o cobre.


Pranto e dor, de súbito, cruéis gotas
atravessam a terra até o recinto
da infinita claridade adormecida.

O povo às vezes baixa suas raízes
através da noite até tocar
a água quieta em seu pranto oculto.

À vezes cruza o rancor iracundo
pisoteando semeadas superfícies
e um morto cai na taça do povo.


Às vezes volta o açoite enterrado
a silvar na brisa da cúpula
e uma gota de sangue qual uma pétala
cai no chão e mergulha no silêncio.

Tudo chega ao fulgor imaculado.

Os tremores minúsculos batem
às portas do cristal oculto.


Toda lágrima toca a sua corrente.


Todo fogo estremece a sua estrutura.

E assim da jacente fortaleza,
do oculto germe caudaloso
saem os combatentes da ilha.


Chegam de um manancial determinado.


Nascem de uma vertente cristalina.




XXXV
Balmaceda de Chile (1891)

Mr.
North chegou de Londres.


É um magnata no nitrato.

Antes trabalhou no pampa,
de jornaleiro, algum tempo,
mas despediu-se e se foi.

Volta agora, envolto em libras.

Traz dois cavalinhos árabes
e uma pequena locomotiva
toda de ouro.
São presentes
para o presidente, um tal
de José Manuel Balmaceda.


“You are very clever, Mr.
North.


Rubén Darío entra por esta casa,
por esta presidência como quer.

Uma garrafa de conhaque o espeta.

O jovem Minotauro envolto em névoa
de rios, transpassado de sons,
sobe a grande escada que será
tão difícil de subir para Mr.
North.

O presidente regressou há pouco
do desolado norte salitroso,
ali dizendo: “Esta terra, esta riqueza
será do Chile, esta matéria branca
converterei em escolas, em estradas,
em pão para o meu povo”.

Agora entre papéis, no seu palácio,
sua fina forma, seu intenso olhar,
olha para os desertos do salitre.

Seu nobre rosto não sorri.

A cabeça, de pálida postura,
tem a antiga qualidade de um morto,
de um velho antepassado da pátria.


Todo o seu ser é um exame solene.


Algo desassossega, como rajada fria,
a sua paz, o seu movimento pensativo.


Rechaçou os cavalos, a maquininha de ouro
de Mr.
North.
Remeteu-os sem vê-los
para o dono, o poderoso gringo.

Apenas acenou com a mão desdenhosa.

“Agora, Mr.
North, não posso
entregar-lhe estas concessões,
não posso amarrar a minha pátria
aos mistérios da City.


Mr.
North instala-se no Club.

Cem uísques vão para a sua mesa,
cem jantares para advogados,
para o Parlamento, champanha
para os tradicionalistas.

Correm agentes para o norte,
os fios vão e vêm e voltam.

As suaves libras esterlinas
tecem como aranhas douradas
uma teia inglesa, legítima
para o meu povo, uma roupa, sob medida
de sangue, pólvora e miséria.


“You are very clever, Mr.
North.


A sombra sitia Balmaceda.

Ao chegar o dia, o insultam
e o escarnecem os aristocratas,
ladram-lhe no Parlamento,
o fustigam e caluniam.

Produzem a batalha, e ganharam.

Mas não basta: é preciso torcer
a história.
As boas vinhas
se “sacrificam” e o álcool
enche a noite miserável.

Os elegantes mocinhos
marcam as portas e uma horda
assalta as casas, arremessa
os pianos dos balcões.

Aristocrático piquenique
com cadáveres no canal
e champanha francês no Club.


“You are very clever, Mr.
North.


A embaixada argentina abriu
as suas portas ao presidente.


Nessa tarde escreve com a mesma
segurança de mão fina,
a sombra penetra seus grandes olhos
como escura mariposa,
de profundidade fatigada.


E a magnitude de seu rosto
sai do mundo solitário,
da pequena moradia,
ilumina a noite escura.

Escreve seu nítido nome,
as letras de longo perfil
de sua doutrina traída.

Tem o revólver na mão.


Olha através da janela
um derradeiro trecho da pátria,
pensando em todo o longo corpo
do Chile, sombreado
como uma página noturna.

Viaja e sem ver cruzam seus olhos,
como nas vidraças de um trem,
rápidos campos, casarios,
torres, ribeiras inundadas,
pobreza, dores, farrapos.

Ele sonhou um sonho preciso,
quis trocar a desgarrada
paisagem, o corpo consumido
do povo, quis defendê-lo.


Já é tarde, escuta disparos
isolados, os gritos vitoriosos,
o selvagem ataque, os uivos
da “aristocracia”, escuta
o último rumor, o grã silêncio,
e, com ele, recostado, entra na morte.




XXXVI
A Emiliano Zapata com música de Tatanacho

Quando cresceram as dores
na terra, e os espinheiros desolados
foram a herança dos camponeses,
e, como outrora, rapaces
barbas cerimoniais, e os açoites,
então, flor e fogo galopado.
.
.


Borrachita me voy
hacia la capital

empinou-se na alba transitória
a terra sacudida de facas,
o peão de suas amargas tocas
caiu qual uma espiga debulhada
sobre a solidão vertiginosa.


a pedirle al patrón
que me mandó llamar

Zapata então foi terra e aurora.

Em todo horizonte aparecia
a multidão de sua semente armada.

Num ataque de águas e fronteiras
o férreo manancial de Coahuila,
as estelares pedras de Sonora:
tudo veio ao seu passo adiantado,
à sua agrária tormenta de ferraduras.


que si va del rancho
muy pronto volverá

Reparte o pão, a terra:
te acompanho.


Renuncio a minhas pálpebras celestes.

Eu, Zapata, me vou com o rocio
das cavalarias matutinas,
num disparo desde as figueiras-do-inferno
até as casas de paredes róseas.


.
.
.
cintitas pa tu pelo
no llores por tu Pancho .
.
.


A lua dorme sobre as montarias.

A morte amontoada e repartida
jaz com os soldados de Zapata.

O sonho esconde sob os baluartes
da pesada noite o seu destino,
o seu incubador lençol sombrio.

A fogueira agrupa o sopro desvelado:
graxa, suor e pólvora noturna.


.
.
.
Borrachita rne voy
para olvidarte .
.
.


Pedimos pátria para o humilhado.

Tua faca divide o patrimônio
e tiros e corcéis amedrontam
os castigos, a barba do verdugo.

A terra se reparte como um rifle.

Não esperes, camponês, empoeirado,
depoís de teu suor a luz completa
e o céu parcelado em teus joelhos.

Levanta-te e galopa com Zapata.


.
.
.
Yo la quise traer
dijo yue no.
.
.


México, hostil agricultura, amada
terra entre os obscuros repartida:
das espadas do milho saíram
ao sol os teus centuriões suarentos.


Da neve do sul venho contar-te.


Deixa-me galopar em teu destino
e encher-me de pólvoras e arados.


.
.
.
Que si habrá de llorar
pa qué volver.
.
.




XXXVII
Sandino (1926)

Foi quando em terra nossa
Enterraram-se
as cruzes, gastaram-se
inválidas, profissionais.

Chegou o dólar de dentes agressivos
mordendo território,
na garganta pastoril da América.

Agarrou o Panamá com fauces duras,
enfiou na terra fresca os seus caninos,
chapinhou na lama, uísque, sangue,
e jurou um presidente de sobrecasaca:
“Seja conosco o suborno
de cada dia”.

Logo, chegou o aço,
e o canal dividiu as residências,
aqui os amos, ali a servidão.


Correram para a Nicarágua.


Desceram vestidos de branco,
disparando dólares e tiros.

Surgiu no entanto um capitão
que disse: “Não, aqui não pões
as tuas concessões, tua garrafa”.

Prometeram-lhe um retrato
de presidente, de luvas,
faixa atravessada e sapatinhos
de verniz recém-comprados.

Sandino dcscalçou as botas,
afundou-se nos trêmulos pântanos,
pôs a faixa molhada
da liberdade na selva,
e, tiro a tiro, respondeu
aos “civilizadores”.


A fúria norte-americana
foi indizível: documentados
embaixadores convenceram
o mundo de que seu amor era
a Nicarágua, que algum dia
a ordem haveria de chegar
a suas entranhas sonolentas.


Sandino enforcou os intrusos.


Os heróis de Wall Street
foram comidos pelo lamaçal,
um relâmpago os matava,
mais de um sabre os seguia,
uma corda os despertava
como serpente na noite,
e pendurados de uma árvore eram
carreados lentamente
por coleópteros azuis
e trepadeiras devoradoras.


Sandino, com os seus guerrilheiros,
na Praça do Povo, em todas
as partes estava Sandino,
matando norte-americanos.

justiçando invasores.

E quando veio a aviação,
a ofensiva dos exércitos
blindados, a incisão
de massacrantes poderios,
Sandino estava no silêncio,
como um espectro da selva,
era uma árvore que se enroscava
ou uma tartaruga que dormia
ou um rio deslizando.

E árvore, tartaruga, torrente,
foram a morte vingadora,
foram sistemas da selva,
mortais sintomas de aranha.


(Em 1948
um guerrilheiro
da Grécia, coluna de Esparta,
foi a urna da luz atacada
pelos mercenários do dólar.

Dos montes lançou fogo
sobre os polvos de Chicago,
e como Sandino, o valente
da Nicarágua, foi chamado
“bandoleiro das montanhas”.
)

Mas, quando fogo, sangue
e dólar não destruíram
a torre altiva de Sandino,
os guerreiros de Wall Street
fizeram a paz, convidaram
para celebrá-la o guerrilheiro,
e um traidor recém-alugado
disparou-lhe a carabina.


Seu nome é Somoza.
Até hoje
está reinando na Nicarágua:
os trinta dólares cresceram
e aumentaram em sua barriga.


Esta é a história de Sandino,
capitão da Nicarágua,
encarnação desgarradora
de nossa arena traída, dividida e acometida,
martirizada e saqueada.




XXXVIII
(1)
Até Recabarren

A terra, o metal da terra, a compacta
formosura, a paz ferruginosa
que será lança, lâmpada ou anel,
matéria pura, ação
do tempo, saúde
da terra desnuda.


O mineral foi como estrela
afundada e enterrada.

A golpes de planeta, grama por grama,
foi escondida a luz.

Áspera capa, argila, areia
cobriram o teu hemisfério.

Mas amei o teu sal, a tua superfície.

Tua goteira, tua pálpebra, tua estátua.


No quilate de pureza dura
cantou minha mão: na écloga
nupcial da esmeralda fui citado,
e no côncavo do ferro pus o meu rosto um dia
até emanar abismo, resistência e aumento.


Mas eu não sabia nada.


O ferro, o cobre, os sais o sabiam.


Cada pétala de ouro foi arrancada com sangue.

Cada metal tem um soldado.



(2)
O cobre
Eu cheguei ao cobre, a Chuquicamata.

Era tarde nas cordilheiras.

Era o ar como taça
fria, de seca transparência.

Antes vivi em muitos navios,
porém na noite do deserto
a imensa mina resplandecia
como um navio cegador
com o orvalho deslumbrante
daquelas alturas noturnas.


Fechei os olhos: sonbo e sombra
estendiam as suas grossas plumas
sobre mim como aves gigantes.

Apenas de queda em queda
enquanto dançava o automóvel,
a oblíqua estrela, o penetrante
planeta, qual uma lança,
me arrojavam um raio gelado
de fogo frio, de ameaça.



(3)
A noite em Chuquicamata

Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.

Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.

Era verde o sangue destas terras.


Alta até os planetas empapados
era a magnitude noturna e verde.

Gota a gota um leite de turquesa,
uma aurora de pedra,
foi construído pelo homem
e ardia na imensidade,
na estrelada terra aberta
de toda a noite arenosa.


Passo a passo, então a sombra
me levou

pela mão ao sindicato.

Era o mês de julho
no Chile, na estação fria.


Junto a meus passos, muitos dias
(ou séculos) (ou simplesmente meses
de cobre, pedra e pedra e pedra,
quer dizer, de inferno no tempo:
do infinito mantido
por mão sulfurosa),
iam outros passos e pés
que só o cobre conhecia.


Era uma multidão gordurosa,
fome e farrapo, soledades,
a que cavava o socavão.

Naquela noite não vi
desfilar sua ferida sem número
na costa cruel da mina.


Mas eu fui desses tormentos.


As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.


Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.

Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.



(4)
Os chilenos

Tudo isso foi a tua mão.

Tua mão foi a unha
do compatriota mineral, do “roto”
combatido, do pisoteado
material humano, do homenzinho em farrapos.

Tua mão foi como a geografia:
cavou esta cratera de treva verde,
fundou um planeta de pedra oceânica.


Andou pelas mestranças
manejando as pás quebradas
e botando pólvora por
todos os lados, como ovos
de galinha ensurdecedora.


Trata-se de uma cratera remota:
até da lua cheia
se veria a sua profundidade
feita lado a lado por
um tal de Rodríguez, um tal de Carrasco,
um tal de Díaz Iturrieta,
um tal de Abarca, um tal de Gumersindo,
um tal de chileno chamado Mil.


Esta imensidão, unha por unha,
o desgarrado chileno, um dia
e outro dia, outro inverno, a pulso,
em velocidade, na lenta
atmosfera das alturas,
recolheu-a da argamassa,
estabeleceu-a entre as regiões.



(5)
O herói

Não foi a firmeza tumultuosa
de muitos dedos, não só a pá,
não só o braço, as ancas, o peso
do homem todo e a sua energia:
foram dor, incerteza e fúria
os que cavaram o centímetro
de altura calcária, buscando
as veias verdes da estrela,
os finais fosforescentes
dos cometas enterrados.


Do homem gasto em seu abismo
nasceram os sais sangrentos.


Porque o Reinaldo é agressivo,
cata pedras, o infinito
Sepúlveda, teu filho, sobrinho de
tua tia Eduviges Rojas,
o herói ardendo, o que desvencilha
a cordilheira mineral.


Assim foi conhecendo,
entrando como na uterina
originalidade da entranha,
em terra e vida, fui me vencendo:
até sumir-me em homem, em água
de lágrimas como estalactites,
de pobre sangue despenhado
de suor caído no pó.


(6)
Ofícios
Outras vezes com Lafertte, mais longe,
entramos em Tarapacá,
desde Iquique azul e ascético,
pelos limites da areia.


Me mostrou Elías as pás
dos limpadores, enfiado
nas madeiras cada dedo
do homem: estavam gastadas
pelo roçar de cada ponta de dedo.

As pressões daquelas mãos derreteram
os pedernais da pá,
e abriram assim os corredores
de terra e pedra, metal e ácido,
estas unhas amargas, estes
enegrecidos cinturões
de mãos que rompem planetas,
e elevam os sais aos céus,
dizendo como no conto,
na história celeste: “Este
é o primeiro dia da terra”.


Assim aquele que ninguém antes viu
(antes daquele dia de origem),
o protótipo da pá,
levantou-se sobre as cascas
do inferno: dominou-as
com as suas rudes mãos ardentes,
abriu as folhas da terra,
e apareceu de camisa azul
o capitão de dentes brancos,
o conquistador do salitre.



(7)
O deserto

O duro meio-dia das grandes areias
chegou:
o mundo está nu,
largo, estéril e limpo até as últimas
fronteiras arenais:
escutai o som quebradiço
do sal vivo, só nas salinas:
o sol quebra seus vidros na extensão vazia
e agoniza a terra como um seco
e afogado ruído do sal que geme.



(8)
(Noturno)

Chega ao circuito do dserto,
À alta noite aérea do pampa,
Ao círculo noturno, espaço e astro,
Onde a zona do Tamarugal recolhe
Todo o silêncio perdido no tempo.


Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.


Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.


Eu te amo, irmã pura do oceano.

Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.


Estava só.

Era planura e solidão a vida.


Era este o peito varonil do mundo.


E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.



(9)
O páramo

No páramo o homem vivia
mordendo terra, aniquilado.

Fui direto ao covil,
meti a mão entre os piolhos,
caminhei entre os trilhos até
o amanhecer desolado,
dormi sobre as duras tábuas,
desci da faina na tarde,
me queimaram vapor e iodo,
apertei a mão do homem,
conversei com a mulherzinha,
portas adentro entre galinhas,
entre trapos, no cheiro
da pobreza abrasadora.


E quando tantas dores
reuni, quando tanto sangue
recolhi no cavo da alma,
vi chegar do espaço puro
dos pampas inabarcáveis
um homem feito de sua própria areia,
um rosto imóvel e estendido,
uma roupa com um corpo largo,
uns olhos entrecerrados
como lâmpadas indomáveis.


Recabarren era o seu nome.




XXXIX
Recabarren (1921)

Seu nome era Recabarren.


Bonachão, corpulento, espaçoso,
claro olhar, cara firme,
sua vasta compostura cobria,
como a areia numerosa,
as jazidas da força.


Olhai no pampa da América
(rios ramais, clara neve,
cortes ferruginosos)
o Chile com a sua destroçada
biologia, como um ramo
arrancado, como um braço
cujas falanges dispersou
o tráfico das tormentas.

Sobre as áreas musculares
dos metais e o nitrato,
sobre a atlética grandeza
do cobre recém-escavado,
o pequeno habitante vive,
acumulado na desordem,
como um contrato apressado,
cheio de meninos maltrapilhos
estendidos pelos desertos
da superfície salgada.


É o chileno interrompido
pela demissão ou a morte.


É o duríssimo chileno
sobrevivente das obras
ou amortalhado pelo sal.


Ali chegou com seus panfletos
este capitão do povo.

Pegou o solitário ofendido
que, enrolando suas mantas rotas
em seus filhos famintos,
aceitava as injustiças
encarniçadas, e lhe disse:
“Junta tua voz a outra voz”,
“Junta tua mão a outra mão”.

Foi pelos rincões aziagos
do salitre, encheu o pampa
com sua investidura paterna
e no esconderijo invisível
toda a miséria o viu.


Chegou cada “galo” ferido,
chegou cada um dos lamentos:
entraram como fantasmas
de pálida voz triturada
e saíram de suas mãos
com uma nova dignidade.

Em todo o pampa se soube.

E foi pela pátria inteira

fundando povo, levantando
os corações quebrantados.

Seus jornais recém-impressos
entraram nas galerias
do carvão, subiram ao cobre,
e o povo beijou as colunas
que levavam pela vez primeira
a voz dos atropelados.


Organizou as soledades.

Levou os livros e os cantos
até os muros do terror,
juntou uma queixa a outra queixa,
e o escravo sem voz nem boca,
o extenso sofrimento,
se fez nome, se chamou Povo
Proletariado, Sindicato,
ganhou pessoa e postura.


E este habitante transformado
que se construiu no combate,
este organismo valoroso,
essa implacável tentativa,
ate metal inalterável,
esta unidade das dores,
esta fortaleza do homem,
este caminho para amanhã,
esta cordilheira infinita.

esta germinal primavera,
este armamento dos pobres,
saiu daqueles sofrimentos,
do mais fundo da pátria,
do mais duro e mais ferido,
do mais alto e mais eterno
e se chamou Partido.

Partido
Comunista
Esse foi o seu nome.

Grande foi a luta.
Caíram
como abutre os donos do ouro.

Combateram com a calúnia.

“Esse Partido Comunista
é pago pelo Peru,
pela Bolívia, pelos estrangeiros.


Caíram sobre as impressoras,
adquiridas gota por gota
com o suor dos combatentes,
e ao atacaram, quebrando-as,
queimando-as, esparramando
a tipografia do povo.

Perseguiram Recabarren.

Negaram-lhe entrada e trânsito.

Ele, porém, congregou sua semente
nos socavões desertos
e o baluarte foi defendido.


Então, os empresários
norte-americanos e ingleses,
seus advogados, senadores,
seus deputados, presidentes,
verterem o sangue na areia.

Acurralaram, amarraram,
Assassinaram nossa estirpe,
A força profunda do Chile,
Deixaram junto às veredas
Do imenso pampa amarelo
Cruzes de operários fuzilados
Nas franjas da areia.


Uma vez em Iquique, na costa,
Mandaram buscar os homens
Que pediam escola e pão.

Ali, confundidos, cercados
Num pátio, foram dispostos
Para a morte.


Dispararam
Cm sibilante metralhadora,
Com fuzis taticamente
Dispostos, sobre a pilha
Amontoada de operários adormecidos.

O sangue encheu como um rio
A areia pálida de Iquique,
E lá está o sangue tombado,
Ardendo ainda sobre os anos
Como uma corola implacável.

Sobreviveu porém a resistência.

A luz organizada pelas mãos
de Recabarren, as bandeiras rubras
foram das minas aos povoados,
foram às cidades e aos sulcos,
rodaram com as rodas ferroviárias,
assumiram as bases do cimento,
ganharam ruas, praças, granjas,
fábricas afligidas pelo pó,
chagas cobertas pela primavera:
tudo cantou e lutou para vencer
na unidade do tempo que amanhece.


Quanta coisa se passou desde então.

Quanto sangue sobre sangue,
quantas lutas sobre a terra.

Horas de esplêndida conquista,
triunfos conquistados gota a gota,
ruas amargas, derrotadas,
zonas escuras como túneis
traições que pareciam
cortar a vida com seu fio,
repressões armadas de ódio,
coroadas militarmente

A terra parecia afundar.


Mas a luta permanece.



Oferta (1949)

Recabarren, nesses dias
De perseguição, na angústia
de meus irmãos relegados.

combatidos por um traidor,
e com a pátria envolta em ódio,
ferida pela tirania,
recordo a luta terrível
de tuas prisões, de teus passos
primeiros, tua solidão
de torreão irredutível,
e quando, saindo do páramo,
um e outro homem a ti vieram
para congregar a massa
do pão humilde defendido
pela unidade do povo augusto.



Pai do Chile
Recabarren, filho do Chile,
pai do Chile, pai nosso,
em tua construção, cm tua linha
urdida em terras e tormentos
nasce a força dos dias
vindouros e vencedores.


És a pátria, pampa e povo,
areia, argila, escola, casa,
ressurreição, punho, ofensiva,
ordem, desfile, ataque, trigo,
luta, grandeza, resistência.


Recabarren, sob o teu olhar
juramos limpar as feridas
mutilações da pátria.


Juramos que a liberdade
levantará sua flor nua
sobre a areia desonrada.


Juramos continuar teu caminho
Até a vitória



XL
Prestes do Brasil (1949)

Brasil augusto, quanto amor quisera
para estender-me em teu regaço,
para envolver-me em suas folhas gigantes,
em desenvolvimento vegetal, em vivo
detrito de esmeraldas: espia-te,
Brasil, dos rios
sacerdotais que te nutrem,
dançar nos terraços à luz
da lua fluvial, e repartir-me
por teus desabitados territórios
vendo sair do barro o nascimento
de grossos bichos rodeados
de metálicas aves brancas.


Quanta lembrança me darias.

Entrar de novo na alfândega,
sair pelos bairros, cheirar
teu estranho rito, baixar
a teus centros circulatórios,
a teu coração generoso.


Mas não posso.


Uma vez, na Bahia, as mulheres
do bairro dolorido,
do antigo mercado de escravos
(onde hoje a nova escravidão, a fome,
o trapo, a condição dolente,
vivem como antes na mesma terra),
me deram umas flores e uma carta,
umas palavras ternas e umas flores.


Não posso apartar a voz de quanto sofre.

Sei quanto me dariam
de invisível verdade as tuas espaçosas
ribeiras naturais.

Sei que a flor secreta, a agitada
multidão de mariposas,
todos os férteis fermentos
das vidas e dos bosques
me esperam com a sua teoria
de inesgotáveis umidades,

mas não posso, não posso

senão arrancar do teu silêncio
uma vez mais a voz do povo,
elevá-la como a pluma
mais fulgurante da selva,
deixá-la a meu lado e amá-la
até que cante por meus lábios.


Por isso vejo Prestes caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, Brasil, fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.

Vejo Prestes, sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.

Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.


(Poeta, buscas em teu livro
as antigas dores gregas,
os orbes acorrentados
pelas antigas maldições,
correm as tuas pálpebras torturadas
pelos tormentos inventados,
e não vês em tua própria porta
os oceanos que batem
no sombrio peito do povo.
)
No martírio nasce a sua filha.

E ela desaparece
a golpe de machado, no gás, tragada
pelos lamaçais assassinos
da Gestapo.


Oh, tormento
do prisioneiro! Oh, indizíveis
padecimentos separados
de nosso ferido capitão!
(Poeta, apaga de teu livro
a Prometeu e sua corrente.

A velha fábula não tem
tanta grandeza calcinada,
tanta tragédia aterradora.
)

Onze anos eles guardam Prestes
detrás das barras de ferro,
no silêncio da morte,
sem que se atrevam assassiná-lo.


Não há notícias para seu povo.

A tirania apaga o nome
de Prestes em seu mundo negro.


E onze anos seu nome foi mudo.

Viveu sem nome como uma árvore
em meio a todo o seu povo,
reverenciado e esperado.


Até que a liberdade
foi buscá-lo em seu presídio,
e saiu de novo à luz,
amado, vencedor e bondoso,
despojado de todo 0 ódio
que lançaram sobre a sua cabeça.


Lembro que em 1945
estive com ele em São Paulo.

(Frágil e firme sua estrutura,
pálido como o marfim
desenterrado na cisterna,
fino como a pureza
do ar nas solidões,
puro como a grandeza
custodiada pela dor.
)
Pela vez primeira a seu povo
falava, no Pacaembu.

O grande estádio pululava
de cem mil corações vermelhos
que espetavam vê-lo e tocá-lo.

Chegou em uma indizível
onda de canto e ternura,
cem mil lenços saudavam
como um bosque a sua boa-vinda.

Ele olhou com olhos profundos
a meu lado, enquanto falei.




XLI
Dito no Pacaembu (Brasil, 1945)

Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações.
Saudações das neves andinas,
saudações do oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos

os povoadores de minha pátria longínqua.

Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?

Uma mensagem tinham: Era: Cumprimenta Prestes.

Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.

Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.

E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.


Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.

Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.


Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite
falei à multidão, fui pedir auxílio
para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.


A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.

Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.

Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe
e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,

Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,
são filhos dos heróis da América, são irmãos
de Bolívar, de O'Higgins, de San Martín, de Prestes.

E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.

Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.


Vou contar-vos outra pequena história.

Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,
no Chile, no frio porto de Talcahuano,
chegou uma vez, faz tempo, um cargueiro soviético.


(O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.
)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.


Aquela noite escura teve estrelas:
as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.


Também hoje, de todos os rincões
da nossa América, do México livre, do Peru sedento,
de Cuba, da Argentina populosa,
do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,
o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas
em que brilham as altas esperanças do homem.


Por isso me mandaram, pelo vento da América,
para que te olhasse e logo lhes contasse
como eras, que dizia o seu capitão calado
por tantos anos duros de solidão e sombra.


Vou dizer-lhes que não guardas ódio.

Que só desejas que a tua pátria viva,

E que a liberdade cresça no fundo
do Brasil como árvore eterna.


Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,
carregadas por estes anos entre a pele e a alma,
sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer
o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.


Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.


Um grande silêncio peço de terras e varões.


Peço silêncio à América da neve ao pampa.


Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.


Silêncio: Que o Brasil falará por sua boca.




XLII
De novo os tiranos

Hoje de novo a caçada
se estende por todo o Brasil,
procura-o a fria cobiça
dos mercadores de escravos:
em Wall Street decretaram
a seus satélites porcinos
que enterrassem os seus caninos
nas feridas do povo,
e começou a caçada
no Chile, no Brasil, em todas
as nossas Américas arrasadas
por mercadores e verdugos.


Meu povo escondeu meu caminho,
cobriu meus versos com as mãos,
da morte me preservou,
e no Brasil a porta infinita
do povo fecha os caminhos
onde Prestes outra vez
rechaça de novo o malvado.


Brasil, que te seja salvo
o teu capitão doloroso,
Brasil, que não tenhas amanhã
de recolher de sua lembrança
fibra por fibra a sua efígie
para erguê-la em pedra austera,
sem tê-lo deixado no meio
de teu coração desfrutar
a liberdade que ainda, ainda
pode conquistar-te, Brasil.




XLIII
Chegará o dia

Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.


Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece,
soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?

Transpassastes a sua tenebrosa vida?
O coração disperso
do povo abandonado e submerso!

Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.


Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga nos chama novamente.

Descei às raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
tocai a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.


Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram.
Cada espiga
nasce de um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.

Os garçons empilhando as cadeiras
você me olhando e me pedindo que
fale Por Favor Fale Mas Não Escreva
eu evitando o toque ruim dos ponteiros
do relógio que anuncia a já famosa fuga
de nossos corpos cada um para sua
ponta da cidade — se nosso amor fosse
revólver eu seria o cabo e você a mira
tal como dizia a professora Sofia Jones
é terrível a existência de duas retas
paralelas porque elas nunca se cruzam
e elas apenas se encontram no infinito
a verdade é que nunca nos interessou
a questão do infinito mas o resto
das ideias matemáticas claro que sim
eu na verdade prefiro mais de mil vezes
sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa
enquanto você fala sobre raízes quadradas
enquanto você fala sobre ladrões de figos
enquanto você fala sobre o tropeço da baleia
subitamente eu já nem sei sobre o que você fala
porque a forma como seu dente incisivo corta
e suspende toda a beleza da cafetaria
faz com que eu novamente entenda que
pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco
e do canto do cuco
portanto eu pego minha bicicleta
e como de costume você faz meu retrato
de cabelo todo desenhado no vento
em jeito de menino que está sempre indo embora
à mesma hora e que amanhã se tudo der certo
voltará à mesma hora para o mesmo amor
a mesma mesa a mesma explosão
com toda a certeza a mesma fuga
porque você e eu a gente é feito de matéria
escorregadia, i.e., manteira, azeite, geleia
e espanto.
I
Que acorde o lenhador

A oeste do Colorado River
há um lugar que amo.
Acorro ali com tudo o que palpitando
transcorre em mim, com tudo
o que fui, o que sou, o que mantenho.
Há umas altas pedras vermelhas, o ar
selvagem de mil mãos
as fez edificar estruturas:
o escarlate cego subiu do abismo
e nelas se fez cobre, fogo e força.
América estendida como a pele do búfalo,
aérea e clara noite do galope,
lá para as alturas estreladas,
bebo a tua taça de verde orvalho.

Sim, por acre Arizona e Wisconsin nodoso,
até Milwaukee levantada contra o vento e a neve
ou nos excitados pântanos de West Palm,
perto dos pinheirais de Tacoma, no espesso
odor de aço de teus bosques,
andei pisando terra mãe,
folhas azuis, pedras de cachoeira
, furacões que tremiam como toda música,
rios que rezavam como os monastérios,
marrecos e maçãs, terras e águas,
infinita quietude para que o trigo nasça.

Ali pude, em minha pedra central, estender ao ar
olhos, ouvidos, mãos, até ouvir
livros, locomotivas, neve, lutas,
fábricas, tumbas, vegetais, passos,
e de Manhattan a lua no navio,
o canto da máquina que fia,
a colher de ferro que come terra,
a perfuratriz com seu golpe de condor
e tudo o que corta, oprime, corre cose:
seres e rodas repetindo e nascendo.

Amo o pequeno lar do farmer. Recentes mães dormem
aromadas como o xarope do tamarindo, os panos
recém-passados. Arde
o fogo em mil lares rodeados de cebolas
. (Os homens quando cantam perto do rio têm
uma voz rouca como as pedras do fundo:
o tabaco saiu de suas largas folhas
e como um duende do fogo chegou a estes lares.)
Vinde para dentro de Missouri, olhai o queijo e a farinha,
as tábuas olorosas, rubras como violinos,
o homem navegando a cevada,
o potro azul recém-montado cheira
o aroma do pão e da alfafa:
sinos, papoulas, ferrarias,
e nos destrambelhados cinemas silvestres
o amor abre a sua dentadura
no sonho nascido da terra.
É tua paz que amamos, não a tua máscara.
Não é formoso o teu rosto guerreiro.
És formosa e vasta, América do Norte.
Vens de humilde berço como uma lavadeira,
junto de teus rios, branca.
Edificada no desconhecido,
em tua paz de colmeia o doce teu.
Amamos o teu homem com as mãos vermelhas
do barro de Oregon, teu menino negro
que te trouxe a música nascida
em sua comarca de marfim: amamos
tua cidade, tua substância,
tua luz, teus mecanismos, a energia
do oeste, o pacífico
mel, de colmeal e aldeia,
o gigante jovem no trator,
a aveia que herdaste
de Jefferson, a roda rumorosa
que mede a tua terrestre oceania,
o fumo de uma fábrica e o beijo
número mil de uma colônia nova:
teu sangue lavrador é o que amamos:
a tua mão popular cheia de azeite.

Sob a noite dos prados já faz tempo
repousam sobre a pele do búfalo em grave
silêncio as sílabas, o canto
do que fui antes de ser, do que fomos.
Melville é um abeto marinho, de seus ramos
nasce uma curva de carena, um braço
de madeira e navio. Whitman inumerável
como os cereais, Poe em sua matemática
treva, Dreiser, Wolfe,
frescas feridas de nossa própria ausência,
Lockridge recente, atados à profundidade,
quantos outros, atados à sombra:
sobre eles a mesma aurora do hemisfério arde
e deles está feito o que somos,
Poderosos infantes, capitães cegos,
entre acontecimentos e folhagens às vezes amedrontados,
interrompidos pela alegria e pela dor,
sob os prados cruzados de tráfico,
quantos mortos nas planícies antes não visitadas:
inocentes atormentados profetas recém-impressos,
sobre a pele do búfalo dos prados.

Da França, de Okinawa, das coralinas
de Leyte (Norman Mailer o deixou escrito),
do ar enfurecido e das ondas,
retornaram quase todos os rapazes
. Quase todos ... Foi verde e amarga a história
de lama e suor: não ouviram
bastante o canto dos arrecifes
nem tocaram talvez a não ser para morrer nas ilhas, as coroas
de fulgor e fragrância:
sangue e esterco
os perseguiram, a imundície e as ratazanas,
e um cansado e desolado coração que lutava.
Mas já voltaram,
os recebestes
no vasto espaço das terras estendidas
e se fecharam (os que voltaram) como uma corola
de inumeráveis pétalas anônimas
para renascer e olvidar.


II
Mas além disso encontraram
um hóspede em casa,
ou trouxeram novos olhos (ou foram cegos antes)
ou a hirsuta ramaria lhes rompeu as pálpebras
ou novas coisas há nas terras da América.
Aqueles negros que combateram contigo, os
duros e sorridentes, olhai:
puseram uma cruz ardendo
diante de seus casarios,
enforcaram e queimaram o teu irmão de sangue:
fizeram-no combatente, hoje lhe negam
palavra e decisão: juntam-se
à noite os verdugos
encapuzados, com a cruz e o chicote.
(Outra coisa
se ouvia em além-mar combatendo.)
Um hóspede imprevisto

como um velho octópode roído,
imenso, circundante,
instalou-se em tua casa, soldadinho:
a imprensa destila o antigo veneno, cultivado em Berlim .
Os jornais (Times, Newsweek, etc.) converteram-se
em amarelas folhas de delação: Hearst,
que cantou o canto de amor aos nazistas, sorri
e afia as unhas para que partais de novo
para os arrecifes ou para as estepes
a combater por este hóspede que ocupa a tua casa.
Não te dão trégua: querem continuar vendendo
aço e balas, preparam uma nova pólvora
e é preciso vendê-la logo, antes que lhe passe à frente
a fresca pólvora e caia em novas mãos.
Por todas as partes os amos instalados
em tua mansão aumentam suas falanges,
amam a Espanha negra e uma taça de sangue te oferecem
(um fuzilado, cem): o coquetel Marshall.
Escolhei sangue jovem: camponeses
da China, prisioneiros
da Espanha,
sangue e suor de Cuba açucareira,
lágrimas de mulheres,
das minas de cobre e do carvão no Chile,
logo batei com energia
como um golpe de garrote
não esquecendo pedacinhos de gelo e algumas gotas
do canto Defendemos a cultura cristã.
É amarga esta mistura?
Já te acostumarás, soldadinho, a bebe-la.
Em qualquer lugar do mundo, à luz da lua,
ou pela manhã, no hotel de luxo,
pede esta bebida que dá vigor e refresca
e paga-a com uma boa nota
com a imagem de Washington.

Descobriste também que Charlie Chaplin, o último
pai da ternura no mundo,
deve fugir, e que os escritores (Howard Fast, etc.),
os sábios e os artistas
em tua terra
devem sentar-se para ser julgados por “un-american” pensamentos
diante dum tribunal de mercadores enriquecidos pela guerra.
Até os últimos confins do mundo chega o medo.
Minha tia lê essas notícias assustada,
e todos os olhos da terra olham
para esses tribunais de vergonha e vingança.
São os estrados dos Babbits sangrentos, `
dos escravagistas, dos assassinos de Lincoln,
são as novas inquisições levantadas agora
não pela cruz (e então era horrível e inexplicável)
mas pelo ouro redondo que bate
nas mesas dos prostíbulos e nos bancos
e que não tem, o direito de julgar.

Em Bogotá uniram-se Moríñigo, Trujillo,
González Videla, Somoza, Dutra, e aplaudiram.
Tu, jovem americano, não os conheces: são
os vampiros sombrios de nosso céu, amarga
é a sombra de suas asas:
prisões,
martírio, morte, ódio: as terras
do sul com petróleo e nitrato
conceberam monstros.
À noite no Chile, em Lota,
na humilde e molhada casa dos mineiros,
chega a ordem do verdugo. Os filhos
acordam chorando.
Milhares deles
encarcerados, pensam.
No Paraguai
a densa sombra florestal esconde
os ossos do patriota assassinado, um tiro
soa
na fosforescência do verão.
Morreu
ali a verdade.
Por que não intervêm
em São Domingos para defender o Ocidente Mr. Vandenberg,
Mr. Armour, Mr. Marshall, Mr. Hearst?
Por que na Nicarágua o senhor presidente,
despertado à noite, atormentado, teve
de fugir para morrer no desterro?
(Ali há bananas a defender e não liberdades,
e para isso basta Somoza.)
As grandes
vitoriosas idéias estão na Grécia
e na China para auxílio
de governos manchados como alfombras imundas.
Ai, soldadinho!
 

III
Também eu mais além de tuas terras, América,
ando e faço minha casa errante, vôo, passo,
canto e converso através dos dias.
Na Ásia, na URSS, nos Uraís me detenho
e estendo minha alma empapada de soledades e resina.
Amo o quanto nos espaços
a golpes de amor e luta o homem criou.
Ainda rodeia a minha casa nos Urais
a antiga noite dos pinheiros
e o silêncio como uma alta coluna.
Trigo e aço aqui nasceram
da mão do homem, de seu peito.
E um canto de martelos alegra o bosque antigo
como um novo fenômeno azul.
Daqui olho extensas zonas do homem,
geografia de meninos e mulheres, amor,
fábricas e canções, escolas
que brilham como goivos na selva
onde morou até ontem a raposa selvagem.
Daquele ponto abarca a minha mão no mapa
o verde dos prados, o fumo
de mil oficinas, os aromas
têxteis, o assombro
da energia dominada.
Volto nas tardes
pelos novos caminhos recém-traçados
e entro nas cozinhas
onde ferve o repolho e de onde sai
um novo manancial para o mundo.
Também aqui regressaram os rapazes,
mas muitos milhões ficaram atrás,
enganchados, pendurados nas forcas,
queimados em fornos especiais,
destruídos até não ficar deles
mais que o nome na lembrança.
Também foram assassinadas suas povoações:
a terra soviética foi assassinada:
milhões de vidros e ossos se confundiram,
vacas e fábricas, até a primavera
desapareceu tragada pela guerra.
Voltaram os rapazes, no entanto,
e o amor pela pátria construída
se havia mesclado neles com tanto sangue
que Pátria dizem com as veias,
União Soviética cantam com o sangue.
Foi alta a voz dos conquistadores
da Prússia e de Berlim quando voltaram
para que renascessem as cidades,
os animais e a primavera.

Walt Whitman, ergue a tua barba de relva,
olha comigo do bosque,
destas magnitudes perfumadas.
Que vês aí, Walt Whitman?
Vejo, me diz meu irmão profundo,
vejo como trabalham as usinas,
nas cidades que os mortos recordam,
na capital pura,
na resplandecente Stalingrado.
Vejo da planície combatida
do padecimento e do incêndio
nascer na umidade da manhã
um trator rechinante na direção das planuras.
Dá-me a tua voz e peso de teu peito enterrado,
Walt Whitman, e as graves
raízes de teu rosto
para cantar estas reconstruções!
Cantemos juntos o que se levanta
de todas as dores, o que surge
do grande silêncio, da grave
vitória:
Stalingrado, surge a tua voz de aço,
renasce andar por andar a esperança
como uma habitação coletiva,
e há um tremor de novo em marcha
ensinando,
cantando
e construindo.
Do sangue surge Stalingrado
como uma orquestra de água, pedra e ferro
e o pão renasce nas padarias,
a primavera nas escolas,
sobe novos andaimes, novas árvores,
enquanto o velho e férreo Volga palpita.
Estes livros,
em frescas caixas de pinho e cedro,
estão reunidos sobre o túmulo
dos verdugos mortos:
estes teatros feitos nas ruínas
cobrem martírio e resistência:
livros claros como monumentos:
um livro sobre cada herói,
sobre cada milímetro de morte,
sobre cada pétala desta glória imutável.

União Soviética, se juntássemos
todo o sangue derramado em tua luta,
todo o que deste como mãe ao. mundo
para que a liberdade agonizante vivesse,
teríamos um novo oceano,
grande como nenhum outro,
profundo como nenhum outro,
vivente como todos os rios,
ativo como o fogo dos vulcões araucanos.
Neste mar mergulha a tua mão,
homem de todas as terras,
e levanta-a depois para afogar nele
aquele que esqueceu, que ultrajou,
o que mentiu e o que manchou,
o que se uniu com cem pequenos cachorros
da lixeira do Ocidente
para insultar o teu sangue, Mãe dos livres!

Do fragrante odor dos pinheiros urais
olho a biblioteca que nasce
no coração da Rússia,
o laboratório no qual o silêncio
trabalha, olho os trens que levam
madeira e canções a novas cidades,
e nesta paz balsâmica cresce um latejar
como em novo peito:
à estepe moças e pombas
regressam agitando a brancura,
os laranjais se povoam de ouro:
o mercado tem hoje
a cada amanhecer
um novo aroma,
um novo aroma que chega das altas terras
nas quais o martírio foi maior:
os engenheiros fazem tremular o mapa
das planícies com os seus números
e as tubulações se envolvem como longas serpentes
nas terras do novo inverno vaporoso.
Em três aposentos do velho Kremlin
vive um homem chamado José Stálin.
Tarde se apaga a luz de seu quarto.
O mundo e sua pátria não lhe dão repouso.
Outros heróis deram à luz uma pátria,
ele além disso ajudou a conceber a sua,
a edificá-la,
a defendê-la.
Sua imensa pátria é, pois, parte dele mesmo
e não pode descansar porque ela não descansa.
Em outro tempo a neve e a pólvora
o encontraram diante dos velhos bandidos
que quiseram (como agora mais uma vez) reviver
o knut, e a miséria, a angústia dos escravos,
a dor adormecida de milhões de pobres.
Ele esteve contra os que como Wrangel e Denikin
foram enviados do Ocidente para “defender a cultura”.
Lá deixaram o couro aqueles defensores
dos verdugos, e no vasto terreno
da URSS, Stálin trabalhou noite e dia.
Porém mais tarde chegaram numa onda de chumbo
os alemães cevados por Chamberlain.
Stálin os enfrentou em todas as vastas fronteiras,
em todas as retiradas, em todos os assaltos
e até Berlim os seus filhos como um furacão de povos
chegaram e levaram a paz vasta da Rússia.

Molotov e Vorochilov
lá estão, eu os vejo,
com os outros, os altos generais,
os indomáveis.
Firmes como nevadas azinheiras.
Nenhum deles tem palácios.
Nenhum deles tem regimentos de servos.
Nenhum deles se tornou rico na guerra
vendendo sangue.
Nenhum deles vai como um pavão real
ao Rio de Janeiro ou a Bogotá
comandar pequenos sátrapas manchados de tortura:
nenhum deles tem duzentos trajes:
nenhum deles tem ações em fábricas de armamentos,
e todos eles têm
ações
na alegria e na construção
do vasto país onde ressoa a aurora
erguida na noite da morte.
Eles disseram “camarada” ao mundo.

Eles fizeram rei o carpinteiro.
Por essa agulha não entrará um camelo.
Lavaram as aldeias.
Repartiram a terra.
Elevaram o servo.
Apagaram o mendigo.
Aniquilaram os cruéis.
Fizeram luz na espaçosa noite.
 
Por isso a ti, moça de Arkansas, ou, melhor ainda,
a ti, jovem dourado de West Point, ou, melhor,
a ti, mecânico de Detroit, ou, ainda,
a ti, carregador da velha Orleans, a todos
falo e digo: firma teu passo,
abre teu ouvido ao vasto mundo humano,
não são os elegantes do State Department
nem os ferozes donos do aço
os que te estão falando,
mas um poeta do extremo sul da América,
filho dum ferroviário da Patagônia,
americano como o ar andino,
hoje fugitivo duma pátria na qual
o cárcere, o tormento, a angústia imperam
enquanto o cobre e o petróleo lentamente
se convertem em ouro para reis alheios.
Tu não és
o ídolo que numa mão leva o ouro
e na outra a bomba.
Tu és
o que sou, o que fui, o que devemos
amparar, o fraternal subsolo
da América puríssima, os singelos
homens dos caminhos e das ruas.
Meu irmão Juan vende sapatos
como o teu irmão John,
minha irmã Juana descasca batatas,
como a tua prima Jane,
e meu sangue é mineiro e marinheiro
como o teu sangue, Peter.

Tu e eu vamos abrir as portas
para que passe a brisa dos Urais
através da cortina de tinta,
tu e eu vamos dizer ao furioso:
“My dear guy, daqui não passarás”,
daqui pra cá a terra nos pertence
para que não se ouça a rajada
da metralhadora, porém uma
canção, e outra canção, e outra canção.



IV
Porém se armas as tuas hostes, América do Norte,
para destruir essa fronteira pura
e levar o magarefe de Chicago
ao governo da música e da ordem
que amamos,
sairemos das pedras e do ar
para morder-te:
sairemos da última janela
para derramar-te fogo:
sairemos das ondas mais profundas
para cravar-te com espinhos:
sairemos do eito para que a semente
golpeie como um punho colombiano,
sairemos para negar-te pão e água,
sairemos para queimar-te no inferno.

Não ponhas então o pé, soldado,
na doce França, porque lá estaremos
para que as verdes vinhas dêem vinagre
e as moças pobres te mostrem o local
no qual está fresco o sangue alemão.
Não subas pelas secas serras da Espanha
porque cada pedra se converterá em fogo,
e lá mil anos combaterão os valentes:
não te percas entre os olivais porque
nunca tornarás a Oklahoma, mas não entres
na Grécia, que até o sangue que hoje estás derramando
se levantará da terra para deter-vos.
Não venhais pescar então em Tocopilla
porque o peixe-espada conhecerá vossos despojos
e o obscuro mineiro da Araucania
procurará as antigas flechas cruéis
que esperam enterradas novos conquistadores.
Não confieis no gaúcho cantando uma vidalita,
nem no operário dos frigoríficos. Eles
estarão em todas as partes com olhos e punhos,
como os venezuelanos que vos esperam nessa ocasião
com uma garrafa de petróleo e uma guitarra nas mãos.
Não entres, não entres tampouco na Nicarágua.
Sandino dorme na selva até tal dia,
seu fuzil se encheu de cipós e de chuva,
seu rosto não tem pálpebras,
mas as feridas com que o matastes estão vivas
como as mãos de Porto Rico que esperam
as luzes das facas.
Será implacável o mundo para vós.
Não só as ilhas serão despovoadas, mas o ar
que já conhece as palavras que lhe são queridas.

Não chegues a pedir carne de homem
no alto Peru: na névoa roída dos monumentos
o doce antepassado de nosso sangue afia
contra ti as suas espadas de ametista,
e pelos vales o rouco caracol de batalha
congrega os guerreiros, os fundeiros
filhos de Amaru. Nem pelas cordilheiras mexicanas
busques homens para levá-los a combater a aurora;
os fuzis de Zapata não estão dormidos,
são azeitados e apontados para as terras do Texas.
não entres em Cuba, que do fulgor marinho
dos canaviais suarentos
há um único escuro olhar que te espera
e um único grito até matar ou morrer.
Não chegues
à terra de partisanos na rumorosa
Itália: não passes das filas dos soldados com jacquet
que manténs em Roma, não passes de São Pedro:
além os santos rústicos das aldeias,
os santos marinheiros do pescado
amam o grande país da estepe
no qual floresceu de novo o mundo.
Não toques
nas pontes da Bulgária, não te darão passagem,
os rios da Romênia, jogaremos neles sangue fervendo
para que queimem os invasores:
não cumprimentes o camponês que hoje conhece
os túmulos dos feudais, e vigia
com seu arado e seu rifle: não olhes para ele
porque te queimará como uma estrela.
Não desembarques
na China: já não existirá Chang, o Mercenário,
rodeado de sua apodrecida corte de mandarins:
haverá para esperar-vos uma selva
de foices labregas e um vulcão de pólvora.
Em outras guerras existiram fossos com água
e depois cercas de arame, com puas e garras,
mas este fosso é maior; estas águas mais fundas,
estes arames mais invencíveis que todos os metais.
São um átomo e outro do metal humano,
são um nó e mil nós de vidas e vidas:
são as velhas dores dos povos
de todos os remotos vales e reinos,
de todas as bandeiras e navios,
de todas as covas onde foram amontoados,
de todas as redes que saíram contra a tempestade,
de todas as ásperas rugas da terra,
de todos os infernos nas quentes caldeiras,
de todos os teares e das fundições,
de todas as locomotivas perdidas ou congregadas.
Este arame dá mil voltas no mundo:
parece dividido, desterrado,
e de repente se juntam seus ímãs
para encher a terra.
Porém ainda
mais longe, radiantes e determinados,
acerados, sorridentes,
para cantar ou combater
vos esperam
homens e mulheres da tundra e da taiga,
guerreiros do Volga que venceram a morte,
meninos de Stalingrado, gigantes da Ucrânia,
toda uma vasta e alta parede de pedra e sangue,
ferro e canções, coragem e esperança.
Se tocardes neste muro caireis
queimados como o carvão das usinas
, os sorrisos de Rochester se farão trevas
que logo a neve enterrará a brisa da estepe
e logo a neve enterrará para sempre.
Virão os que lutaram desde Pedro
Até os novos heróis que assombraram a terra
E farão de suas medalhas pequenas balas frias
Que silvarão sem trégua de toda
A vasta terra que hoje é alegria.
E do laboratório coberto de trepadeiras
Sairá também o átomo desencadeado
Na direção de vossas cidades orgulhosas.

 

V
Que nada disso aconteça.
Que desperte o Lenhador.
Que venha Abraham com seu machado
E com o seu prato de madeira
Para comer com os camponeses.
Que a sua cabeça de córtice,
Seus olhos vistos nas tábuas,
Nas rugas do carvalho,
Voltem a olhar o mundo
Subindo sobre as folhagens,
Mais altos que as sequóias.
Que entre para comprar nas farmácias,
Que tome um ônibus em Tampa,
Que morda uma maçã amarela,
Que entre num cinema, que converse
Com toda a gente simples.

Que desperte o Lenhador.

Que venha Abraham, que faça crescer
Seu velho fermento a terra
Dourada e verde de Illinois,
E levante o machado no meio do seu povo
Contra os novos escravagistas,
Contra o chicote do escravo,
contra o veneno da imprensa,
contra a mercadoria
sangrenta que querem vender.
Que marchem cantando e sorrindo
o jovem branco, o jovem negro,
contra as paredes de ouro,
contra o fabricante de ódio,
contra o mercador de sangue,
cantando, sorrindo e vencendo.

Que desperte o Lenhador.

VI
Paz para os crepúsculos que chegam,
paz para a ponte, paz para o vinho,
paz para as letras que me procuram
e que em meu sangue sobem enredando
v velho canto com terra e amores,
paz para a cidade na manhã
quando desperta o pão, paz para o rio
Mississípi, rio das raízes:
paz para a camisa de meu irmão,
paz para o livro como um selo de aragem,
paz para o grande colcós de Kíev,
paz para as cinzas destes mortos
e destes outros mortos, paz para o ferro
negro de Brooklyn, paz para o carteiro
de casa em casa como o dia,
paz para o coreógrafo que grita
com um megafone, às campanhas,
paz para a minha mão direita,
que só quer escrever Rosario:
paz para o boliviano secreto
como uma pedra de estanho, paz
para que tu te cases, paz para todas
as serrarias de Bío-Bío,
paz para o coração dilacerado
da Espanha guerrilheira:
paz para o pequeno museu de Wyoming,
no qual o mais doce
é um travesseiro com um coração bordado,
paz para o padeiro e seus amores
e paz para a farinha: paz
para todo o trigo que deve nascer,
para todo o amor que buscará folhagem,
paz para todos os que vivem: paz
para todas as terras e todas as águas.


Aqui eu me despeço, volto
para casa, em meus sonhos,
volto para a Patagônia, onde
o vento bate nos estábulos
e respinga e gela o oceano.

Não sou mais que um poeta: amo todos vós,
ando errante pelo mundo que amo:
em minha pátria encarceram mineiros
e os soldados mandam nos juízes.

Porém eu amo até as raízes
de meu pequeno país frio.

Se tivesse que morrer mil vezes
lá quero morrer:
se tivesse de nascer mil vezes
lá quero nascer,
perto da araucária selvagem,
do vendaval do vento sul,
dos sinos recém-comprados.

Que ninguém pense em mim.

Pensemos na terra toda,
batendo com amor na mesa.

Não quero que volte o sangue
a empapar o pão, os feijões,
a música: quero que venha
comigo, o mineiro, a menina,
o advogado, o marinheiro,
o fabricante de bonecas,
que entremos no cinema e saiamos
para beber o vinho mais rubro.


Não venho para resolver nada.


Vim aqui para cantar
e para que cantes comigo.

Eu tinha onze anos e meus dois amigos, Hass e Morgan, tinham doze, e era verão, não tinha aula, e nos sentamos no gramado, ao sol, atrás da garagem do meu pai, fumando cigarros.
– Droga! – eu disse.
Eu estava sentado sob uma árvore. Morgan e Hass estavam sentados de costas para a garagem.
– O que foi? – perguntou Morgan.
– Temos que pegar aquele filho da puta – eu disse. – Ele é um problema na vizinhança!
– Quem? – perguntou Hass.
– O Simpson – eu disse.
– É mesmo – disse Hass –, ele tem sardas demais. Me irrita.
– Não é isso – eu disse.
– Não? – disse Morgan.
– Não. Aquele filho da puta disse que comeu uma garota debaixo da minha casa semana passada. É uma baita mentira! – eu disse.
– Sem dúvida! – disse Hass.
– Ele nem sabe trepar – disse Morgan.
– O que ele sabe é mentir – eu disse.
– Mentirosos não servem pra nada – Hass disse, soprando um arco de fumaça no ar.
– Eu não gosto de ouvir esse tipo de baboseira de um cara que tem sardas – disse Morgan.
– Bem, então talvez a gente tenha que pegar ele – sugeri.
– Por que não? – perguntou Hass.
– Vamos pegar ele – disse Morgan.
Cruzamos a calçada da casa de Simpson e lá estava ele, jogando bola contra a parede da garagem.
– Ei – eu disse –, olhem só quem está brincando sozinho!
Simpson pegou a bola num salto e se virou para nós.
– Olá, companheiros!
Nós o cercamos.
– Andou comendo alguma garota embaixo de alguma casa nesses últimos dias? – perguntou Morgan.
– Não!
– Como não?
– Ah, sei lá.
– Eu não acredito que você tenha comido alguém a não ser você mesmo! – eu disse.
– Eu vou entrar agora – disse Simpson. – Minha mãe me pediu para lavar a louça.
– Sua mãe mete a louça na buceta? – provocou Morgan.
Nós rimos. Chegamos mais perto de Simpson. De súbito, meti um soco na barriga dele. Ele se curvou para frente, segurando o estômago. Ficou desse jeito durante meio minuto, depois se endireitou.
– Meu pai vai chegar a qualquer momento – ele nos disse.
– Ah é? Seu pai também come menininhas debaixo das casas? – perguntei.
– Não.
Nós rimos.
Simpson não disse nada.
– Olhem pra essas sardas – disse Morgan. – Toda vez que ele come uma menininha embaixo de uma casa nasce uma sarda nova.
Simpson não disse nada. Parecia cada vez mais assustado.
– Eu tenho uma irmã – disse Hass. – Quem me garante que você não vai tentar comer a minha irmã embaixo de uma casa?
– Eu nunca faria isso, Hass, te dou a minha palavra!
– Ah é?
– Sim, de verdade!
– Bem, isso é pra você não mudar de ideia!
Hass meteu um soco na barriga de Simpson. Simpson se curvou de novo. Hass se abaixou, pegou um punhado de terra e enfiou na gola da camiseta de Simpson. Simpson se endireitou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Um veadinho.
– Deixem eu ir, por favor!
– Ir pra onde? – perguntei. – Quer se esconder debaixo da saia da sua mãe para ver a louça sair da buceta dela?
– Você nunca comeu ninguém – disse Morgan –, você não tem nem pau! Você mija pelas orelhas!
– Se um dia eu pegar você olhando pra minha irmã – disse Hass –, vai levar uma surra tão grande que vai virar uma sarda gigante.
– Me deixem ir embora, por favor!
Senti vontade de deixar ele ir. Talvez ele não tivesse comido ninguém. Talvez só estivesse sonhando acordado. Mas eu era o jovem líder. Não podia mostrar compaixão.
– Você vem conosco, Simpson.
– Não!
– Não o caralho! Você vem conosco! Agora, anda!
Caminhei ao redor dele e lhe dei um chute na bunda, bem forte. Ele gritou.
– CALE A BOCA! – berrei. – CALE A BOCA OU VAI SER PIOR! AGORA ANDE!
Nós o conduzimos até a calçada, cruzamos o gramado até a calçada da minha casa e seguimos para o meu quintal.
– Agora se endireite! – eu disse. – Solte as mãos! Vamos organizar um tribunal improvisado!
Eu me virei para Morgan e Hass e perguntei:
– Todos aqueles que acham que este homem é culpado por mentir que comeu uma menininha debaixo da minha casa devem dizer “culpado”.
– Culpado – disse Hass.
– Culpado – disse Morgan.
– Culpado – eu disse.
Eu me virei para o prisioneiro.
– Simpson, você é considerado culpado!
As lágrimas agora escorriam de seus olhos.
– Mas eu não fiz nada – resmungou.
– É disso que você é culpado – disse Hass. – De mentir!
– Mas vocês mentem o tempo todo!
– Não sobre trepar – disse Morgan.
– É sobre isso que vocês mais mentem. Foi com vocês que eu aprendi!
– Sargento – eu me virei para Hass –, amordace o prisioneiro. Estou cansado de suas mentiras de merda!
– Sim, senhor!
Hass correu até o varal. Encontrou um lenço e um pano de prato. Seguramos Simpson, e ele enfiou o lenço em sua boca e amarrou o pano de prato por cima. Simpson emitiu um som abafado e mudou de cor.
– Você acha que ele consegue respirar? – perguntou Morgan.
– Ele pode respirar pelo nariz – eu disse.
– Pois é – concordou Hass.
– O que a gente vai fazer agora? – perguntou Morgan.
– O prisioneiro é culpado, não é? – perguntei.
– Sim.
– Bem, como juiz eu o sentencio a ser enforcado até a morte!
Simpson fez uns barulhos por baixo de sua mordaça. Seus olhos nos encaravam, implorando. Corri até a garagem e peguei a corda. Havia uma, cuidadosamente enrolada, pendurada num grande gancho na parede. Eu não fazia a menor ideia de por que meu pai tinha aquela corda. Até onde eu sabia, ele nunca a havia usado. Agora ela teria uma utilidade.
Saí da garagem levando a corda.
Simpson começou a correr. Hass estava bem atrás dele. Ele pulou em cima de Simpson e o derrubou no chão. Virou-lhe o corpo e começou a dar socos na cara dele. Eu corri até eles e bati forte com a ponta da corda no rosto de Hass. Ele parou com os socos. Olhou para mim.
– Seu filho da puta, eu vou te dar uma surra!
– Como juiz, meu veredicto foi que esse homem seria enforcado. E assim será! SOLTEM O PRISIONEIRO!
– Seu filho da puta, vou te dar uma surra daquelas!
– Primeiro, vamos enforcar o prisioneiro! Depois você e eu resolveremos nossas desavenças.
– Resolveremos mesmo – disse Hass.
– Levante-se, prisioneiro! – eu disse.
Hass se moveu rapidamente e Simpson se ergueu. Seu nariz estava sangrando e havia manchado a parte da frente de sua camiseta. Seu sangue era de um vermelho muito vivo. Mas Simpson parecia resignado. Não estava mais chorando. Seus olhos, porém, revelavam traços de pavor, algo terrível de se ver.
– Me dê um cigarro – eu disse para Morgan.
Ele pôs um na minha boca.
– Acenda – eu disse.
Morgan acendeu o cigarro e eu dei uma tragada, então, segurando o cigarro entre meus lábios, exalei a fumaça pelo nariz enquanto fazia um laço na ponta da corda.
– Levem o prisioneiro para a varanda! – ordenei.
Havia uma varanda nos fundos da casa. Sobre a varanda, havia uma saliência. Lancei a corda sobre uma trave, e então puxei o laço para baixo, em frente à cabeça de Simpson. Eu não queria mais ir adiante com aquilo. Achava que Simpson já havia sofrido o suficiente, mas eu era o líder e ia ter que brigar com Hass depois, assim não podia demonstrar nenhum sinal de fraqueza.
– Talvez a gente não devesse fazer isso – disse Morgan.
– O homem é culpado! – gritei.
– Isso mesmo! – gritou Hass. – Ele deve ser enforcado!
– Olhem, ele se mijou todo – disse Morgan.
De fato, havia uma mancha escura na parte da frente das calças de Simpson, e ela estava aumentando.
– Covarde – eu disse.
Coloquei o laço sobre a cabeça de Simpson. Dei um puxão na corda e levantei Simpson até a ponta dos seus pés. Então, peguei a outra ponta da corda e amarrei numa torneira no lado da casa. Dei um nó bem apertado na corda e gritei:
– Vamos dar o fora daqui!
Olhamos para Simpson, que se equilibrava na ponta dos pés. Ele estava girando um pouco, devagar, parecia já estar morto.
Comecei a correr. Morgan e Hass correram também. Corremos até a calçada e então Morgan e Hass foram embora, cada um para a sua casa. Dei-me conta de que eu não tinha para onde ir. Hass, eu pensei, ou você se esqueceu da briga ou não queria brigar.
Fiquei parado na calçada por alguns instantes, então corri de volta ao pátio. Simpson ainda estava girando. Um pouco, devagar. Tínhamos esquecido de amarrar suas mãos. Ele estava com as mãos erguidas, tentando aliviar a pressão em seu pescoço, mas não estava conseguindo. Corri até a torneira, desatei a corda e a soltei. Simpson bateu na varanda, depois tropeçou e caiu no gramado.
Ele estava de bruços. Virei seu corpo e tirei a mordaça. Ele estava mal. Tinha o aspecto de quem poderia morrer a qualquer momento. Me debrucei sobre ele.
– Ouça bem, seu filho da puta, não morra, eu não queria te matar, de verdade. Se você morrer, vai ser triste. Mas se não morrer e contar isso para alguém, aí você não me escapa. Entendeu?
Simpson não respondeu. Apenas me olhou. Ele estava péssimo. Seu rosto estava roxo e ele tinha marcas de corda no pescoço.
Eu me levantei. Olhei-o por alguns instantes. Ele não se movia. A coisa estava feia. Fiquei tonto. Depois me recompus. Respirei fundo e caminhei até a calçada. Era cerca de quatro da tarde. Comecei a caminhar. Caminhei até a avenida e segui caminhando. Eu estava pensativo. Sentia que minha vida tinha se acabado. Simpson sempre gostara de andar sozinho. Talvez fosse solitário. Nunca se misturava com a gente ou com os outros garotos. Ele era estranho nesse sentido. Talvez fosse isso o que nos incomodava nele. Mesmo assim, ele tinha algo de bom. Eu sentia que havia feito algo muito ruim e, ao mesmo tempo, sentia que não. Na maior parte do tempo eu tinha um sentimento vago, que se centrava no meu estômago. Caminhei e caminhei. Caminhei até a autoestrada e voltei. Meus sapatos machucavam muito meus pés. Meus pais sempre me compravam sapatos vagabundos. Pareciam bons por mais ou menos uma semana, então o couro rachava e as unhas começavam a atravessar a sola. Eu segui caminhando mesmo assim.
Quando voltei para casa já era quase noite. Caminhei vagarosamente pela calçada em direção ao quintal. Simpson não estava lá. Nem a corda. Talvez ele estivesse morto. Talvez ele estivesse em outro lugar. Olhei em volta.
Vi o rosto do meu pai pela porta de tela.
– Venha aqui – ele falou.
Subi as escadas da varanda e passei por ele.
– A sua mãe ainda não chegou. Melhor assim. Vá para o quarto. Quero ter uma conversinha com você.
Avancei até o quarto, sentei na cama e olhei para os meus sapatos vagabundos. Meu pai era um homem grande, mais de um metro e oitenta de altura. Ele tinha uma cabeça grande e olhos que pareciam pendurados sob suas sobrancelhas bagunçadas. Tinha lábios grossos e orelhas grandes. Era másculo sem precisar fazer esforço algum.
– Por onde você andava? – ele perguntou.
– Por aí, caminhando.
– Caminhando? Por quê?
– Gosto de caminhar.
– Desde quando?
– Desde hoje.
Fez-se um longo silêncio. Então ele falou de novo.
– O que aconteceu no nosso quintal hoje à tarde?
– Ele está morto?
– Quem?
– Eu disse pra ele não contar. Se ele contou, é porque não está morto.
– Não, ele não está morto. E os pais dele iam chamar a polícia. Tive que conversar um longo tempo com eles para convencê-los a não fazer isso. Se eles tivessem chamado a polícia, sua mãe teria ficado arrasada! Está entendendo?
Não respondi.
– Sua mãe teria ficado arrasada! Você entende isso?
Não respondi.
– Tive que pagar para que ficassem calados. E, além disso, vou ter que pagar as despesas médicas. Você vai levar a surra da sua vida! Eu vou te dar um corretivo! Não vou criar um filho incapaz de viver em sociedade!
Ele ficou de pé junto à porta, parado. Eu olhei para os seus olhos debaixo daquelas sobrancelhas, para aquele corpo enorme.
– Chame a polícia – eu disse. – Não quero você. Prefiro a polícia.
Ele se aproximou de mim devagar.
– A polícia não entende gente como você.
Levantei da cama e cerrei os pulsos.
– Vamos lá – eu disse –, vou lutar com você!
Com um rápido movimento ele estava em cima de mim. Foi como se um raio de luz me cegasse, uma pancada tão forte que nem cheguei a sentir. Eu estava no chão. Levantei-me.
– É melhor você me matar – eu disse –, porque, quando eu crescer, vou matar você!
A pancada que veio a seguir me arrastou para baixo da cama. Parecia um bom lugar para estar. Olhei para as molas. Eu nunca tinha visto nada mais agradável e maravilhoso que aquelas molas acima de mim. Então eu ri. Foi um riso apavorado, mas eu ri, e ri porque me veio o pensamento de que talvez o Simpson tivesse de fato comido uma garota debaixo da minha casa.
– De que diabos você está rindo? – gritou meu pai. – Você é mesmo o filho do Diabo, você não é meu filho!
Vi sua enorme mão tatear por baixo da cama, procurando por mim. Quando se aproximou, agarrei a sua mão com as minhas e a mordi com toda a força. Ouvi um gemido feroz e a mão se recolheu. Senti o gosto de sangue e carne em minha boca, cuspi fora. Então eu soube que, apesar de Simpson estar vivo, eu poderia estar morto dentro de poucos instantes.
– Muito bem – ouvi meu pai dizer em voz baixa –, agora você pediu e, por Deus, você vai levar.
Eu esperei. E, enquanto esperava, ouvia apenas alguns sons estranhos. Ouvia os pássaros, o som dos carros que passavam, ouvia até mesmo o som do meu coração batendo forte, o som do sangue correndo em minhas veias. Eu ouvia a respiração do meu pai, e me arrastei até a parte do meio da cama e esperei pelo que viria em seguida.
– Septuagenarian Stew

A quinta série era um pouco melhor. Os outros estudantes pareciam menos hostis, e eu crescia fisicamente. Ainda não era escolhido para os times da escola, mas já não sofria ameaças frequentes. David e seu violino tinham partido. Sua família se mudara. Agora eu caminhava sozinho para casa. Muitas vezes, um ou dois caras me seguiam, dentre os quais Juan era o pior, mas não chegavam a me fazer nada. Juan fumava cigarros. Caminhava atrás de mim fumando um cigarro e sempre tinha consigo um parceiro diferente. Jamais me seguia sozinho. Isso me assustava. Queria que eles sumissem. Contudo, por outro lado, eu não dava muita bola. Não gostava de Juan. Não gostava de ninguém naquela escola. Creio que eles sabiam disso. Devia ser por isso que não simpatizavam comigo. Não gostava do jeito que eles caminhavam, de sua aparência, do modo como falavam, mas também não gostava dessas coisas em meu pai e minha mãe. Continuava com a sensação de estar cercado por um grande espaço em branco, um vazio. Havia sempre uma sombra de náusea em meu estômago. Juan tinha a pele morena e usava uma corrente de metal em vez de cinto. As garotas tinham medo dele, assim como os rapazes. Ele e um dos seus capangas me seguiam quase todos os dias. Eu entrava em casa, e eles ficavam parados lá fora. Juan fumaria seu cigarro, bancando o durão, e seu parceiro ficaria ali parado. Eu os observava através das cortinas. Finalmente, depois de um tempo, eles acabavam partindo.
A sra. Fretag era nossa professora de Inglês. No primeiro dia de aula ela perguntou o nome de cada um de nós.
– Quero conhecer cada um de vocês – ela disse.
Sorriu.
– Bem, cada um de vocês tem um pai, estou certa. Penso que seria interessante se descobríssemos o que eles fazem para viver. Começaremos pelo primeiro da fila e iremos adiante, até que todos na sala tenham falado. E então, Marie, o que seu pai faz da vida?
– Ele é jardineiro.
– Ah, mas que legal! Carteira número dois... Andrew, o que seu pai faz?
Foi terrível. Os pais de todos os meus colegas das redondezas tinham perdido seus empregos. Meu pai havia perdido o emprego. O pai de Gene ficava o dia inteiro sentado na varanda. Todos estavam desempregados com exceção do pai de Chuck, que trabalhava num matadouro. Ele dirigia o carro que entregava as carnes, um carro vermelho com o nome do matadouro gravado nos lados.
– Meu pai é bombeiro – disse o número dois.
– Ah, isso é interessante – disse a sra. Fretag. – Carteira número três.
– Meu pai é advogado.
– Carteira quatro.
– Meu pai é... policial...
O que eu iria dizer? Talvez apenas os pais da minha vizinhança estivessem sem emprego. Tinha ouvido falar do crack da bolsa. Significava algo ruim. Talvez o mercado só tivesse entrado em colapso na nossa vizinhança.
– Carteira dezoito.
– Meu pai é ator de cinema...
– Dezenove...
– Meu pai toca violino em concertos...
– Vinte...
– Meu pai trabalha num circo...
– Vinte e um...
– Meu pai é motorista de ônibus...
– Vinte e dois...
– Meu pai é cantor de ópera...
– Vinte e três...
Vinte e três. Era eu.
– Meu pai é dentista – eu disse.
A sra Fretag prosseguiu até que chegou no número 33.
– Meu pai não tem emprego – disse o número 33.
Merda, pensei, queria ter pensado nisso.
Um dia, a sra. Fretag nos passou uma tarefa.
– Nosso ilustríssimo senhor presidente, Herbert Hoover, virá visitar Los Angeles no sábado e fará um discurso. Quero que todos vocês vão até lá ouvir o nosso presidente. E quero que escrevam um ensaio sobre a experiência e sobre o que vocês acharam do discurso do presidente Hoover.
Sábado? Não havia a mínima chance de que eu pudesse ir. Era dia de cortar a grama. Eu tinha que cuidar dos fiapinhos. (Eu nunca conseguia eliminá-los por completo.) Praticamente todos os sábados eu apanhava com o amolador de navalha porque meu pai encontrava um fiapo. (Também apanhava durante a semana, uma ou duas vezes, por outras coisas que eu deixava de fazer ou não fazia corretamente.) Não tinha como dizer a meu pai que eu iria assistir ao presidente Hoover.
Assim, não fui. No dia seguinte, peguei um jornal dominical e me sentei para escrever sobre a aparição do presidente. Seu carro aberto, abrindo caminho entre as bandeiras tremulantes, tinha entrado no estádio de futebol. Um carro, cheio de agentes do serviço secreto, lhe abria caminho, enquanto outros dois seguiam o carro presidencial de perto. Os agentes eram homens de coragem, armados para proteger nosso presidente. A multidão se levantou quando o carro presidencial entrou na arena. Nunca acontecera anteriormente nada parecido. Era o presidente. Era ele. Acenou. Nós aplaudimos. Uma banda começou a tocar. Gaivotas sobrevoavam em círculos, como se soubessem que se tratava do presidente. E havia ainda aviões que escreviam mensagens de fumaça no céu. Escreviam no ar frases como: “A prosperidade está logo ali na esquina”. O presidente se pôs de pé em seu carro, e, assim que ele fez esse movimento, as nuvens se afastaram e os raios de sol incidiram diretamente em seu rosto. Era quase como se Deus também soubesse quem ele era. Então os carros pararam, e nosso grande presidente, rodeado pelos agentes do serviço secreto, caminhou até o palanque. Ao se posicionar junto ao microfone, um pássaro desceu do céu e pousou sobre a bancada em que estava o microfone. O presidente acenou para o pássaro e riu e todos nós rimos com ele. Então ele começou a falar, e as pessoas passaram a ouvi-lo com atenção. Eu quase não conseguia ouvir o discurso porque estava sentado muito próximo a uma máquina de pipocas que fazia muito barulho estourando os grãos, mas creio ter escutado ele falar que os problemas na Manchúria não eram muito sérios e que aqui no país as coisas logo entrariam nos eixos, que não devíamos nos preocupar, tudo o que precisávamos fazer era acreditar na América. Haveria empregos para todo mundo. Haveria bastantes dentistas e dentes suficientes para arrancar, bastantes incêndios e bombeiros bastantes para apagá-los. As fábricas e as indústrias reabririam. Nossos amigos na África do Sul pagariam suas dívidas. Logo todos dormiríamos tranquilamente, com os estômagos cheios e os corações pacificados. Deus e nosso grande país nos envolveriam em seu amor, nos protegendo do mal, dos socialistas, nos despertando de nosso pesadelo nacional, para sempre...
O presidente ouviu os aplausos, acenou, então voltou para o carro, entrou e partiu seguido pelos carros apinhados de agentes do serviço secreto enquanto o sol mergulhava no horizonte e o entardecer se fazia noite, vermelho, dourado e maravilhoso. Havíamos visto e ouvido o presidente Herbert Hoover.
Entreguei meu ensaio na segunda-feira. Na terça, a sra. Fretag se dirigiu à classe:
– Li os ensaios de todos vocês sobre a visita do nosso ilustríssimo presidente a Los Angeles. Eu estava lá. Alguns de vocês, pelo que pude notar, não puderam comparecer ao evento por uma ou outra razão. Para aqueles entre vocês que não puderam estar lá, gostaria de ler o ensaio escrito por Henry Chinaski.
Um terrível silêncio se abateu sobre a turma. Eu era de longe o aluno mais impopular da classe. Era como se todos eles tivessem levado uma facada no coração.
– Este é um texto muito criativo – disse a sra. Fretag e começou a ler meu ensaio.
As palavras me soavam bem. Todos escutavam. Minhas palavras enchiam a sala, corriam de um lado a outro pelo quadro-negro, ricocheteavam no teto e cobriam os sapatos da sra. Fretag, se amontoando no chão. Algumas das garotas mais lindas da classe começaram a me lançar olhares furtivos. Os caras durões estavam putos da cara. Seus ensaios não valiam merda nenhuma. Eu bebia de minhas próprias palavras como se fosse um homem sedento. Comecei, inclusive, a acreditar que elas representassem a verdade. Vi Juan sentado ali como se eu lhe tivesse esmurrado a cara. Estiquei minhas pernas e me recostei na cadeira. Logo, porém, estava tudo terminado.
– Com essa grande redação – disse a sra. Fretag –, encerro a aula...
Todos se levantaram e começaram a guardar seus materiais.
– Você não, Henry.
Sentei-me na cadeira, e a sra. Fretag ficou ali, me encarando. Então disse:
– Henry, você estava lá?
Tentei encontrar uma resposta. Nada me ocorreu. Eu disse:
– Não, eu não estava lá.
Ela sorriu.
– Isso faz com que seu ensaio seja ainda mais notável.
– Sim, madame...
– Você já pode ir, Henry.
Levantei-me e deixei a sala. Fui para casa. Então era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas. Seria fácil para mim. Olhei em volta. Juan e seu comparsa não estavam me seguindo. As coisas estavam melhorando.
– Misto-quente
Ele disse que era uma mancha de esperma, esperma ainda vivo.
Esperma?
A mancha azul, ao meio do quadro, no chão, entre aqueles corpos grandes das mulheres.
Que era esperma?
Disse que era esperma ainda vivo.
Disse que ele próprio tinha esperma nas mãos.
Havia esperma por toda a parte.
Terrível.
Sim, terrível.
Um dia agarrou-me na cabeça, passou os dedos pela minha boca e disse: tens esperma na boca.
Já não sabia que fazer, pois encontrava esperma entre as páginas dos livros, nos bolsos, nos cigarros.
Uma vez atirou fora os cigarros e gritou: porque está aqui esperma, nos cigarros?
Nem se pode fumar.
E depois como foi?
Parece que o esperma invadia tudo.
Descobri que ele não imaginava que o esperma era posto aqui e ali pelas pessoas.
O esperma aparecia simplesmente, existia uma força qualquer, uma extraordinária força corruptora, que atingia tudo.
Mas essa ideia não o repugnava e revoltava, unicamente.
Era, para além disso e mais fundo, uma alegria dolorosa, como se o espírito fosse por fim vencido, na sua orgulhosa pureza, pela carne, pelo sangue, pelas fezes, as unhas, os pêlos, o suor, o odor áspero e invencível do corpo, pelo movimento e acção do corpo, pelo esperma, por tudo aquilo que.
Certo angelismo.
Entendes?
Seria isso?
Ele disse-me que estava impotente, mas que eu poderia salvá-lo.
Terrível.
Sim, é claro que era terrível.
Pediu que eu me despisse, para ver o meu corpo que já não via desde a infância, quando tomávamos banho juntos.
Que éramos irmãos, disse eu.
Fui estúpida.
E despiste-te?
Sim, acabei por me despir, mas já era tarde.
Eu estava nua, num canto do quarto, completamente constrangida, sem saber os gestos, se havia de sorrir, dizer qualquer coisa.
Ele olhava-me friamente.
Com uma espécie de frio terror.
E disse-me: tens o corpo todo sujo de esperma.


Ela diz odeio viagens.
Descia-se da camioneta e começava o ritual, as pessoas negras abanando devagar as cabeças e a saberem demais sobre o que ia acontecer.
Eu não.
Ele diz viajava sempre, todos os meses, todas as semanas.
Ao princípio era pelos corredores, durante o dia inteiro.
Eu sabia tudo acerca de corredores.
Então ela diz atravessava um jardim, doce jardim, atravessava uma casa, doce casa, que tinha cortinas no lugar de portas, e via o quintal surpreendido, cheio de flores, florinhas.
Eu entrava em crença, à falta de indícios do mal.
Mais tarde começou o período das escadas diz ele, eu ainda não conhecia as pessoas.
Não tinham cor.
Ensinaram-me aquilo.
Era uma grande paixão, tinha doze andares, e em cima ficava a torre toda envidraçada à volta.
Explicavam-me a cidade.
Eu estava apaixonado.
Diziam vê a cidade, e como as pessoas não tinham cor senão darem-me as escadas e a torre em cima, eu absorvia com a paixão aquela cidade: telhados, parques, caminhos-de-ferro, mar, colinas, e aquilo distante era uma fortaleza com um nome de santo.
De cada vez que eu acreditei diz ela então construí uma cadeira para me sentar, e veio o inesperado movimento bêbedo da mãe e partiu tudo.
Foi assim que construí muitas cadeiras e que perdi a esperança de me sentar.
Depois diz ele.
Depois diz ela vi-me no espelho.
Diz ele depois foi a época dos túneis.
Viajava por um túnel, e numa ponta havia a porta fechada, na outra a poeira quente.
Uma vez gritei.
Sabia o que era — medo, medo.
As pessoas não existiam.
Senti que tinha de procurar, tinha de viajar cada vez mais, e mais depressa.
Não se sabe se uma pessoa desaparecerá depressa do lugar, não se sabe mesmo se o lugar vai desaparecer.
Vi-me diz ela vi-me no espelho, com o meu corpo à superfície — e achava arriscado tê-lo assim.
Falo no imperfeito, porque elas deslizaram já, estas coisas, e o imperfeito é o bom tempo da narração.
Narrava-se.
Anoitecia-se.
Entravam-me pelo quarto.
Era por causa do corpo.
Andava de uma casa para outra, naquela cidade, é o que posso dizer.
À força de conhecer tanta gente, ganhei uma inteligência muito aguda — inteligia as pessoas.
Inteligia que elas nunca estavam lá.
Uma criança não fala sobre o conhecimento, a profundidade.
Ela pensa.
E pensa isto: são inferiores a mim, estas pessoas que estão e que não estão.
É preciso procurar mais.
Esta ideia devorava-me: havia o espaço todo e o tempo todo para percorrer.
Havia um dínamo.
Não julgues que aumento diz ela que aumento as coisas, o espaço que ocupam é mesmo a mais.
Aprendi a desistir de um modo ainda mais sóbrio, isento, que o sóbrio e isento modo masculino de desistir.
Nunca caí em tentação.
Bem, bem, bem.
Diz ele bem.
Depois diz era no que eu caía sempre.
Caía em toda a espécie de tentações, porque eu era um espião.
Estava a espiar os lugares para ver se apareciam as pessoas, espiava as pessoas, alguma coisa poderia passar-me desapercebida.
Estava louco de atenção.
Tinha medo da minha inteligência.
Ela exercia-se apaixonadamente no vácuo.
Dei passeios, fui ver a levada, era uma água completamente branca onde as pessoas iam contrastar.
Gostei.
Também havia o poço dos afogados, mas era escuro, sobrecarregado de historiazinhas de coração.
O jardim estúpido funcionava.
Em casa agitava-se a mãe.
Agitou-se.
Foi um ser com barulho interior.
Mexeu-se demais.
Mexeu demais: nos telefones, nas revistas, na solidão dos outros.
Olha: começaram a dar-me nomes, esperavam coisas de mim, mas eu só pensava nisto: aniquilar-me na impossível decifração do grande espaço desabitado.
Aprendera a viajar tão furiosamente que só podia desejar disse ele desejar morrer.
Sabes como é a morte de uma criança cheia da ira do conhecimento?
Sabes perguntou ele como é o desejo de morte de uma criança que principiou pela ciência dos corredores, e depois caminhou por aí fora, passando pela visão alta de uma cidade, e andando de pessoas para pessoas, a saber cada vez mais, até ao vazio sabes? perguntou.
Tinha também um ferro esquisito para arranjar o cabelo, a mãe.
Punha o ferro na lenha em brasa e ficava a olhar.
Depois cuspia em cima do ferro, e quando já havia sinais de tudo arder ficava extremamente alegre e ia a correr para o espelho enrolar o cabelo sexual.
Decerto, decerto murmurou ele, havia as irmãs.
Eu descobrira essa coisa espantosa da menstruação, via panos sujos de sangue, havia o odor da menstruação, o segredo.
Vi as irmãs nuas.
Como é possível saber tantas coisas?
Mas ninguém estava próximo.
E é assim: saber coisas é ficar só, sobretudo se se não sabe a idade, que é um conhecimento demasiado tardio, e é o que traz a paz.
Apenas a ciência dos cem anos é que tem em si a paz.
Quando se é criança, não se tem cem anos.
Tu existias por longe das pessoas diz ela, mas nunca percebi bem.
Parece que te viram passar no baldio.
Nunca foste para o lado da levada, mas não te pergunto agora porquê.
Eu era uma pessoa negra sim diz ele, mas era outra a treva, e o que eu sabia era outra coisa, e não abanava a cabeça devagar.
Talvez pensasse em ti, pensaria se estivesse mais livre e não houvesse tantas escadas, tantas mudanças de coisa nenhuma para coisa nenhuma.
Fui ao baldio disse ela.
Fui a toda a parte, a ver se havia saída, mas não.
O baldio tinha as amoras silvestres, e havia umas hastes duras que eu enterrava nas amoras, devagar, como se a haste estivesse a fazer amor com as amoras.
Eu tinha a febre de enterrar hastes em amoras e amoras em hastes, e era uma febre quente como não podes supor.
Ele disse só pensava em ir para a cama com as minhas irmãs.
Dia a dia, acrescentava-se a minha ciência.
Examinava a roupa interior delas, as calças, os panos da menstruação.
Punha-me a ouvi-las urinar.
Uma mulher a urinar.
Às vezes as lágrimas desciam-me dos olhos para a boca, e era o gosto exaltante das lágrimas.
Masturbava-me muito depressa, porque era preciso encher o espaço, encontrar alguém, morrer depressa.
Mas nunca te encontrei, a ti.
Daquela terra percebo eu disse ela, tinha um castelo podre, o céu era íngreme, as casas lisas, é tudo muito bonito, tenho o filme disso.
Tu existias no quarto interior, pegado ao meu, mas eu não te via, e a culpa era tua.
À tua volta estavam as coisas, mas não se pode entrar no lugar delas.
E à volta das coisas estavas tu com o teu delírio: nunca chamaste por mim.
Detestava-te.
Sabia porquê.
Sabia que havias de ir para uma cidade distante.
Sabes, olhei tanto tempo para o relógio, que nem sequer estava certo, e pensei: deixo o tempo passar disse ela.
Eu não via nada, nem ouvia, nem falava disse ele, estava ocupado naquela profundidade vazia de saber tantas coisas ao mesmo tempo.
O meu ofício era aquele grande erro que se tinham esquecido de não pôr lá.
Preparava-me ferozmente para a distracção.
Era preciso ser forte disse ele, e isto quer dizer passar depressa.
Eu já nem olhava, pois sabia que não estava ninguém.
Só havia uma coisa: andar, encher o espaço, mexer as mãos e os pés como se isso fosse respiração.
Não havia quartos ao lado.
E ela disse escondi garrafas.
Nunca cortei com elas os pulsos, para espantá-los.
Soube sempre que ninguém era espantável naquela região.
Parece que nas ilhas, por exemplo, já se não passa assim: se acredita no espanto e se pode correr riscos.
Podia dizer-te mais e mais, mas eras capaz de te assustares.
Ele perguntou medo?
Só tenho o meu disse, o meu terror.
Estou sempre ocupado nisso: chegar ao pé de portas, sair de túneis para o meio da poeira, espreitar para os enigmas, andar depressa pelos labirintos, estudar topografias.
Sim tenho disse ele o amor dos mapas.
Parecem reais.
Foi ali fixada qualquer coisa extremamente móvel, fugidia, inexistente: os lugares, e as pessoas nos lugares, mas isso nem nos mapas vem.
Talvez fosse bom parar, mas talvez eu já não saiba.
Não me lembro de ter estado imóvel.
É por causa do medo: é imóvel.
Amo-te disse ela, chamei-te.
Sim, sim, amo-te, talvez eu tivesse querido ouvir, já não sei, talvez eu queira saber foi o que ele disse, sim.
(Eles estavam deitados, e isto pode perceber-se, pode perceber-se tudo.
Pode perceber-se que ela lhe desabotoou a camisa e esfregou o rosto e a boca no peito dele, e esteve assim muito tempo, e nenhum deles falava.
E ela despiu-o, e depois despiu-se, e esfregou de novo a cara e a boca pelo corpo dele, e encostou o rosto ao sexo dele, e sentia-se só no meio das trevas.
Estava cega.
Beijou-lhe o sexo devagar, e a boca tremia, queria desaparecer, morrer, ou queria amar aquele homem como se isso fosse poder amar de repente o mundo todo, parar, parar.
E apertou entre os lábios o pénis, devorou-o lentamente, enchendo a boca com aquela coisa quente e viva, e isso dava-lhe um sombrio e doce desejo de dormir.
E então ficou imóvel, somente a boca tremia, e isso quase que podia ter um nome: paz.
Que eu seja humilhada pensou ela, humilhada.
E fechou os olhos e abriu-os: a treva, sempre.
Então ergueu a cabeça, subiu na cama até junto ao rosto dele e disse-lhe ao ouvido puta, chama-me puta.
E ele disse puta.
E ela voltou-se e pôs-se de joelhos na cama, dobrada, e disse mete no cu.
E, se fechavam ou abriam os olhos, era a treva.
Para ambos e para sempre.
Amavam o terror, um no outro, cada um o seu terror no outro.
Talvez pudessem morrer.)


Num país estrangeiro, ao norte, cercados pela noite onde a neve palpita friamente.
O ruído chega ao quarto como um vapor ligeiro, indistintamente iluminado.
Falando baixo, enquanto a neve desliza pela janela e um comboio passa, brutal.
Isto ao mesmo tempo que a noite, a neve e o rumor.
E a conversa interrompe-se, tendo ficado pelo meio uma qualquer palavra, com sentido, essa também, porque todas as palavras eram animadas de uma inspiração capital.
Era tudo terrivelmente importante.
Tudo é importante, enquanto a noite cria o seu labirinto e o quarto se desloca para o coração do labirinto.
Estamos inclinados um para o outro, por dentro, e eu sinto uma vertigem leve, como se soubesse que o chão poderia não ser completamente seguro, e o abismo sempre prometido se fosse revelar.
O amado e temível abismo.
Estamos a pensar nos enigmas.
Na cidade, em nós, em todas as leis.
Naquela anarquia que a nossa força e fraqueza introduziram na ordem, para que se possam criar as novas leis — as outras.
Pensamos nos enigmas, e falamos como de outra coisa, fazendo alguns gestos que parecem possuir apenas a intenção prática, a deslocada intenção, agora que se supõe não haver nenhum acto prático a realizar.
Num país estrangeiro, ao norte.
Colocados rigorosamente nesta situação definitiva de duas pessoas com a carga de uma equação.
Ela diz que eu pareço um morto.
Pareces um morto, diz.
E sorri com uma hostilidade distraída.
Encosto-me à parede, erguendo o corpo sobre os lençóis frios.
Peço um cigarro.
E ela estende-me um, aceso.
Merda.
Pareces um morto.
Um decapitado.
Estou atento e nada se perde: decapitado.
Decapitado?
Sim, diz ela, decapitado e descolhoado.
Sem colhões?
Isso: sem tesão, sem força.
Morto.
E sorria sempre, enquanto eu fumava encostado à parede, sobre os lençóis húmidos.
Ela sentara-se no chão com a cabeça debruçada para a cama, por altura dos meus joelhos.
Perguntei: como é?
Sou uma espécie de puta, eu, e não tenho medo, murmurou levemente.
E a frase quase se perdia no rumor, na luz, na noite, na neve, no estrangeiro.
Eu tinha toda a atenção, e a frase foi essa, essa coisa tremenda e quase errada, quase certa.
Contudo, ela não se prostituíra, não, nem eu tinha medo.
E no entanto eu parara, como morto, e alguém, antes da subversão das leis, poderia dizer que ela se prostituíra.
Não é assim.
Inclinei-me mais, e rocei a mão onde tinha o cigarro pela sua cabeça muito viva.
O fumo descia, subia, metia-se-lhe nos cabelos, e eu estremeci, porque de repente aquilo era belo, embora nós talvez estivéssemos perdidos.
Ouve: eu tinha a mão na tua cabeça, e o fumo do cigarro confundia-se com os cabelos.
Não, não chega.
Havia na sua voz uma espécie de maligna exaltação, porque lhe parecera porventura que eu procurava uma fuga.
Ouve: há uma estranha beleza em tudo isto.
E ela então levantou-se, vestiu o velho casaco grosso e saiu, sem me olhar, sem dizer nada.
Eu estava encostado à parede, fumando ainda, e olhava o fogão de granito preto, vazio e retórico.
Ela tinha saído para a cidade, caminhava pela névoa.
Embebia-se da fria luz do norte, sob a qual os cabelos se tornam húmidos e brilhantes.
Vi o quarto horizontalmente, ao clarão geladíssimo da lâmpada.
Malas, roupas, a mesa com bâtons, pontas de cigarro, um frasco de compota vazio, um livro velho.
Estes quartos forrados de papel.
Via o quarto a direito, sob a luz áspera.
Estou num país, estou só.
Desejava pensar bastante nisto.
Completamente só, com alguma fome acumulada, uma certa angústia para definir uma posição pessoal perante não sei que enigmas, que movimentos do tempo.
Só, até que ela voltasse.
Às vezes um de nós saía, andava misteriosamente pela cidade e voltava com cigarros, pão, queijo, café.
Partilhávamos do que um e outro conseguíamos apanhar.
Havia um silêncio quente e aéreo em volta dos cigarros e do café.
Bebíamos, fumávamos.
Uma noite embebedámo-nos com cerveja.
Pusemo-nos em frente do espelho, inteiramente nus, abraçados, e eu perguntei:
O que nos vai acontecer?
E quando ela entrava com a cara vermelha do frio e o ar delicadamente enigmático de quem vinha do meio das noites, de uma zona indevassável, e fora apanhada de repente pelas luzes fortes.
Sorria, tinha segredos.
Dispunha sobre a mesa o que trazia.
A cidade fecha-se, confunde as pistas, lança neve sobre as pegadas — para que fiquemos isolados.
Tudo contra as virtudes do homem: armadilhas, caminhos, muros, luzes ferozes, e o idioma, a base idiomática da emoção e do pensamento.
Eis um homem e uma mulher, e tremem: estão providos de forças, lutam contra a memória, e têm outra memória.
Eles lutam, e vejam: é um sentido, uma medida, uma arma, uma virtude.
Isto é no norte.
Quer dizer: o homem e a mulher são extremos, despiram muitos vestidos, são implacáveis.
E, dentro da sua justa ferocidade, em frente do norte ascético, possuem uma doçura essencial.
Estão acordados.
Há muitas coisas por cima da cabeça deles.
Vejamos: fome?
Sim.
E cansaço?
Sim.
E doença e frio e medo?
Sim, sim.
E ela voltou mais tarde.
Escuta, disse eu, não tenho medo.
Trazia café e cigarros.
Vamos salvar isto, murmurei.
Mas ela sabia tudo.
Tomámos café, fechando as mãos em volta das chávenas quentes, para desentorpecer os dedos.
Se tivéssemos algum dinheiro, podíamo-nos embebedar.
Ela veio, com a sua maneira solitária e profunda de andar, e o seu movimento entre os objectos assumia uma dignidade extrema.
Então, tocou-me com a ponta dos dedos na cara, e os dedos escorregaram com uma subtileza incrível, passando pelos meus lábios.
Depois a mão caiu e fechou-se.
Escreve o teu livro.
Mas qual era o meu livro?
Para que escreveria eu um livro?
Salva tudo isto.
E a mão estava fechada contra a coxa, fortemente.
Saio, não é?, e aparece sempre algum dinheiro.
Tens a certeza de que eu o não arranjo indo para a cama com homens?
E tu sais, e como arranjas algum dinheiro, às vezes?
Não, não tinha importância.
O assunto era este: para quê?
Decerto: para a gente se livrar de tudo, ser cada vez mais rigorosa com as coisas, salvar aquela fonte cujo sussurro se perde entre todas as vozes.
Não te quero ver morto, não quero morrer, oh não.
Escuta, disse eu, não tenho medo.
Não te impacientes.
Foi a última vez que me decapitaram.
Mas eu abaixo-me sempre, e apanho a cabeça que rolou pelo chão.
Coloco-a, cheia de sangue, sobre os ombros.
É um livro?
Ela girou de novo pelo quarto, lenta, densa, e estava na ponta do quarto, junto ao fogão.
Entre nós, a mesa desordenada, as malas, as chávenas sujas.
Percebes?, perguntou, percebes isto?
Não é um livro.
É um acto onde já nada se disperse, e onde tudo esteja contido com rigor.
Aquela beleza na minha cabeça, percebes?
Não é assim, não.
Há uma forma para as coisas, não uma forma para cada coisa, mas uma forma una e pura de todas elas.
Uma única forma.
Devemos estar completamente juntos, percebes?
E nada mais tem importância.
Não estou morto.
Não, tu respiras.
É preciso atenção.
Quando a cidade for pelos ares.
Eu sei, disse eu, nunca mais morreremos.
Depois, ela começou a despir-se, e eu também, e quando estávamos ambos nus fomos para diante do espelho.
Estamos nus, percebes?
E, apesar de eu ser um homem cansado, apesar da minha memória e solidão, disse que percebia.
E percebia.
A luz vinha pelas nossas costas e, no espelho, parecia que os nossos corpos saltavam para diante, como tremendos anjos brancos, cheios de uma violenta anunciação.
Lá atrás, junto à janela, escorregava a neve, e havia ainda a noite, e todas as coisas difíceis.
Os nossos corpos saltavam na luz.
Éramos fortes como o diabo.
Merda, disse ela, temos de salvar tudo.
Também éramos frágeis, no espelho, e tremíamos por causa da nossa força.
Como se fôssemos demasiado frágeis para a nossa força.
Escuta, disse eu, temos uma lei formidável.
Nós somos os anjos.
Ninguém mais sabia disto, porque eles estavam todos distraídos, com a noite deles, a neve e a cidade.
Se soubessem, matavam-nos.
E então a alegria, a nossa, irrompeu da maior profundidade, e os nossos corpos brilhavam terrivelmente no espelho.


Telefono à noite.
Expectativa confusa e sensível que as noites carregam de uma espécie de pendente anunciação ou insuportável subtileza.
A geografia nocturna dos telefones.
Ia por ali, quase com o vício de ganhar e perder lugares, rejeitando uma cabine em favor de nova hipótese, guiado pela cegueira pontilhada de pequeníssimas estrelas.
Breve intuição, momento de fulgor, uma imaginação gasosa.
Mas evoluí.
A idade, a idade interior, a interioridade — limpou-me da retórica.
E o meu estilo das cabines públicas tornou-se ático e centrípeto.
Talvez eu tenha encontrado o classicismo do meu próprio delírio.
O que digo verdadeiramente é que acabara por me fixar numa só cabine.
Era um telefone na esquina de duas avenidas, quase oculto por uma árvore e rodeado de uma grossa cintura de terra, onde floriam furiosamente ininteligíveis corolas: amarelas, brancas, vermelhas, lilases.
A cabine tinha as vantagens incomunicáveis a outrem, as minhas secretas.
E pequenas vantagens de pormenor, que direi:
Por exemplo:
À altura da minha cabeça faltava-lhe um vidro, e por ali, ao mesmo tempo que telefonava (ou antes, ou depois), ouvia o ruído difuso da cidade.
O rodar dos automóveis.
O barulho dos eléctricos.
Um barco que apitasse no porto.
O rangido das gruas trabalhando nos cais.
Um comboio que entrava ou saía de uma estação.
As telefonias.
A música de um bar cuja porta de repente se abria e logo fechava.
Os risos e as vozes humanas.
As pequenas canções humanas — fúteis, comoventes canções trauteadas por um grupo de duas ou três ou quatro pessoas que passavam.
E quando a cidade era atravessada por um desses espantosos silêncios que por vezes as varam como uma queimadura de gelo, eu inclinava a cabeça, afastava de mim o auscultador, e sentia tudo parado.
Não, a terra não se movia, nem a lua, se acaso estivesse lá em cima, nem as nuvens.
Estava tudo suspenso: era uma profunda, terrível ameaça.
Enlouqueceríamos, todos?
E as plantas, os animais, as coisas — tudo, tudo?
Então levantava-se a brisa ligeiríssima, as flores vibravam de leve, caía uma folha de árvore e raspava na cabine, rangiam algures uns sapatos e alguém falava não sei onde.
De novo os sons, os quentes embora distantes, embora alheios sons.
Mas não era essa a minha tarefa.
Tratava-se dos arredores dela, dos meus próprios subúrbios.
O estilo flutuante, a adolescência ambulatória ao longo da solidão.
E eu sei que as lateralidades arborizadas, floridas, sonoras, silenciosas — eram irrelevantes em volta da seca fatalidade dos telefonemas.
Desejava algo mais vasto e fundo, mais glorioso e impiedoso (conforme), nos seus resultados.
Um telefonema somente.
Aquele que iria ou não aparecer numa noite, num momento, no ocasional cruzamento de imperscrutáveis forças.
Isso — periclitante ordem nova no meio da confusão e acaso das linhas, dos poderes sonolentos, da matéria frágil e indecisa das coisas.
O resto era uma técnica: os telefonemas.
Mete-se uma moeda, sai uma pessoa.
A voz de uma pessoa, apenas?
Bem, teríamos de discutir acerca deste novo tema: as vozes.
Os sons calorosamente organizados para transportar a aflita, doce, inteligente, participadora matéria das pessoas.
Ou o contrário, isto é: outros adjectivos.
As pessoas.
A quem telefonava eu?
A ninguém, a um número.
Por detrás do número, de ninguém — deveria aparecer um dia alguém, segundo a própria base da aventura.
Não, eu não pedia.
Não se pode pedir.
Há regras para todas estas coisas.
E que pediria eu?
Tempo, gentileza, nome, conversa, amor?
Sejamos sensatos.
Não é possível meter uma moeda, ouvir uma voz, e dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor.
Seria ridículo.
Aliás, eu próprio me veria embaraçado, se a voz dissesse: peça.
Bem, não pedia.
Eu não pedia.
Não se pode dizer: dê-me tempo, nome, inteligência, amor.
Marcava um número ao acaso, com seis algarismos.
Esperava.
Uma voz.
As palavras iniciais não variavam muito.
Está?, quem fala?
Ou: sim.
Ou: alô.
Ou ainda: hum, hum.
E a minha habilidade era extremamente simples, e invariável.
Trocava a ordem de um algarismo ou substituía-o por outro, dentro do contexto do número.
83 46 26 era 83 26 46.
Qualquer coisa como isto.
Não, dizia a voz, aqui fala do 83 46 26.
Foi engano, desculpe.
Não tem importância.
E eu dizia: não?, acha que não tem importância?
Ah, como eu conhecia a zona ainda anódina desse jogo.
Claro que a voz perguntaria, estupefacta: como?
Se acha mesmo que não tem importância?
E a voz: merda.
Ou: é parvo.
Não me chateie, também diziam às vezes.
Ou então desligavam secamente.
Durante um momento, o som do telefone desligado zumbia no meu ouvido, e o velho abismo refazia-se em mim, calmamente tenebroso.
Pousava eu próprio o auscultador e, através dos vidros, as ruas e as praças abriam-se como um deserto, e o céu vazio coroava o silêncio de tudo.
Recomeçava os telefonemas.
Não te entregues ao acaso, dizia-me eu.
Mas eu não me entregava ao acaso.
Trabalhava para ele, isso sim, como humildemente se executa o erro e a emenda, quando se pensa na verdade, ou como em silêncio nos aplicamos na treva em favor da nossa pequena e possível luz futura.
E que podemos fazer nós, não é?, senão amarmos no nosso espírito a possibilidade do acaso?
Merece o acaso de um instante, incitava-me eu, merece-o.
E uma noite apareceu a voz.
Reconheci-a logo.
Reconheci-a naquela espécie de desastre que a atravessava, desde o mais breve som.
Era uma voz lenta e como que vazia, onde cada palavra vacilava, destacada por blocos de silêncio.
E era, no entanto, uma voz muito próxima.
Eu dela apenas sabia que atravessava a cidade, por um milagre espantoso, e que caminhava sobre o tempo, nascida de uma amarga sabedoria ou de um pudor doloroso.
Não sei o que dissemos.
Talvez tivéssemos falado de coisas muito simples, ou de alguma coisa sem sentido.
Não sei.
Estávamos muito próximos.
E era nos grandes silêncios, nas duas pontas do fio, sobretudo aí, com certeza, que se formava aquele novo e insólito calor.
Registei o número do telefone e, durante o resto da noite e todo o dia seguinte, ele foi para mim como que o milagre de uma combinação inédita, o sinal de uma ordem concreta por onde eu entrava no equilíbrio universal.
Quando chegou a noite, fui à cabine e liguei.
Durante muito tempo ouvi o sinal.
O som repetia-se, vindo dos confins da ausência.
Cinco, dez minutos — monotonamente o telefone tocava no outro lado, num quarto vazio que eu não sabia como era.
Um quarto que não existia.
E apercebi-me subitamente de que isso estava certo, embora fosse terrível.
E quando desliguei senti, através do vidro partido da cabine, que esse gelado silêncio trespassava o mundo e que tudo ficava suspenso sobre os abismos.
Hoje sei que os telefones não existem.
Bell, que os inventou, era um homem tão rudimentar que ignorava a realidade do que, em vergonhoso calão, chamamos — alma humana.
O silêncio está nas cidades.
A peste nasce do silêncio.
Os olhos luciferinos dos anjos.
Quero dizer: têm uma luz — possuem a qualidade veemente mas fria da espera, da promessa: sim?, da anunciação.
Penso nas estátuas brancas, com seus olhos desprovidos de pupilas.
Colocadas assim nas trevas, essas estátuas ressaltam com uma doçura dolorosa e intempestiva e parecem indicar outro tempo: a luz, ou a treva maior, aquela que nem somos capazes de presumir.
Deste modo é que ela surgira no pórtico, e havia os pequenos e fortes cornos que irrompiam ao cimo da testa, acompanhando com maligna e rápida subtileza o movimento da cabeleira.
Aérea, a cabeleira.
Existia ainda uma boca para todo o silêncio.
Porque se tratava de silêncio, evidentemente.
Era esse o tema — é esse o tema das aparições.
Além do longo vestido, o tema branco — que obliquamente se insinuava, como se insinuam os múltiplos planos — no tema das trevas.
Ah, sim: era o tema branco, e as mãos não traziam nenhum lírio pictórico, a haste comprida, a corola consagrada à alta e luminosa representação do angelismo.
Os braços caíam ao longo do vestido e as mãos estavam coladas às pernas.
Era quase um emblema ambíguo — sê-lo-ia, se o tempo houvesse parado antes, e eu apenas tivesse ali chegado como se chega à história antiga, ao facto de pedra: um monumento, uma capela, um túmulo, a casa do príncipe que criara a concentração dos seus mitos tumultuosos na matéria adormecida.
Porque andava, eu, andava de um lado para outro, na penumbra em que se erguia a sobreposição de cilindros, de diâmetro cada vez menor, conforme se levantava a vista até ao cimo — e no cimo, no último pequeno cilindro, estava um longo mastro nu, sem bandeira de cidade ou nação.
Era difícil pôr-se a imaginar o serviço de todos os pórticos abertos à roda de cada cilindro — não se esperasse, como seria possível, que em cada pórtico surgisse uma árvore assim direita, uma figura, aquela mensagem silenciosa e vibrante — coisa mineral, vegetal: o coração dos dias desabitados.
Uma diferente figura em cada pórtico, ou a proliferação, num momento inflacionista, de imagens todas iguais, como múltiplos avisos, múltiplos sinais da trepidação interior?
Por quantos lados ressuscita a vida enterrada?
É apenas para que se saiba: há muitos pórticos, e em cada pórtico tu próprio podes aparecer, para o primeiro passo em direcção ao teu lugar de trevas ou à cidade de Deus.
Mas ela era só uma e tinha para si um só pórtico, e ali estava, e a sua beleza contraditória e veloz acabava agora mesmo de ferir-me no que eu andava: porque eu andava de cá para lá, à frente do edifício.
Acorda-se, há um dia em que se acorda — e então a gente põe-se a andar.
Vai-se ser repentinamente surpreendido — não ainda pelo resultado do julgamento que decorre lá dentro, no tribunal sobreposto cilindricamente, não ainda isso — mas por aquilo, aquilo que vem antes: o anjo.
E o anjo olha-te como se olhasse o espaço prometido.
O amor do anjo cerca-te como um anel de prata em brasa, e então tu ficas fascinado pela fascinação que fizeste nascer no anjo.
Vês de novo as hastes curvas no cimo da testa, os cabelos alvoroçados de mulher, e os olhos abertos para o teu movimento de criatura que respira o seu pavor e o seu desejo, e a boca que não é para dizer.
Vês ainda as vestes claras que seriam para o vento, para a condição vital onde as desejarias: vestes brancas agitadas pelas ventanias dos lugares do mundo, onde se ri, e canta, e se fica sufocado pela grandeza exaltante dos júbilos, do júbilo.
Vês ainda as vestes disso, mas ali não: ali são brancas sim, mas imóveis, caídas, hieráticas — vês as mãos tombadas: mortas, mortas, mortas.
E então ficas parado — é quando começas a amar.
E pensava: que estou eu a amar?
E eu amava o amor dela, com os cornos em cima e o vestido branco em baixo, longo, e amava o meu amor pelo seu amor, e amava-a a ela, e a mim, e, mais do que a tudo quanto estava e era, àquilo que estaria e seria — não, não sabia como, nem em que tempo, nem onde.
Talvez tivesse sido muito antes — porque: o que é o tempo, e o lugar o que é?
Pergunto: o que é a realidade?
Amava, mergulhava nesta ciência nova — e vi.
Fala-me disso que é teu — poderia eu pedir à figura que agora avançava para mim, e ela estava a responder avançando dessa maneira, na sua fascinação, e ela poderia pedir-me: fala do que é teu, mas eu avançava para ela e não dizia: vou na minha fascinação, mas era isso — porque eu amava e estava a dizer no meu silêncio, e via.
Víamos.
É como se a gente soubesse tudo, quando o pavor, como uma seiva atormentada e fria, sobe e se espalha por cada ramificação da viva árvore interior.
Eu tremia, era um modo agora de conhecer o meu corpo — e ela, sim, ela incorria nessa ciência de conhecer o corpo, tremia: e o nosso amor estava a ser vermos o corpo tremendo, vendo cada um o seu corpo e o corpo do outro.
Depois ela ergueu os braços e estendeu-mos para eu ver que ela tremia, que tinha um corpo já ciente.
Possuíamos o medo de saber assim: porque tremes? — diria ela, e ficaria aterrorizada.
O anjo pressentira a minha noite, o chão negro de onde brotava a vida, e sabia como isso seria mortal.
E, se eu pudesse gritar, gritaria: porque eu também lhe estendera as minhas mãos — amávamo-nos, amávamo-nos — e eu sabia o ser que amava e por quem era amado: a minha própria noite.
Que se amem, e se apavorem um do outro — disse ele, o que deixara tudo acontecer e agora aparecia a um pórtico superior, lá no alto, junto do mastro vazio.
Temem a loucura um do outro — disse ele — e é isso que se amam.
Depressa, depressa.
Era um crime.
Os anjos não tocam violino.

Vem das estampas de ouro, o sono encurva-lhe os cabelos, fica branca de andar encostada à noite, e respira, respira,

sim respira, como uma colina tão nua que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada, ou água cruel aberta

por ti, tubarão crepitando pelo índico, entre geladas barragens de sal em rama, com uma garra no ventre, uma síncope, um mergulho como uma flor

que se não chama negra, nem cujo nome pode ser dito assim: aquilo é a paixão,

mas que, tremendo, se pode pronunciar como beleza este espaço, crime esta paisagem, ou então: a lua dança

como um vestido bêbedo — ata lenços de um branco que desfaleça nos dedos, e atira fora esse ramo, e aí verás como é que eu me movo:

sim, eu respiro, estou direita, deixa-me passar — aqui vai uma ilha de pés descalços, aqui é um espelho caminhando como a voz por onde entram e saem imagens cambaleantes,

e tu chamas-te então: como eu vi o tempo, era uma maneira cega de haver junquilhos que giravam até se arrancarem dos terrenos nocturnos

e viverem como crianças ondulantes, esquecidas do seu texto, num exílio de espanto e beleza brusca, de fazer pensar, súbito, na morte prometida a todas as coisas

que se aproximam demasiado do nosso amor, e é então que tu dizes: há casas desabitadas, eu estou nessas casas

que tremem quando movo as mãos, a minha cabeleira palpita: é o sangue que sobe do coração apavorado e se faz dócil, quando o pente arrefece um a um os cabelos,

e então o meu nome é: pimenta, areia sentada, abertura da luz para onde saltam laranjas que pulsam,

ah, deixa-me passar, digo-te baixo como hoje me chamo e como nunca mais me chamarei: loucura,

loucura unida à rítmica matéria das coisas, e se abrires o teu sono, dessa vez única verás o que sou: uma figura

impelida pela vertigem, a inclinação do teu próprio conhecimento sobre a morte iluminada por todos os lados,

depois terei um só nome: revelação, até que os dias arquejantes me sufoquem e, no terror que te atravessa como água dolorosa,

eu seja a tua ilha a prumo, onde habitas, tu próprio uma ilha desabitada,

entre a lua como uma rosa infrene e os peixes frios e selvagens.
Sally me abandonava de um jeito
desleixado. ela era boa com os
bilhetes,
escrevia com uma letra grande
e indignada, ela era
boa nisso.
e ela levava sempre a maioria de suas
roupas,
mas eu abria uma garrafa
me sentava e olhava em volta –
e havia um chinelo rosa
embaixo da cama.
eu terminava o drinque
e me enfiava embaixo da cama
para pegar aquele chinelo rosa e
jogá-lo no lixo
e ao lado do chinelo rosa
eu encontrava uma calcinha
manchada de cocô.
e havia grampos de cabelo por todos os cantos:
no cinzeiro, na cômoda, no
banheiro. e suas revistas apareciam
por todos os cantos com suas capas exóticas:
“Homem Estupra Moça, Depois Joga o Corpo de um
Penhasco de 120 Metros.”
“Menino de 9 Anos Estupra 4 Mulheres em Banheiro de
Parada de Ônibus da Greyhound e Coloca Fogo em
Recipientes de Descarte.”
Sally me abandonava de um jeito desleixado.
na gaveta de cima, perto do Kleenex,
eu encontrava todos os bilhetes que eu lhe escrevera,
ordenadamente presos com 3 ou 4 tiras
elásticas.
e ela era desleixada com
as fotos:
eu encontrava uma com nós dois
agachados no capô do nosso
Plymouth 58 –
Sally mostrando bastante das pernas
e arreganhando um sorriso como mulher de bandido em Kansas City
saída dos
anos vinte,
e eu
mostrando as solas dos meus sapatos
com buracos circulares
acenando.
e havia fotos de cachorros,
todos eles nossos,
e fotos de crianças,
a maioria
dela.
a cada uma hora e vinte minutos
o telefone tocava
e era
Sally
e uma canção de jukebox,
certa canção que eu
detestava, e ela ficava falando
e eu escutava vozes
masculinas:
“Sally, Sally, esqueça essa porra de telefone,
volte, venha ficar aqui comigo,
bebê!”
“veja bem”, ela dizia, “existem outros homens no
mundo além de você.”
“essa é só a sua opinião”, eu respondia.
“eu poderia ter amado você pra sempre, Bandini”, ela dizia.
“vai se foder”, eu dizia e
desligava.
Bandini é estrume, óbvio,
mas era também o nome que eu me dera
em homenagem a um personagem um tanto sentimental e um tanto infantil
de um romance escrito por certo
italiano nos anos 1930.
eu servia outro drinque
e enquanto procurava uma tesoura no banheiro
para aparar o cabelo em volta das minhas orelhas
encontrava um sutiã numa das gavetas
e o segurava no alto junto à luz.
o sutiã tinha bom aspecto pelo lado de fora
mas por dentro – havia uma mancha de
suor e sujeira, e a mancha era escurecida,
moldada ali
como se nenhuma lavagem jamais
pudesse
eliminá-la.
eu bebia minha bebida
então começava a aparar o cabelo em volta das minhas orelhas
decidindo que eu era um homem bastante bonito.
mas eu ia levantar pesos
iniciar uma dieta
e me bronzear,
de qualquer maneira.
então o telefone tocava de novo
e eu levantava o fone
desligava
levantava o fone de novo
e o deixava
pendurado
pelo fio.
eu aparava meus pelos dos ouvidos, meu nariz, minhas
sobrancelhas,
bebia por mais uma ou duas horas,
então ia
dormir.
eu era despertado por um som que eu nunca chegara
a escutar antes –
dava uma sensação e soava como um alerta de
ataque atômico.
eu me levantava e procurava pelo som.
era o telefone
ainda fora do gancho
mas o som que vinha dele
lembrava muito mil vespas
morrendo queimadas. eu
pegava o
fone.
“senhor, aqui é o recepcionista. seu telefone está
fora do gancho.”
“certo, sinto muito. vou
desligar.”
“não desligue, senhor. sua esposa está no
elevador.”
“minha esposa?”
“ela afirma ser a sra. Budinski...”
“certo, é
possível...”
“o senhor poderia tirá-la do
elevador? ela não entende os
comandos... a linguagem dela é abusiva para conosco
mas ela afirma que o senhor
vai ajudá-la... e, senhor...”
“sim?”
“não quisemos chamar a
polícia...”
“bom...”
“ela está deitada no piso do
elevador, senhor, e, e... ela...
se urinou
toda...”
“o.k.”, eu dizia e
desligava.
eu saía de calção
drinque na mão
charuto na boca
e apertava o botão
do elevador.
lá vinha ele subindo:
um, dois, três, quatro...
as portas se abriam
e eis ali
Sally... e pequenos, delicados
gotejamentos e ondulantes filetes líquidos
derivando pelo piso do
elevador, e algumas poças
maculadas.
eu terminava o drinque
pegava-a e a carregava
para fora do
elevador.
eu a levava até o apartamento
jogava-a na cama
e tirava suas
calcinhas, saia e meias molhadas.
então eu colocava um drinque na mesinha
perto dela
me sentava no sofá
e eu mesmo tomava
mais um.
de repente ela se sentava ereta e
olhava em volta do
quarto.
“Bandini?”, ela perguntava.
“aqui”, eu
acenava com a mão.
“ah, graças a deus...”
então ela via o drinque e
o engolia de uma só
vez. eu me levantava,
servia outro, colocava cigarros, cinzeiro e
fósforos
ao lado.
então ela se erguia de novo:
“quem tirou as minhas
calcinhas?”
“eu.”
“eu quem?”
“Bandini...”
“Bandini? você não pode
me comer...”
“você se
mijou...”
“quem?”
“você...”
ela se sentava totalmente
ereta:
“Bandini, você dança como uma
bicha, você dança como uma
mulher!”
“vou quebrar o seu maldito
nariz!”
“você quebrou o meu braço, Bandini, não me venha
quebrar o meu nariz...”
então ela colocava a cabeça de volta no
travesseiro: “eu te amo, Bandini, amo
mesmo...”
então ela começava a roncar. eu bebia por mais
uma hora ou duas então
me deitava na cama com
ela. não me dava vontade de tocá-la
no começo. ela precisava de um banho
ao menos. eu botava uma perna em cima de uma dela;
não parecia tão
ruim. eu testava botar a
outra.
eu começava a me lembrar de todos os dias bons e as
noites boas...
deslizava um braço por baixo de seu pescoço,
então passava o outro em volta de sua
barriga e encostava meu pênis bêbado
suavemente em sua
virilha.
seu cabelo caía de volta
e subia por dentro das minhas narinas.
eu a sentia inalando pesadamente, depois
expirando. nós dormíamos desse jeito
pela maior parte da noite e até a
tarde seguinte. então eu me levantava e
ia até o banheiro e vomitava
e então era
a vez dela.
“...você sabe, já tive uma família, um emprego, mas alguma coisa
sempre se interpôs no
caminho
mas agora
vendi minha casa, encontrei este
lugar, um enorme estúdio, você precisa ver o espaço e
a luz.
pela primeira vez na minha vida terei um lugar e tempo para
criar.”
não, baby, se você vai criar
fará isso mesmo que trabalhe
16 horas por dia numa mina de carvão
ou
criará num cubículo com 3 crianças
enquanto vive
da previdência social,
criará com parte de sua mente e de seu
corpo
estourados,
criará cego
aleijado,
demente,
criará com um gato escalando por suas
costas enquanto
a cidade inteira treme em terremotos, bombardeios
alagamentos e fogo.
baby, ar e luz e tempo e espaço
não têm nada a ver com isso
e não criam nada
exceto talvez uma vida mais longa para encontrar
novas desculpas de que se
ocupar.

Nessa noite, sem Jon escutando lá embaixo, o argumento começou a andar. Eu escrevia sobre um jovem que queria escrever e beber, mas a maior parte de seu sucesso era com a garrafa. O jovem fora eu. Embora aquele não fosse um tempo infeliz, tinha sido, em grande parte, um tempo de vazio e espera. Enquanto eu batia, os personagens de um certo bar me voltavam à memória. Eu tornava a ver cada rosto, os corpos, ouvia as vozes. Ali estava um bar que tinha um certo encanto mortal. Eu me concentrei nisso, revivi as brigas de bar com o garçom. Eu não era bom de briga. Para começar, tinha as mãos pequenas demais e vivia mal alimentado, muito mal alimentado. Mas tinha uma certa garra e encaixava um soco muito bem. Meu principal problema numa briga era que não conseguia me enfurecer de verdade, mesmo quando minha vida parecia estar em jogo. Era tudo teatro comigo. Importava e não. Brigar com o garçom era algo que tinha de ser feito e agradava aos fregueses, que eram um grupinho muito unido. Eu era o de fora. Tem alguma coisa positiva na bebida – aquelas brigas todas teriam me matado se eu estivesse sóbrio, mas, bêbado, era como se o corpo virasse borracha e a cabeça cimento. Pulsos torcidos, lábios inchados e rótulas machucadas eram mais ou menos tudo que eu sofria no dia seguinte. E também galos na cabeça, das quedas. Como isso podia virar um argumento, eu não sabia. Só sabia que era a única parte da minha vida sobre a qual não escrevera muito. Acredito que era são naquela época, tão são quanto qualquer outro. E sabia que havia toda uma civilização de almas penadas que viviam entrando e saindo de bares, diariamente, noturnamente e para sempre, até a morte. Nunca lera sobre essa civilização, e por isso decidi escrever sobre ela, como a lembrava. A boa máquina velha matraqueava.
No dia seguinte, lá pelo meio-dia, o telefone tocou. Era Jon.
– Encontrei uma casa. François está comigo. É linda, tem duas cozinhas, e o aluguel é de graça, realmente de graça...
– Onde está?
– Estamos no gueto de Venice. Avenida Brooks. Só tem negros. As ruas são guerra e destruição. Lindo!
– Oh!
– Você deve vir ver a casa!
– Quando?
– Hoje!
– Eu não sei.
– Oh, você não ia querer perder isto! Tem gente morando debaixo da nossa casa. A gente ouve eles lá embaixo, falando e tocando o rádio. Tem gangues por toda parte! Alguém construiu um grande hotel aqui. Mas ninguém pagou o aluguel. Fecharam o lugar com tábuas, cortaram a eletricidade, a água, o gás. Mas as pessoas ainda moram aqui. É UMA ZONA DE GUERRA! A polícia não vem aqui, parece um estado separado, com suas próprias leis. Eu adoro! Você tem de nos visitar!
– Como chego aí?
Jon me deu as indicações e desligou.
Procurei Sarah.
– Escuta, preciso ir ver Jon e François.
– Ei, eu vou também!
– Não, não pode. Fica no gueto de Venice.
– Oh, o gueto! Eu não perderia isso por nada neste mundo!
– Escuta, me faz um favor, tá? Por favor, não venha!
– Que? Acha que eu ia deixar você ir lá embaixo sozinho?
Peguei minha lâmina, pus o dinheiro nos sapatos.
– Tá legal – disse...
Entramos dirigindo devagar no gueto de Venice. Não era verdade que só tivesse negros. Havia alguns latinos nos arredores. Notei um grupo de sete a oito mexicanos em volta, encostados num carro velho. Quase todos usavam camiseta ou estavam nus da cintura para cima. Passei dirigindo devagar, sem encarar ninguém, só absorvendo. Eles não pareciam fazer muita coisa. Só esperavam. Prontos e à espera. Na verdade, provavelmente estavam apenas entediados. Pareciam caras legais. E não pareciam lá muito preocupados.
Aí chegamos à turfa negra. De repente, ruas cheias de lixo: um pé esquerdo de sapato, uma camisa laranja, uma bolsa velha... uma romã podre... outro pé esquerdo de sapato... um blue jeans... um pneu...
Eu tinha de dirigir por entre aquelas coisas. Dois negros de uns onze anos nos fitavam de suas bicicletas. Ódio puro, perfeito. Eu sentia. Os negros pobres tinham ódio. Os brancos pobres tinham ódio. Só quando ganhavam dinheiro negros e brancos se integravam. Alguns brancos amavam os negros. Muito poucos negros amavam os brancos, se é que algum amava. Ainda estavam indo à forra. Talvez nunca fossem. Numa sociedade capitalista, os perdedores são escravizados pelos vencedores, e é preciso haver mais perdedores que vencedores. Que pensava eu? Sabia que a política jamais resolveria isso, e não sobrava muito tempo para entrar numa boa.
Dirigimos até encontrar o endereço, estacionei o carro, saí e bati na porta.
Uma portinhola abriu-se deslizando e lá estava um olho nos olhando.
– Ah, Hank e Sarah!
A porta abriu-se, fechou-se, e estávamos dentro.
Eu me aproximei da janela e dei uma olhada.
– Que está fazendo? – perguntou Jon.
– Só quero dar uma olhada no carro de vez em quando...
– Oh, sim, venha ver, vou te mostrar as duas cozinhas!
Claro que havia duas cozinhas, um fogão em cada uma, uma geladeira em cada uma, uma pia em cada uma.
– Eram duas casas antes. Foram transformadas em uma.
– Legal – disse Sarah. – Você pode cozinhar numa cozinha e François na outra...
– No momento, estamos vivendo basicamente de ovos. Temos galinhas, que põem muitos ovos...
– Nossa, Jon, tá tão ruim assim?
– Não, na verdade, não. A gente calcula que vai ficar aqui por um longo tempo. Precisamos de quase todo o nosso dinheiro pra vinho e charutos. Como vai indo o argumento?
– Tenho o prazer de comunicar que já temos umas boas páginas. Só que às vezes me atrapalho com CÂMERA, ZOOM, PANORÂMICA... essa merda toda...
– Não se preocupe, eu cuido disso.
– Onde está François? – perguntou Sarah.
– Ah, está na outra sala... venham...
Entramos e lá estava François rodando sua roletinha. Quando bebia, ficava com o nariz muito vermelho, como um bêbado de desenho animado. E também, quanto mais bebia, mais deprimido ficava. Chupava um toco de charuto molhado. Conseguiu extrair algumas tristes baforadas. Ao lado, via-se uma garrafa de vinho quase vazia.
– Merda – disse –, já estou com 60 mil dólares no buraco e bebendo esse vinho barato do Jon, que ele diz ser coisa fina mas é pura bosta. Paga um dólar e 35 centavos a garrafa. Meu estômago parece um balão cheio de xixi! Estou com 60 mil dólares no buraco e sem nenhum emprego em vista. Tenho de... me... matar...
– Vamos lá, François – disse Jon –, vamos mostrar as galinhas a nossos amigos...
– As galinhas! O-V-OS! A gente come O-V-OS o tempo todo! Só O-V-OS! Pup, pup, pup! A galinha pup O-V-OS! O dia todo, a noite toda minha função é salvar as galinhas dos negrinhos! Os negrinhos vivem saltando a cerca e correndo pro galinheiro! Eu bato neles com uma vara comprida, digo: “Seus filhos da puta, fiquem longe de minhas galinhas que pup os O-V-OS! Não consigo pensar, não consigo pensar em minha vida nem em minha morte, estou sempre correndo atrás desses negrinhos com a vara comprida! Jon, preciso de mais vinho, outro charuto!
Deu outra rodada na roleta.
Mais más notícias. O sistema estava falhando.
– Sabe, na França tem apenas um zero pra casa! Aqui na América tem um zero e um duplo zero pra casa! PEGAM OS DOIS BAGOS DA GENTE! POR QUÊ? Vamos lá, mostro a vocês as galinhas...
Saímos para o quintal, e lá estavam as galinhas e o galinheiro. O próprio François o fizera. Era bom nessas coisas. Tinha um verdadeiro talento para isso. Só que não usara tela de galinheiro, mas barras. E fechaduras em cada porta.
– Faço a chamada toda noite. “Cécile, está aí?” “Cluc, cluc”, ela responde. “Bernadette, está aí?” “Cluc, cluc”, ela responde. E por aí vai. Uma noite, eu chamei “Nicole?”, e ela não clucou. Você acredita? Apesar de todas as barras e fechaduras, eles pegaram Nicole! Tiraram ela daqui. Nicole se foi, se foi para sempre! Jon, Jon, eu preciso de mais vinho!
Tornamos a entrar e nos sentamos, e o novo vinho correu solto. Jon deu um novo charuto a François.
– Se eu tiver meu charuto quando preciso – disse François – posso viver.
Bebemos por algum tempo, e então Sarah perguntou:
– Escuta, Jon, seu senhorio é negro?
– Oh, sim...
– Ele não te perguntou por que alugava uma casa aqui?
– Sim...
– E que foi que você disse?
– Disse que éramos cineastas e atores da França.
– E ele?
– Ele disse: “Oh”.
– Mais alguma coisa?
– Sim, disse: “Bem, o rabo é seu!”.
Bebemos um tempo falando bobagem.
De vez em quando eu me levantava e ia à janela ver se o carro ainda estava lá.
Enquanto bebíamos, comecei a me sentir culpado pela coisa toda.
– Escuta, Jon, deixa eu te devolver o dinheiro do argumento. Eu botei você contra a parede. Isso é terrível...
– Não, eu quero que você faça esse argumento. Ele vai se tornar um filme, eu prometo...
– Tudo bem, porra...
Bebemos mais um pouco.
Então Jon disse:
– Veja...
Por um buraco na parede onde nos sentávamos via-se uma mão, uma mão negra. Contorcia-se através do reboco quebrado, os dedos fechando-se, movendo-se. Parecia um animalzinho escuro.
– DÊ O FORA! – berrou François. – DÊ O FORA, ASSASSINO DE NICOLE! VOCÊ DEIXOU UM BURACO ETERNO EM MEU CORAÇÃO! DÊ O FORA!
A mão não deu o fora.
François aproximou-se da parede e dela.
– Estou mandando dar o fora. Só quero fumar meu charuto e beber meu vinho em paz. Você perturba o visual! Não posso me sentir bem com você tateando e me olhando com seus pobres dedos negros!
A mão não deu o fora.
– TUDO BEM, ENTÃO!
A vara estava bem ali. Com um movimento demoníaco, François pegou-a e começou a açoitar a parede com ela, repetidas vezes...
– ASSASSINO DE GALINHA, VOCÊ FERIU MEU CORAÇÃO ETERNAMENTE!
O som era ensurdecedor. Então François parou.
A mão dera o fora.
François sentou-se.
– Merda, Jon, meu charuto apagou. Por que não compra charutos melhores, Jon?
– Escuta, Jon – eu disse –, a gente tem de ir...
– Ora, vamos... por favor... a noite está só começando! Você não viu nada ainda...
– A gente precisa ir... Preciso trabalhar mais no argumento...
– Oh... nesse caso...
Em casa, subi e trabalhei no argumento, mas estranhamente, ou talvez não, minha vida passada não parecia tão estranha, bárbara ou louca quanto o que ocorria agora.
– Hollywood
à espera da morte
como um gato
que saltará sobre a
cama
sinto terrivelmente por
minha esposa
ela verá este
corpo
duro e
branco
vai sacudi-lo uma vez, depois
quem sabe
outra:
“Hank!”
Hank não
responderá.
não é minha morte o que
me preocupa, é minha mulher
abandonada com este
monte de
nada.
quero
no entanto
que ela saiba
que todas as noites
dormindo
ao seu lado
que mesmo as discussões
inúteis
sempre foram
esplêndidas
e que as palavras
difíceis
que sempre temi
dizer
podem agora ser
ditas:
eu te
amo.

Chegamos um pouco atrasados para a festa, mas ainda não havia muita gente. Victor Norman sentava-se a algumas mesas da nossa. Depois que Sarah e eu nos sentamos, apareceu o garçom com nosso vinho. Vinho branco. Bem, era de graça.
Esvaziei meu copo e fiz sinal com a cabeça, chamando o garçom para tornar a enchê-lo.
Percebi que Victor me observava.
O pessoal ia chegando aos poucos. Vi o famoso ator do bronzeado perpétuo. Soubera que ele ia a quase todas as festas de Hollywood, em toda parte.
Sarah me deu uma cutucada. Era Jim Serry, o velho guru da droga da década de 60. Também ele ia a muitas festas. Parecia cansado, triste, esgotado. Senti pena dele. Ia de mesa em mesa. Chegou à nossa. Sarah deu um sorriso de prazer. Era uma filha dos anos 60. Apertei a mão dele.
– Oi, baby – eu disse.
A casa começava a lotar rapidamente. Eu não conhecia a maioria das pessoas. Acenava constantemente ao garçom para trazer mais vinho. Ele terminou trazendo uma garrafa inteira, e a pôs na mesa.
– Quando acabarem essa, trago outra.
– Obrigado, cara...
Sarah embrulhara um presentinho para Harry Friedman. Eu o tinha no colo.
Jon chegou e sentou-se à nossa mesa.
– Estou feliz por você e Sarah terem podido vir – disse. – Veja, está enchendo, este lugar está cheio de gângsters e matadores, os piores!
Ele adorava aquilo. Tinha alguma imaginação. Isso o ajudava a atravessar os dias e as noites.
Então surgiu um sujeito de aparência muito importante. Ouvi alguns aplausos.
Saltei de pé com o presente de aniversário. Me aproximei dele.
– Sr. Friedman, feliz...
Jon correu a me agarrar por detrás. Me puxou de volta à mesa.
– Não! Não! Esse não é Friedman! É o Fischman!
– Oh...
Sentei-me.
Notei Victor Norman me observando. Imaginei que desistisse dentro de pouco tempo. Quando tornei a olhar, ele ainda me encarava. Me olhava como se não acreditasse nos próprios olhos.
– Tudo bem, Victor – eu gritei –, e daí se eu faço cocô nas calças? Quer fazer disso uma Guerra Mundial?
Ele desviou o olhar.
Eu me levantei e procurei o banheiro dos homens.
Ao sair de lá, me perdi e entrei na cozinha. Encontrei um ajudante de garçom fumando um cigarro. Meti a mão na carteira e puxei uma nota de dez dólares. Coloquei-a no bolso da camisa dele.
– Não posso aceitar, senhor.
– Por que não?
– Não posso.
– Todo mundo recebe gorjetas. Por que não o ajudante de garçom? Eu sempre quis ser um ajudante de garçom.
Afastei-me, tornei a encontrar a sala principal e a mesa.
Quando me sentei, Sarah se curvou para mim e sussurrou:
– Victor Norman veio aqui quando você saiu. Disse que foi muito legal de você não falar nada da literatura dele.
– Fui bom, não fui, Sarah?
– Foi.
– Não fui um bom menino?
– Foi.
Olhei para Victor Norman, atraindo sua atenção. Fiz-lhe um aceno de cabeça, pisquei o olho.
Nesse momento entrava o verdadeiro Harry Friedman. Algumas pessoas se levantaram e aplaudiram. Outras pareciam entediadas.
Friedman sentou-se à sua mesa e serviu-se de comida. Massa. A massa correu a roda. Harry Friedman recebeu a sua e atacou-a logo. Parecia um bom garfo. Era largo, sem dúvida. Usava um terno velho, os sapatos gastos. Cabeça grande, bochechudo. Enfiava a massa naquelas bochechas. Tinha grandes olhos redondos, olhos tristes e cheios de desconfiança. Ai, viver no mundo! Faltava um botão da camisa branca amassada, perto da barriga, que se estufava para fora. Parecia um bebezão que de algum modo se soltara, crescera depressa e quase se tornara um homem. Tinha charme, mas podia ser perigoso acreditar naquele charme – ele seria usado contra a gente. Não usava gravata. Feliz aniversário, Harry Friedman!
Surgiu uma jovem vestida de policial. Encaminhou-se diretamente para a mesa dele.
– VOCÊ ESTÁ PRESO! – gritou.
Harry Friedman parou de comer e sorriu, os lábios molhados de massa.
A policial tirou o casaco e a blusa. Tinha seios enormes. Balançou-os debaixo do nariz de Harry Friedman.
– VOCÊ ESTÁ PRESO – gritou.
Todo mundo aplaudiu. Não sei por quê.
Friedman fez sinal à policial para que se abaixasse. Ela se abaixou e ele sussurrou-lhe alguma coisa no ouvido. Ninguém soube o que era.
Me leve pra sua casa. Vamos ver o que acontece?
Esqueceu seu cassetete. Cuido disso? Você vem me ver. Te levo no cinema?
A policial tornou a vestir a blusa, o casaco, e se mandou.
As pessoas aproximavam-se da mesa de Friedman e diziam-lhe coisinhas. Ele as olhava como se não soubesse quem eram. Em breve acabara de comer e bebia vinho. Manejava bem o vinho. Gostei disso.
Realmente tinha um fraco por vinho. Depois de algum tempo, saiu de mesa em mesa, curvando-se, falando com as pessoas.
– Nossa – eu disse a Sarah –, veja só aquilo!
– Quê?
– Ele está com um pedaço de massa num dos cantos da boca e ninguém lhe diz nada. Está ali pendurado!
– Estou vendo! Estou vendo! – disse Jon.
Harry Friedman continuava indo de mesa em mesa, curvando-se, falando. Ninguém o avisava.
Finalmente, ele se aproximou. Estava mais ou menos a uma mesa da nossa quando eu me levantei e me aproximei dele.
– Sr. Friedman – disse.
Ele me olhou com aquele rosto de bebê monstruoso.
– Sim?
– Fique parado.
Estendi a mão, peguei o fiapo de massa e puxei. A coisa se soltou.
– O senhor estava andando por aí com isso pendurado. Eu não aguentava mais.
– Obrigado – ele disse.
Voltei pra minha mesa.
– Bem, bem – perguntou Jon –, que acha dele?
– Acho ele um encanto.
– Eu te disse. Não conheci ninguém como ele depois de Lido Mamin...
– De qualquer modo – disse Sarah –, foi bacana da sua parte tirar a massa da cara dele, já que ninguém mais tinha coragem de fazer isso. Foi muito bacana.
– Obrigado, eu sou um cara muito bacana, na verdade.
– Oh, é? Que mais você fez de bacana ultimamente?
Nossa garrafa de vinho estava vazia. Chamei o garçom. Ele franziu o cenho para mim e adiantou-se com outra garrafa.
E não consegui pensar em nada bacana que tivesse feito. Ultimamente.
– Hollywood
Brock, o chefe de seção, estava sempre escarafunchando o cu com os dedos, usando a mão esquerda. Sofre de um caso grave de hemorroidas.
Tom percebeu isso ao longo do dia de trabalho.
Brock estivera na sua cola por meses. Aqueles olhos redondos e sem vida pareciam estar sempre à espreita de Tom. E então Tom acabou notando a mão esquerda, enfiada no cu, escarafunchando.
E Brock estava realmente na sua cola.
Tom executava seu trabalho tão bem quanto os outros. Talvez não mostrasse exatamente o mesmo entusiasmo dos demais, mas cumpria com suas obrigações.
Ainda assim, Brock não deixava de persegui-lo, fazendo comentários, despejando sugestões inúteis.
Brock era parente do dono da loja e um posto lhe fora arranjado: chefe de seção.
Naquele dia, Tom terminava de acondicionar o dispositivo de luz num pacote oblongo de um metro de comprimento e o depositou na pilha que estava atrás da sua mesa de trabalho. Voltou-se para pegar um novo conjunto da linha de montagem.
Brock estava parado à sua frente.
– Quero falar com você, Tom...
Brock era alto e magro. Seu corpo se inclinava para frente a partir da cintura. A cabeça estava sempre curvada, como se pendurada em seu pescoço longo e esguio. A boca ficava sempre aberta. Seu nariz era bastante proeminente com narinas muito grandes. Os pés eram grandes e desajeitados. As calças ficavam frouxas em seu corpo magricelo.
– Tom, você não está fazendo seu trabalho.
– Estou mantendo a média de produção. Do que você está falando?
– Não acho que você esteja empacotando direito. É preciso usar mais fita. Tivemos alguns problemas com quebra de materiais e estamos querendo resolver.
– Por que vocês não colocam as iniciais de cada empacotador nas caixas? Assim, se houver algum estrago por causa de mau acondicionamento, vocês podem rastrear o culpado.
– Quem deve pensar por aqui sou eu, Tom. Esse é o meu trabalho.
– Claro.
– Venha cá. Quero que você observe como o Roosevelt faz os pacotes.
Foram até a mesa de Roosevelt.
Roosevelt estava no trabalho havia treze anos.
Ficaram observando Roosevelt embalar os dispositivos de luz.
– Vê como ele faz? – perguntou Brock.
– Bem, sim...
– O que eu quero dizer é o seguinte: veja como ele faz o empacotamento... ele ergue e deixa cair lá dentro... é como tocar piano.
– Mas desse jeito ele não está protegendo o dispositivo...
– Claro que está. Ele o está acomodando, não consegue ver?
Tom discretamente inspirou e expirou.
– Tudo bem, Brock, está bem acomodado...
– Faça como ele...
Brock deu uma circulada na mão esquerda e a cravou lá dentro.
– A propósito, sua linha de montagem está atrasada...
– Claro. Você estava falando comigo.
– Isso é problema seu. Vai ter que recuperar agora.
Brock enfiou mais uma vez os dedos e depois se afastou.
Roosevelt ria em silêncio.
– Acomode, filho da puta!
Tom riu.
– Quanta merda será que um cara tem que aguentar apenas pra se manter vivo?
– Muita – veio a resposta –, e nunca para...
Tom voltou para sua mesa e conseguiu recuperar o prejuízo. E quando Brock olhava para ele, empacotava com a técnica da “acomodação”. E Brock sempre parecia estar de olho nele.
Por fim, chegou a hora do almoço, trinta minutos de intervalo. Mas para muitos dos trabalhadores a hora do almoço não significa fazer uma refeição, mas sim descer até a Vila e entornar garrafas e mais garrafas de cerveja, preparando-se para enfrentar o turno da tarde.
Alguns dos caras as misturavam com anfetaminas. Outros, com barbitúricos. Muitos com anfetaminas e barbitúricos, levando tudo goela abaixo com uma cerveja.
Do lado de fora da fábrica, no estacionamento, havia mais gente, sentada no interior de carros velhos, reunida em grupos diferentes. Os mexicanos ficavam num, e os negros, noutro, e às vezes, ao contrário do que acontecia nos presídios, eles se misturavam. Não havia muitos brancos, apenas alguns sulistas, sempre silenciosos. Mas Tom gostava de toda a rapaziada.
O único problema no lugar era o Brock.
Durante aquele almoço, Tom estava em seu carro com Ramon.
Ramon abriu a mão e lhe mostrou um enorme comprimido amarelo. Parecia uma bala quebra-queixo.
– Ei, cara, experimente isso. Você vai ficar totalmente na paz. Quatro ou cinco horas parecem cinco minutos. E você vai se sentir FORTE, nada fará você cansar...
– Obrigado, Ramon, mas eu já estou na maior merda.
– Mas isso aqui é justamente pra tirar você da merda, não sacou?
Tom não respondeu.
– Beleza – disse Ramon –, eu já tinha tomado o meu, mas fico com o seu também!
Colocou o comprimido na boca, ergueu a garrafa de cerveja e tomou um bom gole. Tom ficou olhando aquele comprimido gigantesco, dava para vê-lo descer pela garganta de Ramon. Até que enfim foi engolido.
Ramon se virou devagar na direção de Tom e sorriu:
– Veja, a porra do negócio nem chegou no meu estômago e já estou me sentindo melhor!
Tom riu.
Ramon tomou mais um gole de cerveja, depois acendeu um cigarro. Para um homem que supostamente estava se sentindo tão bem ele parecia sério demais.
– Sabe, cara, sou um homem de merda... não posso nem dizer que sou homem... Olha só, na noite passada tentei comer a minha esposa... Ela engordou uns vinte quilos este ano... Preciso me embebedar pra conseguir... Bombei e bombei, cara, e nada... O pior de tudo, fiquei com pena dela... Disse que era por causa do trabalho. E era por causa do trabalho, mas também não era. Ela se levantou e ligou a tevê...
Ramon continuou:
– Cara, tudo mudou. Há um ou dois anos atrás, tudo era divertido entre a gente, interessante, eu e a minha esposa... Ríamos de qualquer coisa... Agora não há mais nada disso... O que a gente tinha se perdeu, não sei onde foi parar...
– Sei como é isso, Ramon...
Ramon se endireitou com rapidez, como se recebesse uma mensagem:
– Merda, cara, está na nossa hora!
– Vamos lá!
Tom retornava da linha de montagem com um dispositivo e Brock o esperava. Brock disse:
– Tudo bem, deixe isso aí. Venha comigo.
Seguiram até a linha de montagem.
E lá estava Ramon com seu pequeno avental marrom e seu bigodinho.
– Fique à esquerda dele – disse Brock.
Brock ergueu a mão e a maquinaria começou a funcionar. A esteira movia os dispositivos de um metro em direção a eles num ritmo firme mas previsível.
Ramon tinha esse enorme rolo de papel à sua frente, uma bobina aparentemente interminável de pesado papel marrom. Surgiu o primeiro dispositivo de luz vindo da linha de montagem. Ele rasgou um pedaço de papel, abriu-o sobre a mesa, e em seguida colocou o dispositivo de luz sobre ele. Dobrou o papel ao meio, prendendo-o com durex. Depois dobrou as pontas em triângulo, primeiro a esquerda, depois a direita, e então o dispositivo seguiu na direção de Tom.
Tom cortou um pedaço de fita adesiva e a fez deslizar com cuidado sobre o topo do dispositivo, onde o papel deveria ser selado. Então, com pedaços menores, terminou de fixar a dobra da esquerda e depois a da direita. Depois ergueu o pesado dispositivo, deu meia-volta, seguiu por um corredor e colocou-o direitinho num suporte de parede, onde aguardaria por um dos empacotadores. Por fim retornou à mesa em que outro dispositivo já vinha em sua direção.
Era o pior trabalho em toda a fábrica e todo mundo sabia disso.
– Agora você vai trabalhar com o Ramon, Tom...
Brock se afastou. Não havia necessidade alguma de vigiá-lo: se Tom não executasse a função com propriedade, a linha de montagem inteira pararia.
Ninguém aguentava muito tempo como o segundo de Ramon.
– Sabia que você ia precisar do amarelão – disse Ramon com um sorriso.
Os dispositivos se moviam sem parar na direção deles. Tom cortava metros e mais metros de fita durex da máquina à sua frente. Era uma fita reluzente, grossa e pegajosa. Esforçava-se ao máximo para manter o acelerado ritmo de trabalho, mas, para acompanhar Ramon, algumas precauções tinham de ser eliminadas: a ponta cortante da máquina de durex acabava por provocar, ocasionalmente, cortes longos e profundos em suas mãos. Os cortes eram quase invisíveis e quase nunca sangravam, mas, ao olhar para seus dedos e suas palmas, podia ver as linhas brilhantes e vermelhas na pele. Não havia nenhuma pausa. Os dispositivos pareciam se mover cada vez mais rápido e a cada momento se tornavam mais e mais pesados.
– Caralho – disse Tom –, vou ter que desistir. Acho que até dormir no banco da praça é melhor.
– Claro – disse Ramon –, claro, qualquer coisa é melhor do que essa merda...
Ramon trabalhava com um sorriso fixo e insano no rosto, negando a impossibilidade daquilo tudo. E então a maquinaria parou, como ocorria de vez em quando.
Que dádiva dos deuses foi aquilo!
Alguma parte havia enguiçado, superaquecido. Sem esses colapsos das máquinas, muitos dos trabalhadores não aguentariam. Durante essas pausas de dois ou três minutos, eles conseguiam reorganizar seus sentidos e suas almas. Quase.
Os mecânicos lutavam com energia para encontrar a causa da falha.
Tom espichou os olhos para as garotas mexicanas que trabalhavam na linha de montagem. Para ele, elas eram todas lindas. Desperdiçavam o seu tempo, entregavam-se a uma vida tola e marcada pela rotina do trabalho, mas ainda assim mantinham alguma coisa em si, alguma coisa não identificável. Boa parte delas usava pequenas fitas nos cabelos: azuis, amarelas, verdes, vermelhas... E faziam piadas entre si e riam o tempo todo. Mostravam uma coragem enorme. Seus olhos conheciam alguma coisa da vida.
Mas os mecânicos eram bons, muito bons, e a maquinaria já voltava a funcionar. Os dispositivos de luz se moviam outra vez na direção de Tom e Ramon. Todos estavam de novo a soldo da Companhia Sunray.
E depois de certo tempo, Tom ficou tão cansado que há muito já não se poderia mais chamar cansaço o que sentia, era como estar bêbado, era como estar enlouquecendo, era como estar bêbado e louco de uma só vez.
Ao aplicar mais um pedaço de durex em um dispositivo de luz, ele gritou:
– SUNRAY!
Talvez tivesse sido o tom, talvez o momento do grito. Seja como for, todos começaram a rir, as mexicanas, os empacotadores, os mecânicos, mesmo o velho que se ocupava de lubrificar e conferir a maquinaria, todos riam. Loucura total.
Brock se aproximou.
– O que está acontecendo? – perguntou.
Ele ficou em silêncio.
Os dispositivos surgiam e partiam; os trabalhadores permaneciam.
Então, de alguma maneira, como despertar de um pesadelo, o dia terminou. Foram até o painel apanhar seus cartões, esperaram na fila para bater o relógio-ponto.
Tom bateu o ponto, colocou o cartão de volta no painel e seguiu na direção do seu carro. Deu a partida e ganhou a rua, pensando: “Espero que ninguém se atravesse no meu caminho, estou tão fraco que acho que não conseguiria nem pisar no freio”.
Tom dirigia com a gasolina no vermelho. Estava cansado demais para parar num posto de gasolina.
Deu um jeito de estacionar, chegou até a porta, abriu-a e entrou.
A primeira coisa que viu foi Helena, sua esposa. Vestia uma camisola suja e frouxa, estirada no sofá, a cabeça sobre um travesseiro. Sua boca estava aberta, ela roncava. Tinha uma boca bastante redonda, e seu ronco era uma mistura de cuspida e engasgo, como se não pudesse se decidir entre cuspir o que lhe restava de vida ou engoli-la.
Era uma mulher infeliz. Sentia que sua vida era incompleta.
Uma garrafa de meio litro de gim estava sobre a mesa de centro. Três quartos tinham sido consumidos.
Os dois filhos de Tom, Rob e Bob, de cinco e sete anos, batiam uma bolinha de tênis contra a parede. Era a parede do lado sul da casa, a que não tinha nenhum móvel. A parede uma vez fora branca, mas agora trazia as marcas da sujeira das infinitas rebatidas das bolinhas de tênis.
Os garotos não prestaram nenhuma atenção à chegada do pai. Haviam parado de jogar a bolinha contra a parede. Discutiam agora.
– EU ELIMINEI VOCÊ!
– NÃO, TEM QUE SER QUATRO BOLAS!
– TRÊS JÁ ESTÁ FORA!
– QUATRO!
– Ei, só um pouquinho – interveio Tom –, posso perguntar uma coisa pra vocês?
Os dois pararam e o encararam, quase ofendidos.
– É isso aí – disse Bob por fim. Ele era o garoto de sete anos.
– Como vocês conseguem jogar basebol batendo uma bolinha de tênis contra a parede?
Olharam para Tom, mas logo o ignoraram.
– TRÊS ESTÁ FORA!
– NÃO, SÓ NA BOLA QUATRO!
Tom seguiu até a cozinha. Havia uma panela branca no fogão. Uma fumaça negra se erguia de seu interior. Tom ergueu a tampa. O fundo estava enegrecido, com batatas, cenouras e pedaços de carne, tudo queimado. Tom fechou a panela e desligou o fogo.
Avançou até a geladeira. Havia uma latinha de cerveja ali. Pegou e abriu, tomou um gole.
O som da bolinha de tênis contra a parede recomeçou.
Em seguida um outro som: Helena. Ela havia trombado em alguma coisa. E agora estava ali, de pé na cozinha. Na mão direita segurava a garrafinha de gim.
– Você deve estar puto, não é?
– Só queria que você desse comida para as crianças...
– Você me deixa a porra de 3 dólares por dia. O que vou fazer com a porra de 3 dólares?
– Podia ao menos comprar papel higiênico. Toda vez que quero limpar a bunda, olho em volta e só tem um rolo vazio ali.
– Ei, uma mulher também tem os seus problemas! COMO VOCÊ ACHA QUE EU VIVO? Todo dia você sai pro mundo, você sai e vê como a vida é lá fora! Eu tenho que ficar sentada aqui! Não sabe o que é isso um dia depois do outro.
– Pois é, tem isso...
Helena tomou um gole de gim.
– Você sabe que eu te amo, Tommy, e que quando você está infeliz isso me machuca, machuca de verdade, aqui no peito.
– Tudo bem, Helena, vamos nos sentar aqui e manter a calma.
Tom foi até a mesa da cozinha e se sentou. Helena trouxe a garrafa consigo e ocupou um lugar na frente dele. Olhou-o.
– Por Deus, o que houve com as suas mãos?
– Trabalho novo. Tenho que descobrir uma maneira de proteger minhas mãos... Uma fita adesiva, luvas de borracha... alguma coisa...
Havia terminado sua latinha.
– Escute, Helena, tem mais desse gim por aí?
– Sim, acho que sim...
Observou-a seguir na direção do guarda-louça, esticar o braço e apanhar uma garrafa das de meio litro. Colocou-a sobre a mesa e se sentou. Tom retirou o lacre e a tampa.
– Quantas dessas você tem por aí?
– Algumas...
– Bom. Como se bebe esse negócio? Puro?
– É...
Tom tomou um bom gole. Depois olhou para as mãos, abrindo e fechando as duas, observando as feridas vermelhas que se expandiam e se contraíam. Eram fascinantes.
Pegou a garrafa, despejou um pouco de gim sobre uma das palmas e em seguida esfregou uma mão na outra.
– Ai! Essa porra arde!
Helena tomou outro gole de sua garrafa.
– Tom, por que você não arranja outro trabalho?
– Outro trabalho? Onde? Tem uns cem caras querendo o meu...
Então Rob e Bob entraram correndo. Detiveram-se junto à mesa.
– Ei – disse Bob –, quando a gente vai comer?
Tom olhou para Helena.
– Acho que tenho algumas salsichas – ela disse.
– Salsichas de novo? – perguntou Rob. – Salsichas de novo? Odeio essas salsichas!
Tom olhou para o filho.
– Ei, camarada, pega leve...
– Bem – disse Bob –, então que tal um gole dessa bebidinha de merda aí?
– Seu miserável! – gritou Helena.
Estendeu o braço e mandou um tapa, forte, de mão aberta, na orelha de Bob.
– Não bata nas crianças, Helena – disse Tom –, já tive o bastante disso quando era pequeno.
– Não me diga como educar os meus filhos!
– São meus também...
Bob estava ali de pé, parado. Sua orelha estava muito vermelha.
– Então você quer uma bebidinha, não é? – perguntou Tom.
Bob não respondeu.
– Venha cá – disse Tom.
Bob se aproximou de seu pai. Tom lhe estendeu a garrafa.
– Vamos lá, beba. Beba a porra da sua bebida.
– Tom, o que você está fazendo? – perguntou Helena.
– Vamos lá... beba – disse Tom.
Bob ergueu a garrafa de meio litro, tomou um gole. Devolveu-a e ficou ali parado. De repente começou a empalidecer, até mesmo sua orelha vermelha começou a ficar branca. Tossiu.
– Esse negócio é HORRÍVEL! É como beber perfume! Por que vocês bebem isso.
– Porque a gente é idiota. Porque vocês têm uns pais idiotas. Agora vá para o quarto e leve o seu irmão junto com você...
– A gente pode ver tevê lá? – perguntou Rob.
– Tudo bem, mas andem duma vez...
Os dois saíram.
– Só o que falta você transformar os meus filhos em bêbados! – disse Helena.
– Espero apenas que eles tenham mais sorte do que a gente na vida.
Helena tomou um gole de sua garrafa. Secou-a.
Ela se levantou, tirou a panela queimada do fogo e jogou a comida no lixo.
– Pra que fazer tanto barulho? Quem precisa dessa barulheira toda! – disse Tom.
Helena parecia chorar.
– Tom, o que a gente vai fazer?
Ligou a água quente e despejou na panela.
– Fazer? – perguntou Tom. – Do que você está falando?
– Desse nosso modo de vida!
– Não há muito que a gente possa fazer.
Helena raspou a comida grudada e despejou um pouco de sabão na panela, depois foi até o guarda-louça e sacou mais uma garrafa de meio litro de gim. Contornou a mesa e se sentou de frente para Tom, abrindo a garrafa.
– É preciso deixar a panela de molho por um tempo... Depois eu ponho as salsichas...
Tom bebia da sua garrafa, deixando a bebida assentar.
– Amor, você é uma bebum, uma gambá.
As lágrimas ainda estavam lá.
– Ah, sim, bem, quem você acha que me deixou assim? UMA CHANCE!
– Essa é fácil – respondeu Tom –, duas pessoas: você e eu.
Helena tomou o primeiro gole da nova garrafa. Com isso, de imediato, as lágrimas desapareceram. Riu de mansinho.
– Ei, tive uma ideia! Posso conseguir emprego como garçonete ou algo assim... Aí você poderia descansar um pouco, sabe... O que você acha?
Tom estendeu sua mão por sobre a mesa e tomou uma das mãos de Helena.
– Você é uma boa garota, mas vamos deixar tudo como está.
Então as lágrimas voltaram a brotar. Helena era boa com as lágrimas, principalmente quando bebia gim.
– Tommy, você ainda me ama?
– Claro, baby, você é maravilhosa quando está bem.
– Eu também te amo, Tom, você sabe disso...
– Claro, baby, o mesmo aqui!
Tom ergueu sua garrafa. Helena a dela.
Brindaram com as garrafas de gim em pleno ar, então cada um bebeu da sua.
No quarto, Rob e Bob mantinham o rádio ligado, a todo volume. Havia uma claque no programa e as pessoas da claque não paravam de gargalhar. Gargalhavam e gargalhavam e gargalhavam
e gargalhavam.
– Septuagenarian Stew

Miami foi o lugar mais distante ao qual conseguir chegar sem deixar o país. Levei Henry Miller comigo e tentei lê-lo ao longo do percurso. Ele era bom quando era bom, e vice-versa. Tomei uma garrafa de uísque. Depois outra e ainda outra. A viagem levou quatro dias e cinco noites. Fora uns amassos com uma jovem morena cujos pais não podiam mais lhe pagar a faculdade, nada de mais ocorreu. Ela deixou o ônibus no meio da noite em uma parte particularmente estéril e fria do país e desapareceu. Eu sempre tive insônia na estrada, e o único modo de dormir em um ônibus era enchendo completamente a cara. Mas não me arriscava a fazer isso. Quando chegamos ao destino, eu mal havia dormido ou cagado por cinco dias e mal conseguia caminhar. Era cedo da noite. A sensação de estar novamente caminhando pelas ruas era deliciosa.
QUARTOS PARA ALUGAR. Aproximei-me e toquei a campainha. Nessas circunstâncias, a atitude mais sábia era deixar a mala fora do alcance da visão da pessoa que abrisse a porta.
– Procuro um quarto. Quanto custa?
– US$ 6,50 por semana.
– Posso dar uma olhada?
– Claro.
Entrei e a segui pela escada. Devia ter uns 45, mas sua bunda balançava de um modo legal. Sempre que seguia essas mulheres escada acima, como agora, eu pensava que, se uma dessas senhoras se oferecesse para tomar conta de mim, oferecendo-me refeições quentes e roupas limpas para vestir, eu aceitaria.
Ela abriu a porta, e eu dei uma olhada no interior.
– Tudo bem – eu disse –, parece um bom lugar.
– Você tem emprego?
– Mais ou menos.
– Posso perguntar o que você faz?
– Sou escritor.
– Oh, você já escreveu livros?
– Oh, ainda não estou pronto pra escrever um romance. Por enquanto escrevo artigos, alguma coisa para revistas. Os textos não são grande coisa, mas estou melhorando.
– Tudo bem. Vou lhe dar uma chave e fazer um recibo.
Seguia-a novamente pela escada. O rabo não se movimentava com a mesma beleza descendo os degraus. Olhei sua nuca e me imaginei a beijá-la atrás das orelhas.
– Sou a sra. Adams – ela disse. – E você?
– Henry Chinaski.
Enquanto ela preenchia o recibo, eu escutava uns sons que lembravam o de uma madeira sendo serrada, vindos detrás de uma porta que ficava à nossa esquerda. O som de serragem era pontuado pelo ofegar de uma respiração penosa. Cada tomada de ar parecia ser a última, ainda que logo fosse sucedida por outra mais dolorosa.
– Meu marido está doente – disse a sra. Adams ao me passar o recibo e a chave. Sorriu. Seus olhos brilhantes tinham uma adorável cor de avelã. Dei meia-volta e segui pela escada.
Quando entrei no meu quarto, lembrei que havia deixado minha mala lá embaixo. Fui buscá-la. Ao passar pela porta da sra. Adams, os ofegos estavam muito mais altos. Levei minha mala escada acima, lancei-a sobre a cama, voltei a descer e ganhei a noite. Encontrei uma espécie de bulevar principal seguindo um pouco para o norte, entrei em uma mercearia e comprei um pote de manteiga de amendoim e um pão de sanduíche. Tinha uma faquinha de bolso e poderia assim espalhar a manteiga no pão e ter algo para comer.
Quando retornei à pensão, parei no saguão e fiquei com os ouvidos no sr. Adams, pensando, eis a Morte. Fui para o meu quarto, abri o pote de manteiga de amendoim e, enquanto escutava os sons do moribundo que vinham do térreo, mergulhei meus dedos fundo no vidro. Comi a pasta direto dos dedos. Estava uma delícia. Então abri o pão. Estava verde e úmido, exalando um cheiro azedo e forte. Como podiam vender um pão nesse estado? Que tipo de lugar era a Flórida? Joguei o pão no chão, tirei a roupa, apaguei as luzes, puxei as cobertas e me deitei no escuro, escutando.
Encontrei um emprego nos classificados do jornal. Fui contratado por uma loja de roupas, mas não em Miami, e sim em Miami Beach, e a cada manhã eu tinha que enfrentar uma travessia aquática junto com a minha ressaca. O ônibus corria por uma faixa muito estreita de cimento e ficava junto à água sem qualquer forma de guard-rail, nenhuma proteção. Só havia a pista. O motorista se recostava, e nós seguíamos sobre essa faixa estreita de cimento completamente cercada pela água, e todos a bordo, as vinte e cinco ou trinta pessoas, confiavam nele, mas eu jamais. Às vezes, era um motorista novo, e eu pensava, como eles selecionam esses filhos da puta? Havia água profunda nos dois lados, e um erro de julgamento mataria a todos nós. Isso era ridículo. Suponha que ele tenha brigado com sua mulher naquela manhã? Ou que tenha câncer? Ou que tenha visões de Deus? Um dente podre? Qualquer coisa. Seria o suficiente para ele. Lá estaríamos nós no fundo do mar. Sei que, se eu estivesse dirigindo, consideraria a possibilidade ou o desejo de afogar todo mundo. E algumas vezes, depois de ter feito essas consideração, a possibilidade passaria à ação. Para cada Joana d’Arc há um Hitler suspenso do outro lado da balança. A velha história do bem e do mal. Mas nenhum dos motoristas jamais nos lançou no mar. Por suas cabeças não passava mais do que prestações do carro, resultados do beisebol, cortes de cabelo, férias, enemas, visitas familiares. Não havia um homem de verdade entre toda aquela merda. Eu sempre chegava enjoado no trabalho, ainda que em segurança. O que demonstra porque Schumann é melhor termo de comparação que Shostakovich...
Fui contratado para o que eles chamavam de bola extra. O bola extra era o cara que fazia de tudo sem ter, ao mesmo tempo, nenhuma atividade específica. Ele devia saber o que fazer após consultar uma espécie profunda e infalível de sexto sentido. Instintivamente, esse cara devia saber como manter as coisas funcionando de modo natural, o que era melhor para a empresa, a Mãe de todos, e suprir-lhe todas as pequenas necessidades que eram irracionais, contínuas e insignificantes.
Um bom bola extra não tem face nem sexo e deve estar disposto a se sacrificar pela causa. Está sempre esperando junto à porta, antes mesmo do primeiro homem chegar. Logo deve lavar a calçada, cumprimentando cada pessoa pelo nome à medida que elas chegam, sempre trazendo no rosto um sorriso brilhante e encorajador. Reverente. Isso fará com que todos se sintam melhores antes que as engrenagens do moedor comecem a funcionar. Ele verifica se os papéis higiênicos estão em ordem, principalmente no banheiro feminino. Os cestos nunca devem estar cheios. As janelas não podem estar encardidas. Os pequenos reparos são prontamente feitos em mesas e cadeiras. Nada de portas que não abram facilmente. Os relógios sempre ajustados. Nenhum tapete enrugado. Jamais deixar uma mulher bem-alimentada e forte ficar sobrecarregada por um pacotinho qualquer.
Eu não era muito bom nisso. Minha ideia era vagar por aí sem fazer nada, evitando sempre cruzar com o chefe, além dos puxa-sacos que poderiam me denunciar. Eu não era tão esperto assim. Agia mais por instinto do que qualquer outra coisa. Sempre iniciava um trabalho com a sensação de que, assim que eu o terminasse, seria demitido, e isso me deu um ar tranquilo, que era facilmente confundido com inteligência ou algum poder secreto.
Era um comércio de roupas autossuficiente e autoabastecido, combinando fábrica e venda no atacado. O mostruário, os produtos finalizados e os vendedores ficavam todos no primeiro andar, enquanto a fábrica funcionava no segundo. A fábrica era um labirinto de passarelas e passagens que nem mesmo os ratos conseguiam vencer, longas e estreitas galerias onde homens e mulheres trabalhavam sob lâmpadas de trinta watts, inclinados, movendo os pedais, costurando, sem jamais erguer os olhos ou trocar uma palavra, curvos e calados, trabalhando incessantemente.
Certa vez, em um de meus empregos em Nova York, eu tinha trabalhado transportando tecido para fábricas como essa. Eu seguia com o caminhão por uma rua congestionada, vencendo o tráfego, e então entrava em uma ruela atrás de um prédio encardido. Havia um elevador escuro, e eu tinha que puxar umas cordas por umas roldanas de madeira. Uma das cordas era para subir, a outra para descer. Não havia luz e, enquanto o elevador subia lentamente, eu ficava de olho nos números brancos sobre a parede nua, números que brotavam da escuridão – 3, 7, 9, rabiscados a giz por uma mão esquecida. Chegava ao meu andar, puxava outra corda com meus dedos e, usando toda a minha força, abria com esforço e devagar uma velha e pesada porta de metal, revelando filas e mais filas de velhas senhoras judias sentadas às suas máquinas, trabalhando nas pilhas de tecidos. A costureira número 1 na máquina 1, inclinada, cuidando do seu espaço. A garota número 2 na máquina 2, pronta para substituí-la se fosse necessário. Elas jamais erguiam os olhos ou tomavam consciência de minha presença.
Nessa mistura de fábrica e comércio em Miami Beach, não havia necessidade de entregas. Tudo estava à mão. No meu primeiro dia, andei entre o labirinto de máquinas de costura olhando para as pessoas. Diferentemente de Nova York, a maioria dos trabalhadores era formada de negros. Aproximei-me de um negro, bem pequeno – quase anão –, que tinha um rosto mais agradável que os outros. Ele fazia algum trabalho de acabamento, com uma agulha. Eu tinha uma garrafinha no bolso.
– Seu trabalho é de matar. Vai um trago?
– Claro – ele disse.
Tomou um bom gole. Então devolveu a garrafa. Ofereceu-me um cigarro.
– Você é novo na cidade.
– Sim.
– De onde veio?
– Los Angeles.
– Um astro de cinema.
– Sim, de férias.
– Não devia estar falando com um costureiro.
– Eu sei.
Ele ficou em silêncio. Parecia um pequeno macaquinho, um macaco velho e gracioso. Para os caras do andar debaixo, ele era realmente um macaco. Tomei um gole. Sentia-me bem. Observava-os trabalhar, todos quietos sob suas lâmpadas de trinta watts, suas mãos movendo-se delicadas e habilidosas.
– Me chamo Henry – eu disse.
– Brad – ele respondeu.
– Escute, Brad, fico muito, mas muito deprimido vendo vocês trabalharem. Que tal se eu cantar uma música pra vocês?
– Não.
– Esse seu trabalho aqui é pavoroso. Por que você segue com isso?
– Porra, não tenho escolha.
– O Senhor disse que há!
– Você acredita no Senhor?
– Não.
– No que você acredita?
– Em nada.
– Então estamos quites.
Falei com alguns dos outros empregados. Os homens eram de poucas palavras, algumas das mulheres riam de mim.
– Sou um espião – eu ria de volta. – Sou um espião da companhia. Estou de olho em todo mundo.
Tomei outro gole. Cantei a eles minha música favorita, “My heart is a Hobo”. Eles seguiram trabalhando. Ninguém tirou os olhos das roupas. Quando terminei, eles seguiam no labor. Por alguns instantes, houve silêncio. Então escutei uma voz:
– Olha só, branquelo, não venha mais aqui.
Decidi que o melhor era passar uma mangueira na calçada da frente.
Levou quatro dias e cinco noites para que o ônibus chegasse a Los Angeles. Como de costume, não consegui dormir ou defecar durante a viagem. Houve uma certa excitação quando uma loira enorme embarcou em algum lugar da Louisiana. Naquela noite ela começou a se vender por US$ 2, e todos os homens e uma das mulheres do ônibus se aproveitaram de sua generosidade, excetuados o motorista e eu. As transações comerciais se davam à noite na parte traseira do veículo. Ela se chamava Vera. Usava um batom púrpura e ria por qualquer motivo. Aproximou-se de mim durante uma rápida parada em uma cafeteria. Plantou-se atrás de mim e me perguntou:
– Qual é, se acha bom demais pra mim?
Não respondi.
– Veadinho.
Ao retornar para o lado de um dos seus fregueses, ouvi seus resmungos enojados...
Em Los Angeles, fiz uma ronda nos velhos bares da vizinhança à procura de Jan. Não obtive qualquer sucesso antes de encontrar Whitey Jackson, que estava trabalhando atrás do balcão no Pink Mule. Ele me disse que Jan estava trabalhando como camareira no Durham Hotel na Beverly com a Vermont. Fui até lá. Eu procurava pelo escritório da gerência quando ela saiu de um dos quartos. Estava com uma boa aparência, como se esse tempo longe de mim lhe tivesse feito bem. Então ela me viu. Não fez nada além de ficar onde estava, parada, apenas seus olhos foram ficando maiores e mais azuis. Até que ela disse:
– Hank!
Correu em minha direção e nos abraçamos. Beijou-me com loucura, que tentei retribuir.
– Por Deus – ela disse –, achei que nunca mais fosse ver você!
– Voltei.
– De vez?
– Minha cidade é L.A.
– Afaste-se um pouco – ela disse –, deixe-me ver você.
Dei um passo para trás, um sorriso aberto no rosto.
– Você está magro. Perdeu peso – Jan disse.
– Você está ótima. Está com alguém?
– Não.
– Não há ninguém mesmo?
– Ninguém. Você sabe que não suporto as pessoas.
– Estou feliz que você esteja trabalhando.
– Venha até o meu quarto – ela disse.
Fui atrás dela. O quarto era muito pequeno, mas tinha um quê de agradável. Você podia olhar o tráfego lá fora pela janela, ver o semáforo mudar de cor, o garoto vendendo jornal na esquina. Gostei do lugar. Jan se jogou na cama.
– Venha, deite aqui do meu lado – ela disse.
– Estou constrangido.
– Eu te amo, seu idiota, nós já trepamos umas 800 vezes, então relaxe.
Tirei meus sapatos e me estiquei na cama. Ela ergueu uma das pernas.
– Continua gostando do que vê?
– Claro que sim! Jan, você terminou seu serviço?
– Sim, com exceção do quarto do sr. Clark. E ele não liga muito pra isso. Ele sempre me dá gorjetas.
– Jan...
– Sim?
– A passagem de ônibus me deixou pelado. Preciso de um lugar pra ficar até arranjar um emprego.
– Posso esconder você aqui.
– Sério?
– Claro.
– Eu te amo, baby – eu disse.
– Cretino – ela respondeu.
Começamos a fazer amor. Estava uma delícia. Uma verdadeira e genuína delícia.
Depois que terminamos, Jan se levantou e abriu uma garrafa de vinho. Abri meu último maço de cigarros e sentamos na cama para beber e fumar.
– Você está todo lá – ela disse.
– Como assim?
– Digo, nunca conheci um homem como você.
– Ah, é?
– Os outros chegavam só uns dez ou vinte por cento lá, você está lá inteiro, você todo está bem lá, é tão diferente.
– Não sei do que você está falando.
– Você tem um gancho, você prende as mulheres.
Aquilo fez eu me sentir bem. Após terminarmos nossos cigarros, voltamos a fazer amor. Então Jan me mandou ir buscar mais uma garrafa. Retornei. Eu tinha que retornar.
Fui contratado de imediato por uma companhia de lâmpadas fluorescentes. Ficava na Alameda Street, na direção norte, em um agrupamento de armazéns. Eu trabalhava no balcão. Era uma verdadeira barbada, pois eu apanhava os pedidos em uma cesta, preenchia-os, embrulhava os conjuntos em papelão e os deixava no setor de expedição, cada conjunto etiquetado e com o endereço de entrega. Eu pesava os embrulhos, acrescentava o valor do transporte e ligava para a transportadora para que viesse apanhar as encomendas.
No primeiro dia em que eu estava lá, no turno da tarde, ouvi um estrondo atrás de mim, próximo à linha de montagem. As velhas caixas de madeira que continham as partes prontas corriam para longe da parede e se espatifavam no chão – metal e vidro atingindo em cheio o cimento do piso, explodindo, produzindo uma terrível barulheira. Os trabalhadores da linha de montagem correram para o outro lado do prédio. Então tudo ficou em silêncio. O chefe, Mannie Feldman, saiu de seu escritório.
– Que diabos está acontecendo aqui?
Ninguém respondeu.
– Certo, desliguem a linha de montagem! Vocês todos, peguem pregos e martelo e deem um jeito nessas caixas de madeira!
O sr. Feldman retornou para o seu escritório. Não havia nada que eu pudesse fazer além de me apresentar para ajudá-los. Nenhum de nós era carpinteiro. Foi preciso toda a tarde e mais da metade da manhã seguinte para que conseguíssemos pregar todas as caixas. Ao terminarmos, o sr. Feldman saiu de seu escritório.
– Então, conseguiram? Muito bem, agora me escutem: quero as 939 em cima, as 820 logo abaixo, os lanternins e vidros nas caixas mais de baixo, entenderam? Será que há alguém aqui que pode não ter entendido o que é pra fazer?
Não houve nenhuma resposta. As 939 eram as caixas mais pesadas – extremamente pesadas – e ele as queria por cima. Ele era o chefe. Fizemos o que ele mandou. Colocamos as 939 no topo, todo aquele peso, e deixamos as mais leves por baixo. Então retornamos ao trabalho. As caixas resistiram o resto do dia e da noite seguinte. Pela manhã, começamos a ouvir uns rangidos. Eram as caixas cedendo. Os trabalhadores da linha de montagem começaram a se afastar, não contendo as gargalhadas. Cerca de dez minutos antes do intervalo da manhã, todas as caixas desabaram. O sr. Feldman veio correndo de seu escritório:
– Mas que diabos está acontecendo aqui?
Feldman tentava receber seu seguro e decretar falência ao mesmo tempo. Na manhã seguinte, um homem de aspecto muito digno veio da parte do Banco da América. Ele nos disse para não montarmos mais nenhuma caixa. “Apenas recolham essa merda do chão”, foi o modo como colocou a questão. Ele se chamava Jennings, Curtis Jennings. Feldman devia ao Banco da América um caminhão de dinheiro, e agora eles o queriam de volta, antes que o negócio falisse. Jennings assumiu o controle da companhia. Estava sempre circulando, observando o trabalho de todos. Mergulhou fundo nos livros-caixa de Feldman; verificou as trancas e as janelas e a cerca de segurança em torno ao estacionamento. Veio até mim:
– Não use mais a transportadora Sieberling. Foram roubados quatro vezes ao transportarem um de nossos carregamentos entre o Arizona e o Novo México. Alguma razão em especial pra você estar trabalhando com esse pessoal?
– Não, nenhuma razão.
O representante da Sieberling me passava dez centavos por baixo dos panos a cada duzentos quilos em mercadorias despachadas.
Em três dias, Jennings demitiu um homem que trabalhava no escritório principal e o substituiu por três jovens mexicanas cheias de disposição para trabalhar por metade do que o outro ganhava. Demitiu também o homem da limpeza e, além de ter que despachar as mercadorias, incluiu em meu trabalho a função de motorista da empresa para entregas locais.
Assim que recebi meu primeiro contracheque, me mudei do quartinho de Jan para um apartamento só meu. Ao chegar certa noite, ela havia se mudado para lá. Ora, foda-se, eu lhe disse, minha terra é sua terra. Pouco tempo depois, tivemos nossa pior briga. Ela foi embora, e eu fiquei bêbado por três dias e três noites. Assim que recuperei a sobriedade, soube que meu trabalho já era. Nunca voltei lá. Decidi limpar o apartamento. Aspirei o chão, escovei as esquadrias das janelas, esfreguei a banheira e a pia, encerei o chão da cozinha, matei todas as aranhas e baratas, esvaziei e lavei os cinzeiros, lavei os pratos, areei a pia da cozinha, estendi toalhas limpas e coloquei um novo rolo de papel higiênico no banheiro. Devia ser a veadagem chegando, pensei.
Quando Jan finalmente voltou para casa – uma semana depois –, acusou-me de ter trazido uma mulher aqui, pois tudo parecia limpo demais. Ela aparentava uma fúria imensa, que não passava, obviamente, de disfarce para sua própria culpabilidade. Eu não conseguia entender por que não me livrava dela. Era uma adúltera compulsiva – ia com qualquer um que conhecesse num bar e, quanto mais baixo e imundo fosse, mais ela gostava. Usava continuamente nossas brigas para se justificar. No íntimo, eu seguia me dizendo que todas as mulheres do mundo não eram putas, somente a minha.
– Factótum
Margie ia sair com um sujeito, mas, no caminho, esse sujeito encontrou com outro que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito, vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas e ele iria trepar com esse sujeito. Então Margie foi até a casa de Carl. Carl estava em casa e ela se sentou e disse para Carl:
– Um sujeito ia me levar para um café com mesas na calçada e íamos beber vinho e conversar, só beber vinho e conversar, só isso, nada mais, mas, no caminho para me encontrar, esse sujeito encontrou outro com um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro lhe mostrou as tetas e agora esse sujeito vai trepar com o sujeito com casaco de couro e eu fico sem minha mesa e meu vinho e minha conversa.
– Não consigo escrever – disse Carl. – Acabou-se.
Então ele se levantou e foi até o banheiro, fechou a porta e deu uma cagada. Carl cagava quatro ou cinco vezes por dia. Não havia mais nada a fazer. Ele tomava cinco ou seis banhos por dia. Não havia mais nada a fazer. Ficava bêbado pela mesma razão.
Margie ouviu a descarga da privada. Então Carl saiu do banheiro.
– Um homem simplesmente não consegue escrever oito horas por dia. Nem mesmo consegue escrever todo dia ou toda semana. É uma situação péssima. Não há nada a fazer além de esperar.
Carl foi até a geladeira e voltou com um pacote de seis garrafas de cerveja Michelob. Abriu uma garrafa.
– Sou o maior escritor do mundo – ele disse. – Você sabe como isso é difícil?
Margie não respondeu.
– Posso sentir a dor rastejando por todo o meu corpo. É como uma segunda pele. Queria poder me livrar dessa pele como uma cobra.
– Bem, por que você não se deita no tapete e tenta?
– Escute – ele perguntou –, onde foi que a conheci?
– Na Bodega do Barney.
– Bem, isso explica um pouco as coisas. Beba uma cerveja.
Carl abriu uma garrafa e lhe entregou.
– É... – disse Margie – eu sei. Você precisa do seu isolamento. Você precisa ficar sozinho. Exceto quando quer trepar, ou exceto quando nos separamos, então você me liga. Diz que precisa de mim. Diz que está morrendo por causa de uma ressaca. Você enfraquece rápido.
– Enfraqueço rápido.
– E fica tão inerte quando estou por perto, nunca se excita. Vocês escritores são tão... preciosos... não suportam pessoas. A humanidade fede, certo?
– Certo.
– Mas toda vez que nos separamos você começa a fazer festas gigantes que duram quatro dias. E de repente você acorda, começa a FALAR! De repente fica cheio de vida, falando, dançando, cantando, dança em cima da mesa de café, joga garrafas pela janela, encena trechos de Shakespeare. De repente, você está vivo... quando estou longe. Ah, fiquei sabendo de tudo!
– Não faço festas. Odeio ainda mais as pessoas nas festas.
– Para um sujeito que não gosta de festas, certamente você organiza um bocado delas.
– Escute, Margie, você não entende. Não consigo mais escrever. Estou acabado. Em algum lugar tomei uma trajetória errada. Em algum momento, morri durante a noite.
– O único jeito de você morrer é numa dessas suas ressacas gigantescas.
– Jeffers diz que até mesmo o mais forte dos homens fica encurralado.
– Quem foi Jeffers?
– Foi o sujeito que transformou Big Sur numa armadilha para turistas.
– O que você ia fazer essa noite?
– Ia ouvir as músicas de Rachmaninoff.
– Quem é?
– Um russo que já morreu.
– Olha para você. Fica aí sentado.
– Estou esperando. Alguns sujeitos esperam por dois anos. Às vezes a coisa nunca volta.
– E se nunca voltar?
– Apenas calçarei meus sapatos e descerei até a rua principal.
– Por que não arranja um emprego decente?
– Não existem empregos decentes. Se um escritor não consegue sucesso através da criação, está morto.
– Ah, para com isso, Carl! Existem bilhões de pessoas no mundo que não atingem o sucesso pela criação. Quer me dizer que elas estão mortas?
– Sim.
– E você tem uma alma? Você é um dos poucos que tem uma alma?
– Diria que sim.
– Diria que sim! Você e a sua maquininha de escrever! Você e os seus cheques mirrados! Minha avó ganha mais dinheiro do que você!
Carl abriu outra garrafa de cerveja.
– Cerveja! Cerveja! Você e a porra da sua cerveja! Isso está nas suas histórias também. “Marty ergueu sua cerveja. Quando levantou os olhos, uma tremenda loira entrou no bar e sentou ao seu lado...” Você está certo. Está acabado. Seu material é limitado, muito limitado. Você não consegue escrever uma história decente de amor.
– Você está certa, Margie.
– Se um homem não consegue escrever uma história de amor, ele é um inútil.
– Quantas você já escreveu?
– Não digo que sou uma escritora.
– Mas – disse Carl – você parece posar como uma crítica literária infernal.
Margie, depois disso, foi logo embora. Carl ficou sentado e bebeu o resto das cervejas. Era verdade, a escrita o havia deixado. Isso deixaria algum de seus inimigos do subsolo felizes. Eles poderiam aumentar em um tento a marca dos inimigos abatidos. A morte os agradava, em cima ou embaixo da terra. Lembrou-se de Endicott, Endicott sentado, dizendo:
– Bem, Hemingway se foi, Dos Passos se foi, Patchen se foi, Pound se foi, Berryman pulou daquela ponte... as coisas estão parecendo cada vez melhores.
O telefone tocou. Carl atendeu.
– Sr. Gantling?
– Sim – ele respondeu.
– Gostaríamos de saber se você estaria interessado em uma leitura de algum dos seus trabalhos na Faculdade Fairmount.
– Bem, sim, qual a data?
– No dia 30 do próximo mês.
– Acho que não tenho nada marcado para esse dia.
– Nosso pagamento geralmente é de cem dólares.
– Geralmente recebo 150. Ginsberg ganha mil.
– Mas ele é Ginsberg. Podemos oferecer apenas cem.
– Tudo bem.
– Bom, sr. Gantling. Enviaremos os detalhes para você.
– E o transporte? Dirigir até aí não é pouca coisa.
– Ok, 25 dólares pela viagem.
– Ok.
– Gostaria de falar com os estudantes em suas classes?
– Não.
– Oferecemos um almoço grátis.
– Vou aceitar o almoço.
– Bom, sr. Gantling, estaremos esperando para vê-lo em nosso campus.
– Nos falamos.
Carl foi até o quarto. Olhou para a máquina de escrever. Colocou uma folha de papel no rolo, então observou uma garota com uma minissaia surpreendentemente curta cruzar pela frente de sua janela. Depois começou a escrever:
“Margie ia sair com um sujeito, mas, no caminho, esse sujeito encontrou com outro que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito, vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas...”
Carl ergueu sua cerveja. Era bom voltar a escrever.
– Ao sul de lugar nenhum
Meus olhos não fabricam
a realidade ou tu:
limpos barcos,
novidade acesa como a terra viva,
movimento de braços, amálgama
exacta duna.

Meus olhos não fabricam mas encontram.

A terra que se enche já vem cheia,
o hálito começa na claridade do céu.
Os homens dançam por vezes.
Este momento é teu.
*
Ó calmo olhar animal
da terra ao mar, popa
de espuma.
O mundo é natural, ridente, quando o verde rompe,
animal olhar.
Não estou só: porque te acendo entre as pedras,
abarco tua altura larga e teu ombro,
essência da fome visual e braço e nome.
*
Do teu calor me nutro e fortifico,
no silêncio da tua espera.
Brilha o teu tecido circular,
a terra é um átrio: o mar é perto.
Há passos de mulher descalça.
O mundo é novo.
A terra clara.
*
Eu sou o homem que te ama e escuta
concentradamente no calor dum muro.
Cerrado, oiço a tua unidade plural,
vejo teus dedos grossos,
tuas marcas fêmeas, tua elegância dolorosa.
Teus seios me nutrem, olhando-te.
*
Mastigo-te, raiz, e quase te oiço.
Construo um músculo verbal em teu ouvido,
alimento-me do teu mar visual e lento:
renasço pouco a pouco no teu horizonte dado.
Revejo-me num corpo ao pé do mar.
*
Silêncio no teu olhar, na tua boca.
Em tua língua primitiva o mar se olha.
É o deserto e falas, boca brusca
de ignorado alento.
Não te construo, constróis-me, construo-te
construo-te, mar,
parede pura,
criada.
*
Aqui onde o sol se acende em carne,
onde a casa é um nome de mar,
e os frutos e os espelhos
amadurecem o corpo solidário:
É Verão.

Aqui tu és
lenta verdade no sossego do sangue:
circulação de nomes e de peixes.
*
Aqui, à fome dos nomes e dos seres,
respondes, corpo do mar, coluna real
e teus acidentes se cumprem como ondas.
Aqui te palpo, vela, aqui te vejo, pomo,
formas meus braços, se te enleio,
desato simplesmente os teus anéis,
bebo-te sem te extinguir e sem me esperares.
Amanhã serás tu, sendo já hoje.
*
Recebendo-te como outra, outra nasces
e a ti mesma te igualas, porque és mar.
Teu corpo denso se aproxima, ora se afasta.
Há um perfume de uma noite inextinguível
nas tuas coxas claras.
*
Oiço-te ampla sob os ruídos.
Vária e verde, tapete derramado
sobre os ombros: acordas.
Não te peço qualquer nome, tu és banho
de calor fecundo, ondulação de frutos
sobre a mesa de pedra em que te aceito.
*
Em tua boca respiram as janelas.
Tua música de muros e varandas
abre-se ao céu e às ténues páginas.
*
Vejo-te abundante e a minha sede cresce,
obscura ainda, renascente já.
Quero claramente reconhecer-me em ti.
Entrego-me sem espelhos, amálgama,
no teu silêncio me envolvo e te circundo.
És mais exacta, mais dura, mais viva.
A tua recusa cresce como um céu
por sobre o muro.
*
Aconteceram hoje palavras como folhas
na tua nuca de silêncio.
Como pássaros que ainda mais dizem o céu,
como pedras que ainda mais dizem a terra,
aconteceram hoje palavras que disseram
o nosso encontro em fuga.
*
O que sei de ti: ignorância
conquistada, lábios que se movem,
forma de vertigem declinada,
aridez, aridez: cabeça rente
às perspectivas fechadas.
O que sei: ocupação de ti, nunca ocupada,
aberta, ignorada, sempre viva,
ó encontrada!
*
O que sei de ti é olhar e não te ver,
é fuga abrupta, mar que se fecha sob pálpebras,
pupila violenta, larga lâmina,
facilidade pura
sem rede, sem degraus: só verde, extensa,
ramificada parede de sol,
perpétuo lar do instante amadurecido,
virgem, verde, real,
alento que respiro,
brilho, beijo na pedra.
*
Teus nomes, tua mesa
onde disponho os copos:
à luz demasiado crua e logo ténue
as palavras serão simples, vagarosas.

Entre nós, quantas paredes repercutem
esta dureza aguda.
Um corpo desenhado nos seus ossos.

Um olhar entre o gume da faca
e a simplicidade do pão.
Uma fala justa.
*
Às vezes sinto-te entre o sol e o papel,
às vezes oiço-te quase respirar
nas tranquilas coisas repousadas,
mas sempre estou a procurar-te.

Não te detenho nem fiel te sou,
às vezes, simplesmente, sem que o queira
e de tanto te querer, já o sou,
roda rodando no meu pulso,
ao lento baile em que a visão começa.
*
Sou pobre antes de ti. Pobre, regresso
a esta mão póstuma, a este olhar difuso.
Pobre te quero, te saúdo ainda.
A ti voltarei, nudez com veias,
mais do que pobre, aceso e nu à mesa.
*
É sobre o silêncio e sobre a noite,
sobre a miséria, sobre o ventre, sobre o amor,
mas ainda mais sobre o corpo inominado:
sobre a fome, sobre a luz do corpo exacto,
o corpo brando e duro: o corpo intacto,
o corpo pleno e vivo à luz das ruas:
pão descoberto, aberto, sem fissuras.
*
É pão e onda e tem sabor a terra
e tem sabor a mar.
Até aos ombros coluna e fogo alto,
forma palpável do sol desenrolada,
ao olhar, às mãos, à língua,
a luz que se fez corpo
e baila nas calçadas.
*
Respiração e fome conjugadas
no abraço sem nuvens,
pão de sol comido língua a língua,
ó novo alento, ó nova criatura,
sempre a que nasce doutra e é mais pura.
*
Defronte os ombros nus,
o espaço aberto: uns braços longos.
Defronte: um corpo. Serenidade.
Eu tudo sei do corpo ao dia,
da terra ao espaço, de mim a ti.

Eu tudo sei e assim descubro
a luz, a água, o pão, o corpo:
habito a terra, habito mais,
contra mim mesmo descanso e nasço.
*
Esta ciência de inocência e água
se toco, delicado, ou pão ou página,
ou corpo, ou fruto, ou verde folha,
este pisar que é duro e leve,
a frescura e a sombra, o ar, a luz
— tudo me dás, tudo te dou, tudo nos damos.
*
E a terra mais próxima e as ervas
e os bichos translúcidos entre pedras,
a serena eclosão dos nomes, cabeleira
sobre o corpo fresco, intenso e nu.
Verdade ainda mais próxima dos tranquilos campos,
paz que se alonga às searas por um corpo amado,
renhidamente amado entre a verdura
na noite de estrelas claras e estáticas.
*
Sóbrio o teu corpo me pede
penetração: nomes puros:
os de boca, braços, mãos
sobre a terra e sobre os muros.

Sóbrio o teu corpo me pede
nomes justos, nomes duros:
os de terra, fogo e punhos,
claros, acres, escuros.
I
Cristóbal Miranda
(“palero”, Tocopilla)

Te conheci, Cristóbal, nas lanchas
da baía, quando desce
o salitre, para o mar, na queimante
vestimenta de um dia de novembro.

Relembro aquele garbo extático,
os cerros de metal, a água quieta.

E só o homem das lanchas, úmido
de suor, removendo neve.

Neve dos nitratos, derramada
sobre os ombros da dor, caindo
na barriga cega das naves.

Ali, sapadores, heróis de uma aurora
carcomida por ácidos, sujeita
aos destinos da morte, firmes,
recebendo o nitrato caudaloso.

Cristóbal, esta lembrança para ti.

Para os camaradas da sapa,
em cujos peitos entra o ácido
e as emanações assassinas,
inchando como águias machucadas
os corações, até que tomba o homem,
até que role o homem pelas ruas,
para as cruzes quebradas do pampa.

Bem, não digamos mais nada, Cristóbal, agora
este papel que te recorda, a todos,
aos lancheiros da baía, ao homem
enegrecido dos barcos, meus olhos
seguem com vocês nesta jornada
e minha alma é uma pá que se ergue
carregando e descarregando sangue e neve,
junto de vocês, vida do deserto.




II
Jesús Gutiérrez
(“agrarista”)

Em Monterrey morreu meu pai
Genovevo Gutiérrez, se foi
com Zapata.
De noite os cavalos
perto de casa, a fumaça
dos federais, os tiros no vento,
o furacão que sai do milho,
levei o fuzil de lado a lado,
desde as terras de Sonora,
dormíamos de vez em quando, medíamos
rios e bosques, a cavalo,
entre mortos, a defender
a terra do pobre, feijões,
omelete, guitarra, rolávamos
até o limite, éramos pó,
os senhores nos faziam madrugar,
até que de cada pedra
nasciam os nossos fuzis.

Aqui está minha casa, minha terra
pequena, o certificado
firmado por meu general
Cárdenas, os perus,
os patinhos na lagoa,
agora já não se luta,
meu pai ficou em Monterrey
e aqui pendurado na parede
junto à porta a cartucheira,
o fuzil pronto, o cavalo pronto,
pela terra, por nosso pão,
amanhã talvez a galope,
se o meu general me aconselha.




III
Luis Cortés
(de Tocopilla)

Camarada, meu nome é Luis Cortés.

Quando veio a repressão, em Tocopilla
me agarraram.
Me atiraram em Pisagua.

Você, camarada, sabe como é isso.

Muitos caíram doentes, outros
enlouqueceram.
É o pior
campo de concentração de González
Videla.
Vi Ángel Veas morrer,
do coração, uma manhã.
Foi horrível
ver Veas morrer nessa areia assassina,
rodeado de cercas de arame, depois de toda
sua vida generosa.
Quando me senti doente
também do coração, me mudaram
para Garitaya.
Você não conhece, camarada.

É lá no alto, na fronteira com a Bolívia.

Um ponto desolado, a 5000 metros de altura.

Há uma água salobre para beber, mais
salobre que a água do mar, e cheia de pulgões
como vermes rosados que pululam.

Faz frio e parece que o céu em cima
da solidão vai cair sobre nós,
sobre meu coração que já mal se agüenta.

Os próprios carabineiros tiveram pena
e contra a ordem de deixar a gente morrer
sem querer nunca mandar uma maca,
me amarraram a uma mula e descemos as montanhas:
26 horas caminhou a mula, e meu corpo
já não resistia, camarada, entre a cordilheira sem caminhos,
e meu coração doente, e aqui estou eu, olhe
os machucados, não sei até quando vou viver,
mas você sente, não quero pedir nada,
conte você, camarada, o que faz ao povo o desgraçado,
a nós que o levamos à altura em que ri
com um riso de hiena em cima de nossas dores,
conte, você, camarada, conte, conte, pouco importa minha morte,
nem os nossos sofrimentos, pois a nossa luta é grande,
mas que fiquem sabendo destes sofrimentos,
que fiquem sabendo, camarada, não se esqueça.




IV
Olegario Sepúlveda
(sapateiro, Talcahuano)

Olegario Sepúlveda é meu nome.

Sou sapateiro, fiquei
coxo desde o grande terremoto.

Sobre o cortiço um pedaço de morro
e o mundo em cima de minha perna.

Lá gritei dois dias,
mas minha boca ficou cheia de terra,
gritei mais mansamente
até que adormeci para morrer.

Foi um grande silêncio o terremoto,
o terror dos morros,
as lavadeiras choravam,
uma montanha de pó
enterrou as palavras.

Aqui está me vendo com esta sola
defronte do mar, o único limpo,
as ondas nem eram pra chegar
azuis na minha porta.

Talcahuano, tuas grades sujas,
teus corredores de pobreza,
nos morros água podre,
madeira quebrada, covas negras
onde o chileno mata e morre.

(Ó dores do fio aberto
da miséria, lepra do mundo,
arrabalde dos mortos, gangrena
acusadora e venenosa!
Haveis vindo do sombrio
Pacífico, à noite, ao porto?
Haveis tocado entre as pústulas
a mão do menino, a rosa
salpicada de sangue e urina?
Haveis erguido os olhos
para os degraus retorcidos?
Haveis visto a mendiga
com um arame na lixeira
tremer, levantar os joelhos
e olhar lá do fundo onde
já não restam lágrimas nem ódio?)
Sou sapateiro em Talcahuano.

Sepúlveda, na frente do dique Grande.

Quando quiser, meu senhor, pobre
nunca fecha a porta.




V Arturo Carrión
(navegante, Iquique)

junho, 1948.
Querida Rosaura, aqui
estou eu, em Iquique, preso, me mande uma camisa
e fumo.
Não sei
até quando vai durar este baile.

Quando embarquei no Glenfoster
pensei em você, escrevi de Cádiz,
ali fuzilaram à vontade, e aí foi mais
triste em Atenas, naquela manhã
no cárcere mataram com tiro
duzentos e setenta e três moços:
o sangue corria até fora do muro,
vimos saírem os oficiais
gregos com os chefes norte-americanos, vinham rindo:
eles gostam do sangue do povo,
mas tinha um espécie de fumo preto
na cidade, estava escondido o choro, a dor, o luto,
comprei pra você uma carteira de cartões de visita, lá
conheci um patrício de Chiloé,
tem um pequeno restaurante, me disse
as coisas andam ruíns, há ódio:
mas ficou melhor na Hungria,
os camponeses têm terra,
distribuem livros, em Nova York
encontrei tua carta, mas todos
se juntam, pau e pau no pobre,
está vendo só, eu, marinheiro velho
e porque sou do sindicato,
já na coberta
me pegaram, me perguntaram
besteiras, me deixaram preso,
polícia em toda parte.

lágrimas também no pampa:
até quando estas coisas
vão continuar, perguntam todos, hoje é um
e outro pau para o pobre,
dizem que em Pisagua há dois mil,
eu pergunto o que está acontecendo no mundo,
mas não se tem direito de perguntar
assim, diz a polícía: não esqueça o fumo, fale com o Rojas
se ele não está preso, não chores,
o mundo já tem lágrimas
demais, outra coisa é que faz falta
e aqui digo até breve pra você, um
abraço e um beijo do esposo amoroso
Arturo Carrión Cornejo, cárcere de Iquiyue.




VI
Abraham Jesús Brito
(poeta popular)

Jesús Brito é seu nome, Jesús Parreira ou povo,
e foi-se fazendo água pelos olhos,
e pelas mãos se foi fazendo raízes.

até que o plantaram de novo onde esteve
antes de ser, antes que brotasse
do território, entre as pedras pobres.


E foi entre mina e marinheiro uma ave
nodosa, um patriarcal seleiro
da cortiça suave da pátria terrível:
quanto mais fria, mais luz a encontrava:
quanto mais duro o solo, mais lua lhe saía:
quanto mais fome, mais cantava.


E todo o mundo ferroviário abria
com sua chave e sua lira sarmentosa,
e pela espuma da pátria caminhava
cheio de pacotinhos estrelados,
ele, a árvore do cobre, ia regando
cada pequeno trevo acontecido,
o espantoso crime, o incêndio,
e o ramo dos rios tutelares.


Sua voz era a dos gritos roucos
perdidos na noite dos raptos,
ele levava sinos torrenciais
recolhidos à noite em seu chapéu,
e recolhia em seu casaco esfarrapado
as transbordantes lágrimas do povo.

Ia pelos ramais arenosos,
pelo espaço afundado do salitre,
pelos ásperos montes litorâneos
construindo o romance prego a prego,
e telha a telha levantando o verso:
deixando nele a mancha das mãos
e as goteiras da ortografia.


Brito, pelas paredes capitais,
entre o rumor dos cafés,
andavas como uma árvore peregrina
procurando terra com os pés profundos,
até que foste te fazendo raízes,
pedra e torrão e mineração escura.


Brito, a tua majestade foi batida
como um tambor de majestoso couro
e era uma monarquia à intempérie
a tua altivez de arvoredo e povo.


Árvore errante, agora as tuas raízes
cantam debaixo da terra, e em silêncio.

Um pouco mais profundo és agora.

Agora tens terra e tens tempo.




VII
Antonino Bernales
(pescador, Colômbia)

No rio Magdalena anda como a lua,
lento pelo planeta de folhas verdes,
uma ave vermelha ulula, zumbe o som
de velhas asas negras, as margens
têm o transcorrer de águas e águas.

Tudo ê o rio, toda vida é rio,
e Antonino Bernales era rio.

Pescador, carpinteiro, voga, agulha
de rede, prego para as tábuas,
martelo e canto, tudo era Antonino
enquanto o Magdalena como a lua lenta
arrastava o caudal das vidas do rio.

Mais alto em Bogotá, chamas, incêndio,
sangue, se diz, não é bem claro,
Gaytán morreu.
Entre as folhas
como um chacal o riso de Laureano
açula as fogueiras, um tremor
de povo como um calafrio
percorre o Magdalena.

É Antonino Bernales o culpado.

Não se mexeu de sua pequena choça.

Passou dormindo aqueles dias.

Mas os advogados o intimam,
Enrique Santos deseja sangue.

Unem-se todos debaixo dos fraques.

Antonino Bernales tombou
assassinado na vingança,
caiu abrindo os braços no rio,
voltou ao rio como à água mãe.

O Magdalena leva ao mar seu corpo
e do mar a outros rios, a outras águas
e a outros mares e a outros pequenos rios
girando em redor da terra.

Outra vez
entra no Magdalena, são as margens
que ele ama, abre os braços de água vermelha,
passa entre sombras, entre luz espessa,
e outra vez segue o seu caminho de água.

Antonino Bernales, ninguém pode
distinguir-te na torrente, eu sim, eu te recordo
e ouço arrastar teu nome que não pode
morrer, e que envolve a terra,
nome apenas, entre os nomes, povo.




VIII
Margarita Naranjo
(Salitreira María Elena, Antofagasta)

Estou morta.
Sou de María Elena.

Vivi a vida toda no pampa.

Demos o sangue para a companhia
norte-americana, meus pais antes, meus irmãos.

Sem greve nenhuma, sem nada, nos cercaram.

Era de noite, veio todo o Exército,
iam de casa em casa acordando a gente,
levando todos para o campo de concentração.

Eu esperava que nós não fôssemos.

Meu marido trabalhou tanto para a companhia,
e para o presidente, foi o mais esforçado,
conseguindo os votos aqui, é tão querido,
ninguém tem nada pra dizer dele, ele luta
por seus ideais, é puro e honrado
como poucos.
Aí chegaram à nossa porta,
mandados pelo Coronel Urízar,
e o pegaram ainda se vestindo e a empurrões
o lançaram no caminhão que partiu na noite,
para Pisagua, para a escuridão.
Então
achei que já não podia mais respirar, parecia
que a terra me faltava debaixo dos pés,
é tanta traição, tanta injustiça,
que me subiu à garganta algo como um soluço
que não me deixou mais viver.
Me trouxeram comida
as companheiras, e eu lhes disse: “Não comerei até que ele volte”.

Três dias depois falaram com o Sr.
Urízar,
que deu grandes gargalhadas, mandaram
telegramas e telegramas que o tirano em Santiago
não respondeu.
E eu fui dormindo e morrendo,
sem comer, apertei os dentes para não receber
nem mesmo sopa ou água.
Não voltou, não voltou,
e pouco a pouco fiquei morta, e me enterraram:
aqui, no cemitério do escritório salitreiro,
havia naquela tarde um vento de areia,
choravam os velhos e as mulheres cantavam
as canções que tantas vezes cantei com elas.

Se eu pudesse, teria espiado para ver se lá estava
Antonio, meu marido, mas não estava, não estava,
não o deixaram vir nem a minha morte: agora
aqui estou morta, no cemitério do pampa
só tenho a solidão ao redor de mim, que já não existo,
que já não existirei sem ele, nunca mais, sem ele.




IX
José Cruz Achachalla
(mineiro, Bolívia)

Sim, senhor, José Cruz Achachalla,
da serra de Granito, no sul de Oruro.

Pois lá deve viver ainda
minha mãe Rosalía:
trabalha para uns senhores,
pois é, lavando roupa.

A gente passava fome, capitão,
e com uma varinha batiam
em minha mãe todos os dias.

Por isso virei mineiro.

Fugi pelas grandes serras,
uma folhinha de coca, senhor,
uns ramos na cabeça
e andar, andar, andar.
Os abutres
me perseguiam lá do céu,
e eu pensava: são melhores
que os senhores brancos de Oruro,
e assim andei até o território
das minas.

Já faz
quarenta anos, eu era então
um menino faminto.
Os mineiros
me receberam.
Fui aprendiz
nas galerias escuras,
unha por unha contra a terra,
apanhei o estanho escondido.

Não sei aonde nem pra quê
saem os lingotes prateados:
vivemos mal, as casas em ruínas,
e a fome, outra vez, senhor,
e quando
a gente se juntava, capitão,
para mais um peso de salário,
o vento vermelho, o pau, o fogo,
a polícia nos batia,
e aqui estou, pois é, capitão,
despedido do serviço,
me diga pra onde eu vou,
ninguém me conhece em Oruro,
estou velho como as pedras,
já não posso cruzar os montes,
que posso fazer por esses caminhos,
aqui mesmo agora eu fico,
podem me enterrar no estanho,
pois só o estanho me conhece.

José Cruz Achachalla, sim,
não continues a bater pernas,
até aqui chegaste, até aqui,
Achachalla, até aqui chegaste.




X
Eufrosino Ramírez
(Casa Verde, Chuquicamata)

Tínhamos de tomar as pranchas quentes
de cobre com as mãos, e entregá-las
à pá mecânica.
Saíam quase ardendo,
pesavam mais que o mundo, íamos extenuados
transportando as lâminas do mineral, às vezes
uma delas caía sobre um pé e o quebrava,
sobre uma mão que virava um coto.

Vieram os gringos e disseram: “Trabalhem
mais depressa e podem ir pra casa”.

A duras penas, pra sair mais cedo,
fizemos o trabalho.
Mas eles voltaram:
“Agora trabalhem menos, ganhem menos”.

Foi a greve na Casa Verde, dez semanas,
greve, e quando voltamos ao trabalho,
com um pretexto: onde está a tua ferramenta?
me atiraram na rua.
Olhe o senhor estas mãos,
é um calo só que o cobre fez,
escute meu coração, não parece
que dá pulos?, é o cobre que machuca,
e mal posso andar de um lugar pra outro,
procurando, faminto, serviço que não encontro:
parece que me enxergam agachado, levando
as folhas invisíveis do cobre que me mata.




XI
Juan Figueroa
(Casa do Iodo, María Elena, Antofagasta)

O senhor é Neruda? Entre, camarada.

É, da Casa do Iodo, já não existem
outros vivendo.
Eu me agüento.

Sei que não estou mais vivo, que me espera
a terra do pampa.
São quatro horas
por dia, na Casa do Iodo.

Chega por uns tubos, sai como uma massa,
como uma goma roxa.
Nós a passamos
de bateia em bateia, nós a envolvemos
como um recém-nascido.
Enquanto isso,
o ácido nos corrói, nos consome,
entrando pelos olhos, pela boca,
pela pele, pelas unhas.

Da Casa do Iodo ninguém sai
cantando, companheiro.
E se pedimos
mais uns pesos de salário
para os filhos sem sapatos,
dizem: “Moscou vai mandar”, camarada,
e declaram estado de sítio, e nos cercam,
como se a gente fosse uns animais e nos batem,
eles são assim, camarada, estes filhos da puta!
Aqui estou eu, já sou o último:
onde está Sánchez? onde está Rodríguez?
Podres debaixo do pó de Polvillo.

Afinal a morte deu a eles o que pedíamos:
seus rostos estão com máscaras de iodo.




XII
O mestre Huerta
(da mina A Desprezada, Antofagasta)

Quando o senhor for ao norte,
vá até a mina A Desprezada,
pergunte lá pelo mestre Huerta.

De longe não vai o senhor ver nada,
só os areais cinzentos.

Depois, verá as estruturas,
o corrimão, os desmontes.

Os cansaços, os sofrimentos
a gente não vê, estão debaixo da terra
mexendo, partindo seres,
ou então descansam, estendidos,
se transformando, silenciosos.

Era “picano” o mestre Huerta.

Media um metro e noventa e cinco.

Os picanos são os que abrem
o terreno até o desnível,
quando o veio se rebaixa.

Quinhentos metros abaixo,
com água até a cintura,
o picano, pica, pica, vai furando.

Só pode sair do inferno
cada quarenta e oito horas,
até que as perfuradoras
na rocha, na escuridão,
no barro, deixam a polpa
por onde a mina caminha.

O mestre Huerta, grande picano,
parecia que enchia a picada
com as suas costas.
Entrava
cantando como um capitão.

Saía gretado, amarelo,
encurvado, ressecado, e seus olhos
olhavam como olho de morto.

Depois se arrastou pela mina.

Já não podia descer à galeria.

O antimônio lhe comeu as tripas.

Emagreceu de dar medo.

Mas nem podia andar.

Tinha as pernas picadas
como por pontas, e como era
tão alto, parecia
um fantasma faminto
pedindo sem pedir, o senhor sabe.

Ainda não tinha trinta anos.

Pergunte onde está enterrado.

Ninguém sabe dizer,
porque a areia e o vento derrubam
e enterram as cruzes, mais tarde.

Ainda não tinha trinta anos.

É em cima, na Desprezada,
onde trabalhou o mestre Huerta.




XIII
Amador Cea
(de Coronel, Chile, 1949)

Como tinham detido meu pai
e entrou o presidente que elegemos
e disse que éramos livres, eu pedi que soltassem o meu velho.

Me levaram e me bateram um dia inteiro.

Não conheço ninguém no quartel.
Não sei, não posso
nem me lembrar das caras deles.
Era a polícia.

Quando perdia o sentido, me atiravam
água no corpo e continuavam batendo.

Numa tarde, antes de sair, me levaram
arrastado a um banheiro,
me enfiaram a cabeça dentro dum vaso
de WC cheio de excrementos.
Ia me afogando.

“Agora, vai pedir liberdade ao presidente,
que te manda este presente”, me diziam.

Me sinto arrebentado, me quebraram esta costela.

Mas por dentro estou como antes, camarada.

A gente eles só quebram matando.




XIV Benilda Varela
(Concepción, Cidade Universitária, Chile, 1949)

Arrumei a comida das criancinhas e saí.

Quis entrar em Lota para ver meu marido.


Como se sabe, mandam a polícia
e ninguém pode entrar sem sua licença.

Minha cara não agradou.
Eram ordens
de González Videla, antes de começar
a dizer seus discursos, para que nossa gente
tenha medo.
Foi assim: me agarraram,
me despiram, me atiraram ao chão com pancadas.

Perdi o sentido.
Acordei no chão
nua, com um lençol molhado sobre
o meu corpo em sangue.
Reconheci um verdugo:
chama-se Víctor Molina esse bandido.

Mal abri os olhos, continuaram me batendo
com pedaços de borracha.
Estou toda roxa
de sangue, e nem posso me mexer.

Eram cinco, e os cinco me espancavam
como um saco.
Durou seis horas isso.

Só não morri para dizer a vocês, camaradas:
temos de lutar muito mais, até que desapareçam
esses verdugos da face da terra.

Que os povos conheçam seus discursos
Na ONU sobre a “liberdade”,
enquanto os bandidos matam de pancadas as mulheres
nos porões, sem ninguém ficar sabendo.

Aqui não aconteceu nada, vão dizer, e Dom Enrique
Molina nos vai falar do triunfo do “espírito”.

Mas isto não vai acontecer pra sempre.

Um fantasma percorre o mundo, e podem começar de novo
a espancar nos porões: vão pagar por seus crimes, não demora.




XV
Calero, trabalhador dos bananais
(Costa Rica, 1940)

Não te conheço.
Nas páginas de Fallas li a tua vida,
gigante obscuro, menino batido, esfarrapado e errante.

Dessas páginas voam o teu riso e as tuas canções
entre os bananais, no barro sombrio, a chuva e o suor.

Que vida a dos nossos, que alegrias ceifadas,
que forças destruídas pela comida ignóbil,
que cantos derrubados pela moradia em pedaços,
que poderes do homem desfeitos pelo homem!
Porém mudaremos a terra.
Não irá a tua sombra alegre
de charco em charco até a morte desnuda.

Mudaremos, juntando tua mão com a minha,
a noite que te cobre com a sua abóbada verde.

(As mãos dos mortos que tombaram
com estas e outras mãos que constroem
estão seladas como as alturas andinas
com a profundidade de seu ferro enterrado.
)

Mudaremos a vida para que a tua linhagem
sobreviva e construa sua luz organizada.




XVI
Catástrofe em Sewell

Sánchez, Reyes, Ramírez, Núnez, Alvarez.

Estes nomes são como o cimento do Chile.

O povo é o cimento da pátria.

Se os deixais morrer, a pátria vai caindo,
vai sangrando-se até ficar vazia.

O campo nos disse: cada minuto
há um ferido, e cada hora um morto.

Cada minuto e cada hora
o nosso sangue cai, o Chile morre.

Hoje é o fumo do incêndio, ontem foi o gás grisu,
anteontem o despenhadeiro, amanhã o mar ou o frio,
a máquina ou a fome, a imprevisão ou o ácido.

Mas lá onde morre o marinheiro,
mas lá onde morrem os pampeiros,
mas lá em Sewell onde se perderam,
está todo o cuidado, as máquinas, as vidraças,
os ferros, os papéis,
menos o homem, a mulher ou o menino.

Não é o gás: é a cobiça que mata em Sewell.

Essa torneira fechada de Sewell para que não caísse
nem uma gota d'água para o pobre café dos mineiros,
aí está o crime, o fogo não é culpado.

Por todas as partes se fecham as torneiras ao povo
para que não se distribua a água da vida.

Mas a fome e o frio e o fogo que devora
a nossa raça, a flor, os cimentos do Chile,
os farrapos, a casa miserável,
isso não se raciona, sempre há bastante
para que cada minuto haja um ferido
e cada hora um morto.

Não temos nós deuses que nos socorram.

As pobres mães vestidas de preto
terão rezado depois de choradas todas as suas lágrimas.


Nós não rezamos.

Stálin disse: “Nosso melhor tesouro
é o homem”,
os cimentos, o povo.

Stálin ergue, limpa, constrói, fortifica,
preserva, olha, protege, alimenta,
porém também castiga.

E isto é que desejava dizer-vos, camaradas:
faz falta o castigo.

Não pode ser esse desmoronamento humano,
esta sangria da pátria amada,
este sangue que cai do coração do povo
cada minuto, esta morte
de cada hora.

Eu me chamo como eles, como os que morreram.

Eu também sou Ramírez, Munoz, Pérez, Fernández.

Me chamo Álvarez, Núnez, Tapia, López, Contreras.

Sou parente de todos os que morrem, sou povo
e por todo este sangue que tomba estou de luto.

Compatriotas, irmãos mortos, de Sewell, mortos
do Chile, operários, irmãos, camaradas,
hoje que estais silenciosos, vamos conversar.

E que vosso martírio nos ajude
a construir uma pátria severa
que saiba florescer e castigar.




XVII
A terra se chama Juan

Atrás dos libertadores estava Juan
trabalhando, pescando e combatendo,
em seu trabalho de carpintaria ou em sua mina molhada.

Suas mãos araram a terra e mediram
os caminhos.

Seus ossos estão em todos os lugares.

Mas vive.
Regressou da terra.
Nasceu.

Nasceu de novo como uma planta eterna.

Toda a noite impura tratou de submergi-lo
e hoje afirma na aurora seus lábios indomáveis.

Amarraram-no, e é agora decidido soldado.

Feriram-no, e conserva sua saúde de maçã.

Cortaram-lhe as mãos, e hoje fere com elas.

Enterraram-no, e vem cantando conosco.

Juan, é tua a porta e o caminho.

A terra
é tua, povo, a verdade nasceu
contigo, de teu sangue.

Não puderam exterminar-te.
Tuas raízes,
árvore de humanidade,
árvore de eternidade,
hoje estão defendidas com aço,
hoje estão defendidas com tua própria grandeza
na pátria soviética, blindada
contra as mordeduras do lobo agonizante.

Povo, do sofrimento nasceu a ordem.


Da ordem a tua bandeira de vitória nasceu.


Levanta-a com todas as mãos que tombaram,
Defenda-a com todas as mãos que se juntam:
E que avance até a luta final, até a estrela
A unidade de teus rostos invencíveis.
Trata-se de uma metáfora.
Compreenda-se que escrevo para explicar: que se trata de uma tumultuosa, desavinda multidão de metáforas encerradas numa única metáfora.
Que tem, esta, o ar complacente de apresentar uma imagem exemplar do mundo.
Duvido deste mundo, desta imagem — a metáfora que a escrita foi conseguindo no seu dinamismo interno e obscuro.
Alguém falou de duas mulheres realizando a virtude do espaço através de uma peça de roupa, um grande lençol branco, que desdobravam, pegando cada uma delas numa ponta.
Penso no espaço até me doer a cabeça.
É como este papel branco, o lençol idiomático, latejando, tremendo nas intenções das mãos — delas, que tremem das intenções inspiradas na experiência e na aspiração.
Repare-se no espaço.
Eu poderia abandoná-lo, a esse espaço — mas que seria de nós?
Porque os outros talvez esperem numa ponta do espaço.
Observe-se que há luz, e essa luz se moveu de uma treva cujo simples pensamento nos faz estremecer, aos que estiveram à espera, a mim que me tinha de salvar de um crime qualquer, talvez daquele momento anterior às primeiras linhas das cosmogonias — o caos precedente aos livros sagrados, para onde se trasladou a instauração do estilo — a aparição do espaço.
É certo que falo das plantas, dos animais, do homem e da mulher — disso que se conseguiu: a idade.
A sofreguidão, a vigília desesperada, o sono onde o corpo sem defesa é trabalhado pelo sobressalto interior.
Mas explico-me bem?
Temos de recorrer às fábulas laterais, ao que não foi, ou foi por uma razão independente — nota-se que, para a criação do espaço, se fala sobretudo do medo?
Se falo de mim, movendo-me para todos os lados, esperando inspirações, consultando as coisas, inventando espelhos para um rosto que se perdeu em enredos que não podem ser violados — se me engano em pequenos apólogos, pequenas fábulas, registos acessórios — não me terei perdido no espaço?
Porque o labirinto, veja-se, só é espaço para a boa contabilidade das emoções e pensamentos, se se tem a chave dele, se ele deixou de ser um labirinto.
Atente-se nos antigos: apresentavam um espaço.
Havia uma cronologia e hierarquia de seres, coisas, factos — convergiam todos, numa ordem, para a metáfora una, viva e real do mundo, que eles depois percorriam, estendendo lençóis, edificando casas, dizendo: pátria.
Escrevo um livro, estou a falar de nós — nós que nos esperamos, homens, por dilatar, com os poderes da emissão e da receptividade, os pontos imóveis onde apenas estávamos a ter atenção, expectativa.
Acontece-me este espanto: que as paisagens existem e que sou um homem diante de paisagens.
Então, não sei.
Primeiro: porquê, as paisagens?
Depois: porquê, diante?
E como: paisagens e diante?
E isto é que seria o essencial para o espaço.
Afirma-se que se compreende o fragmento, os fragmentos.
Diz-se mesmo: não há fragmentos.
Diz-se: não há tempo.
O que há é um sentido da idade — e diz-se que idade é já um sentido de espaço, de organização, como quem afirmasse que a comunicação estava estabelecida e, com ela, a unidade e o amor.
Sabem? — é bom ver dormir uma pessoa.
Assim, de fora, respirando devagar, os olhos fechados, a cabeça inclinada — tudo nela refluindo para aquele centro único do sono — desapareceu de nós o alarme, a dúvida, a confusão: eis a unidade.
Mas eu não assisto ao meu próprio sono, nem se pode oferecer o nosso próprio sono — ele pode apenas ser colhido por outrem, de passagem, por acaso.
Não é assim que se instaura um espaço.
Devo ter conhecimento da minha unidade.
O que eu percorro são as mortes, levo às costas todos os meus cadáveres.
E o que explico é isto: estamos inquietos, porque atingimos uma verdade insuportável — a metáfora, arquitectada sobre uma higiene dos sentimentos e acontecimentos, já não pode ser erguida para segurança da linguagem, para segurança de pessoas e bens.
Para o espaço.
Temos pequenas metáforas, temos uma colecção.
Tentamos a factura do círculo, com a ideia de que uma identificação do princípio com o fim possa encerrar o cumprimento do ser, a totalidade da vida — a sabedoria.
Em seguida olhamos, como se isso fosse o espaço e pudéssemos ser, nós os vagabundos, o exemplo do nascimento, desenvolvimento e preenchimento.
Ele dizia, Poe, (na Filosofia da Composição?) que só havia poemas curtos, ligados por aplicação, por partes mortas, num poema longo.
É isto.
Depois, ficar numa ilha, assistindo (e participando talvez nela) à acumulação de imagens — significa que se criou um espaço, ganhou uma perspectiva, se estendeu um lençol (essa ideia do Deguy!) sobre uma espécie de vazio, noite, desabitação, de solidão?
Começo a descobrir a verdadeira tristeza.
Tristeza quer dizer: ser obrigado a recorrer a qualquer coisa como a gratuidade, e enchê-la de uma súbita comoção.
Não creiam que alguém se possa salvar.
Não há uma verdadeira metáfora humana — um estilo.
Às vezes não durmo, para poder imaginar o meu sono.
Compreendo então como o destino do espírito é a tristeza.
Mas a tristeza apenas nos dá inteligência.
E então voltamo-nos para a contemplação das imagens do mundo, e ficamos com uma imagem.
Metemo-la numa garrafa e atiramo-la ao mar.
Algures, alguém recolhe a garrafa, lê a imagem e, como tinha feito o mesmo que nós, não entende o nosso conhecimento da tristeza.
Pensa: quem terá recolhido a minha imagem?
E compreende só, e mais uma vez, o seu próprio conhecimento da tristeza.


Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.
As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído.
E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso.
E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas e, neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom.
E então a gente ama as mitologias delas.
À parte isso, o lugar era horrível.
As pessoas chiavam como os ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se.
Diziam: boa tarde, boa noite.
E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras, e acordavam.
Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente.
Tenho medo — diziam.
E depois amavam-se depressa, e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite.
Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.
E então a gente ama isto, porque a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender, claro, etc.
E no tal lugar, de manhã, as pessoas acordavam.
Bom dia, bom dia.
E desatavam a correr.
É o meu inferno, é o meu paraíso, vai ser bom, vai ser terrível, está a crescer, faz-se homem.
E a gente então comove-se, e apoia, e ama.
Está mais gordo, mais magro.
E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de várias cores, as árvores, e as leis, e a política.
Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco — e que fizeram da dignidade humana? — as reivindicações são legítimas.
Não queremos este inferno.
Dêem-nos um pequeno paraíso humano.
Bom dia, como está?
Mal, obrigado.
Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta.
E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida.
E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem.
E era horrível.
Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre.
Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico — batiam ali e resvalavam.
E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro, como a luz do deserto, e aquilo não era humano — diziam as pessoas.
E temos medo — pensavam.
E o ruído delas caminhava para trás, e as casas amorteciam-se ao pé dos jardins, mas é preciso continuar a viver.
E havia o progresso.
Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução.
Desejam examinar?
Por este lado, se fazem favor.
Aí à direita.
Muito bem.
Não é uma boa revolução?
Bem, compreende.
Claro, é uma belíssima revolução.
E é barata?
Uma revolução barata!?
Não, senhor, esta é uma verdadeira revolução.
Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas.
É um bocado cara.
Mas de boa qualidade, isso.
E o rosto, que se perdera, que possivelmente caíra do corpo e rolara debaixo das cadeiras, o rosto?
Lembra-se?
Como foi que ficou assim?
Não sei: tinha uma luz.
Sim, lembro-me: parecia uma flor que apodrecesse friamente.
Era horrível.
Boa noite.
E ela trazia um vestido de seda branca, e nesse dia fazia dezoito anos, e estava queimada do sol, e era do signo da Balança, e tomou os comprimidos todos, e acabou-se.
Não compreendo.
E julgas tu que eu compreendo?
Quem pode compreender?
Ela era a própria força, aquela irradiante virtude da alegria, aquele fulgor radical…, compreendes?
Sim, sim.
Tinha um vestido de seda, e era nova, e então acabou-se.
Para diante, para diante.
Não se deve parar.
Enforquem-nos, a esses malditos banqueiros.
Este vai ter trinta e cinco andares, será o mais alto da cidade.
Por pouco tempo, julgo eu.
Como?
Sim, vão construir um com trinta e seis, ali à frente.
Remodelemos o ensino.
Cantemos esta pequena canção que fala da flor da tília.
Bebamos um pouco.
E o outro, o outro, o que viu Deus, quando caminhava para o emprego?!
Isto, imaginem, às 8 h. e 45 m. de uma manhã de março.
Uma partida.
Uma partida de Deus?
Boa piada.
Não amará Deus essas maliciosas surpresas?
Um pequeno Deus folgazão?
Folgazão?!
Ele ficou doido.
Começou a gritar e a fugir.
Que Deus vinha atrás dele.
E depois?
Bem, lá construíram o prédio com trinta e seis andares, e o outro ficou em segundo lugar.
Isto é o trabalho do homem: pedra sobre pedra.
É belo.
Vamos amar isto?
Vamos, é humano, é do homem.
E então as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam fazendo pela vida — como elas próprias diziam.
E então as condições sociais?
Sim, melhoraram muito.
Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e dela ficou apenas para os outros uma memória incómoda.
Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico, e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou.
Era uma criança.
Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia.
Nada mau, para uma antiga criança.
A verdade é que era uma criança, e não se aguentou, quando o médico disse: aguente-se.
E as ruas são tão tristes.
Precisam de mais luz.
Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste.
É até mais triste do que as outras.
Estou tão triste.
Vamos para férias, para o pequeno paraíso.
Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia aguentar um copo na mão: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.
Era um ser excepcional.
Depois foi-se embora, e até já desconfiavam dele, e ele embarcou, e talvez não houvesse lugar na terra para ele.
E onde está?
Mas era uma alegria bárbara, uma vocação terrível.
Partiu.
E agora chove, e vamos para casa, e tomamos chá, e comemos aqueles bolos de que tu gostas.
E depois, e depois?
Ele era belo e tremendo, com aquela sua alegria, e não tinha medo, e só a vibração interior da sua alegria fazia com que os copos se partissem entre os dedos.
Foi-se embora.


A milhares de quilómetros de distância, eu olhava num jornal as mãos do criminoso.
No outro hemisfério — enquanto era outono e o ar muito limpo estava colocado sobre as árvores vazias.
A lisa e fixa luz dava um relevo cruel às mãos brancas.
Acima delas, o rosto virava-se para o lado, e quase que era somente uma nódoa escura.
Mas na América, em volta da prisão, erguia-se uma nova noite — e turnos sucessivos de polícia interrogavam o homem.
No jardim grave, uma folha de plátano caía sobre as mãos assassinas.
Uma folha fria, que afastei com as minhas próprias mãos — e então essas minhas mãos, depois de a folha cair do jornal, tocavam a imagem (unicamente a rígida e branca imagem) das mãos do assassino.
As minhas mãos estavam quentes: eram umas doces mãos humanas — e a fotografia do homem, das suas mãos por baixo da cabeça escamoteada: a fotografia.
Outono: tempo de espera.
Que é que se espera?
As coisas dormem, depois hão-de aparecer em alíneas diferentes, com cem rostos, as coisas talvez todas inúteis.
É um jardim para exemplo, onde seguro um jornal que fala de tudo com uma espécie de turbulenta ignorância.
Bom lugar, bom instrumento para todos os equívocos: os meus, os da América.
Posso estar só, para um grande e tortuoso pacto por cima das leis, dos países, da simples justiça das gentes.
Na América, há uma estupenda ferocidade à volta do criminoso e do seu crime.
Ele está cercado, e as suas mãos cheias de culpa recuam, com o crime, diante da ferocidade americana.
Trata-se afinal, segundo parece, de um problema complicado: política.
Então o assassino revela-se mais patético, ele, com o seu crime tão agudo, procurando defender ainda as mãos carregadas, no meio da gente feroz.
O momento do crime já lá foi — o impulso, o instrumento, o gesto.
E a vítima, também.
Ficaram as mãos.
Afasto o jornal.
Como é?
A pessoa que se assume, com um crime.
E a polícia cheirando, os espertos cães cheios de faro.
As folhas tapam tudo, vedam-me o conhecimento do tempo a trabalhar sobre o mundo.
Talvez aconteça um grande milagre nas nossas vidas.
A terra está sempre a dar bons exemplos.
Alguma gente anda atenta a essas coisas.
Outra gente, porém, está completamente só, sem exemplos — e então procura realizar o exemplo mais extremo.
Quando se pensa nisso, não há nada a fazer.
Merda, diz-se, isto é um grande exemplo.
E a terra está por baixo, com o outono.
A terra vem em todos os manuais, como um acontecimento histórico.
Mas a mim, realmente, só me interessam os crimes.
E então apenas sei que ele está tremendamente só nos Estados Unidos.
Que isto de ser assassino não é brincadeira nenhuma.
Ele foi até ao fim, esse homem de cabeça em forma de nódoa e as mãos em primeiro plano, saturadas de um exemplo desesperadamente decisivo.
Os polícias cercam-no, farejando e abanando a cauda — e ele, só com o crime, vira a cabeça, desenvolve, mostra, recolhe as mãos, fá-las voltar à intimidade do próprio crime.
De modo que tudo aquilo se torna uma só coisa comovente, ameaçada e inexpugnável — a solidão.
Uma consequência, o movimento mesmo do acto — a pessoa com a sua força terrível, para a frente.
Isto, na América, onde os polícias se vão multiplicar em todas as direcções e pessoas.
Depois, no jardim (e ainda suficientemente de dia), a cara aparece melhor na 2.ª edição.
O jornal mostra que o homem tem um ligeiro sorriso ambíguo, que eu acho inteligente bastante para as mãos, estas sempre em bom plano.
Estou com o assassino, e todo o meu calor de homem se insere no problema, e a multidão americana roda um pouco sobre si mesma, sofre uma pequena deslocação e, confusa, esbarra no extraordinário sorriso do assassino, que a minha adesão torna mais sábio ainda.
Tudo isto para proteger as mãos — espantoso sinal, agora, do único acto, aquele pelo qual se ganham toda a culpa e solidão.
Entretanto, foram descobertas mais provas.
E o homem sorri — leve, alto — tremendamente ascético na sua culpa.
O céu vai escurecendo, vê-se menos no jornal a maneira como o sorriso se dirige aos Estados Unidos, e por isso posso supor, ou adivinhar, a sua verdadeira profundeza.
A raiz do sorriso é a mesma raiz das mãos.
É, primeiro, o acto — e, depois, a própria vocação humana (até que enfim aparecida) para realizar um acto espantosamente completo.
E as poucas palavras que se conhecem do criminoso aumentam a sombria gravidade do acto, tornam-no perfeitamente denso, esférico, acabado.
E é quando, ao outro dia, continuando a ser outono e a haver a mesma luz parada e polida para ver as novas fotografias e notícias, é quando o criminoso encontra o seu próprio assassino.
Incrível.
Ao princípio, tomo o caso como um fantástico folhetim.
Foi deste modo: ao transferir-se o criminoso de uma prisão para outra, um homem destacou-se do meio dos jornalistas e, atirando-se para a frente, disparou-lhe um tiro no coração.
Há fotografias.
Vê-se tudo muito bem.
Como direi?
Há na história, evidentemente, certo barroquismo e precipitação que talvez possamos chamar — americanos.
No entanto, não sei de história mais conforme com as leis da excepção.
Com o seu escandaloso imprevisto, está implacavelmente certa, do princípio ao fim.
Pela minha parte, reconheço que as mãos da fotografia prenderam o seu velho acto criminoso e ficaram para sempre com a força enigmática que as inspirou.
Reconheço ainda que o sorriso tocou os limites da significação e que a frase — não fui eu que matei, estou inocente — dita desde o começo e levada, inteira, para dentro do silêncio, pode ficar como o melhor esforço de equívoco.
E vêde como os Estados Unidos se desdobram em todos os sentidos da confusão.
Tenho de afastar do jornal muitas folhas de plátano, enquanto o meu amor abrange crime, solidão e silêncio, como se fossem uma só coisa: um limite, espécie de milagre ou extremo exemplo.
A minha solidão também cresce, à espera do seu crime e da sua heróica (ou irónica) dignidade.
Porque nunca se sabe bem se nos merecemos a nós mesmos.
Levanto-me do banco, atravesso o jardim, e tenho na minha frente uma cidade que desejaria fazer saltar a cargas de dinamite.


Numa noite do mês de março, estava o tempo esplêndido, olhei para as minhas mãos, e vi uma nódoa branca.
Compreendam-me.
Eu era um homem sereno, emocionalmente próspero, digamos, sem entretanto me entregar à dissipação.
Convivia com muita gente e podia fazer com que me amassem.
Claro, não amava ninguém, mas a minha vida era como que atravessada diariamente por um calor tranquilo e ligeiro.
E então vi de repente que tinha uma nódoa branca na mão direita.
Gosto da mão direita um pouco mais que da outra, pois tenho aquela ideia tradicional de que ela é um nobre instrumento da obra e está ligada superiormente ao espírito.
Além desta, eu possuía muitas outras ideias em que o espírito, a serenidade e a sabedoria constituíam uma espécie de centros vitais.
É isso: tinha o meu tempo, a memória e o futuro bem arrumados.
Achava-me, de certo modo, um indivíduo sem culpas, conhecendo algumas leis seguras, amando lentamente a terra e as estações.
Organizara mesmo um conjunto de aforismos, e acreditava na imparcialidade e — quem sabe? — talvez até acreditasse na justiça.
Havia de ter um dia um talhão de rosas e ser-lhes-ia dedicado.
Rosas tornam o espírito condescendente e vagaroso e dão aos gestos uma grave e amável subtileza.
Tinha esse projecto, o das rosas, certamente.
Mas estava sentado a ler, e então vi uma nódoa esbranquiçada na base do polegar da mão direita.
Pensei primeiro que fosse da luz, depois imaginei que alguma substância deixara ali a sua marca.
Mas não era, porque desloquei a mão e a mancha permanecia no mesmo sítio.
E quando a esfreguei com o polegar da mão esquerda, não se alterou, nem de leve.
Que pensar?
Devia ser, então, qualquer coisa como irritação de pele, um eczema branco.
Bem.
Eu tinha um grande equilíbrio interior e, embora aquele sinal no meu prezado corpo (na mão direita) me inquietasse um pouco, havia tudo o mais onde a serenidade se me garantira.
O livro era mesmo excelente e o mês de março sem chuva é dos que mais aprecio.
Quanto ao resto, é óbvio que eu desprezava — embora com gentileza e rectidão — as pessoas que estavam, ou entravam, ou saíam da minha vida.
Um homem de certa cultura e inteligência, cepticismo manso, uma esparsa ternura sem compromisso pelos seres e coisas.
Apoiava-me uma grande tradição.
Contudo, mais tarde, quando me fui deitar, ao colocar a mão sobre a cobertura da cama, notei que a mancha crescera.
Abrangia agora toda a base do dedo, fazendo uma espécie de grosseiro anel.
Lembro-me de que levantei a cabeça, um pouco de lado, e olhei para a janela onde as cortinas brancas estremeciam.
Vinha da rua, de um jardim próximo, um cheiro de cravos, suponho.
Ouvi também a voz de alguém, uma voz baixa de que só apanhei duas ou três palavras desligadas que, de súbito, me pareceram espantosas.
Mas eram palavras banais, talvez sobre o tempo, os cravos, a noite, sei lá.
A minha mão tremia, também me lembro, e a noite acumulou-se de repente dentro daquele instante único.
Estive à beira do pânico, mas olhei tudo de novo à minha volta e senti que vivia no lugar que eu próprio escolhera, e que eu era um homem coordenado com os meus dias, compreendendo bem que a minha força não estava ao alcance da maioria das pessoas.
Pensei nelas, nas pessoas, e achei belos, ainda que fáceis, os seus rostos e movimentos, e pensei que gostavam de mim, sem me exigirem demasiado.
Depois deitei-me e dormi, tendo decidido ir ao médico um desses dias, a ver do que se tratava aquela pequena mancha.
Durante a noite, tive um sonho incómodo, onde apareciam altas escadas de pedra, do cimo das quais eu fazia um imperceptível sinal de despedida a alguém que se encontrava em baixo, no último degrau.
Atravessei portas que se fechavam depois da minha passagem, sem que lhes tocasse.
Por fim, senti-me cair de um telhado que lentamente se inclinava, fazendo-me rolar até ao beiral.
No fundo, estava um pântano, e eu mergulhei nele.
No sonho, tinha a mão direita presa e fechada como sobre um punhado de brasas.
E então acordei e acendi a luz.
A mancha crescera e uma outra, ainda mais viva, apanhava-me quase toda a palma da mão.
Foi assim que os novos dias invadiram a minha vida, e eram dias sombrios e ardentes, enquanto as manchas iam cobrindo toda a mão, avançando já pelo pulso acima.
Não era ainda o medo, mas as minhas leis vacilaram e comecei a esconder a mão e a aproximar-me mais das outras pessoas.
Quanto ao médico que pensara consultar, tive de bani-lo, pois cada vez menos desejava saber o que eram precisamente as manchas brancas.
A mão ganhara uma insólita nobreza, outra, uma nobreza nova, terrível.
Ela, que me dera antes o sentido do exemplo criador, a mão humanista — perdera o seu talento de ser hábil e construtora, e era agora a mão dramática, proibida entre os homens, subversiva.
Sabia que ela se vingava, com a sua anunciação de um inédito sentido trágico, do quanto representara em dignidade plácida e inteligência sobre a desordem.
Arranjei uma luva, e esta terceira mão, de pelica, caminhava sem jeito, mas intacta, com a sua pureza artificial, nos objectos e movimentos.
Cheguei a possuir um pequeno talento de pelica.
Mas aproximava-me mais e mais das outras pessoas, e tinha com elas conversas ardentes e instáveis.
Começava a amá-las com aflição e a achar tremendamente belos os seus rostos, as palavras, as mãos com que, surpreendidas, tocavam na minha luva.
Em casa, punha-me a escutar o rumor dos vizinhos, os seus passos pelos quartos, as frases mais altas, as canções que trauteavam.
Ia para a janela, por detrás das cortinas, e tremia de emoção ao ver o movimento das ruas.
A mancha, porém, alastrava.
Já atingira um terço do antebraço e era cada vez mais branca.
A carne do polegar parecia tornar-se levemente esponjosa.
A mão esquerda principiara também a ser tocada e, uma manhã, descobri no meio da testa uma ligeira mancha circular, do tamanho de uma pequena moeda.
Ah, foi rápida a propagação.
Da raiz dos testículos subia já o florescimento maldito, enquanto nas mãos e no rosto as manchas aumentavam sempre.
Agora eu só saía à noite, a ocultas, comprando em lugares escusos alguma coisa para comer.
E o meu amor pelas pessoas também crescia, varado por singular violência e fraqueza, um pânico, uma melancolia enormes.
Um dia comprei uma garrafa de aguardente, e embebedei-me no meu quarto.
Despi-me todo, e eu era branco e repugnante.
Haviam-me caído as sobrancelhas e os pêlos do púbis e, um pouco por toda a parte, a carne tornara-se porosa como sabugo.
E então vi em mim, no meio da bebedeira, certa beleza tenebrosa, uma maldição pela qual me apaixonei.
Adormeci nu, sobre o soalho, chorando de tortuosa alegria.
Tornou-se forçoso afastar-me dos outros.
Poderia eu, acaso, meter-me inteiro dentro de uma grande luva de pelica, arranjar um talento artificial de pelica com todo o meu tamanho?
Porque era já notório o estado em que me achava.
O meu amor pelos outros, não obstante, desenvolvia-se sempre.
E só de imaginar que nas casas, nas ruas, debaixo do sol, ao vento que lhes agitava os cabelos — as pessoas andavam, corriam, falavam e sorriam e riam — só de imaginá-lo, ficava com os olhos húmidos.
Amava-as, com a maior profundeza, amava-as muito.
Nu, diante do alto espelho, tocava devagar no corpo e sentia vómitos.
Transformara-me num réptil branco e inconsistente.
Contudo, penso às vezes que não era, nem é, uma doença física, algo como lepra ou coisa assim.
Talvez o meu corpo esteja como dantes, limpo e vivo.
Talvez a lepra me tenha atacado noutro sítio, numa zona terrivelmente mais importante.
Talvez entre o amor e o mundo haja uma chaga pior, onde nem mesmo se espere esquecer ou fugir.


Os poetas interessam-se.
O amor dos mitos, dos lugares sobrecarregados.
O amor das alusões, símbolos e signos.
Os poetas interessam-se pelas crianças.
Isso — aperta a loucura contra ti, debaixo da gabardina — desce.
As cabeças já não são partes nobres das aventuras do corpo, não as envolvem as folhas que brotavam de uma grande tensão — a tremenda voltagem das imaginações.
Desce ao metropolitano — a isto que te é dado como figuração de um inferno sem maravilha.
Os poetas interessam-se pelos rostos.
São rostos esbulhados — os destes habitantes da semana.
Fazem uma vida com boa caligrafia, eles — e acabou-se.
Vão e voltam.
Uma pequena demência nos olhos?
Talvez.
Alguma coisa escapou aos dias — alguma coisa.
O corpo move-se no inferno debaixo.
A ti comove-te o silêncio por onde os corpos se deslocam com os minúsculos olhos intraduzíveis.
O silêncio esmagado pelos comboios, e logo restituído.
Um silêncio móvel, ameaçado, instável.
Aperta a gabardina.
Possuis uma alta voltagem — tu sim, poeta inédito.
Vemos que te interessas.
Lá tens as imagens turbulentas, a vertigem do silêncio interior.
Moves-te, comoves-te, desenvolves-te.
Apertas contra ti a tua loucura — e o olhar é o de um poeta inédito.
Tens uns belos olhos perscrutadores, fixos e aterrorizados.
Andas com uma graça implacável — sim, sim, incómoda.
Sente-se o circuito electromagnético em volta da cabeça.
Não tocar — perigo de morte.
Tal a terrível delicadeza do teu espírito, a força de anjo.
Tens outro ritmo.
Ainda te não calibraram.
És inédito, forte, doloroso.
Interessas-te pelas crianças.
Vemos isso quando os teus olhos tocam no rapazinho de onze anos, no fim da carruagem, e fogem, e voltam de novo para ele.
Interessas-te por onze anos, por essa estranha debilidade que os outros curam, o ritmo secreto da vacilação.
A tua loucura bate de áspero entusiasmo.
Tens uma perigosa ciência — sabes?
É que vês, revês, prevês, tresvês.
Andas para a frente e para trás, páras e corres, e ficas tenso ouvindo e vendo, com a loucura toda a trabalhar.
És sensível — demoníaco.
É quase impossível estares à altura dos teus dons.
Mas esforças-te — vê-se.
Trabalhas, trabalhas.
E de súbito és muito inteligente, alcanças tudo, ficas com o poder de te fascinares de uma ponta à outra do talento.
Um poeta como tu interessa-se pelos onze anos, pela criança.
Vê como o rapazinho sai nesta estação, e atravessa o cais.
Que pensas daquela forma de andar?
Ele oscila, parece um pêndulo, e a sua cara é triste, ele não percebe nada, não percebe a sua dor, e caminha rente às paredes do metro.
Tu percebes.
O teu ofício é perceber.
Amas.
Que pensas daquela forma de andar?
Sim, sim.
Que doçura trágica, não é?
Percebes a ambiguidade?
Se percebes.
Vê: fez qualquer coisa terrível, teve a sua grande força.
Agora está surpreendido.
Não sabia que a tinha, à força, e depois ficou com o medo da sua força maior que ele.
Vai dizer-te isso, aos onze anos, no seu ritmo, na sua linguagem suspensa e atemorizada.
Vai dizer: sabe?
E tu, tu — como tu sabes.
Segue-o.
Vemos como apanhaste o ritmo dele.
Pareces um lobo apaixonado, tens toda a esfaimada doçura de um lobo.
Pisas os passos dele, a pista insegura.
Já andas como ele, andas com onze anos, numa atenção obsessiva.
E a doçura do teu rosto, a sua velocidade amarga e calorosa.
Desce ao inferno, e vê: encontras um rosto tecido de novo, a macia textura de uma matéria quase virgem — encontras o teu enigma.
Nas escadas rolantes, quase sobre ele, aspiras o perfume da sua cabeleira de rapazinho.
Como tu o amas.
O perfume enche o teu silêncio todo.
Não, nem respiras.
Não te mexes.
Ficas cego.
Sabemos como te entregas, tão redescoberto, ao mais profundo terror.
Tens a ciência disso tudo.
É a tua profissão.
Reconhecer, instalar, ligar os contactos, mergulhar na alegria monstruosa.
És diabolicamente inédito.
A vida toda muito devagar.
E quando a boca do metropolitano vos puser — a ele, a esse espectáculo que estiveste prestes a denominar, mas ainda não; e a ti, seguidor trémulo, mestre e discípulo de um «eu» irreparável — quando, quando.
Sim, na praça quando, sob as árvores negras, no meio das temperaturas baixas — tudo construído para o exercício da piedade escandalosa.
Quando o abordares, e ele disser que sim ao magistério da tua idade enganadora, saída do anonimato para a vacilação, o pavor urbano dele.
Estou só, diz ele, mas.
Etc.
Tu compreendes.
Sabes que ele também já tinha o seu silêncio, e do silêncio nascia um incomportável sofrimento, e uma força.
E agora falas muito, e diriges a força dele e a sua fraqueza, e colocas tudo num lugar extraordinariamente seguro, ao que parece, e dizes: vamos tomar outra vez o metro, tenho o meu carro no outro lado da cidade.
Reparaste como os onze anos olharam para ti?
Não sabem que hão-de fazer, os onze anos, com o amor que nasceu neles, agora que saíste completamente do anonimato e és tão real, tão pessoal, tão próximo, tão corrítmico.
Ele vai — estamos mesmo a ver que vai, e o seu modo de andar é curiosamente mais seguro e o teu é menos seguro — vê-se.
Os poetas interessam-se e as crianças interessam-se — e isso é um pacto.
Demasiado pesada, a vossa festa.
Lado a lado pelas ruas, vendo a festa silenciosa, um pouco vergados ao peso de uma alegria tão difícil.
A quatro mãos.
Continua, continua.
Tens uma nova maneira de ver os rostos imóveis sobre os corpos excessivamente móveis, e os olhos ligeiramente alucinados.
Uma nova maneira de conceber a tua própria loucura, de andar com ela, de parar e seguir e respirar com ela.
Sim, um modo especial, nesta tarde, de te aproximares da tua sonâmbula solidão, e encontrares o ponto onde ela de súbito se torna expansiva e ardente, e abrange o ocasional discípulo, o pretexto, o objecto da mais trémula memória.
Cuidado com a memória.
Tu interessas-te.
Ama-la demais.
E a paixão?
És um operário da paixão.
Observamos a demoníaca inteligência de gestos, quando falas ao rapazinho.
O teu amor é lento e veloz — centrípeto, centrífugo.
Como aprendeste.
E que importam os rostos, senão como oscilante fundo para o teu milagroso rosto, esse sensível e atormentado rosto de criança, viajando pelos túneis, de uma ponta à outra da cidade que trabalha noutra coisa, descansa de outro trabalho, ou se prepara para uma estranha musa.
Sabes em que se inspiram eles, os trabalhadores desta cidade?
Nada te importa, a não ser o teu amor — vê-se.
E de novo sobes umas escadas, e a criança sorri, e tu pareces sonhar e vacilas na luz interior, e mais uma vez acreditas, e de repente é como se amasses a tua extensa vida obscura.
E já no carro dizes: vamos pelo meio das árvores.
E guias em direcção ao parque.
Vês tudo muito bem: as árvores negras, o céu brusco e mercurial e a íntima imobilidade do instante.
Sabemos: tremes, quando o rapazinho diz que quer andar sob as árvores, pisando as folhas podres.
Ele sai, caminha, abaixa-se para apanhar uma folha.
E que significa isso, apanhar a folha?
E ergue-se, e continua a andar.
Apanhou a folha como quem encontrou uma coisa perdida, como se tivesse achado a significação de uma palavra confusa no labirinto dos dicionários.
Que tremes e sufocas, sim.
É a embriaguez, o amor lancinante, a memória, a piedade, a sufocação da alegria.
Sim, é a dor — a força da tua presença.
Tens medo.
Interessas-te muito pelas emoções, sabemos.
E vês a solidão impossível da criança apanhando a folha, o distraído empenhamento dela, a frágil nuca.
Repara naquela forma de andar.
Parece que desejarias dizer o que é aquela forma de andar, mas a piedade não tem palavras, a tua piedade.
A loucura dos teus olhos confunde-se com a embriagada piedade dos teus olhos, e tremes.
E então sais do carro e aproximas-te dos onze anos, e vês cada vez mais dolorosamente a forma como eles caminham, os onze anos, sobre as folhas podres, e a imagem violenta da tua obscura vida sobe do fundo — sem perdão, sem nome.
Fechas os olhos — vacilas apavorado.
Páras, o vento refresca a tua cabeça negra, o teu pensamento negro, o teu coração negro.
Páras — maneira única de ficar apenas à porta dos crimes.
Espelho negro.
Vê-se que sabes tudo, que esgotaste a tua difícil ciência.


Há sempre uma cidade onde anoitece.
Mas haverá algum perdão para o homem perdido que a percorre, parando nas praças a decifrar os obeliscos, ou fechando os olhos nos jardins para respirar o perfume confuso e virgem das plantas e da terra húmida, ou ainda estacando na faixa central das avenidas por onde sobem e descem os automóveis e se desenvolve, em cadeia, o jogo obsessivo dos sinais luminosos?
É um homem que caminha até encontrar o rio como algo muito antigo, anterior às vozes e ao trabalho e à cólera e ao amor dos habitantes.
No rio é que vê como há um movimento verdadeiro, e sabe então que ele próprio, perdido por um momento, está muito mais perdido do que supunha: corre também, assim quase imperceptivelmente, reflectindo o que logo se desfaz.
E depois regressa ao centro da capital anoitecida e, erguendo a cabeça, tem a revelação veloz dos enormes edifícios de vidro e metal.
Estou perdido, e as pessoas são de repente arrastadas para os subúrbios, por uma secreta força centrífuga, que o apanha a ele também.
As casas engolem-nas.
Acendem-se e apagam luzes, as cortinas movem-se com a subtileza dos tecidos calmos.
Nas casas, alguém emudece, absorvido por uma lenta domesticidade.
Pensa-se como as cadeiras são inconcebivelmente imóveis e as pessoas se ajustam às cadeiras.
Nunca mais terei paz?, e de súbito a temperatura é baixa, uma árvore tremula na brisa, as casas movem-se subtilmente para uma distância ainda maior: os outros.
E imagina-se isto: estão sentados em volta de uma mesa, as mãos sobem e descem, levanta-se um rosto devagar, e a voz diz: sim, hoje, e o ritmo reorganiza-se em torno desta nova ideia, e o tema destas vidas é esse dia referido — hoje — que se estende para trás e para diante, com as múltiplas imagens rudimentares.
A ele, o que o queima é a inspiração demoníaca.
Talvez espere um dia caminhar sobre as águas, recuperar tudo, chegar junto à esfinge que existe à entrada de todos os lugares e destituí-la de poderes, pela decifração dos enigmas.
Que pode desejar um homem perdido senão ganhar a ciência e a glória?
Para ele, só é possível a salvação completa.
É por isso que este homem caminha sempre e encontra aquele sítio onde o tempo todo se fez espaço: coisa exterior, matéria.
Há uma sinagoga construída e reconstruída desde a fundação da cidade até ao século em que toda a gente está agora a viver, como se viver fosse hoje; e há a ponte romana; a fortaleza árabe; o paço medieval; o palácio renascentista; o convento filipino; o marquês de Pombal; o pequeno teatro arte-nova; a secunda metade do século vinte.
É o tempo.
Mas este tempo é ainda aberto pelos dois lados: e há nele o começo de tudo, e o fim.
Como se subir os degraus de pedra, entrar e sair das ruas estreitas, aparecer nas praças fosse uma aventura não só através do tempo, mas para fora dele: como se fosse consumir o tempo, assumi-lo.
No alto do terrível sentimento de liberdade, o homem pensa que alguém disse: sim, hoje — e é a este tema alheio que ele de repente se devota: ah, uma tarefa simples, uma pessoa, o amor, o comércio, as virtudes e os crimes de todos os dias, do dia de hoje.
Mas sim, sim — existe alguém nesta cidade onde anoiteceu.
Só que é preciso percorrer o pretexto.
São vinte metros talvez, ou trinta, ou o medo que está no fundo da vertigem silenciosa onde a fala se prepara, com as suas quentes e graves curvas, a arguta energia da sedução.
Vamos falar, erguer da treva tumultuosa as nossas antiquíssimas imagens, a espera e a esperança?
Dir-te-ei quem sou, houve um tempo, tive um sonho, lembro-me do teu rosto, a tua voz já existia.
E ele atravessa a rua, passando pelo tempo, de pedra em pedra, com um cigarro na mão para pedir lume ao cigarro alheio, que brilha no outro lado, ao cimo dos três degraus.
Vai ser assim: dá-me lume, por favor?, e o cigarro encostar-se-á ao seu, o lume passará de um para outro, de uma pessoa para outra pessoa, e então, no meio da eternidade deserta, será sim o dia de hoje.
Mas a noite é imensa, quer dizer: a noite do lugar e do tempo, a noite da nossa solidão — é imensa, e apenas um pequeno órgão vivo palpita algures, vibra rapidamente, e amortece-se, e desaparece.
Então, uma vez mais a noite se levanta de nós, e o que estremece é a carne, a nossa, cega e desamparada — mas fremente na sua cegueira e desamparo.
Sabes que estás só? — pergunta a carne à carne —, sabes que a noite se ergueu de ti, como se fosses o seu próprio e único talento, e que esse talento te cerca como uma atmosfera, o morto clima que transportas em ti, de um lado para outro, ao longo das pedras, ao longo de todos os lugares do homem?
Ela sabe, ou pelo menos sabe que sabe.
E é demasiado.
Por isso, olha e espera.
E vê de novo a brasa que estremece na escuridão como uma planta que crescesse e florescesse na terra negra, ou um animal cujo calor abrisse uma brecha no tempo frio.
A carne embriaga-se com imprecisas metáforas de salvação — que salvação?! — com um movimento subterrâneo de analogias, e ele diz: vou pedir-lhe lume.
Vai através do bairro múltiplo, o tempo que o escuro abafou, e então é como se fosse fora do tempo, ou dentro de todo o tempo, à procura do lume para o seu cigarro.
Eles construíram e os anos destruíram, e eles reconstruíram as coisas gastas e construíram outras novas.
Que é isto?
Quer dizer que a carne renasce, e é essa a tarefa?
A noite vem sempre, mas talvez trabalhem também de noite.
Às vezes ouvem-se as picaretas e os martelos, à distância, durante certas noites.
E depois é manhã, e apercebemo-nos de que existe uma coisa nova, um corpo que se organiza para o dia, e isso foi um secreto trabalho nocturno.
Eles acreditam, então — será verdade que ousam acreditar?
Pode-se avançar nas trevas.
Uma, duas vezes, foi-nos indicada uma luz fugitiva — e depois sabemos.
Talvez ainda mais nítida, a topografia marcou-se na nossa cegueira, e então caminhamos, caminha ele com o seu cigarro por acender, a sua perseguição ao fogo.
Não é uma admirável virtude do fogo, não será até um milagroso talento das trevas que, aqui e ali, durante um segundo, o fogo abra a sua pequena rosa trémula, e o homem possa respirar na cega atmosfera dos séculos?
É — eis que ele o diz para si, com uma força maior do que ele próprio, o inventado poder da sua vertiginosa, momentânea fé.
Caminha pelos anos pétreos, com os pés a decifrarem o empedrado e os degraus do bairro.
Ouve os próprios passos, porque sempre ouviu as pancadas do coração — por aí é que reconhece estar vivo, embora isso seja violento demais e demasiado precipitado para a verdadeira harmonia que, possivelmente, seria o estar vivo.
Mas respira, isso sim, o sangue corre pelas veias e artérias, corrompe-se e purifica-se dentro da confusa massa da sua dor de homem, e anda, ele anda, sobe, desce.
Contudo, os passos que ouve, como se fossem as pancadas fortes do seu sangue, parecem distanciar-se.
Pára.
E os passos continuam, afastando-se.
Mais longe, aparece a brasa do cigarro.
O outro foge.
Porque foge?
Que medo inspira assim o desejo do conhecimento, ou o desejo do amor?
É a caça?
Existem aqui o desígnio, o jogo, o ritual — e a alegria bárbara e o primitivo pânico da caça?
Porque o amor é mortal (o amor é mortal?).
Talvez se adivinhe que sim, e obscuramente se saiba que é mortal o conhecimento.
Talvez seja isso o que melhor se conheça do conhecimento — a sua natureza mortal.
Os passos do outro fogem pelo tempo fora, ouvem-se — embaraçados e rápidos — perdendo-se nas escadas, pelas ruas ondulantes, sob os arcos.
Um momento ecoam no meio de uma praça, o cigarro brilha, forma-se uma súbita coroa de silêncio.
Haveria palavras para dizer, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
Mas não haveria resposta.
Ou seria: tenho medo, ou então: é o jogo.
Contudo, não se sabe bem o que acontece, por isso não haveria resposta.
Medo?, porquê medo?, dir-se-ia, jogo, que espécie de jogo?
E as palavras nunca mais acabariam.
Não mais existiria este silêncio no qual, ofegantes, sabemos com tanta dor que ainda estamos vivos.
Por isso é que andamos, agora com todas as artes da caça, devagar, depressa, silenciosamente, cercando a presa.
Amo-te — diríamos nós, no exacto instante de lhe cravar o punhal no meio do peito.
E depois desejaríamos que se fizesse luz, uma grande luz branca, o sol, para vermos o sangue correr e, possivelmente, afogar a nossa boca no sangue amado.
Para conhecermos tudo, até ao fundo e até ao fim.
Porque o amor e o conhecimento são as artes do crime.
Tenho um ramo de flores para ti, diz o amante: são flores venenosas.
Mas toda a gente sabe isto: ninguém deseja nada do amor.
É o tema eleito das palavras.
Eis a razão por que o outro está escondido na praça, ao meio da qual existe um largo fontanário, com a sua rodada taça de pedra, de onde transborda uma água silenciosa e dormente.
A brasa do cigarro marca uma curva no ar e cai na água.
É um indício.
Ele está ali, bem perto.
Mas depois tudo será mais difícil.
Porque será a perseguição declarada, sem o pretexto de pedir lume.
Também não haverá já a indicação do lume, no meio da noite — o sinal de que ali está a pessoa, viva, fumando, respirando, tremendo.
Porque foges?, e enquanto, no mais secreto da sua aflição, ele o pergunta, corre em direcção ao fontanário e quase esbarra com o outro.
Sentem-se, mútuos, únicos, arfam no escuro da praça, a treva treme levemente na água adormecida.
Mas ele diz (e quem sabe se isso é absurdo?) diz: lume, e o outro escapa-se, e põe-se a correr em volta do fontanário.
Os sapatos chapinham na água e a ele, que já começou a persegui-lo, correndo também em torno da taça de pedra, chapinhando do mesmo modo na água vazada, ocorre-lhe um insólito pensamento: caminhamos sobre as águas.
Então abranda um pouco a corrida, inclina o corpo para a direita, e mete a mão na água da taça.
É um ruído novo, virgem, e o contacto da sua carne com a água faz nascer em si uma confusa alegria, o sentido de uma festa natural, o desejo de morrer ali, agora, triunfalmente.
E o outro? — o outro foge, e como não abrandou o passo, nem mergulhou a mão na água, nem pensou (supõe-se) na alegria de uma festa mortal, o outro adiantou-se, e já se encontra no lado oposto do fontanário.
E é ágil, essa criatura sem nome, o ser que se ama, aquele que se persegue e a quem se deseja conhecer, para suplicar lume, ou voz, ou vida, ou sangue, ou sabe-se lá o quê.
Corre depressa demais.
E andando em círculo, chapinhando sempre na água, e às vezes pensando ainda: caminhamos sobre as águas, ele sente, súbito, que o outro avançou bastante.
Treme de medo, porque o outro avançou tanto que já ultrapassou o ponto onde, com o ponto onde ele se encontra, formava os extremos do diâmetro do círculo.
E isto significa: o outro é agora o perseguidor.
E, como avança cada vez mais, torna-se cada vez mais no perseguidor, e ele no perseguido.
Talvez o outro pense: porque foges?, e lhe queira pedir a sua voz, o seu amor, o seu sangue.
É quando sente perto da nuca a respiração do outro.
Tem tempo apenas para desviar-se, correr para a esquerda, atravessar a praça e meter por uma ruela negra.
Mas, parando um instante, ouve os passos do outro na sua direcção.
E então foge através do bairro, do tempo, de pedra em pedra, com o seu pavor de animal perseguido, ouvindo o bater implacável dos pés do outro.
Haveria palavras para ouvir, a antiquíssima súplica do perseguidor: porque foges?
E que poderia ele dizer?: tenho medo?
Não se sabe bem o que acontece.
As palavras nunca mais acabariam, enredar-se-iam umas nas outras, seria um jogo mortal.
Não mais haveria a suspensão do irremediável, esta espécie de silêncio na beira do crime, no qual sabemos, com dor, que ainda estamos vivos.
Ele foge.
Quem sabe se a noite terá fim?
para o ovo quebrado no chão
paro o 5 de julho
para o peixe no tanque
para o velho no quarto 9
para o gato na cerca
para você mesmo
não pela fama
não pelo dinheiro
você precisa seguir na batalha
quando a idade avança
o glamour esmorece
é mais fácil quando se é jovem
todo mundo pode se erguer às
alturas vez ou outra
a palavra-chave é
consistência
qualquer coisa que mantenha as coisas
em movimento
esta dança da vida em frente à
Dona Morte.

E lá estava. O filme rolava. Eu tomara uma surra do garçom no beco. Como expliquei antes, tenho as mãos pequenas, o que é uma terrível desvantagem numa briga de socos. Aquele garçom em particular tinha umas mãos enormes. Para piorar ainda mais as coisas, eu encaixava bem as porradas, o que me fazia absorver muito mais o castigo. Tinha um pouco de sorte do meu lado: não era muito medroso. As brigas com o garçom eram uma forma de passar o tempo. Afinal, a gente não podia ficar sentado no tamborete do bar o dia e a noite inteiros. A dor vinha na manhã seguinte, e não era tão ruim quando a gente tinha conseguido voltar para o quarto.
E brigando duas ou três vezes por semana eu ia ficando melhor naquilo. Ou o garçom ficando pior.
Mas isso fora mais de quatro décadas atrás. Agora eu me sentava numa sala de projeção de Hollywood.
Não é preciso lembrar o filme aqui. Talvez seja melhor falar de uma parte que ficou de fora. Mais adiante, no filme, uma dona quer cuidar de mim. Acha que eu sou um gênio e quer me proteger das ruas. No filme eu só fico na casa da dona uma noite. Mas na vida real fiquei cerca de um mês e meio.
A dona, Tully, morava numa grande casa em Hollywood Hills. Dividia-a com outra dona, Nadine. As duas eram altas executivas. Estavam no ramo das diversões: música, editoração, uma coisa assim. Pareciam conhecer todo mundo e davam duas ou três festas por semana, um monte de tipos de Nova York. Eu não gostava das festas de Tully e me divertia ficando totalmente de porre e insultando o máximo de pessoas que pudesse.
Nadine morava com um cara um pouco mais jovem que eu. Era compositor, ou diretor, ou alguma coisa assim, temporariamente desempregado. Não gostei dele de cara. Vivia esbarrando com ele pela casa ou no pátio de manhã, quando estávamos ambos de ressaca. Ele sempre usava uma porra de uma echarpe.
Uma manhã, lá pelas 11 horas, estávamos os dois no pátio mamando umas cervejas, tentando nos recuperar de nossas ressacas. Ele se chamava Rich. Me olhou.
– Precisa de outra cerveja?
– Claro... Obrigado...
Ele entrou na cozinha, voltou, me entregou minha cerveja e se sentou.
Tomou uma boa golada. Depois deu um profundo suspiro.
– Não sei por quanto tempo mais vou conseguir enrolar ela...
– Quê?
– Quer dizer, eu não tenho talento nenhum. É tudo merda.
– Lindo – eu disse –, isso é realmente lindo. Eu admiro você.
– Obrigado. E você? – ele perguntou.
– Eu bato à máquina. Mas não é esse o problema.
– Qual é?
– Estou com o pau esfolado de tanto foder. Ela nunca se satisfaz.
– Eu tenho de chupar Nadine toda noite.
– Nossa...
– Hank, nós somos uma dupla de homens manteúdos.
– Rich, essas mulheres liberadas puseram os bagos da gente num saco.
– Acho que a gente devia entrar já na vodca – ele disse.
– Ótimo – eu disse.
Nessa noite, quando nossas donas chegaram, nenhum dos dois estava em condições de cumprir seus deveres.
Rich durou mais uma semana e desapareceu.
Depois disso, eu muitas vezes encontrava Nadine andando nua pela casa, geralmente quando Tully havia saído.
– Que diabos está fazendo? – perguntei finalmente.
– Isto aqui é minha casa, e se eu quiser andar com o rabo tomando vento isso não é da conta de ninguém.
– Vamos lá, Nadine, que é que há realmente? Quer uma chupadinha?
– Nem que você fosse o último homem da terra.
– Se eu fosse o último homem da terra, você ia ter de entrar na fila.
– Fique feliz por eu não contar pra Tully.
– Bem, pare de andar por aí com a xoxota pendurada.
– Seu porco!
Subiu correndo a escada, plop, plop, plop. Um rabão. Uma porta bateu lá em cima. Eu não prossegui com a coisa. Uma mercadoria totalmente superestimada.
Nessa noite, quando Tully voltou, me remeteu para Catalina por uma semana. Acho que sabia que Nadine estava no cio.
Isso não estava no filme. Não se pode pôr tudo num filme.
E aí, voltando à sala de projeção, o filme acabara. Aplaudiram. Todos saímos em volta apertando as mãos uns dos outros, abraçando-nos. Éramos todos sensacionais, diabos, sim.
Harry Friedman me encontrou. Nós nos abraçamos, depois apertamos as mãos.
– Harry – eu disse –, você tem um vencedor!
– É, é, um grande argumento! Escuta, eu soube que você escreveu um romance sobre prostitutas.
– É.
– Quero que me escreva um argumento sobre ele. Quero fazer!
– Claro, Harry, claro...
Então ele avistou Francine Bowers e correu para ela.
– Francine, doçura, você estava magnífica!
Aos poucos, as coisas foram se acalmando e a sala ficou quase vazia. Sarah e eu saímos.
Lance Edwards e seu carro haviam desaparecido. Tínhamos o longo percurso de volta até o nosso carro. Tudo bem. A noite estava fresca e clara. O filme acabara e logo estaria sendo exibido. Os críticos dariam sua opinião. Eu sabia que se faziam filmes demais, um atrás do outro atrás do outro. O público via tantos filmes que não sabia mais o que era um filme e os críticos se achavam na mesma entalada.
E então voltávamos para casa, em nosso carro.
– Eu gostei – disse Sarah. – Só que teve umas partes...
– Eu sei. Não é um filme imortal, mas é bom.
– É, é, sim...
Estávamos na autoestrada.
– Vou ter prazer em ver os gatos – disse Sarah.
– Eu também...
– Você vai escrever outro argumento?
– Espero que não...
– Harry Friedman quer que a gente vá a Cannes, Hank.
– Quê? E deixar os gatos?
– Ele mandou levar os gatos.
– De jeito nenhum!
– Foi o que eu disse a ele.
Fora uma boa noite, e outras haveria. Eu entrei na primeira saída e paguei para ver.
– Hollywood
Ele lembra-se de setembro, o mês.
Setembro é um mês obrigatório.
Chegara para alguém o tempo do conhecimento.
Os ladrões são assim: espreitam, esperam, a ver como é.
Depois, do conhecimento dos outros instituem uma parte do seu conhecimento próprio.
Pode-se pensar que são coleccionadores de selos, acumuladores de riqueza, espíritos vorazes intensamente ocupados na extravagância dos espectáculos.
E emocionam-se, deslumbram-se, sofrem — monstros hábeis metendo tudo nas algibeiras.
Vamos rir: se calhar, aquilo de nada lhes servirá.
Alguém diz: tornam-se maiores as dimensões da realidade.
E o coleccionador, perdido em espaços demasiado grandes para si, diz devagar, muito devagar: merda.
Ninguém ouve, e ele mantém o seu orgulho de guardador de coisas, ele, o das vastas dimensões da realidade.
Porque é que em setembro acontecem coisas?
É por causa da luz.
O terror, por exemplo, é de setembro.
As noites rebentam inesperadamente no que pensamos ser o meio da luz do mês de setembro.
A morte diverte-se muito em setembro.
Vejamos: as pessoas estão a dormir, em setembro, e acordam de súbito, apavoradas.
Tiveram um sonho premonitório.
As pessoas julgam que a vida treme nelas, riem de alegria, têm o corpo bronzeado, cantam, levantam a cabeça para a luz.
É porque se está em setembro.
Então aprendem uma coisa qualquer, roubam-na, coleccionam-na, aumentam as dimensões da realidade.
E mesmo que digam baixinho: merda — não se livram do seu álbum de selos.
Estão tramadas.
Ele sabe isso muito bem.
De setembro, o mês, conhece todas as artimanhas.
Agora ri, quando as pessoas fáceis dizem: no verão, em setembro.
Elas contam as historiazinhas da praia, da alegria de viver junto ao mar, das roupas leves e claras.
Bem: nunca parou de enriquecer, ele, por obrigação.
E então chegou setembro, o obrigatório.
Nessa altura já ele tinha os braços e as pernas muito grandes e tentava metê-los no espaço, ao mesmo tempo que o resto do corpo.
Estava à procura do último ritmo, e as coisas iam menos mal.
Mas a mais nova das irmãs, com a malevolência dos seus doze anos, estava a comer uma ameixa, com os olhos sobre a mesa de estudo.
Setembro já começara a encher-se de assombro, por causa dos doze anos dela.
Embora o mês principiasse por ter uma qualidade especial de expectativa, e os dias se mudassem uns aos outros, mantendo uma subtil tensão — só nesse sábado branco é que o tumulto se levantou no meio da casa.
A irmã levantou os olhos da mesa, deixou cair a ameixa e ficou a olhar com espanto a parede em frente.
Depois, em setembro, o rosto dela correu vertiginosamente em direcção ao pânico, e ela deu um grito.
Tinha chegado o tempo do conhecimento.
Rouba o teu bocado, disse o pequeno monstro.
Vieram pessoas, vieram as mães todas: a velha, a outra a seguir, e a outra, e as novas mas ainda assim mais velhas.
Arrastaram a irmã para um quarto do fundo, e esconderam-na.
O espectador disse: agora é ela a vítima, foi apanhada de súbito pelo conhecimento.
E perguntou: o que é que cresceu nela, a comedora de ameixas aos doze anos?
Os dias de setembro unem-se uns aos outros, sob a enorme luz da tarde.
As mães todas correm pelos corredores, falam baixo, pretendem tornar inalcançável para ele os doze anos da comedora de ameixas.
Porque ele fica junto da mesa, à procura da ameixa mordida que rolou para o soalho.
Mas ele próprio já sabia demais para convencer-se de que procurava no chão ameixas mordidas.
Caberia isso na cabeça de alguém?
Um criminoso de oito anos procura, em setembro, quando a irmã grita e é levada para o inacessível.
Digo: um criminoso de oito anos perde tempo à procura de uma ameixa? quando uma rapariguinha de súbito cai em pleno espaço do sacral e as sacerdotisas se alvoroçam à sua volta, dizendo: chegou o tempo.
Levam-na para o inacessível, para o fundo da casa.
Que procuras tu, farejador?
Comigo foi assim, pensa ele: golpeei o braço, expus-me, criança doce e dramática, em frente do espanto e da comoção das mulheres, caí no abismo, ressuscitei sob a delicadíssima atenção feminina, cresceram-me os braços e as pernas, insinuou-se em mim um novo ritmo, soube que ultrapassei um perigo e fiquei de uma outra maneira diante de tudo.
Depois diz: aconteceu-lhe o mesmo a ela, mas de um modo particular.
Deve existir um sinal.
Havia no soalho, junto da cadeira, uma pequena mancha de sangue.
E ao longo do quarto, até à porta, um rasto de pingos de sangue.
E havia no corredor, ao longo do corredor — havia sangue.
Acerca das ameixas já eu sabia tudo, pensa ele.
Acerca de sangue de golpes no braço, pensa ele, já eu sabia tudo.
Quanto ao sangue de uma irmã de doze anos que de repente pára de comer ameixas e olha a parede e fica em pânico e grita e atrai as mulheres e é arrastada para o fundo da casa — começo a saber uma pequena coisa.
Tenho medo.
Quando uma mulher tiver fluxo de sangue, e o sangue lhe manar do corpo, ficará sete dias em reclusão, na impureza das suas regras.
Todo aquele que a tocar ficará imundo até à tarde.
O leito em que ela se deitar ficará imundo, e o sítio em que se sentar ficará imundo.
Todo aquele que tocar no seu leito deverá limpar as vestes, e lavar-se em água, e ficará imundo até à tarde.
Todo aquele que tocar num móvel, seja qual for, onde ela se tenha sentado, deverá limpar as vestes, e lavar-se-á em água, e ficará imundo até à tarde.
Se um objecto se encontrar no leito ou no sítio onde ela se sentou, aquele que lhe tocar ficará imundo até à tarde.
Se um homem se deitar com ela, atingi-lo-á a impureza das regras.
Ficará imundo durante sete dias.
O leito onde se deitar ficará imundo.
Principiou assim um tempo novo, uma coisa difícil a favor ou contra a qual ele não possuía qualquer arma.
Se se passasse pelos dias brancos e lisos, talvez nada se notasse, mas ao fundo deles vibrava o ambíguo e cerrado transe feminino.
O crescimento dramático e obscuro da irmã perpetuava-se algures, era o intangível e terrível remate desses dias tão planos.
Deve-se acreditar nos arquitectos, na tradição?
É verdade que uma casa se construíra e nela se instalara um campo de forças, de linhas cruzadas e tensas onde assentava o equilíbrio.
Podia-se então, sob a luz peremptória de setembro, averiguar o valor das pequenas coisas, o sentido de algumas transformações e, embora nada disso se fizesse sem alguma surpresa e sofrimento, ah, ressuscitava-se, sim, ressuscitava-se sempre.
Na verdade, não existia mácula nenhuma.
Metamorfoses, se as havia — e havia — davam-se dentro do próprio sistema de que se fazia parte.
Já se falara em terror?
Sim, falara-se na terra que treme debaixo dos pés, no medo e na confusão.
Não se falara contudo em mácula.
O que estava dentro de uma pessoa crescia, era certo, crescia por vezes espectacularmente, tornava estranhos e inóspitos, por um tempo, o lugar e o estilo — mas recuperava-se tudo, e pensava-se depois: descubro novos dons dentro de mim, eu cresço.
Mas que o mundo crescesse, ele, que o mundo fosse tão brutalmente activo, e não matéria apenas expectante à espera do nosso talento que crescia, isso, ah isso.
Isso não, não se sabia.
Tinha-se medo.
Havia sangue — um sangue corruptor.
Afinal, o trabalho das mulheres era o da ocultação da sua mácula.
Não se tratava de uma riqueza que fosse necessário decifrar, fosse difícil pela sua mesma natureza, mas cujo singular valor se relacionava obscuramente com o crescimento de uma criança.
As mulheres eram secretamente impuras, inspiravam o terror.
Eis que ela grita, aquela que agora se inicia, mas que em si trazia os húmidos e soturnos germens do mal, todas as virtualidades demoníacas.
E se olhares para o alvoroço feminino, com o teu coração tão acessível ao patético, onde o gesto e o movimento curvo se gravam pela impressividade da graça e da inspirada reticência — se olhares assim, aprendiz, ficas a saber que as mulheres continuam o seu trabalho de surpreendentes tecedeiras do milagre.
Mas descobriste outra coisa: que há uma mentira.
Descobriste isto: as mulheres nem roçam por ti.
Nunca soubeste nada, não decifraste o menor sinal, elas sempre estiveram a uma inimaginável distância.
Se perguntasses: o que há em setembro?, apareceriam todas as mentiras.
Maria: a roupa seca mais depressa; Francisca: é o melhor tempo de praia; Filipa: a luz estonteia; Luísa: pode-se dormir ao ar livre; Merícia: custa a adormecer.
Mas em setembro aparece a menstruação.
E ele anda pela casa, em volta daquele círculo de treva ardente, rondando a sagrada vileza das mulheres.
Mas há nessa espécie de desavinda sede de conhecimento, ou nessa angustiosa fascinação, uma repugnância e um medo próximos do amor, um silêncio crispado e atento que quase se abre num louvor incoerente.
Todo aquele… todo aquele que tocar… ficará imundo…
Sim, arrebatam-na, e ela cresce, cresce.
Que é isso de pernas e braços que se põem ridiculamente a sair do seu tamanho, como tomados de um ímpeto próprio, comparado com aquilo que nem se nomeia, não se pode ver, e é sagrado e intocável pelo poder da sua própria maldição?
Uma irmã come ameixas, e isso é mentira.
Ele olhou-a, a ela, e olhou as outras raparigas, e a mãe, e a avó.
Aprendia, pensava ele, aprendia.
Tocava-lhes nos vestidos, via-as pentear-se, andar, falar, calarem-se.
O grito, sim, o grito era o limiar: a primeira e última verdade.
Depois, a treva.
E a irmã estava de repente no seu lugar — a ausência perfeita.
Em setembro, as crianças não dormem.
São rapazinhos de rosto atemorizado, o olhar aberto e imóvel, as mãos espalmadas sobre a colcha.
Talvez pudessem ficar assim, até serem homens, e o que cresceria então neles?
Quem sabe se apenas os cabelos e as unhas?
Mas ele levanta-se no meio da sua noite, um destes rapazinhos, porque afinal existe a força do amor.
Levanta-se para novos corredores e escadas — e anda como um sonâmbulo comido pela febre.
Que o crime é uma vocação — sim, diga-se dessa maneira; diga-se que o crime é uma vocação, do mesmo modo que o conhecimento.
Que são uma só coisa, isso; que o crime e o conhecimento são uma só coisa: uma vocação.
Ele levanta-se na sua noite, cheio de confuso amor, e precipita-se na sua silenciosa vocação: o crime do conhecimento.
E assim se aproxima, tacteando, com as mãos trementes de febre, dos lugares sagrados.
Bem pode ser que haja setembro, luz, coisas aparentemente fáceis, nenhuma dúvida.
Mas agora é sempre noite, sempre um fervor culpado, a descoberta da violação.
Pode-se falar de alegria?
Pode.
É disso mesmo, é de uma monstruosa alegria aquilo de que se fala.
Assim se caminha pelos corredores e quartos, pelo equívoco das velhas arquitecturas, e a inspiração é esta: uma alegria cujas dimensões são ainda imperscrutáveis.
Não se conte isto em tempo: foi muito tempo, ou foi muito pouco.
Não há tempo.
Porque esta alegria, este amor, este medo que anda, esta violação servida por minúcias mesquinhas, estão prontos para o muito ou o pouco tempo.
Exerce-se, e nisso se basta.
É uma aranha, tem as virtudes inteligentes, miúdas e tenazes da aranha.
Aquele rapazinho que fora apanhado pelo espanto e o terror, que se deitara de mãos abertas como fulminado, e estava pálido e já não sabia nada, esse, sim, esse.
É desse que se fala.
Pois levantou-se, e agora procura, cada vez mais perto, mais perto.
É ele.
E um dia então descobre um pano manchado de sangue menstrual e mete-o debaixo da camisa, contra a sua própria carne.
Parece que não chegou a deixar a cama, porque podemos encontrá-lo tal como estava: deitado de mãos estendidas, respirando com a boca entreaberta, e o olhar fixo no tecto.
Talvez um resto de sorriso fugindo dos lábios, ou o princípio de um sorriso.
Mas agora é ele que desaparece, cerra-se, corta todas as pontes que poderiam conduzir ao seu segredo.
Fica só.
Não atravessem corredores, nem subam ou desçam escadas.
Nunca o encontrarão.
Lentamente, a mão que talvez se julgasse adormecida sobe da colcha.
Nunca esteve tão acordada, nunca foi tão forte — aquela mão de rapazinho deitado.
Desabotoa a camisa — ela, a mão, a mão que sabe — e tira o pano para fora.
É sobre um rosto de olhos fechados que essa mão parece voar docemente, com o pano vermelho bem agarrado.
A mão desce sobre o rosto, e o que se poderia ver seria um fremir de narinas, e um tremer de lábios.
O odor tão vivo daquele sangue morto enche-o, passa pelo olfacto e enche-o turvamente.
Sim, sim, também isso, também isso é verdade: um beijo — o beijo do amor.
E, pelas pálpebras fechadas, lágrimas para que não há nome.
Quando ele abre os olhos, talvez ninguém saiba, mas abre-os para a alegria — a mais terrível das alegrias.
Desesperados vamos pelos caminhos desertos
Sem lágrimas nos olhos
Desesperados buscamos constelações no céu enorme
E em tudo, a escuridão.
Quem nos levará à claridade
Quem nos arrancará da visão a treva imóvel
E falará da aurora prometida?
Procuramos em vão na multidão que segue
Um olhar que encoraje nosso olhar
Mas todos procuramos olhos esperançosos
E ninguém os encontra.
Aos que vêm a nós cheios de angústia
Mostramos a chaga interior sangrando angústias
E eles lá se vão sofrendo mais.
Aos que vamos em busca de alegria
Mostramos a tristeza de nós mesmos
E eles sofrem, que eles são os infelizes
Que eles são os sem-consolo...

Quando virá o fim da noite
Para as almas que sofrem no silêncio?
Por que roubar assim a claridade
Aos pássaros da luz?
Por que fechar assim o espaço eterno
Às águias gigantescas?
Por que encadear assim à terra
Espíritos que são do imensamente alto?

Ei-la que vai, a procissão das almas
Sem gritos, sem prantos, cheia do silêncio do sofrimento

Andando pela infinita planície que leva ao desconhecido
As bocas dolorosas não cantam
Porque os olhos parados não veem.
Tudo neles é a paralisação da dor no paroxismo
Tudo neles é a negação do anjo...
...são os Inconsoláveis.

— Águias acorrentadas pelos pés.
mande quantos poemas você quiser, mantenha
apenas cada um deles a dez linhas no máximo.
nenhum limite quanto ao estilo ou conteúdo
embora prefiramos poemas de
afirmação.
espaço duplo
com seu nome e endereço na
parte superior do cabeçalho
esquerdo.
os editores não se responsabilizam pelos
manuscritos
sem envelope de retorno
todos os esforços
serão feitos para
julgar os trabalhos num prazo de 90
dias.
após uma cuidadosa seleção
a escolha final será feita por
Elly May Moody,
editora-geral responsável.
por favor envie dez dólares
para cada poema
apresentado.
um prêmio final de
75 dólares será
entregue ao vencedor
do
Prêmio de ouro Elly May Moody de
poesia,
junto com um certificado
assinado por
Elly May Moody.
também serão premiados com certificados os 2º, 3º e
4º lugares
todos com a assinatura de
Elly May Moody.
as decisões são
irrevogáveis.
os vencedores do prêmio serão
publicados no número de primavera de
O coração do paraíso.
os vencedores do prêmio também receberão
uma cópia da revista
junto com
a última coletânea de
poesia de
Elly May Moody,
O lugar onde morreu
o inverno.

A cena da banheira era simples. Francine sentava-se dentro e Jack Bledsoe no chão, do lado de fora, recostado na banheira, enquanto Francine falava de várias coisas, principalmente sobre um assassino que vivia no prédio e se achava em liberdade condicional. O homem, que morava com uma velha, espancava-a continuamente. Ouviam-se o assassino e sua dona discutindo e se xingando através das paredes.
Pinchot me pedira para escrever diálogos de pessoas brigando do outro lado das paredes, e eu lhe dera várias páginas. Basicamente, essa fora a parte mais gostosa da criação do argumento.
Muitas vezes, nessas pensões e apartamentos baratos, não se tinha nada a fazer quando se estava duro, morrendo de fome e reduzido à última garrafa. Não se tinha nada a fazer senão escutar aquelas discussões cabeludas. Elas faziam a gente compreender que não era o único desiludido do mundo, não era o único à beira da loucura.
Não podíamos ver a cena da banheira, porque não havia espaço suficiente lá dentro, por isso Sarah e eu ficamos esperando na porta da frente do apartamento, com a cozinha para um lado. Na verdade, trinta anos atrás eu tinha morado por pouco tempo naquele mesmo prédio da Rua Alvarado, com a dona sobre a qual escrevera o argumento. Era de fato estranho e arrepiante. “Tudo que passa, volta.” De uma maneira ou de outra. E trinta anos depois, o lugar parecia mais ou menos o mesmo. Só que as pessoas que eu conhecera tinham todas morrido. A dona morrera três décadas atrás, e ali estava eu sentado, tomando uma bebida naquele mesmo prédio cheio de câmeras e som e técnicos. Bem, eu ia morrer também, muito breve. Sirva um por mim.
Preparavam comida na pequena cozinha, e a geladeira regurgitava de cervejas. Fiz algumas incursões por lá. Sarah encontrou pessoas com quem conversar. Tinha sorte. Toda vez que alguém falava comigo, eu sentia vontade de saltar pela janela ou descer no elevador. As pessoas simplesmente não tinham interesse algum. Talvez não devessem ter. Mas os animais, pássaros, até mesmo os insetos tinham. Eu não entendia.
Jon Pinchot continuava adiantado um dia em relação ao cronograma de filmagens, e eu estava satisfeito pra burro com isso. Tirava a Firepower do nosso pé. Os grandolas não apareciam. Tinham seus espias, é claro. Eu os via.
Alguns membros da equipe tinham livros meus. Pediam autógrafos. Os livros que traziam eram curiosos. Quer dizer, eu não os considerava os melhores. (Meu melhor livro é sempre o último que escrevi.) Alguns deles tinham um livro de minhas primeiras histórias pornográficas, Batendo punheta no demônio. Alguns livros de poemas, Mozart na figueira e Você deixaria esse homem tomar conta de sua filhinha de auatro anos? Também A latrina do bar é minha capela.
O dia passava, em paz mas sem alegria.
Bela cena de banheira, eu pensava. Francine deve estar bem lavada a essa altura.
Jon Pinchot entrou correndo no quarto. Parecia descomposto. Até o zíper estava meio aberto. Despenteado. Os olhos pareciam ao mesmo tempo ensandecidos e vazios.
– Meu Deus! – disse. – Aqui está você!
– Como vai indo?
Ele se curvou sobre mim e me sussurrou no ouvido:
– É terrível, é de enlouquecer! Francine está preocupada com a possibilidade do bico do peito dela aparecer acima d’água! Fica perguntando: “Meus peitos estão aparecendo?”
– Que mal faz um peitinho?
Jon se curvou mais ainda.
– Ela não é mais tão jovem quanto gostaria... E Hyans odeia aquela iluminação... Não suporta a iluminação e está bebendo cada vez mais...
Hyans era o câmera. Ganhara quase todos os prêmios do ramo, um dos melhores câmeras vivos, mas, como a maioria das almas grandes, gostava de seu traguinho de vez em quando.
Jon prosseguiu, sussurrando freneticamente:
– E Jack não diz uma fala certa. Temos de cortar o tempo todo. Tem alguma coisa nas falas que incomoda ele, e ele fica com aquele sorriso idiota no rosto quando as diz.
– Qual é a fala?
– É: “Ele tem de masturbar o agente da condicional quando o cara aparece”.
– Tudo bem, experimente: “Ele tem de tocar punheta no agente da condicional quando o cara aparece”.
– Nossa, obrigado! ESTA VAI SER A décima nona TOMADA!
– Meu Deus – eu disse.
– Me deseje sorte...
– Sorte...
Jon deixou o quarto. Sarah se aproximou.
– Que é que há?
– A décima nona tomada. Francine está com medo de mostrar os peitos, Jack não consegue dizer sua fala, e Hyans não gosta da iluminação.
– Francine precisa de um trago – ela disse. – Vai fazer ela se soltar.
– Hyans não precisa de um trago.
– Eu sei. E Jack vai conseguir dizer a fala quando Francine se soltar.
– Talvez.
Nesse momento Francine entrou no quarto. Parecia inteiramente perdida, completamente por fora. Usava um roupão, uma toalha amarrada na cabeça.
– Vou dizer a ela – disse Sarah.
Aproximou-se de Francine e falou-lhe baixinho. A outra escutou. Assentiu levemente com a cabeça, saiu do quarto por uma porta à esquerda. Num instante, Sarah emergiu da cozinha com uma xícara de café. Bem, tinha scotch, vodca, uísque e gim naquela cozinha. Sarah preparara alguma coisa. A porta abriu-se, fechou-se e a xícara de café desapareceu.
Sarah aproximou-se.
– Ela vai ficar bem agora...
Passaram-se dois ou três minutos, e a porta do quarto abriu-se de repente. Francine saiu e dirigiu-se para o banheiro e a câmera. Quando passava, seus olhos encontraram os de Sarah:
– Obrigada!
Bem, não havia nada a fazer senão ficar sentado e bater mais papo.
Eu não podia deixar de lançar uma olhada ao passado. Aquele era o mesmo prédio do qual eu fora despejado por levar três mulheres para meu quarto certa noite. Naquele tempo não tinha essa de Direitos do Inquilino.
– Sr. Chinaski – dissera a senhoria –, aqui moram pessoas religiosas, pessoas trabalhadoras, pessoas com filhos. Eu nunca recebi uma queixa dessas sobre outros inquilinos. E soube também que o senhor... aquelas cantorias, aqueles xingamentos... quebra-quebra... palavrões e risadas... Em toda a minha vida, eu jamais soube de nada parecido com o que aconteceu em seu quarto ontem à noite!
– Tudo bem, eu saio...
– Obrigada.
Eu devia estar louco. Sem me barbear. A camiseta cheia de buracos de cigarro. Meu único desejo era ter mais de uma garrafa na cômoda. Não era feito para o mundo nem o mundo pra mim, e encontrara outros como eu, e em sua maioria esses outros eram mulheres, mulheres com as quais a maioria dos homens jamais iria querer ficar num mesmo quarto, mas que eu adorava, elas me inspiravam, eu fazia teatro, xingava, saltava pelo quarto de cueca dizendo-lhes que era grande, mas só eu acreditava nisso. Elas apenas berravam: “Foda-se! Sirva mais um pouco de álcool!” Aquelas donas do inferno, aquelas donas no inferno comigo.
Jon Pinchot entrou rápido no quarto:
– Deu tudo certo! Que dia! Agora, amanhã recomeçamos tudo!
– Agradeça a Sarah! – eu disse. – Ela sabe preparar uma bebida mágica.
– Quê?
– Ela soltou Francine com uma coisa numa xícara de café.
Jon voltou-se para Sarah.
– Muito obrigado...
– Disponha – respondeu Sarah.
– Nossa – disse Jon –, estou neste ramo há muito tempo e nunca fiz dezenove tomadas!
– Eu soube – eu disse – que Chaplin às vezes fazia cem tomadas até conseguir o que queria.
– Isso era Chaplin – disse Jon. – Cem tomadas, e nosso orçamento vai embora.
E foi isso aí por esse dia. A não ser por Sarah, que disse:
– Diabos, vamos ao Musso’s.
O que fizemos. E conseguimos uma mesa na Sala Velha e pedimos umas bebidas enquanto olhávamos o menu.
– Lembram? – perguntei. – Lembram dos velhos tempos quando a gente vinha aqui ver as pessoas nas mesas e tentar localizar os tipos, os atores, os diretores ou produtores, os tipos do pornô, os agentes, os aspirantes? E a gente pensava: “Veja só eles, discutindo suas negociatas de filmes, ou os contratos sobre seus últimos filmes”. Que toupeiras, que desajustados. Melhor desviar o olhar quando chegarem o peixe-espada e o linguado.
– A gente achava eles uns merdas – disse Sarah – e agora nós é que somos.
– Tudo que passa, volta...
– Certo! Acho que vou querer o linguado...
O garçom pairava acima de nós, arrastando os pés, franzindo o cenho, os pelos das sobrancelhas caindo sobre os olhos. Musso estava ali desde 1919, e tudo era um pé no saco para ele: nós, e todos os demais na casa. Eu concordava. Decidi pelo peixe-espada. Com batatas fritas.
– Hollywood
A Areia Traída
Talvez, talvez o olvido sobre a terra como uma capa
possa desenvolver o crescimento e alimentar a vida
(pode ser) como o húmus sombrio no bosque.


Talvez, talvez o homem como um ferreiro acode
à brasa, aos golpes do ferro sobre o ferro,
sem entrar nas cegas cidades do carvão.

sem fechar os olhos, precipitar-se abaixo
em fundições, águas minerais, catástrofes.

Talvez, porém meu prato é outro, meu alimento é diverso:
meus olhos não vieram para morder olvido:
meus lábios se abrem sobre todo o tempo, e todo o tempo
não só uma parte do tempo gastou as minhas mãos.

Por isso te falarei destas dores que quisera afastar,
te obrigarei a viver uma vez mais entre suas queimaduras,
não para nos determos coma numa estação, ao partir,
nem tampouco para golpear com o rosto a terra .

nem para enchermos o coração de água salgada,
mas para caminhar conhecendo, para tocar a retidão
com decisões infinitamente carregadas de sentido,
para que a severidade seja uma condição da alegria, para
que assim sejamos invencíveis.




I
Os verdugos

Sáuria, escamosa América enrolada
ao crescimento vegetal, ao mastro
erigido no lamaçal:
amamentaste filhos terríveis
com venenoso leite de serpente,
tórridos berços incubaram
e cobriram de barro amarelo
uma progênie encarniçada.

O gato e a escorpiona fornicaram
na pátria selvática.


Fugiu a luz de ramo em ramo,
mas não acordou o adormecido.


Cheirava à cana o cobertor,
haviam rodado as machadinhas
ao mais arredio lugar da sesta,
e no penacho escasseado
das cantinas escarrava
a sua independência jactanciosa
o jornaleiro sem sapatos.



O Dr.
Francia
O Paraná nas zonas maranhosas,
úmidas, palpitantes de outros rios
onde a rede da água, Yabebiri,
Acaray,, Igurey, jóias gêmeas
tingidas de quebracho, rodeadas
pelas espessas copas do copal,
transcorre para as savanas atlânticas
arrastando o delírio
do nazaret arroxeado, as raízes
do curupay em seu sonho arenoso.


Do lodaçal tépido, dos tronos
do jacaré devorador, ao meio
da pestilência silvestre,
cruzou o Dr.
Rodríguez de Francia
a caminho da poltrona do Paraguai.

E viveu entre os rosetões
de rosada alvenaria
qual estátua sórdida e cesárea
coberta pelos véus da aranha sombria.


Solitária grandeza no salão
cheio de espelhos, espantalho
negro sobre a felpa rubra
e ratazanas assustadas na noite.

Falsa coluna, perversa
academia, agnosticismo
de rei leproso, rodeado
pela extensão da erva-mate
bebendo números platônicos
na forca do justiçado,
contando triângulos de estrelas,
medindo claves estelares,
espreitando o alaranjado
entardecer do Paraguai
com um relógio na agonia
do fuzilado em sua janela,
com uma mão no ferrolho
do crepúsculo manietado.


Os estudos sobre a mesa,
os olhos no acicate
do firmamento, nos emborcados
cristais da geometria,
enquanto o sangue intestinal
do homem morto a coronhadas
escorria pelos degraus
chupado por verdes enxames
de moscas que cintilavam.


Fechou o Paraguai como um ninho
de sua majestade, amarrou
tortura e barro nas fronteiras.

Quando nas ruas sua silhueta
passa, os índios viram
os olhos para o muro:
sua sombra resvala deixando
duas paredes de calafrios.


Quando a morte consegue ver
o Dr.
Francia, ele está mudo,
imóvel, atado a si próprio,
só em sua cova, seguro
pelas cordas da paralisia,
e morre só, sem que ninguém
entre na câmara: ninguém se atreve
a tocar a porta do amo.


E amarrado por suas serpentes,
desbocado, fervido em sua medula,
agoniza e morre perdido
na solidão do palácio,
enquanto a noite estabelecida
como uma cátedra devora
os capitéis miseráveis
salpicados pelo martírio.



Rosas (1829-1849)

É tão difícil ver através da terra
(não do tempo, que ergue sua taça transparente
iluminando o alto resumo do orvalho),
porém a terra espessa de farinhas e rancores,
adega endurecida com mortos e metais,
não me deixa olhar pra baixo, no fundo
em que a entrecruzada solidão me rechaça.


Mas falarei com eles, os meus, os que um dia
para minha bandeira fugiram, quando era a pureza
estrela de cristal em seu tecido.


Sarmiento, Alberdi, Oros, del Carril:
minha pátria pura, logo manchada,
guardou para vós
a luz de sua metálica estreiteza,
e entre pobres e agrícolas adobes
os desterrados pensamentos
foram fiando-se com dura mineração
e aguilhões de açúcar vinhateiro.


O Chile os repartiu em sua fortaleza,
deu-lhes o sal de seu circuito marinho,
e esparziu as sementes desterradas.


Enquanto isso o galope na planície.

A argola partiu-se sobre as fibras
da cabeleira celeste,
e o pampa mordeu as ferraduras
das bestas molhadas e frenéticas.


Punhais, gargalhadas de mazorca
sobre o martírio.
Lua coroada
de rio a rio sobre a brancura
com um penacho de sombra indizível!

A Argentina roubada a coronhadas
no vapor da alba, castigada
até sangrar e enlouquecer, vazia,
cavalgada por azedos capatazes!

Tu fizeste procissão de vinhas rubras,
foste uma máscara, um tremor selado,
e te substituíram na brisa
por uma trágica mão de cera.

Saiu de ti uma noite, corredores,
lousas de pedra enegrecida, escadarias
onde se fundiu o som, encruzilhadas
de carnaval, com mortos e bufões,
e um silêncio de pálpebra que cai
sobre todos os olhos da noite.


Por onde fugiram teus trigos espumosos?
Teu garbo frutal, tua extensa boca,
tudo o que se move por tuas cordas
para cantar, teu couro trepidante
de grande tambor, de estrela sem medida,
emudeceram sob a implacável
solidão da cúpula encerrada.


Planeta, latitude, claridade poderosa,
em tua orla, na cinta pela neve compartida,
recolheu-se o silêncio noturno que chegava
montado sobre um mar vertiginoso,
e onda após onda a água nua relatava,
o vento gris a tremer desatava a sua areia,
a noite nos feria com o seu pranto estépico.


Mas o povo e o trigo se amassaram: aí
alisou-se a cabeça terrenal, pentearam-se
as fibras enterradas da luz, a agonia
provou as portas livres, destroçadas do vento,
e das poeiradas do caminho, uma
a uma, dignidades submersas, escolas,
inteligências, rostos ao pó ascenderam
até se tornarem unidades estreladas,
estátuas da luz, puras pradarias.



Equador
Dispara Tunguragua azeite rubro,
Sangay sobre a neve
derrama mel ardendo,
Imbabura de tuas cimeiras
igrejas nevadas arroja
peixes e plantas, ramos duros
do infinito inacessível,
e nos páramos, acobreada
lua, edificação crepitante,
deixa cair as tuas cicatrizes
como veias sobre Antisana,
na enrugada solidão
de Pumachaca, na sulfúrica
solenidade de Pambamarca,
vulcão e lua, frio e quartzo,
chamas glaciais, movimento
de catástrofes, vaporoso
e ciclônico patrimônio.


Equador; Equador, cauda violeta
de um astro ausente, na irisada
multidão de povos que te cobrem
com infinita pele de frutaria,
ronda a morte com o seu funil,
arde a febre nos povoados pobres,
a fome é um arado
de ásperas puas na terra,
e a misericórdia te fere
o peito com buréis e conventos,
qual uma enfermidade umedecida
nas fermentações das lágrimas.



García Moreno
Dali saiu o tirano.

García Moreno é seu nome.

Chacal enluvado, paciente
morcego de sacristia,
recolhe cinza e tormento
em seu sombreiro de seda
e enfia as unhas no sangue
dos rios equatoriais.


Com os pequenos pés metidos
em escarpins envernizados,
benzendo-se e encerando-se
nas alfombras do altar,
com as fraldas mergulhadas
nas águas processionais,
dança no crime arrastando
cadáveres recém-fuzilados,
dilacera o peito dos mortos,
passeia seus ossos voando
sobre os féretros, vestido
com plumas de pano agourento.


Nas aldeias índias, o sangue
cai sem direção, há medo
em todas as ruas e sombras
(debaixo dos sinos há medo
que ressoa e sai para a noite),
e pesam sobre Quito as grossas
paredes dos monastérios,
retas, imóveis, seladas.


Tudo dorme com os florões
de ouro oxidado nas cornijas,
os anjos dormem pendurados
em seus cabides sacramentais,
tudo dorme qual uma teia
de sacerdócio, tudo sofre
sob a noite membranosa.


Mas não dorme a crueldade.

A crueldade de bigodes brancos
passeia com guantes e garras
e crava escuros corações
sobre as grades do domínio.

Até que um dia entra a luz
como um punhal no palácio
e abre a jaqueta mergulhando um raio
no peitilho imaculado.


Assim saiu García Moreno
do palácio, mais uma vez, voando
para inspecionar as sepulturas,
empenhadamente mortuário,
mas dessa vez rodou até o fundo
dos massacres, retido,
entre as vítimas sem nome,
na umidade do podredouro.



Os bruxos da América
América Central pisoteada pelos mochos,
engordurada por ácidos suores,
antes de entrar em teu jasmim queimado
considera-me fibra da tua nave,
asa de tua madeira combatida
pela espuma gêmea,
e enche-me do arrebatador aroma
pólen e pluma de tua taça,
margens germinais de tuas águas,
linhas frisadas do teu ninho.

Porém os bruxos matam os metais
da ressurreição, fecham as portas
e entrevam a morada
das aves deslumbradoras.



Estrada
Chega talvez Estrada, pequenino,
em seu fraque de antigo anão
e entre uma tosse e outra os muros
da Guatemala fermentam
regados incessantemente
pelas urinas e pelas lágrimas.



Ubico
Ou é Ubico pelas picadas,
atravessando os presídios
de motocicleta, frio
como pedra, mascarado
da hierarquia do medo.



Gómez
Gómez, tremedal da Venezuela,
afoga lentamente rostos,
inteligências, em sua cratera.

O homem cai à noite nela
mexendo os braços, cobrindo
o rosto dos golpes cruéis,
e é tragado pelos atoleiros,
mergulha em adegas subterrâneas,
aparece nas estradas
cavando carregado de ferro,
até morrer despedaçado,
desaparecido, perdido.



Machado

Machado, em Cuba, arreou sua ilha
com máquinas, importou tormentos
feitos nos Estados Unidos,
silvaram as metralhadoras
derrubando a florescência,
o néctar marinho de Cuba,
e o estudante apenas ferido
era lançado à água onde
os tubarões terminavam
a obra do benemérito.

Chegou até o México a mão
do assassino, e rolou Mella
como um discóbolo sangrento
pela rua criminosa
enquanto a ilha ardia, azul,
embrulhada em loteria,
hipotecada com açúcar.



Melgarejo
A Bolívia morre em suas paredes
como uma flor enrarecida:
encarapitam-se em suas montarias
os generais derrotados
e rompem o céu a pistoladas.

Máscara de Melgarejo,
besta bêbada, espumarada
de minerais traídos,
barba da infâmia, barba horrenda
sobre os montes rancorosos,
barba arrastada no delírio,
barba carregada de coágulos,
barba achada nos pesadelos
da gangrena, barba errante
galopada pelos potreiros,
amancebada aos salões,
enquanto o índio e sua carga cruzam
a última savana de oxigênio
trotando pelos corredores
dessangrados da pobreza.



Bolívia (22 de março de 1865)

Belzu venceu.
É de noite.
La Paz arde
com os últimos tiros.
Poeira seca
e dança triste para o alto
sobem entrançadas com álcool lunário
e horrenda púrpura recém-molhada.

Melgarejo caiu, sua cabeça bate de encontro ao fio mineral
do cimo sangrento, os cordões
de ouro, a casaca
tecida de ouro, a camisa
rota empapada de suor maligno,
fazem junto ao detrito do cavalo
e aos miolos do novo fuzilado.

Belzu em palácio, entre as luvas
e as sobrecasacas, recebe sorrisos,
reparte-se o domínio do escuro
povo nas alturas alcoolizadas,
os novos favoritos deslizam
pelos salões encerados
e as luzes de lágrimas e lâmpadas
caem no veludo despenteado
por uns tantos fogachos.


Entre a multidão
vai Melgarejo, tempestuoso espectro
apenas sustentado pela fúria.

Escuta o âmbito que fora o seu,
a massa ensurdecida, o grito
despedaçado, o fogo da fogueira
alto sobre os montes, a janela
do novo vencedor.

Sua vida (pedaço
de força cega e ópera desatada
sobre as crateras e os planaltos,
sonho de regimento, no qual os trajes
derramam-se em terras indefesas
com sabres de papelão, mas há feridas
que mancham, com morte verdadeira
e degolados, as praças rurais,
deixando atrás o coro mascarado,
e os discursos do Eminentíssimo,
esterco de cavalos, seda, sangue
e os mortos de rodízio, rotos, rígidos,
atravessados pelo atroante
disparo dos rápidos carabineiros)
caiu no mais fundo do pó,
do desestimado e do vazio,
de uma talvez morte inundada
de humilhação, porém a derrota
como um touro imperial mostra as fauces,
escarva as metálicas areias
e empurra o bestial passo vacilante
o minotauro boliviano caminhando
para as salas de ouro clamoroso.

Entre a multidão cruza cortando
massa sem nome, escala
pesadamente o trono alienado,
ao vencedor caudilho assalta.
Rola
Belzu, manchado o amido, roto o cristal
que cai derramando a sua luz líquida
esburacado o peito para sempre,
enquanto o assaltante solitário
búfalo ensangüentado do incêndio
sobre o balcão apóia a sua estatura
gritando: “Morreu Belzu”, “Quem vive?”,
“Respondei”, E da praça,
rouco um grito de terra, um grito negro
de pânico e horror responde; “Viva,
sim, Melgarejo, viva Melgarejo”,
a mesma multidão do morto, aquela
que festejou o cadáver a dessangrar-se
na escadaria do palácio: “Viva”,
grita o fantoche colossal, que tapa
todo o balcão com sua roupa rasgada,
barro de acampamento e sangue sujo.



Martínez (1932)

Martínez, o curandeiro
de El Salvador, reparte frascos
de remédios multicores,
que os ministros agradecem
com prosternação e salamaleques.

O bruxinho vegetariano
vive a receitar em palácio
enquanto a fome tormentosa
uiva entre os canaviais.

Martínez então decreta:
e em poucos dias vinte mil
camponeses assassinados
apodrecem nas aldeias
que Martínez manda incendiar
com ordenações de higiene.

De novo em palácio retorna
a seus xaropes, e recebe
as rápidas felicitações
do embaixador norte-americano.

“Está assegurada”, lhe diz,
“a cultura ocidental,
o cristianismo do Ocidente
e ademais os bons negócios,
as concessões de bananas
e os controles alfandegários.


E bebem juntos uma longa
taça de champanha, enquanto cai
a chuva tépida nos pútridos
agrupamentos do ossuário.



As satrapias
Trujillo, Somoza, Carías,
até hoje, até este amargo
mês de setembro
do ano de 1948,
com Moríñigo (ou Natalicio)
no Paraguai, hienas vorazes
de nossa história, roedores
das bandeiras conquistadas
com tanto sangue e tanto fogo,
encharcados em suas fazendas,
depredadores infernais,
sátrapas mil vezes vendidos
e vendedores; açulados
pelos lobos de Nova York.

Máquinas famintas de dólares,
manchadas no sacrifício
de seus povos martirizados,
prostituídos mercadores
do pão e do ar americanos,
lodosos verdugos, manada
de prostibulários caciques,
sem outra lei que a tortura
e a fome açoitada do povo.


Doutores honoris causa
da Columbia University,
com a toga sobre as fauces
e sobre o punhal, ferozes
transumantes do Waldorf Astoria
e das câmaras malditas
onde apodrecem as idades
eternas do encarcerado.


Pequenos urubus recebidos
por Mr.
Truman, recobertos
de relógios, condecorados
por “Loyalty”, sangradores
de pátrias, só há um
pior do que vocês, só há um
e este o deu a minha pátria um dia
para desgraça de meu povo.




II
As oligarquias

Não, ainda não secavam as bandeiras,
ainda não dormiam os soldados
quando a liberdade mudou de roupa,
transformou-se em fazendas:
das terras recém-semeadas
saiu uma casta, uma quadrilha
de novos-ricos com escudo,
com polícia c com prisões.


Traçaram uma linha negra:
“Aqui somos nós, porfiristas
do México, caballeros
do Chile, pitucos
do Jockey Club de Buenos Aires,
engomados flibusteiros
do Uruguai, adamados
equatorianos, clericais
señoritos de todas as partes”.


“Lá, vocês, rotos, mamelucos,
pelados do México, gaúchos,
amontoados em pocilgas,
desamparados, esfarrapados,
piolhentos, vagabundos, ralé,
desbaratados, miseráveis,
sujos, preguiçosos, povo.


Tudo se construiu sobre a linha.

O arcebispo batizou este muro
e instituiu anátemas incendiários
para o rebelde que ignorasse
a parede da casta.

Queimaram pela mão do verdugo
os livros de Bilbao.

A polícia
guardou a muralha, e no faminto
que se aproximou dos mármores sagrados
bateram com um pau na cabeça
ou o espetaram num cepo agrícola
ou a pontapés o nomearam soldado.


Sentiram-se tranqüilos e seguros.

O povo continuou nas ruas e campinas
a viver amontoado, sem janelas,
sem chão, sem camisa,
sem escola, sem pão.


Anda pela nossa América um fantasma
nutrido de detritos, analfabeto,
errante, igual em nossas latitudes,
saindo dos cárceres lamacentos,
arrabaldeiro e fugitivo, marcado
pelo temível compatriota cheio
de roupas, ordens e gravata-borboleta.


No México produziram pulque
para ele, no Chile
vinho terebinteno de cor violeta,
o envenenaram, rasparam-lhe
a alma pedacinho por pedacinho,
negaram-lhe o livro e a luz,
até que foi tombando no pó,
metido no desvão tuberculoso,
e então não teve enterro
litúrgico: sua cerimônia
foi metê-lo nu entre outras
carniças sem nome.



Promulgação da Lei da Trapaça
Eles se declararam patriotas.

Nos clubes se condecoraram
e foram escrevendo a história.

Os Parlamentos ficaram cheios
de pompa, depois repartiram
entre si a terra, a lei,
as melhores ruas, o ar,
a universidade, os sapatos.


Sua extraordinária iniciativa
foi o Estado erigido dessa
forma, a rígida impostura.

Foi debatido, como sempre,
com solenidade e banquetes,
primeiro em círculos agrícolas,
com militares e advogados.

Por fim levaram ao Congresso
a Lei suprema, a famosa,
a respeitada, a intocável
Lei da Trapaça.

Foi aprovada.


Para o rico a boa mesa.


O lixo para os pobres.


O dinheiro para os ricos.


Para os pobres o trabalho.


Para os ricos a casa grande.


O tugúrio para os pobres.


O foro para o grão ladrão.


O cárcere para quem furta um pão.


Paris, Paris para os señoritos.


O pobre na mina, no deserto.


O Sr.
Rodríguez de la Crota
falou no Senado com voz
melíflua e elegante.

“Esta lei, afinal, estabelece
a hierarquia obrigatória
e, antes de tudo, os princípios
da cristandade.

Era
tão necessária quanto a água.

Só os comunistas, chegados
do inferno, como se sabe,
podem combater este código
do Funil, sábio e severo.

Mas essa oposição asiática,
vinda do sub-homem, é simples
refreá-la: todos na cadeia,
no campo de concentração,
assim ficaremos somente
os cavalheiros distintos
e os amáveis yanaconas
do Partido Radical.


Vibraram os aplausos
dos brancos aristocráticos:
que eloqüência, que espiritual
filósofo, que luminar!
E foi cada um encher correndo
os bolsos com seus negócios,
um açambarcando o leite,
outro dando o golpe no arame,
outro roubando no açúcar,
e todos se chamando em coro
patriotas, com o monopólio
do patriotismo, consultado
também na Lei da Trapaça.



Eleição em Chimbarongo (1947)

Em Chimbarongo, no Chile, faz tempo,
fui a uma eleição senatorial.

Vi como eram eleitos os pedestais da pátria.

As onze da manhã
chegaram do campo as carretas
atulhadas de inquilinos.

Foi no inverno, molhados,
sujos, famintos, descalços,
os servos de Chimbarongo
descem das carretas.

Torvos, tostados, esfarrapados,
são apinhados, conduzidos,
com uma cédula na mão,
vigiados e apertados
voltam a cobrar o pagamento,
e outra vez para as carretas,
em fila como cavalos,
são conduzidos.

Mais tarde
lhes atiram uma caneca de vinho
até ficarem bestialmente
envilecidos e esquecidos.


Escutei mais tarde o discurso
do senador assim eleito:
“Nós, os patriotas cristãos,
nós, os defensores da ordem,
nós, os filhos do espírito”.


E sua barriga era balançada
por sua voz de vaca acachaçada,
que parecia tropeçar
como trompa de mamute
nas abóbadas tenebrosas
da uivante pré-história.



A nata
Grotescos, falsos aristocratas
de nossa América, mamíferos
recém-estucados, jovens
estéreis, asnos sensatos, proprietários malignos.
heróis
da bebedeira no clube,
assaltantes de banco e bolsa,
falsos elegantes, grã-finos, bestalhões,
ataviados tigres de embaixada,
pálidas meninas principais,
flores carnívoras, culturas
das cavernas perfumadas,
trepadeiras chupadoras
de sangue, esterco e suor,
cipós estranguladores,
anéis de jibóias feudais.


Enquanto tremiam os prados
com o galope de Bolívar,
ou de O'Higgins (soldados pobres,
povo chicoteado, heróis descalços),
vós formastes as fileiras
do rei, do poço clerical,
da traição às bandeiras,
mas quando o vento arrogante
do povo, agitando suas lanças,
nos deixou a pátria nos braços,
surgistes aramando as terras,
medindo cercas, amontoando
áreas e seres, repartindo
a polícia e os lagos.


O povo voltou das guerras,
afundou-se nas minas, na escura
profundidade dos currais,
caiu nos sulcos pedregosos,
moveu as fábricas engorduradas,
procriando nos prostíbulos.

nos cômodos repletos
de outros seres desgraçados.


Naufragou em vinho até se perder,
abandonado, invadido
por um exército de piolhos
e de vampiros, rodeado
de muros e delegacias,
sem pão, sem música caindo
na solidão desesperada
onde Orfeu mal lhe deixa
uma guitarra para sua alma,
uma guitarra que se cobre
de fitas e rasgões
e canta por cima dos povos
como a ave da pobreza.



Os poetas celestes
Que fizestes vós, gidistas,
intelectualistas, rilkistas,
misterizantes, falsos bruxos
existenciais, papoulas
surrealistas acesas
numa tumba, europeizados
cadáveres da moda,
pálidas lombrigas do queijo
capitalista, que fizestes
ante o reinado da angústia,
frente a este escuro ser humano,
o esta pateada compostura,
a esta cabeça submersa
no esterco, a esta essência
de ásperas vidas pisoteadas?

Não fizestes nada além da fuga:
vendestes amontoados detritos,
buscastes cabelos celestes,
pés covardes, unhas quebradas,
“beleza pura”, “sortilégio”,
obras de pobres assustados
para evadir os olhos, para
emaranhar as delicadas
pupilas, para subsistir
com o prato de restos sujos
que vos lançaram os senhores,
sem ver a pedra em agonia,
sem defender, sem conquistar,
mais cegos que as coroas
do cemitério, quando cai
a chuva sobre as imóveis
flores podres das sepulturas.



Os exploradores
Assim foi devorada,
negada, sujeitada, arranhada, roubada,
jovem América, tua vida.


Dos despenhadeiros da cólera
onde o caudilho pisoteou cinzas
e sorrisos recém-tombados,
até as máscaras patriarcais
dos bigodudos senhores
que presidiram a mesa dando
a bênção aos presentes
e ocultando os verdadeiros
rostos de escura saciedade,
de concupiscência sombria
e cavidades cobiçosas:
fauna de frios mordedores
da cidade, tigres terríveis,
comedores de carne humana,
peritos na caçada
do povo fundido nas névoas,
desamparado nos rincões
e nos porões da terra.



Os pedantes
Entre os miasmas ganadeiros
ou papeleiros, ou coqueteleiros,
viveu o produto azul, a pétala
da podridão altaneira.


Foí o “siútico” do Chile, o Raúl
Aldunatillo (conquistador
de revistas com mãos alheias,
com mãos que mataram índios),
O Tenente Afetado, o Coronel
Negócio, o que compra letras
e se estima letrado, compra
sabre e se crê soldado,
mas não pode comprar pureza
e então escarra como víbora.


Pobre América revendida
nos mercados do sangue
pelos mergulhões enterrados
que ressurgem no salão
de Santiago, de Minas Gerais,
fazendo “elegância”, caninos
cavalheirinhos de boudoir,
peitilhos inúteis, tacos
do golfe da sepultura.

Pobre América, emascarada
por elegantes transitórios,
falsificadores de rostos,
enquanto, abaixo, o vento negro
fere o coração destroçado
e roda o herói do carvão
até o ossário dos pobres,
varrido pela pestilência,
coberto pela escuridão,
deixando sete filhos famintos
que serão lançados nos caminhos.



Os favoritos
No espesso queijo cardão
da tirania amanhece
outro verme: o favorito.

É o covardão arrendado
para louvar as mãos sujas.

É orador ou jornalista.

Acorda rápido cm palácio
e mastiga com entusiasmo
as dejeções do soberano,
elucubrando longamente
sobre seus gestos, enturvando
a água e pescando seus peixes
na laguna purulenta.

Vamos chamá-lo Darío Poblete,
ou Jorge Delano “Coke”.

(Dá na mesma, poderia ter
outro nome, existiu quando
Machado caluniava Mella,
depois de tê-lo assassinado.
)
Ali Poblete teria escrito
sobre os “Vis inimigos”
do “Péricles de Havana”.

Mais tarde Poblete beijava
as ferraduras de Trujillo,
a cavalgadura de Moríñigo,
o ânus de Gabriel González.


Foi o mesmo ontem, recém-saído
da guerrilha, alugado
para mentir, para ocultar
execuções e saques,
e hoje, erguendo sua pena
covarde sobre os tormentos
de Pisagua, sobre a dor
de milhares de homens e mulheres.


Sempre o tirano em nossa negra
geografia martirizada
achou um bacharel lamacento
que repartisse a mentira
e dissesse: El Sereníssimo,
el Constructor, el Gran Repúblico
que nos gobierna, e deslizasse
pela tinta emputecida
suas garras negras de ladrão.

Quando o queijo é consumido
e o tirano cai no inferno,
o Poblete desaparece,
o Delano “Coke” se esfuma,
o verme torna ao esterco,
esperando a roda infame
que afasta e traz as tiranias,
para aparecer sorridente
com um novo discurso escrito
para o déspota que desponta.


Por isso, povo, antes de ninguém,
pega o verme, rompe sua alma
e que seu líquido esmagado,
sua escura matéria viscosa
seja a última escritura,
a despedida de uma tinta
que limparemos da terra.



Os advogados do dólar
Inferno americano, pão nosso
empapado em veneno, há outra
língua em tua pérfida fogueira:
é o advogado nativo
da companhia estrangeira.


É ele que arrebita os grilhões
da escravidão em sua pátria,
e passeia desdenhoso
com a casta dos gerentes
a mirar com ar supremo
nossas bandeiras andrajosas.

Quando chegam de Nova York
as vanguardas imperiais,
engenheiros, calculistas,
agrimensores, peritos,
e medem terra conquistada,
estanho, petróleo, bananas,
nitrato, cobre, manganês,
açúcar, ferro, borracha, terra,
adianta-se um anão obscuro,
com um sorriso amarelo,
e aconselha com suavidade
aos invasores recentes:

Não é preciso pagar tanta
a estes nativos, seria
um crime, meus senhores, elevar
estes salários.
Nem convém.

Estes pobres-diabos, estes mestiços,
iriam só embriagar-se
com tanto dinheiro.
Pelo amor de Deus!
São uns primitivos, quase
umas feras, conheço esta cambada.

Não paguem tanto dinheiro.


É adotado.
Põem-lhe
libré.
Veste como gringo,
cospe como gringo.
Dança
como gringo, e vai subindo.

Tem automóvel, uísque, imprensa,
é eleito juiz e deputado,
é condecorado, é ministro,
e é ouvido no governo.

Sabe ele quem é subornável.

Sabe ele quem é subornado.

Ele lambe, unta, condecora,
afaga, sorri, ameaça.

E assim se esvaziam pelos portos
as repúblicas dessangradas.


Onde mora, perguntareis,
este vírus, este advogado,
este fermento do detrito,
este duro piolho sangüíneo,
engordado de nosso sangue?
Mora nas baixas regiões
equatoriais, o Brasil,
mas sua morada é também
o cinturão central da América.


Podereis encontrá-lo na escarpada
altura de Chuquicamata.

Onde cheira riqueza sobe
os montes, cruza abismos,
com as receitas de seu código
para roubar a terra nossa.

Podereis achá-lo em Puerto Limón,
na Ciudad Trujillo, em Iquique,
em Caracas, Maracaibo,
em Antofagasta, em Honduras,
encarcerando nosso irmão,
acusando seu compatriota.

despojando diaristas, abrindo
portas de juízes e abastados,
comprando imprensa, dirigindo
a polícia, o pau, o rifle
contra sua família esquecida.


Pavoneando-se, vestido
de smoking, nas recepções,
inaugurando monumentos,
com esta frase: Meus senhores,
a pátria, antes da vida,
é a nossa mãe, é o nosso chão,
vamos defender a ordena fazendo
novos presídios, novos cárceres.


E morre glorioso, “o patriota”,
senador, patrício, eminente,
condecorado pelo papa,
ilustre, próspero, temido,
enquanto a trágica ralé
de nossos mortos, os que fundiram
a mão no cobre, arranharam
a terra profunda e severa,
morrem batidos e esquecidos,
postos às pressas
em seus caixões funerários:
um nome, um número na cruz
que o vento sacode, matando
até a cifra dos heróis.



Diplomatas (1948)

Se você nasce bobo na Romênia
segue a carreira de bobo,
se você é bobo em Avignon
sua qualidade é conhecida
pelas velhas pedras de França, pelas escolas e meninada
desrespeitosa das granjas.

Mas se você nasce bobo no Chile
não demoram a fazê-lo embaixador.


Chame-se você bobo Mengano,
bobo Joaquín Fernández, bobo
Fulano de Tal, se for possível
tenha uma barba acrisolada.

É tudo o que se exige
para “entabular negociações”.


Informará depois, sabichão,
sobre a sua espetacular
apresentação de credenciais,
dizendo: Etc.
, o coche,
etc.
, Sua Excelência, etc.

frases, etc.
, benévolas.


Arranje uma voz cava e um tom
de vaca protetora,
condecorando-se mutuamente
com o enviado de Trujillo,
mantenha discretamente
uma garçonnière (“Sabe você
as conveniências destas coisas
para o Tratado de Limites”),
remeta disfarçado em algo
o editorial do jornal
doutoral que leu ao café
anteontem: é um “informe”.


Junte-se com o “fino”
da “sociedade”, com os bobos
daquele país, adquira quanta
prataria puder comprar,
fale nos aniversários
junto aos cavalos de bronze,
dizendo: Ejem, los vínculos,
etc.
, ejem, etc.
,
ejem, los descendientes,
etc.
, la raza, ejem, el puro,
el sacrosanto, ejem, etc.


E fique tranqüilo, tranqüilo:
é você um bom diplomata
do Chile, é você um bobo
condecorado e prodigioso.



Os bordéis
Da prosperidade nasceu o bordel,
acompanhando o estandarte
das cédulas amontoadas:
sentina respeitada
do capital, adega da nave
de meu tempo.

Foram mecanizados
bordéis na cabeleira
de Buenos Aires, carne fresca
exportada pelo infortúnio
das cidades e dos campos
remotos, onde o dinheiro
espreitou os passos do cântaro
e aprisionou a trepadeira.

Rurais lenocínios, à noite,
no inverno, com os cavalos
à porta das aldeias
e as moças aturdidas
que caíram de venda em venda
nas mãos dos magnatas.

Lentos prostíbulos provincianos
em que os abastados do lugar
- ditadores da vindima -
aturdem a noite venérea
com espantosos estertores.

Pelos rincões, escondidas,
grei de rameiras, inconstantes
fantasmas, passageiras
do trem mortal, já vos tomaram,
já caístes na rede enodoada,
já não podeis voltar ao mar,
já vos estreitaram e vos caçaram,
já estais mortas no vazio
do mais vivo desta vida,
já podeis resvalar a sombra
pelas paredes: em nenhum
lugar senão na morte
andam estes muros pela terra.



Procissão em Lima (1947)

Eram muitos, levavam o ídolo
sobre os ombros, era espessa
a cauda da multidão
como uma saída do mar
de roxa fosforescência.


Saltavam dançando, elevando
graves murmúrios mastigados
que se uniam à fritada
e aos tétricos tamborins.


Coletes roxos, sapatos
roxos, chapéus
enchiam de manchas violeta
as avenidas como um rio
de enfermidades pustulentas
que desembocava nas vidraças
inúteis da catedral.

Algo infinitamente lúgubre
como o incenso, a copiosa
aglomeração de chagas
feria os olhos unindo-se
com as chamas afrodisíacas
do apertado rio humano.


Vi o obeso latifundiário
suando nas sobrepelizes,
esfregando os goteirões
de sagrado esperma na nuca.


Vi o andrajoso gusano
das montanhas estéreis,
o índio de rosto perdido
nas vasilhas, o pastor
de lhamas doces, as meninas
cortantes das sacristias,
os professores de aldeia
com rostos azuis e famintos.

Narcotizados dançarinos
em camisões purpurinos
iam os negros esperneando
sobre tambores invisíveis.

E todo o peru batia
no peito mirando a estátua
de uma senhora melindrada,
azul-celeste e rosadinha,
que navegava as cabeças
em seu barco de confeitos
inflado de aragem suarenta.



A Standard Oil Co.


Quando a verruma grossa abriu caminho
pelas furnas pedregosas
e enfiou seu intestino implacável
nas fazendas subterrâneas,
e os anos mortos, os olhos
das idades, as raízes
das plantas encarceradas
e os sistemas escamosos
se fizeram estratos da água,
subiu pelos tubos o fogo
convertido em líquido frio,
na aduana das alturas
à saída de seu mundo
de profundidade tenebrosa,
encontrou um pálido engenheiro
e um titulo de proprietário.


Ainda que se enredem os caminhos
do petróleo, ainda que as napas
mudem seu lugar silencioso
e movam sua soberania
entre os ventres da terra,
quando agita a fonte
sua ramagem de parafina,
antes chegou a Standard Oi1
com seus letrados e suas botas,
com seus cheques e seus fuzis,
com seus governos e seus presos.


Seus obesos imperadores
vivem em Nova York, são suaves
e sorridentes assassinos,
que compram seda, náilon, puros
tiranetes e ditadores.


Compram países, povos, mares,
polícias, deputações,
distantes comarcas onde
os pobres guardam seu milho
como os avaros o ouro:
a Standard Oil os desperta,
uniformiza, lhes designa
qual é o irmão inimigo,
e o paraguaio faz sua guerra
e o boliviano se desfaz
com sua metralhadora na selva.


Um presidente assassinado
por uma gota de petróleo,
uma hipoteca de milhões
de hectares, um fuzilamento
rápido numa manhã
mortal de luz, petrificada,
um novo campo de presos
subversivos, na Patagônia,
uma traição, um tiroteio
sob a lua apetrolada,
uma troca sutil de ministros
na capital, um rumor
de maré de azeite,
e logo o baque da garra, e verás
como brilham, sobre as nuvens,
sobre os mares, em tua casa,
as letras da Standard Oil
iluminando seus domínios.



A Anaconda Copper Mining Co.


Nome enrolado de serpente,
fauce insaciável, monstro verde,
nas alturas agrupadas,
na montaria gasta
de meu país, sob a lua
da dureza, escavadora, abres as crateras lunares
do mineral, as galerias
do cobre virgem, afundado
em suas areias de granito.


Já vi arder na noite eterna
de Chuquicamata, nas alturas,
o fogo dos sacrifícios,
a crepitação desbordante
do ciclope que devorava
a mão, o peso, a cintura
dos chilenos, enrolando-os
sob suas vértebras de cobre.

esvaziando-lhes o sangue morno,
triturando os esqueletos
e cuspindo-os nos montes
dos desertos desolados.


O ar ressoa nas alturas
de Chuquicamata estrelada.

Os socavões aniquilam
com mãos pequeninas de homem
a resistência do planeta,
trepida a ave sulfurosa
das gargantas, amotina-se
o férreo frio do metal
com suas selvagens cicatrizes
e quando troam as buzinas
a terra engole um desfile
de homens minúsculos que descem
às mandíbulas da cratera.

São pequeninos capitães,
sobrinhos meus, filhos meus,
e quando revertem os lingotes
para os mares, e limpam
a cara e voltam trepidando
no último calafrio,
a grande serpente os devora,
e diminui, e os tritura,
e os cobre de baba maligna,
e os atira pelos caminhos,
e os mata com a polícia,
e os faz apodrecer em Pisagua,
e os encarcera, e os cospe,
compra um presidente traidor
que os insulta e persegue,
e os mata de fome nas planuras
da imensidade arenosa.


E há uma que outra cruz torcida
nas ladeiras infernais
como única lenha dispersa
da árvore da mineração


A United Fruit Co.


Quando soou a trombeta, ficou
tudo preparado na terra,
e Jeová repartiu o mundo
entre a Coca-Cola, a Anaconda,
Ford Motors, e outras entidades:
a Compañía Frutera Inc.

reservou para si o mais suculento,
a costa central de minha terra,
a doce cintura da América.

Batizou de novo suas terras
como “Repúblicas Bananas”,
e sobre os mortos adormecidos,
sobre os heróis inquietos
que conquistaram a grandeza,
a liberdade e as bandeiras,
estabeleceu a ópera-bufa:
alienou os arbítrios,
presenteou coroas de César,
desembainhou a inveja, atraiu
a ditadura das moscas,
moscas Trujíllo, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas úmidas
de sangue humilde e marmelada,
moscas bêbadas que zumbem
sobre as tumbas populares,
moscas de circo, sábias moscas
entendidas em tirania.


Entre as moscas sanguinárias
a Frutera desembarca,
arrasando o café e as frutas,
em seus barcos que deslizaram
como bandejas o tesouro
de nossas terras submersas.


Enquanto isso, pelos abismos
açucarados dos portos,
caíam índios sepultados
no vapor da manhã:
um corpo roda, uma coisa
sem nome, um número caído,
um ramo de fruta morta
derramada no monturo.



As terras e os homens
Velhos latifundiários incrustados
na terra como ossos
de pavorosos animais,
supersticiosos herdeiros
da encomenda, imperadores
duma terra escura, fechada
com ódio e arame farpado.


Entre as cercas o estame
do ser humano foi afogado,
o menino foi enterrado vivo,
negou-se-lhe o pão e a letra,
foi marcado como inquilino
e condenado aos currais,
Pobre peão infortunado
entre as sarças, amarrado
à não-existência, à sombra
das pradarias selvagens.


Sem livro foste carne inerme,
e em seguida insensato esqueleto,
comptado de uma vida a outra,
rechaçado na porta branca
sem outro amor que uma guitarra
despedaçadora em sua tristeza
e o baile apenas aceso
com rajada molhada.
Não foi porém só nos campos
a ferida do homem, mais longe,
mais perto, mais fundo cravaram:
na cidade, junto ao palácio,
cresceu o cortiço leproso,
pululante de porcaria,
com a sua acusadora gangrena.


Eu vi nos agros recantos
de Talcahuano, nas encharcadas
cinzas dos morros,
ferver as pétalas imundas
da pobreza, a maçaroca
de corações degradados,
a pústula aberta na sombra
do entardecer submarino,
a cicatriz dos farrapos,
e a substância envelhecida
do homem hirsuto e espancado.


Eu entrei nas casas profundas,
como covas de ratos, úmidas
de salitre e de sal apodrecido,
vi seres famintos se arrastarem,
obscuridades desdentadas,
que procuravam me sorrir
através do ar amaldiçoado.


Me atravessaram as dores
de meu povo, se enredaram em mim
como aramados em minh'alma:
me crisparam o coração:
saí a gritar pelos caminhos,
saí a chorar envolto em fumo,
toquei as portas e me feriram
como facas espinhosas,
chamei os rostos impassíveis
que antes adorei como estrelas
e me mostraram seu vazio.


E então me fiz soldado:
número obscuro, regimento,
ordem de punhos combatentes,
sistema da inteligência,
fibra do tempo inumerável,
árvore armada, indestrutível
caminho do homem na terra.


E vi quantos éramos, quantos
estavam a meu lado, não eram
ninguém, eram todos os homens,
não tinham rosto, eram povo,
eram metal, eram caminhos.

E caminhei com os mesmos passos
da primavera pelo mundo.



Os mendigos
Junto às catedrais, atados
ao muro, carrearam
seus pés, seus vultos, seus olhos negros,
seus crescimentos lívidos de gárgulas,
suas latas andrajosas de comida,
e daí, da dura
santidade da pedra,
se fizeram flora da rua, errantes
flores de legais pestilências.


O parque tem seus mendigos
como suas árvores de torturadas
ramagens e raízes:
nos pés do jardim vive o escravo,
como no fim do homem, feito lixo,
aceitada sua impura simetria,
pronto para vassoura da morte.

A caridade o enterra
em seu buraco de terra leprosa:
serve de exemplo ao homem de meus dias.

Deve aprender a pisotear, a afogar
a espécie nos pântanos do desprezo,
a pôr os sapatos na frente
do ser com uniforme de vencido,
ou pelo menos deve compreendê-lo
nos produtos da natureza.

Mendigo americano, filho do ano
de 1948, neto
de catedrais, eu não te venero,
eu não vou colocar marfim antigo,
barbas de rei em tua escrita figura,
como te justificam nos livros,
eu vou te apagar com esperança:
não entrarás em meu amor organizado,
não entrarás em meu peito com os teus,
com os que te criaram cuspindo
tua forma degradada,
eu apartarei tua argila da terra
até que te construam os metais
e saias a brilhar como uma espada.



Os índios
O índio fugiu de sua pele ao fundo
de antiga imensidade de onde um dia
subiu como as ilhas: derrotado,
transformou-se em atmosfera invisível,
foi-se abrindo na terra, derramando
sua secreta marca sobre a areia.


Ele que gastou a lua, ele que penteava
a misteriosa solidão do mundo,
ele que não transcorreu sem erguer-se
em altas pedras coroadas de aragem,
ele que durou como a luz celeste
sob a magnitude de seu arvoredo,
gastou-se de repente até ser fio,
converteu-se em rugas,
esmiuçou suas torres torrenciais
e recebeu seu pacote de farrapos.


Eu o vi nas alturas imantadas
de Amatitlán, roendo as margens
da água impenetrável: andou um dia
sobre a majestade esmagadora
do monte boliviano, com seus restos
de pássaro e raiz.

Eu vi chorar
meu irmão de louca poesia,
Alberti, nos recintos araucanos,
quando o rodearam como a Ercilla
e eram, em lugar daqueles deuses rubros,
uma corrente de mortos cor de cardo.


Mais longe, na rede de água selvagem
da Terra do Fogo,
eu os vi subir, ó mestiços, desgrenhados,
às pirogas rotas
para mendigar o pão no oceano.


Aí foram matando cada fibra
de seus desérticos domínios,
e o caçador de índios recebia
notas sujas para trazer cabeças,
dos donos do ar, dos reis
da nevada solidão antártica.


Os que pagaram os crimes se sentam
hoje no Parlamento, matriculam
seus matrimônios nas presidências,
vivem com os cardeais e os gerentes,
e sobre a garganta apunhalada
dos donos do sul crescem as flores,

Já da Araucania os penachos
foram desbaratados pelo vinho,
puídos pela tasca,
enegrecidos pelos advogados
a serviço do roubo de seu reino,
e aos que fuzilaram a terra,
aos que nos caminhos defendidos
pelo gladiador deslumbrante
de nossa própria orla
entraram disparando e negociando,
chamaram “Pacificadores”
e lhes multiplicaram as dragonas.


Assim perdeu sem ver, assim invisível
foi para o índio o desmoronamento
de sua herdade; não viu os estandartes,
não lançou a girar a flecha ensangüentada,
apenas o roeram pouco a pouco,
magistrados, ratoneiros, abastados,
todos tomaram sua imperial doçura,
todos o enredaram na manta
até que o lançaram a sangrar
aos últimos lamaçais da América.


E das verdes lâminas, do céu
inumerável e puro da folhagem,
da imortal morada construída
com pétalas pesadas de granito,
foi conduzido à cabana rota,
ao árido esgoto da miséria.

Da sua fulgurante desnudez,
dourados peitos, pálida cintura,
ou dos ornamentos minerais
que uniram à sua pele todo o rocio,
foi levado até o fio do andrajo,
repartiram entre eles calças mortas
e assim passeou sua majestade remendada
pela brisa do mundo que foi seu.


Assim foi cometido este tormento.


O feito foi invisível como entrada
de traidor, como impalpável câncer,
até que foi humilhado o nosso pai,
até que o doutrinaram a fantasma
e entrou pela única porta que lhe abriram,
a porta de todos os outros pobres, a de todos
os chicoteados pobres desta terra.



Os juízes
Pelo alto Peru, por Nicarágua,
sobre a Patagônia, nas cidades,
não tiveste razão, não tens nada:
taça de miséria, abandonado
filho das Américas, não há
lei, não há juiz que te proteja
a terra, a casinhola com seus milhos.


Quando chegou a casta dos teus,
dos senhores teus, já esquecido
o sonho antigo de garras e facas,
veio a lei para despovoar teu céu,
para arrancar-te torrões adorados,
para discutir a água dos rios,
para roubar-te o reinado do arvoredo.


Te testemunharam, te puseram selos
na camisa, te forraram
o coração de folhas e papéis,
te sepultaram em éditos frios,
e quando despertaste na fronteira
da mais despenhada desventura,
despossuído, solitário, errante,
te deram calabouço, te amarraram,
te manietaram para que nadando
não saísses da água dos pobres,
mas te afogasses esperneando.


O juiz benigno te lê o inciso
número Quatro Mil, parágrafo Terceiro,
o mesmo usado em toda
a geografia azul que libertaram
outros que foram como tu e tombaram,
e te institui, por seu codicilo
e sem apelação, cão sarnento.


Diz teu sangue, como se entreteceram
o rico e a lei? Com que tecido
de ferro sulfuroso, como foram
caindo os pobres no julgado?

Como se fez a terra tão amarga
para os pobres filhos, duramente
amamentados com pedras e dores?

Assim foi e assim o deixo escrito.

As vidas escreveram-no na minha testa.



III
Os mortos da praça (28 de janeiro de 1946, Santiago do Chile)

Eu não venho chorar aqui onde tombaram:
venho a vós, acudo aos que vivem.

Acudo a ti e a mim e em teu peito bato.

Antes outros tombaram.
Lembras? Sim, lembras.

Outros que os mesmos nomes e sobrenomes tiveram.

Em San Gregorio, em Lonquimay chuvoso,
em Ranquil, derramados pelo vento,
em Iquique, enterrados na areia,
ao longo do mar e do deserto
ao longo da fumaça e da chuva,
dos pampas aos arquipélagos,
foram assassinados outros homens,
outros que se chamavam Antonio como tu
e que eram como tu pescadores ou ferreiros:
carne do Chile, rostos
cicatrizados pelo vento,
martirizados pelo pampa,
firmados pelo sofrimento.


Encontrei pelos muros da pátria,
junto à neve e sua cristalaria,
atrás do rio de ramagem verde,
debaixo do nitrato e da espiga,
uma gota de sangue de meu povo
e cada gota, como o fogo, ardia.



Os massacres
Mas aí o sangue foi escondido
atrás das raízes, foi lavado
e negado
(foi tão longe), a chuva do sul limpou a terra
(tão longe foi), o salitre o devorou no pampa:
e a morte do povo foi como sempre tem sido:
como se não morresse ninguém, nada,
como se fossem pedras que caem
sobre a terra, ou água sobre água.


De norte a sul, onde trituraram
ou queimaram os mortos,
foram nas trevas sepultados,
ou na noite queimados em silêncio,
acumulados numa escarpa
ou no mar cuspidos os seus ossos:
ninguém sabe onde estão agora,
não têm túmulo, estão dispersos
nas raízes da pátria
seus martirizados dedos:
são fuzilados seus corações:
o sorriso dos chilenos:
os valores do pampa:
os capitães do silêncio.


Ninguém sabe onde enterraram
os assassinos estes corpos,
porém sairão da terra
para cobrar o sangue derramado
na ressurreição do povo.


No meio da praça foi o crime.


Não escondeu o matagal o sangue puro
do povo, nem o tragou a areia do pampa.


Ninguém escondeu este crime.


O crime foi no meio da Pátria.



Os homens do nitrato
Eu estava no salitre, com os heróis obscuros,
com o que cava neve fertilizante e fina
na casca dura do planeta,
e apertei com orgulho suas mãos de terra.


Me disseram; “Olha,
irmão, como vivemos
aqui em `Humberstone', aqui em `Mapocho',
em `Ricaventura', em `Paloma',
em `Pan de Azúcar', em `Piojillo' “.


E me mostraram suas rações
de miseráveis alimentos,
seu piso de terra nas casas,
o sol, o pó, os percevejos,
e a solidão imensa.


Vi o trabalho dos raspadores,
que deixam afundada, no cabo
da madeira da pá,
a marca toda de suas mãos.


Escutei uma voz que vinha
do fundo estreito da escarpa,
como de um útero infernal,
e depois assomar em cima
uma criatura sem rosto,
uma máscara poeirenta
de suor, de sangue e pó.


E este me disse: “Aonde fores,
fala destes tormentos,
fala tu, irmão, de teu irmão
que vive embaixo, no inferno”.



A morte
Povo, aqui decidiste dar a tua mão
ao perseguido operário do pampa, e chamaste,
chamaste o homem, a mulher, a criança,
há um ano, até esta praça.

E aqui caiu teu sangue.

No meio da pátria foi vertido,
em frente ao palácio, no meio da rua,
para que todo o mundo o visse
e não pudesse limpá-lo ninguém,
e ficaram suas manchas vermelhas
como planetas implacáveis.


Foi quando mão e mão de chileno
alongaram seus dedos pelo pampa,
e com o coração inteiro
iria a unidade de suas palavras:
foi quando ias, povo, a cantar
uma velha canção com lágrimas,
com esperança e com dores:
veio a mão do verdugo
e empapou de sangue a praça!


Como nascem as bandeiras
Estão assim até hoje nossas bandeiras.

O povo as bordou com sua ternura,
coseu os trapos com seu sofrimento.


Cravou a estrela com sua mão ardente.


E cortou, de camisa ou firmamento,
azul para a estrela da pátria.


O vermelho, gota a gota, ia nascendo.



Eu os chamo
Um por um falarei com eles esta tarde.

Um por um, chegais à recordação,
esta tarde, nesta praça.

Manuel Antonio López,
camarada.


Lisboa Calderón,
outros te traíram, nós continuamos tua jornada.


Alejandro Gutiérrez,
o estandarte que caiu contigo
sobre toda a terra se levanta.


César Tapia,
teu coração está nestas bandeiras,
palpita hoje o vento da praça.


Filomeno Chávez,
nunca apertei a tua mão, mas aqui está a tua mão:
é uma mão pura que a morte não mata.


Ramona Parra, jovem
estrela iluminada,
Ramona Parra, frágil heroína,
Ramona Parra, flor ensangüentada,
amiga nossa, coração valente,
menina exemplar, guerrilheira dourada:
juramos em teu nome continuar esta luta
para que assim floresça teu sangue derramado.



Os inimigos
Aqui eles trouxeram os fuzis repletos
de pólvora, eles comandaram o acerbo extermínio,
eles aqui encontraram um povo que cantava,
um povo por dever e por amor reunido,
e a delgada menina caiu com a sua bandeira,
e o jovem sorridente girou a seu lado ferido,
e o estupor do povo viu os mortos tombarem
com fúria e dor.


Então, no lugar
onde tombaram os assassinados,
baixaram as bandeiras para se empaparem de sangue
para se erguerem de novo diante dos assassinos.


Por estes mortos, nossos mortos,
peço castigo.


Para os que salpicaram a pátria de sangue,
peço castigo.


Para o verdugo que ordenou esta morte,
peço castigo.


Para o traidor que ascendeu sobre o crime,
peço castigo.


Para o que deu a ordem de agonia,
peço castigo.


Para os que defenderam este crime,
peço castigo.


Não quero que me dêem a mão
empapada de nosso sangue.

Peço castigo.

Não vos quero como embaixadores,
tampouco em casa tranqüilos,
quero ver-vos aqui julgados,
nesta praça, neste lugar.

Quero castigo.



Estão aqui
Hei de chamar aqui como se aqui estivessem.

Irmãos: sabei que a nossa luta
continuará na terra.


Continuará na fábrica, no campo,
na rua, na salitreira.


Na cratera do cobre verde e rubro,
no carvão e sua terrível cova.

Estará a nossa luta em todas as partes,
e em nosso coração, estas bandeiras
que presenciaram vossa morte,
que se empaparam em vosso sangue,
serão multiplicadas como as folhas
da infinita primavera.



Sempre
Ainda que as passadas toquem mil anos este lugar,
não apagarão o sangue dos que aqui tombaram.


E não se extinguirá a hora em que tombastes,
ainda que milhares de vozes cruzem este silêncio.

A chuva há de empapar as pedras da praça,
mas não apagará vossos nomes de fogo.


Mil noites cairão com as suas asas escuras,
sem destruir o dia que esperam estes mortos.


O dia que esperamos ao longo do mundo
tantos homens, o dia final do sofrimento.


Um dia de justiça conquistada na luta,
e vós, irmãos tombados, em silêncio,
estareis conosco nesse vasto dia
da luta final, nesse dia imenso.



IV
Crônica de 1948 (América)

Ano ruim, ano de ratos, ano impuro!

Alta e metálica é a tua linha
na beira do oceano
e do ar, como um arame
de tempestades e tensão.


Porém, América, também és
noturna, azul e pantanosa:
lamaçal e céu, uma agonia
de corações esmagados
como negras laranjas estragadas
em teu silêncio de adega.



Paraguai
Desenfreado Paraguai!
De que serviu a lua pura
iluminando os papéis
da geometria dourada?
Para que serviu o pensamento
herdado das colunas
e dos números solenes?

Para este buraco oprimido
de sangue apodrecido, para
este fígado equinocial
arrebatado pela morte.

Para Moríñigo reinante,
sentado sobre as prisões
em seu açude de parafina,
enquanto as penas escarlates
dos colibris elétricos
voam e fulguram sobre
os pobres mortos da selva.


Mau ano, ano de rosas deterioradas,
ano de carabinas, mira, sob teus olhos
não te cegue
o alumínio do avião, a música
de sua velocidade seca e sonora:
mira teu pão, tua terra, tua multidão gasta,
tua estirpe rota!
Vês esse vale
verde e cinza do alta do céu?
Pálida agricultura, mineração
em farrapos, silêncio e pranto
corno a trigo, caindo
e nascendo
em uma eternidade malvada.



Brasil
Brasil, o Dutra, o pavoroso
Peru das terras quentes,
Engordado pelos amargos
Ramos do ar venenoso:
Sapo dos negros lameiros
De nossa lua americana:
Botões dourados, olhinhos
De rato cinzento arroxeado:
Ó Senhor, dos intestinos
De nossa pobre mãe faminta,
De tanto sonho e resplandescentes
Libertadores, de tanto
Suor sobre os buracos
Da mina, de tanta e tanta
Solidão pelas plantações,
América, ergues subitamente
A tua claridade planetária
Um Dutra arrancado ao fundo
De teus répteis, de tua surda
Profundidade e pré-história.


E assim foi!
Pedreiros
Do Brasil, golpeai a fronteira,
Pescadores, chorai a noite
Sobre as águas litorâneas,
Enquanto Dutra, com seus pequenos
Olhos de porco-do-mato,
Quebra a imprensa de machadinha,
Queima os livros na praça,
Encarcera, persegue e fustiga
Até que o silêncio se faz
Em nossa noite tenebrosa.



Cuba
Em cuba estão assassinando!

Já têm Jesús Menéndez
Num caixão recém-comprado
Ele saiu, como um rei, do povo,
e andou espiando raízes,
detendo os transeuntes,
batendo no peito dos adormecidos,
estabelecendo as idades,
compondo as almas partidas,
e levantando do açúcar
os sangrentos canaviais,
o suor que apodrece as pedras,
perguntando pelas cozinhas
pobres: quem és? quanto comes?,
tocando este braço, esta ferida,
e acumulando estes silêncios
numa única voz, a rouca
voz entrecortada de Cuba.


Assassinou-o um capitãozinho,
um generalzinho: num trem
lhe disse: vem, e pelas costas
fez fogo o generalzinho,
para que calasse a voz
rouca dos canaviais.



América Central
Mau ano, vês além da espessa
sombra de matagais a cintura
de nossa geografia?
Uma onda estrela,
como una favo, suas abelhas azuis
de encontro à cesta e voam os clarões
do duplo mar sobre a terra estreita.
.
.


Delgada terra como um látego,
açoitada como um tormento,
teu passo em Honduras, teu sangue
cm São Domingos, à noite,
teus olhos em Nicarágua,
me tocam, me chamam, me exigem,
e pela terra americana
toco as portas para falar,
toco as línguas amarradas,
levanto as cortinas, afundo
a mão dentro no sangue:

Oh, dores
de minha terra, oh, estertores
do grande silêncio estabelecido,
oh, povos de longa agonia,
oh, cintura de soluços.



Porto Rico
Mr.
Truman chega à ilha
de Porto Rico,
vem à água
azul de nossos mares puros
para lavar seus dedos sangrentos.

Acaba de ordenar a morte
de duzentos jovens gregos,
suas metralhadoras funcionam
estritamente,
cada dia
por suas ordens as cabeças
dóricas - uva e azeitona -,
olhos do mar antigo, pétalas
da corola corintiana,
tombam no pó grego.

Os assassinos
erguem a taça
doce de Chipre com os
peritos norte-americanos,
entre grandes gargalhadas, com
os bigodes gotejantes
de azeite frito e sangue grego.


Truman a nossas águas chega
para lavar as mãos vermelhas
de sangue longínquo.
Enquanto
decreta, prega e sorri
na universidade, em seu idioma,
fecha a boca castelhana,
cobre a luz das palavras
que ali circularam como um
rio de estirpe cristalina
e estatui: “Morte para a tua língua,
Porto Rico”.



Grécia
(O sangue grego
desce a esta hora.
Amanhece
nas colinas.

É um simples
arroio entre o pó e as pedras:
os pastores pisam o sangue
de outros pastores:
é um simples
fio delgado que desce
dos montes para o mar,
até o mar que ele conhece e canta.
)

.
.
.
A tua terra, a teu mar volta os olhos,
olha a claridade nas austrais
águas e neves, constrói o sol as uvas,
brilha o deserto, o mar do Chile surge
com sua linha ferida.
.
.


Em Lota estão as baixas minas
do carvão: é um porto frio,
do grave inverno austral, a chuva
cai e cai sobre os tetos, asas
de gaivotas cor de névoa,
e sob o mar sombrio o homem
cava e cava o recinto negro.

A vida do homem é escura
como o carvão, noite andrajosa,
pão miserável, duro dia.


Eu pelo mundo andei longamente,
porém jamais pelos caminhos
ou pelas cidades, jamais vi
homens mais maltratados.

Doze dormem num quarto.

As habitações têm
tetos de restos sem nome:
pedaços de latas, pedras,
papelões, papéis molhados.

Crianças e cães, no vapor
úmido da estação fria,
se juntam até se dar o fogo
da pobre vida um dia
será outra vez fome e trevas.



Os tormentos
Uma greve mais, os salários
Não dão, as mulheres choram
Nas cozinhas, os mineiros
Juntam uma a uma suas mãos
E sua dores.


É a greve
Dos que sob o mar escavaram,
Estendidos na cova úmida,
E extraíram com sangue e força
O torrão negro das minas.

Desta vez vieram soldados.

Arrebentaram suas casas, à noite,
E os conduziram para as minas
Como a um presídio e saquearam
A pobre farinha que guardavam,
O grão de arroz dos filhos.


Depois, batendo nas paredes,
Os exilaram, os afogaram,
Os encurralaram, marcando-os
Como bestas, e pelos caminhos
Num êxodo de dores,
Os capitães do carvão
Viram seus filhos expulsos,
Derrubadas suas mulheres,
E centenas de mineiros
Trasladados, encarcerados
Na Patagônia, no frio antártico,
Ou nos desertos de Pisagua.



O traidor
E por cima destas desventuras
Um tirano que sorria
Cuspindo nas esperanças
Dos mineiros traídos.

Cada povo com suas dores.

cada luta com seus tormentos,
mas vinde aqui dizer-me
se entre os sanguinários,
entre todos os desmandados
déspotas, coroados de ódio,
com cetros de látegos verdes,
foi algum como o do Chile?

Este traiu pisoteando
suas promessas e seus sorrisos,
este do asco fez o seu cetro,
este bailou sobre as dores
de seu pobre povo cuspido.


E quando nas prisões cheias
por seus desleais decretos
se acumularam olhos negros
de agravados e ofendidos,
ele dançava em Viña del Mar,
rodeado de jóias e taças.


Mas os olhos negros olham
através da noite negra.


Que fizeste tu? Não veio tua palavra
para o irmão das minas profundas,
para a dor dos atraiçoados,
não veio a ti a sílaba de chamas
para defender e clamar por teu povo?


Acuso
Acusei então o que havia
estrangulado a esperança,
chamei os rincões da América
e pus seu nome na cova
das desonras.

Então crimes
me reprocharam, a matilha
dos vendidos e alugados:
os “secretários do governo”,
os polícias, escreveram
com piche seu espesso insulto
contra mim, mas as paredes
miravam quando os traidores
escreviam com grandes letras
meu nome, e a noite apagava, com suas mãos inumeráveis,
mãos do povo e da noite,
a ignomínia que em vão
quiseram lançar em meu canto.


Foram à noite então queimar
minha casa (o fogo marca agora
o nome de quem os enviara),
e os juízes se uniram todos
para condenar-me, buscando-me,
para crucificar minhas palavras
e castigar estas verdades.


Fecharam as cordilheiras
do Chile para que eu não partisse
a contar o que aqui acontece,
e quando o México abriu suas portas
para receber-me e guardar-me,
Torres Bodet, pobre poeta,
ordenou que me entregassem
aos carcereiros furiosos.


Mas minha palavra está viva,
e meu livre coração acusa.


Que acontecerá? Que acontecerá? Na noite
de Pisagua, o cárcere, as cadeias,
o silêncio, a pátria envilecida,
e este mau ano, ano de ratazanas cegas,
este mau ano de ira e de rancores,
que acontecerá, perguntas, me perguntas?


O povo vitorioso
Está meu coração nesta luta.

Meu povo vencerá.
Todos os povos
vencerão, um por um.

Estas dores
se espremerão como lenços até
esmagar tantas lágrimas vertidas
em socavões do deserto, em túmulos,
em escalões do martírio humano.

Mas perto está o tempo vitorioso.

Que sirva o ódio para que não tremam
as mãos do castigo,
que a hora
chegue a seu horário no instante puro,
e o povo encha as ruas vazias
com suas frescas e firmes dimensões.


Aqui está minha ternura para então.

Vós a conheceis.
Não tenho outra bandeira.




V González Videla, o traidor do Chile (epílogo) (1949)

Das antigas cordilheiras saíram os verdugos,
como ossos, como espinhos americanos no hirsuto lombo
duma genealogia de catástrofes: estabelecidos foram,
enquistados na miséria de nossas povoações.

Cada dia o sangue manchou seus alamares.


Das cordilheiras como bestas ossudas
foram procriados por nossa argila negra.

Aqueles foram os sáurios tigres, os dinastas glaciais,
recém-saídos de nossas cavernas e de nossas derrotas.

Assim desenterraram os maxilares de Gómez
sob os caminhos manchados por cinqüenta anos de nosso sangue.


A besta escurecia as terras com suas costelas
quando depois das execuções retorcia os bigodes
junto ao embaixador norte-americano que lhe servia o chá.


Os monstros envileceram, mas não foram vis.

Agora no rincão que a luz reservou à pureza,
na nevada pátria branca de Araucania,
um traidor sorri sobre um trono apodrecido.


Em minha pátria preside a vileza.


É González Videla a ratazana que sacode
o seu pelame cheio de esterco e de sangue
sobre a terra minha que vendeu.
Cada dia
tira de seus bolsos as moedas roubadas
e pensa se amanhã venderá terras ou sangue.

Tudo traiu.

Subiu como um rato aos ombros do povo
e dali, roendo a bandeira sagrada
de meu país, ondula sua cauda roedora
dizendo ao abastado, ao estrangeiro, dono
do subsolo do Chile: “Bebei o sangue todo
deste povo, eu sou o mordomo dos suplícios”.

Triste clown, miserável
mescla de mono e rato, cujo rabo
penteiam em Wall Street com pomada de ouro,
não passarão os dias sem que caias do galho
e passes a ser o montão de imundície evidente
que o transeunte evita pisar nas esquinas!

Assim foi.
A traição foi governo do Chile.

Um traidor deixou seu nome em nossa história.

Judas arvorando dentes de caveira
vendeu o meu irmão,
deu veneno a minha pátria,
fundou Pisagua, demoliu nossa estrela,
cuspiu nas cores duma bandeira pura.


Gabriel González Videla.
Aqui deixo seu nome,
para que, quando o tempo haja apagado
a ignomínia, quando minha pátria limpar
seu tosto iluminado pelo trigo e pela neve,
mais tarde, os que aqui buscarem a herança
que nestas linhas deixo como uma brasa verde
encontrem também o nome do traidor que trouxe
a taça de agonia que rechaçou o meu povo.


Meu povo, povo meu, ergue teu destino!
Rompe o cárcere, abre os muros que te encerram!
Esmaga o passo torvo da ratazana que comanda
do palácio: ergue tuas lanças à aurora,
e no mais alto deixa que a tua estrela iracunda
fulgure, iluminando os caminhos da América.


I
Vejo o rei passar na Avenida Afonso Pena,
onde só passam dia e noite, mês a mês e ano,
burocratas, estudantes, pés-rapados.
Primeiro rei entre renques de fícus e aplausos,
primeiro rei (e verei outros?) na minha vida.
Não tem coroa de rei, barbas formidáveis
de rei, armadura de rei, resplandecente
ao sol da Serra do Curral.
Não desembainha a espada para enfrentar
como fazia há pouco os hunos invasores
de sua pátria.
É um senhor alto, formal, de meia-idade,
metido em uniforme belga,
ao lado de outro senhor de pince-nez
que conheço de retrato: o Presidente do Estado.
Não vem na carruagem de ouro e rubis das estampas.
Não é um Carlos Magno.
Vem no carro a Daumont de dois cocheiros
e quatro cavalinhos mineiros bem tratados.
No carro seguinte, como convém eternamente
às mulheres, vejo a Rainha,
não aparição sublime das iluminuras
(ai, que falta nos faz a Idade Média),
mas a distinta burguesa ao lado
do Presidente compenetrado da República.
Então é isso: tudo igual,
sangue azul e plebeu?
Pompas republicanas: moderadas.
Tenho de recriar — reminiscências literárias —
vera imagem de Rei, no rei em carne e vida.
II
A coroa lá está, na Praça do Poder
(não sei por que, se chama Liberdade).
Coroa imensa, de dez mil
lampadazinhas elétricas multicores.
À noite, é tudo festa na cidade.
Cinema grátis para o povo
na efervescente Praça Doze.
Fogos de artifício e de feitiço
para susto de cisnes e marrecos
no Parque Municipal.
Bandas de música explodem
em cada coreto, mesmo sem coreto.
Clarinar de paradas militares,
multiplicadas pelo ouvido e olhar.
De Norte a Sul, de Leste a Oeste,
mesmo do separatista Triângulo irredutível
que não corteja Belo Horizonte,
acodem povos a conferir o Rei.
Jorra cerveja nos cabarés enfumaçados de cigarro.
Madame Olímpia, a respeitável,
faz a mais gorda féria do seu Éden.
Ao Rei não chega esta alegria. Ele visita
monocordicamente, bravamente,
quartéis, escolas, tribunais e o mais.
Há um discurso em cada fraque,
um vivelerroá em cada boca
e o desaponto de encontrar
no rei lendário o homem comum.
(Eu não disse que os reis não são mais reis?)
III
— Majestade, aceite esta garrafa de licor
estomacal, do meu fabrico.
O Rei aceita: vai provar (mas em Bruxelas)
o presente do farmacêutico Artur Viana.
Antes, na mesa oficial, degusta
macucos truffés à la Royale
e dorme cedo. Amanhã cedinho
irá a Morro Velho conhecer
o sombrio trabalho subterrâneo
que produz ouro para o mundo
e morte precoce para mineiros.
Voltando à superfície, Mister Chalmers
oferta-lhe desta vez
macucos truffés au jus d’orange.
É comida diária no Brasil?
Resta algum macuco pra contar?
O Rei repousa a vista
no quadro que lhe deu Honorário Esteves.
Escuta, sonolento,
a orquestra vinda do Rio expressamente
para abemolar sua visita.
Silêncio: Sua Majestade vai dormir
em cama de Napoleão 1o, cópia exata
feita por Leandro Martins & Companhia.
IV
O Governo impa de orgulho:
as refeições de Suas Majestades
quem serve é a Pascoal do Rio de Janeiro.
Os landolés de seus passeios
vêm da Garage Batista do Rio de Janeiro.
A Casa Lucas, do Rio de Janeiro,
multi-ilumina as ruas e fachadas.
A charuteira com enfeites de ouro de 24 quilates,
regalada ao Rei,
é obra de arte de Oscar Machado,
joalheiro do Rio de Janeiro
(mas a madeira de lei é pura Minas).
Pura Minas, o solitário da Rainha
trabalhado no Rio de Janeiro
pelo mesmo Machado, mas brotando
do chão mineiro de Coromandel.
Não foi possível, é pena, vir do Rio
o Pão de Açúcar nem o Corcovado
nem a baía… mas demos ao Rei
o mais perturbador, o mais fantástico
entardecer da cidade-coleção
de crepúsculos indescritíveis.
V
E assim todos vivemos nossa vida,
nossa vidinha, como é nosso dizer,
entrelaçada no viver do Rei.
A metros de distância um Rei respira,
almoça, fuma, escova os dentes,
coça a cabeça como nós coçamos.
Falta somente o Rei aparecer
no Bar do Ponto e junto ao Professor
Zé Eduardo, de ferino verbo,
comentar os erros de francês
dos oradores a quem a lição
de Mestre Jacob pouco aproveitou.
Não é de muita fala o Rei, parece,
mas quem resiste ao calmo prosear
daquele centro da malícia urbana?
Tome um café, Seu Rei. Sente-se e vamos
ponderar os túrbidos sucessos
de Manhuaçu: três ou quatro mortes
por questões de terras ou de política.
Isso também ocorre lá nas Flandres?
Como é, o câmbio? É, está baixando,
quase não exportamos, e trazemos
tudo da Europa, desde o sabonete
e o vinho até as polonesas…
Seu Rei e nosso amigo, vamos
mudar de assunto?
VI
Afinal segue o Rei, segue a Rainha,
seguem condes, barões e diplomatas
rumo a São Paulo.
Que alívio, suspender tanta folia,
tanto protocolo misturado
ao nosso visceral esteja-a-gosto.
Descansa o Rei de nós,
e dele descansamos.
Mas uma coisa fica em mim,
espectador quase repórter.
Uma coisa entre rosas, no jardim
versaillescamente plantado em seu honor.
É um som infantil, puro, no ar,
e não se desvanece:
coro de seis mil vozes entoando
o hino ensaiado com capricho
o mês inteiro nas escolas:
Aprédessiécles desclavage
lebelgesortáditombô…
lerroá laloá lalibertê.
Ao ouvi-lo o Rei empalidece,
a Rainha derrama duas lágrimas.
Crianças de 1920: a Brabançonne
casa-se com Ipirangasmargensplácidas,
e na Pensão de Dona Teresinha,
à noite, solitário no meu quarto,
não lembro o Rei, lembro o coral.
Por acidente: fui ter ao inferno.
Eu passeava à hora mais movimentada, na parte baixa da cidade.
Era a minha cidade, a cidade onde vivo, de que tão bem conheço as ruas e casas, os labirintos, os nomes, a secreta matemática dos fluxos e refluxos, as temperaturas.
Não é preciso ser estrangeiro — tomar comboios ou aviões, atravessar as águas.
O inferno é o último segredo do nosso conhecimento quotidiano.
A multidão andava de um lado para outro, era primavera.
A luz varria o ar.
Eu olhava as pessoas envolvidas exaltantemente por essa luz pura.
Pensava no corpo das pessoas, a alegria fervia dentro dos corpos — via-se isso.
A alegria passava de dentro dos corpos para fora, para os vestidos e fatos — e as ruas e prédios pareciam levitar.
Eu procurava palavras, para oferecer às alegrias das coisas, e uma palavra para a geral alegria do mundo.
Estava a olhar uma mulher, segui-a um pouco pela rua principal da cidade, vi-a desaparecer numa tabacaria.
Hesitei, parei à porta, estive a examinar as revistas expostas na entrada.
Via a mancha branca da mulher, lá dentro, junto ao balcão.
Pensava nos nomes.
Ocorriam-me: Corpo — Idade do Ouro — Liberdade.
De repente, eu recuperara a inocência.
Pensei: o saber doloroso dos anos, as mortes dia a dia, a profundeza das noites onde se acumularam todos os silêncios desembocam aqui, quase inexplicavelmente, nesta inocência que me faz tremer.
Nas capas das revistas havia cores explosivas, primitivas.
As letras saltavam como pequenos animais cheios de respiração e circulações de sangue.
Entrei na tabacaria e surpreendi-me por lá não ver a mulher.
Pensei: saiu sem que eu desse por isso.
Mas eu já perdera a inocência.
É assim: por uma distracção, por querer olhar para todos os lados da inocência, a gente perde a inocência.
Comprei cigarros, saí.
Mas as capas das revistas já não eram as mesmas.
Estavam mortas e sobre elas respirava agora ferozmente um alfabeto sombrio e indecifrável.
Salvação, pensei, preciso salvar-me, preciso ressuscitar no meio desta cidade branca, elevar-me aos nomes justos, ao conhecimento dos corpos ambulatórios.
Mas aquela rua não era já a rua principal da cidade de que eu conhecia a matemática e a meteorologia, as imagens e os altos sons vivos.
Andei pela rua, olhando os rostos desconhecidos, e as vozes diziam palavras de uma língua estrangeira.
Em que cidade de que país deambulava um homem perdido, de súbito órfão dos seres e das coisas, dos vocabulários e gestos — órfão do seu contexto diário?
E voltei atrás, procurando a mesma tabacaria, uma referência no caos — um ponto sólido neste espaço inimigo.
Mas já nada reconhecia, e a tabacaria em que entrei era diferente da outra.
Ao fundo havia uma porta onde me pareceu ver escrita, na minha língua, a palavra: ENTRE.
E então entrei.
Atravessei um corredor, desci escadas, percorri novos corredores, e uma exaltação maligna obrigava-me a um enredamento cada vez mais desesperado em escadas e corredores.
Sim, os labirintos sempre me fascinaram.
E de novo a alegria, mas agora uma espécie de alegria negra, brotava não sei de que obscuros lugares da minha já grande idade.
Porque, pensando, eu era velho, velho, os meus anos acumulavam-se num tempo indeciso, e estavam cheios de coisas monstruosas.
Encontrava-me eu então num subterrâneo de pedra, cercado de prateleiras onde se alinhavam muitos recipientes de forma rectangular.
Nesse instante revelou-se-me o verdadeiro silêncio.
Não aquela pausa feita para se reconhecer o valor da voz que parou ou que se erguerá, mas um silêncio sem vozes antes ou depois: o silêncio.
Contudo, alguma coisa riscava esse silêncio.
Parecia-me o ruído de pequenas rodas metálicas no chão de pedra.
Uma enfermeira empurrava um carrinho de criança e, quando se aproximou de mim, vi que sobre o carrinho estava colocado um recipiente igual aos que se encontravam nas prateleiras.
Um ser inqualificável metido em gelo, ele próprio uma vaga forma azulada, congelada, com escamas, uma espécie de peixe.
Estava na caixa rectangular.
Apenas a cabeça fora relativamente salvaguardada.
Tinha guelras, sim, e a boca era uma boca de peixe desesperado — uma boca que quisesse falar, não pudesse falar.
A boca abria-se e fechava-se, sim, como a de um peixe fora de água, as guelras batiam.
Procuravam o idioma, a água.
Alguma coisa fora salvaguardada.
Era uma cabeça quase humana.
Havia o cabelo, os olhos aterrorizados, a testa nobre dos homens.
E então gritei: não — gritei: não, não.
Porque eu sabia: aquilo era a loucura.
Com uma facilidade extraordinária, a mulher levantou o recipiente do carrinho e arrumou-o numa prateleira.
Agora chegavam enfermeiras de todos os lados, empurrando carrinhos.
Ouvia-se o bater das bocas e das guelras dos peixes.
Eu procurava fugir, mas estava cercado pelos muros de pedra, não havia portas.
Via aqueles paralelepípedos de gelo em que seres fusiformes batiam a boca sem voz.
Não, não.
Mas uma das enfermeiras solicitava-me doce e energicamente.
Era persuasiva, a enfermeira.
E eu meti-me dentro do recipiente onde a água principiava a gelar.
O meu corpo transformava-se no de um peixe, sentia escamas nascerem na carne, formarem-se dentro de mim e rebentarem para fora, duras, frias, azuladas, insensíveis.
A intensidade do corpo diminuía, diminuía.
Mal o sentia, agora.
Não, pensava ainda, mas a carne mergulhara no gelo, e eu não tinha braços e pernas, nem tinha coxas, nem pénis, nem ventre, nem peito.
Só a cabeça saía do pescoço de gelo, a boca batia desalmadamente, sem linguagem.
Eu estava morto, e toda a antiga intensidade das mãos, dos pés, do sexo e do coração — todo o fogo dos órgãos trepidantes subira à cabeça.
Eu estava morto, mas atrozmente vivo pela cabeça — pensando a uma velocidade terrível, com força, com muita força.
Encerrado num subterrâneo, numa caixa de gelo, batendo a boca de peixe, sem um só nome para a louca e brutal multiplicidade dos pensamentos, com toda a minha delirante inteligência, sob o doce sorriso de uma enfermeira antisséptica.
I
Chegam pelas ilhas (1493)

Os carniceiros desolaram as ilhas.

Guanahaní foi a primeira
nesta história de martírios.

Os filhos da argila viram partido
seu sorriso, ferida
sua frágil estatura de gamos,
e nem mesmo na morte entendiam.

Foram amarrados c feridos,
foram queimados e abrasados,
foram mordidos e enterrados.

E quando o tempo deu sua volta de valsa
dançando nas palmeiras,
o salão verde estava vazio.


Só ficavam ossos
rigidamente colocados
em forma de cruz, para maior
glória de Deus e dos homens.


Das gredas ancestrais
e da ramagem de sotavento
até as agrupadas coralinas
foi cortando a faca de Narváez.

Aqui a cruz, ali o rosário,
aqui a Virgem do Garrote.

A jóia de Colombo, Cuba fosfórica,
recebeu o estandarte e os joelhos
em sua areia molhada.




II Agora é Cuba

E foi logo o sangue e a cinza.


Depois ficaram as palmeiras sozinhas.


Cuba, meu amor, te amarraram ao potro,
te cortaram a cara,
te apartaram as pernas de ouro pálido,
te partiram o sexo de romã,
te atravessaram de facas,
te dividiram, te queimaram.


Pelos vales da doçura
desceram os exterminadores,
e nos altos montes a cimeira
de teus filhos se perdeu na névoa,
mas ali foram atingidos
um por um até a morte,
despedaçados no tormento
sem sua terra tépida de flores
que fugia sob os seus pés.


Cuba, meu amor, que calafrio
te sacudiu de espuma a espuma,
até que te fizeste pureza,
solidão, silêncio, mato,
e os ossinhos de teus filhos
fossem disputados pelos caranguejos.




III
Chegam ao Mar do México (1519)

A Veracruz vai o vento assassino.

Em Veracruz desembarcaram os cavalos.

As barcas vão atochadas de garras
e barbas vermelhas de Castela.

São Arias, Reyes, Rojas, Maldonados,

filhos do desamparo castelhano,
conhecedores da fome no inverno
e dos piolhos nos albergues.


Que olham debruçados nos navios?
Quanto do que vem e do perdido
passado, do errante
vento feudal na pátria açoitada?

Não deixaram os portos do sul
para colocar as mãos do povo
no saque e na morte:
eles enxergam terras verdes, liberdades,
cadeias rompidas, construções,
e do alto do navio as ondas que se extinguem
sobre as costas do compacto mistério.

Iriam morrer ou reviver atrás
das palmeiras no ar quente
que, como um forno estranho, a total baforada
para eles dirigem as terras abrasadoras?
Eram povo, cabeças hirsutas de Montiel,
mãos duras e quebradas de Ocaña e Piedrahita,
braços de ferreiros, olhos de meninos
a mirar o sol terrível e as palmeiras.


A fome antiga da Europa, fome como a cauda
dum planeta mortal, povoava o brigue,
a fome lá estava, desmantelada,
errante machado frio, madrasta
dos povos, a fome lança os dados
na navegação, sopra as velas:
“Mais além, senão te como, mais além,
senão regressas
à mãe, ao irmão, ao juiz e ao cura,
aos inquisidores, ao inferno, à peste.

Mais além, mais além, longe do piolho
do chicote feudal, do calabouço,
das galeras cheias de excremento”.


E os olhos de Núñez e Bernales
fixavam na ilimitada
luz o repouso,
uma vida, outra vida,
a inumerável e castigada
família dos pobres do mundo.




IV
Cortés

Cortés não tem povo, é raio frio,
coração morto na armadura.

“Ferazes terras, meu Senhor e Rei,
templos em que o ouro, coalhado
está por mãos de índio.


E avança mergulhando punhais, ferindo
as terras baixas, as escarvantes
cordilheiras dos perfumes,
parando a sua tropa entre orquídeas
e coroações de pinheiros,
atropelando os jasmins,
até as portas de Tlaxcala.


(Irmão aterrado, não tomes
por amigo o abutre cor-de-rosa:
do musgo te falo, das
raízes de nosso reino.

Vai chover sangue amanhã,
as lágrimas serão capazes
de formar névoa, vapor, rios,
até derreteres os teus olhos.
)

Cortés recebe uma pomba,
recebe um faisão, uma cítara
dos músicos do monarca
mas quer a câmara do ouro,
quer mais um passo e tudo cai
nas arcas dos vorazes.

O rei assoma aos balcões:

“É meu irmão”, diz.
As pedras
do povo voam respondendo,
e Cortés afia punhais
sobre os beijos traídos.

Volta a Tlaxcala, o vento trouxe
um surdo rumor de dores.




V
Cholula

Em Cholula os jovens vestem
seu melhor tecido, ouro e plumagens,
e calçados para o festival
interrogam o invasor.


A morte lhes deu resposta.


Lá estão milhares de mortos.

Corações assassinados
que ali palpitam estendidos
e que, na úmida furna que abriram,
guardam o fio daquele dia.

(Entraram matando a cavalo,
cortaram a mão que fazia
a homenagem de ouro e flores,
fecharam a praça, cansaram
os braços até o arrocho,
matando a flor do reinado,
metidos até os cotovelos no sangue
de meus irmãos surpreendidos.
)



VI
Alvarado

Alvarado, com garras e facas,
caiu sobre as choupanas, arrasou
o patrimônio do ourives,
raptou a rosa nupcial da tribo,
agrediu raças, prédios, religiões,
foi a caixa caudal dos ladrões,
o falcão clandestino da morte.

Até o grande rio verde, o Papaloapan,
rio das Borboletas, foi mais tarde
levando sangue em seu estandarte.


O grave rio viu os seus filhos
morrerem ou sobreviverem escravos,
viu arder nas fogueiras perto d'água
raça e razão, cabeças juvenis.

Mas não se esgotaram as dores
como à sua passagem endurecida
para novas capitanias.




VII
Guatemala

Guatemala, a doce, cada laje
de tua mansão leva uma gota
de sangue antigo devorado
pelo focinho dos tigres.

Alvarado massacrou tua estirpe,
violou as estrelas austrais,
espojou-se em seus martírios.


Em Yucatán entrou o bispo
atrás dos pálidos tigres.

Reuniu a sabedoria
mais profunda ouvida no ar
do primeiro dia do mundo,
quando o primeiro maia escreveu
anotando o tremor do rio,
a ciência do pólen, a ira
dos Deuses do Envoltório,
as migrações através
dos primeiros universos,
as leis da colméia,
o segredo da ave verde,
o idioma das estrelas,
segredos do dia e da noite
colhidos nas margens
da evolução terrestre!



VIII
Um bispo

O bispo ergueu o braço,
queimou os livros na praça
em nome de seu Deus pequeno
tornando em fumaça as velhas folhas
gastas pelo tempo escuro.


E a fumaça não volta do céu.




IX
A cabeça num pau

Balboa, morte e garra
levaste aos rincões da doce
terra central, e entre os cães
caçadores, o teu era a tua alma:
leãozinho de beiço sangrento
apanhou o escravo que fugia,
enfiou caninos espanhóis
nas gargantas palpitantes,
e das, unhas dos cachorros
saía a carne para o martírio
e a jóia caía na bolsa.


Malditos sejam cão e homem,
o uivo infame na selva
original, a desafiante
passagem de ferro do bandido.

Maldita seja a espinhenta
Coroa da sarça agreste
que não saltou como um ouriço
para defender o berço invadido.


Mas entre os capitães
sangüinários se ergueu na sombra
a justiça dos punhais,
o acerbo ramo da inveja.


No regresso estava a meio
de teu caminho o apelido
de Pedrarias qual uma corda.


Te julgaram entre os latidos
de cães matadores de índios.

Agora que morres, ouves
o silêncio puro, partido
por teus lebréus açulados?
Agora que morres nas mãos
dos torvos chefes,
sentes o aroma dourado
do reino destruído?

Quando cortaram a cabeça
de Balboa, ficou enfiada
num pau.
Seus olhos mortos
decompuseram seu relâmpago
e rolaram pela lança
numa grande gota de imundice
que desapareceu na terra.




X
Homenagem a Balboa

Descobridor, o vasto mar, minha espuma,
latitude da lua, império da água,
depois de séculos te fala pela minha boca.

Tua plenitude chegou antes da morte.

Ergueste até o céu a fadiga,
e da noite dura das árvores
conduziu-te o suor até a beira
da soma do mar, do grande oceano.

Em teu olhar se fez o matrimônio
da luz estendida e do pequeno
coração do homem, encheu-se a taça
jamais antes erguida, uma semente
de relâmpagos chegou contigo
e um trovão torrencial encheu a terra.

Balboa, capitão, quão diminuta
a tua mão na viseira, misterioso
boneco do sal descobridor,
noivo da oceânica doçura,
filho do novo útero do mundo.


Por teus olhos entrou como um galope
de flores de laranjeira o aroma escuro
da roubada majestade marinha,
caiu em teu sangue uma aurora arrogante
até povoar-te a alma, possesso!
Quando voltaste às terras rudes,
sonâmbulo do mar, capitão verde,
eras um morto que esperava
a terra para receber os teus ossos.


Noivo mortal, a traição cumpria-se.


Não em vão pela história
entrava o crime espezinhado, o falcão devorava
seu ninho e se juntavam as serpentes
que se atacavam com línguas de ouro.


Entraste no crepúsculo frenético
e os passos perdidos que levavas,
ainda empapado de profundidades,
vestido de fulgor e desposado
pela maior espuma, te traziam
às praias de outro mar: a morte.




XI
Dorme um soldado
Extraviado nas fronteiras espessas
chegou o soldado.
Era total fadiga
e caiu entre os cipós e as folhas
ao pé do grande deus emplumado:
este
estava só com o seu mundo mal
surgido da selva.

Olhou o soldado,
estranho nascido do oceano.

Olhou seus olhos, sua barba sangrenta,
sua espada, o brilho negro
da armadura, o cansaço tombado
como bruma sobre essa cabeça
de menino carniceiro.


Quantas zonas
de obscuridade para que o Deus de Pluma
nascesse e enroscasse seu volume
sobre os bosques, na pedra rosada,
quanta desordem de águas loucas
e de noite selvagem, o transbordado
leito da luz sem nascer, o fermento raivoso
das vicias, a destruição, a farinha
da fertilidade e logo a ordem.

a ordem da planta e da seita,
a elevação das rochas cortadas.

a fumaça das lâmpadas rituais,
a firmeza do solo para o homem,
a fundação das tribos,
o tribunal dos deuses terrestres.


Palpitou cada escama da pedra,
Sentiu o pavor que tombou
Como uma invasão de insetos,
Recolheu todo o seu poderio,
fez chegar a chuva às raízes,
falou com as correntezas da terra,
escuro em sua vestimenta
de pedra cósmica imobilizada,
e não pôde mover nem garras nem dentes,
nem rios, nem tremores.

nem meteoros que silvaram
na abóbada do reinado,

e ali ficam, pedra imóvel, silêncio,

enquanto Beltrán de Córdoba dormia.




XII
Ximénez de Quesada (1536)

Tá vão, já vão, já chegam,
coração meu, olha as naus,
as naus pelo Magdalena,
as naus de Gonzalo Jiménez
já chegam, já chegam as naus,
detém-nas, rio, fecha
tuas margens devoradoras,
submerge-as em teu palpitar,
arrebata-lhes a cobiça,
lança-lhes tua trompa de fogo,
teus vertebrados sanguinários,
tuas enguias comedoras de olhos,
atravessa o jacaré espesso
com os seus dentes cor de lodo
c sua primitiva armadura,
estende-o como ponte
sobre tuas águas arenosas,
dispara o fogo do jaguar
do alto das árvores, nascidas
de tuas sementes, rio mãe,
atira-lhes moscas de sangue,
cega-os com estercos negro,
afunda-os em teu hemisfério,
submete-os entre as raízes
na escuridão de teu leito,
apodrece-lhes o sangue todo
devorando-lhes os pulmões
e os lábios com teus caranguejos.


Já entraram na floresta:
já roubam, já mordem, já matam.

Ó Colômbia! Defende o véu
de tua secreta selva rubra.


Já ergueram o punhal
sobre o oratório de Iraka,
agora agarram o cacique,
agora o amarram.
“Entrega
as jóias do deus antigo”,
e brincavam com o orvalho
da manhã da Colômbia.


Agora atormentam o príncipe.

Degolaram-no, sua cabeça
me espia com olhos que ninguém
pode fechar, olhos amados
de minha pátria verde e nua.

Agora queimam a casa solene,
agora seguem os cavalos,
os tormentos, as espadas,
agora restam umas brasas
e entre as cinzas os olhos
do príncipe que não se fecharam.




XIII
Encontro de corvos

No Panamá uniram-se os demônios.

Foi aí o pacto dos furões.

Uma vela apenas iluminava
quando os três chegaram por um.

Primeiro chegou Almagro antigo e torto,
Pizarro, o velho porcino
e o frade Luque, cônego entendido
em trevas.
Cada um
escondia o punhal para as costas
do associado, cada um
com ensebado olhar nas escuras
paredes adivinhava sangue,
e o ouro do longínquo império os atraía
como a lua às pedras malditas.

Quando pactuaram, Luque ergueu
a hóstia na eucaristia,
os três ladrões amassaram
a obréia com torvo sorriso.

“Deus foi dividido, irmãos,
entre nós”, garantiu o cônego,
e os carniceiros de dentes
roxos disseram “Amém”.

Bateram na mesa cuspindo.

Como não sabiam de letras
encheram de cruzes a mesa,
o papel, os bancos, os muros.


O Peru, escuro, submerso,
estava marcado de cruzes,
pequenas, negras, negras cruzes
pelo sul saíram navegando:
cruzes para as agonias,
cruzes peludas e afiadas,
cruzes com ganchos de réptil,
cruzes salpicadas de pústulas,
cruzes como pernas de aranha,
sombrias cruzes caçadoras.




XIV
As agonias

Em Cajamarca começou a agonia.


O jovem Atahualpa, estame azul,
árvore insigne, ouviu o vento
trazer rumor de aço.

Era um confuso
brilho e tremor desde a costa,
um incrível galope
- patear e poderio -
de ferro e ferro entre a relva.

Chegaram os capitães.


O Inca saiu da música
rodeado pelos senhores.


As visitas
de outro planeta suadas e barbudas,
iam prestar reverência.

O capelão
Valverde, coração traidor, chacal podre,
avança um estranho objeto, um pedaço
de cesto, um fruto
talvez daquele planeta
de onde vieram os cavalos.

Atahualpa o segura.
Não sabe
de que se trata: não brilha, não soa,
e o deixa cair sorrindo.


“Morte,
vingança, matai, que vos absolvo”,
grita o chacal da cruz assassina.

O trovão acode aos bandoleiros.

Nosso sangue em seu berço é derramado.

Os príncipes rodeiam como um coro
o Inca, na hora agonizante.


Dez mil peruanos caem
debaixo de cruzes e espadas, o sangue
molha as vestimentas de Atahualpa.

Pizarro, o porco cruel de Extremadura,
faz amarrar os delicados braços
do Inca.
A noite desceu
sobre o Peru como brasa negra.




XV
A linha avermelhada

Mais tarde ergueu a fatigada
mão o monarca, e acima
das caras dos bandidos,
tocou os muros.

Aí traçaram
a linha avermelhada.

Três câmaras
era preciso encher de ouro e prata,
até essa linha de seu sangue.

Rodou a roda de ouro, noite e noite.

A roda do martírio dia e noite.


Arranharam a terra, retiraram
jóias feitas com amor e espuma,
arrancaram o bracelete da noiva,
desampararam os seus deuses.

O lavrador entregou a sua medalha,
o pescador sua gota de ouro,
e as relhas tremeram respondendo
enquanto voz e mensagem nas alturas
ia a roda de ouro rodando.

Aí tigre e tigre se juntaram
e repartiram o sangue e as lágrimas.


Atahualpa esperava levemente
triste no escarpado dia andino.

Não se abriram as portas.
Até a última
jóia os abutres dividiram:
as turquesas rituais, salpicadas
pela carnificina, o vestido
laminado de prata: as unhas bandoleiras
iam medindo e a gargalhada
do frade entre os verdugos
o rei escutava com tristeza.


Era seu coração um vaso cheio
de uma angústia amarga como
a essência amarga da quina.

Pensou em suas fruteiras, no alto Cuzco,
nas princesas, em sua idade,
no calafrio de seu reino.

Maduro estava por dentro, sua paz
desesperada era tristeza.
Pensou em Huáscar.

Viriam dele os estrangeiros?
Tudo era enigma, tudo era faca.

Tudo era solidão, só a linha rubra
palpitava vivente,
tragando as entranhas amarelas
do reino emudecido que morria.


Entrou Valverde então com a morte.

“Te chamarás Juan”, lhe disse
enquanto preparavam a fogueira.

Gravemente respondeu: “Juan,
Juan me chamo até morrer”,
já sem compreender nem mesmo a morte.


Ataram-lhe o pescoço e um gancho

penetrou na alma do Peru.




XVI
Elegia

Só, nas soledades
quero chorar como os rios, quero
escurecer, dormir
como tua antiga noite mineral.

Por que chegaram as chaves radiantes
até às mãos do bandido? Levanta-te,
materna Oello, descansa teu segredo
na fadiga longa desta noite
e deita em minhas veias teu conselho.

Não te peço ainda o sol do Yupanquis.

Te falo adormecido, chamando
de terra a terra, mãe
peruana, matriz, cordilheira.

Como entrou em teu arenoso recinto
a avalanche dos punhais?

Imóvel em tuas mãos,
sinto estenderem-se os metais
nos canais do subsolo.


Estou feito de tuas raízes,
mas não entendo, não me entrega
a terra a sua sabedoria.

Vejo apenas noite e noite
sob as terras estreladas.


Que sonho sem sentido, de serpente,
arrastou-se até a linha avermelhada?
Olhos do luto, planta tenebrosa.

Como chegaste a este vento vinagre,
como entre os penhascos da ira
não ergueu Capac a sua tiara
de argila deslumbrante?

Deixai-me sob os pavilhões
padecer e afundar-me como
a raiz curta que não dará esplendor.

Sob a dura noite dura
descerei pela terra até chegar
à boca do ouro.


Quero estender-me na pedra noturna.


Quero chegar aí com a desgraça.




XVII
As guerras

Mais tarde ao Relógio de Granito
chegou uma chama incendiária.

Almagros e Pizarros e Valverdes,
Castillos e Urías e Beltranes
se apunhalaram repartindo
as traições adquiridas,
se roubavam a mulher e o ouro,
disputavam a dinastia.

Enforcavam-se nos currais,
debulhavam-se na praça,
agarravam-se aos Cabildos.

Tombava a árvore do saque
entre estocadas e gangrena.


Desse galope de Pizarros
nos territórios linhosos
nasceu um silêncio estupefato.


Estava tudo cheio de morte
e sobre a agonia arrasada
de seus filhos desventurados,
no território (roído
até os ossos pelas ratazanas),
sujeitavam-se as entranhas
antes de matar e se matarem.


Magarefes de cólera e força,
centauros tombados na lama
da cobiça, ídolos
partidos pela luz do ouro,
exterminastes vossa própria
estirpe de unhas sanguinárias
e junto às rochas murais
do alto Cuzco coroado.

diante do sol de espigas mais altas,
representastes no pó
dourado do Inca, o teatro
dos infernos imperiais:
a Rapina de focinho verde,
a Luxúria azeitada em sangue,
a Cobiça de unhas de ouro,
a Traição, avessa dentadura,
a Cruz como um réptil rapace,
a Forca mm fundo de neve,

e a Morte fina como o ar

imóvel em sua armadura.




XVIII Descobridores do Chile

Do norte trouxe Almagro sua rugosa centelha.

E sobre o território, entre explosão e ocaso,
inclinou-se dia e noite como sobre uma carta
Sombra de espinhos, sombra de cardo e cera,
o espanhol reunido com a sua seca figura,
mirando as sombrias estratégias do solo.


Noite, neve e areia fazem a forma
de minha pátria delgada,
todo o silêncio está em sua longa linha,
toda a espuma sai de sua barba marinha,
todo o carvão a enche de beijos misteriosos.

Como brasa o ouro arde em seus dedos
e a prata ilumina como lua verde
sua endurecida forma de tétrico planeta.

O espanhol sentado junto à rosa um dia,
junto ao azeite, junto ao vinho, junto ao antigo céu,
não imaginou este ponto de colérica pedra
nascer sob o esterco da águia marinha.




XIX
A terra combatente
Primeiro resistiu a terra.


A neve araucana queimou
como uma fogueira de brancura
a marcha dos invasores.

Caíam de frio os dedos,
as mãos, os pés de Almagro
e as garras que devoraram
e sepultaram monarquias
eram na neve um ponto
de carne gelada, eram silêncio.

Foi no mar das cordilheiras.


O ar chileno chicoteava
marcando estrelas, derrubando
cobiças e cavalarias.


Cedo, a fome andou atrás
de Almagro como invisível
mandíbula que atacava.

Os cavalos eram comidos
naquela festa glacial.


E a morte do sul debulhou
o galope dos Almagros,
até que voltou seu cavalo
para o Peru, onde esperava
o descobridor rechaçado,
a morte do norte, sentada
no caminho, com um machado.




XX
Unem-se a Terra e o Homem

Araucania ramo de carvalhos torrenciais,
c5 Pátria despiedosa, amada escura,
solitária em teu reino chuvoso:
eras apenas gargantas minerais,
mãos de frio, punhos
acostumados a cortar penhascos,
eras, Pátria, a paz da dureza
e teus homens eram rumor,
áspera aparição, vento bravio.


Não tiveram os meus pais araucanos
elmos de plumagem luminosa,
não descansaram em flores nupciais,
não fiaram ouro para o sacerdote:
eram pedra e árvore, raízes
dos matagais sacudidos,
folhas com forma de lança,
cabeças de metal guerreiro.

Pais, apenas levantastes
a orelha ao galope, apenas no cimo
dos montes, cruzou
o raio de Araucania.

Tornaram-se sombra os pais de pedra,
ataram-se ao bosque, às trevas
naturais, tornaram-se luz de gelo,
asperezas de terras e espinhos,
e assim esperaram nas profundezas
da solidão indomável:
um era uma árvore vermelha que olhava,
outro um fragmento de metal que ouvia,
outro uma lufada de vento e verruma,
outro tinha a cor do caminho.

Pátria, nave de neve,
folhagem endurecida:
aí nasceste, quando o homem teu
pediu à terra o seu estandarte,
e quando terra e ar e pedra e chuva,
folha, raiz, uivo, perfume,
cobriram como um manto o filho
que amaram e defenderam.

Assim nasceu a pátria unânime:
a unidade antes do combate.




XXI
Valdivia (1544)

Mas voltaram (Pedro se chamava).

Valdivia, o capitão intruso,
cortou minha terra com a espada
entre ladrões: “Isto é teu,
isto é teu.
Valdés, Montero,
isto é teu, Inés, este lugar
é o cabido”.

Dividiram minha pátria
como sé fosse um asno morto.

“Leva
este pedaço de lua e arvoredo,
devora este rio com crepúsculo”,
enquanto a grande cordilheira
erguia bronze e brancura.


Assomou Arauco.
Adobes, torres,
ruas, o silencioso
dono da casa levantou sorrindo.

Trabalhou com as mãos empapadas
de sua água e de seu barro, trouxe
a greda e verteu a água andina:
mas não pôde ser escravo.

Então Valdivia, o verdugo,
atacou a fogo e morte.

Assim começou o sangue,
o sangue de três séculos, o sangue oceano,
o sangue atmosfera que cobriu a minha terra
e o tempo imenso, como guerra nenhuma.

Saiu o abutre iracundo
da armadura enlutada
e mordeu o chefe, rompeu
o pacto escrito no silêncio
de Huelén, no ar andino.


Arauco começou a ferver seu prato
De sangue e pedras.

Sete príncipes
vieram para lamentar.

Foram presos.

Diante dos olhos da Araucania,
cortaram as cabeças dos caciques.

Animavam-se os verdugos.
Toda
empapada de vísceras, uivando,
Inés Suárez, a mercenária,
subjugava os pescoços imperiais
com os seus joelhos de infernal harpia.

E as lançou sobre a paliçada,
banhando-se de sangue nobre,
cobrindo-se de barro escarlate.

Acreditaram assim dominar Arauco.

Porém aqui a unidade sombria
de árvore e pedra, lança e rosto,
transmitiu o crime ao vento.

Soube disso a árvore da fronteira,
o pescador, o rei, o mago,
soube disso o lavrador antártico,
souberam-no as águas mães
do Bío-Bío.

Assim nasceu a guerra pátria.

Valdivia enfiou a lança gotejante
nas entranhas pedregosas
de Arauco, meteu a mão
no palpitar, apertou os dedos
no coração araucano,
derramou as veias silvestres
dos labregos,
exterminou
o amanhecer pastoril,
ordenou martírio
ao rei do bosque, incendiou
a casa do dono do bosque,
cortou as mãos do cacique,
devolveu os prisioneiros
com orelhas e narizes cortados,
empalou o toqui, assassinou
a moça guerrilheira
e com a sua luva ensangüentada
marcou as pedras da pátria,
deixando-a cheia de mortos
e solidão e cicatrizes.




XXII
Ercilla


Pedras de Arauco e desatadas rosas
fluviais, territórios de raízes,
encontraram-se com o homem que chegou de Espanha.

Invadem a sua armadura com gigantesco líquen.

Atropelam a sua espada as sombras do feto.

A hera original põe mãos azuis
no recém-chegado silêncio do planeta.

Homem, Ercilla sonoro, ouço o pulso da água
de teu primeiro amanhecer, um frenesi de pássaros
e um trovão na folhagem.

Deixa, deixa a tua pegada
de águia rubra, destroça
a tua face contra o milho silvestre,
tudo será na terra devorado.

Sonoro, somente tu não beberás a taça
de sangue, sonoro, só ao rápido
fulgor de ti nascido
cm vão chegará a boca secreta do tempo
para dizer-te: em vão.

Em vão, em vão
sangue pelas ramagens de cristal salpicado,
em vão pelas noites do puma
o desafiador passo do soldado,
as ordens,
os passos
do ferido.

Tudo torna ao silêncio coroado de plumas
onde um rei remoto devora trepadeiras.




XXIII
Enterram-se as lanças

Assim ficou repartido o patrimônio.

O sangue dividiu a pátria inteira.

(Contarei em outras linhas
a luta do meu povo.
)
Mas foi cortada a terra
pelas facas invasoras.

Depois vieram povoar a herança
usurário de Euzkadi, netos
de Loyola.
Da cordilheira
do oceano
dividiram com árvores e corpos
a sombra recostada do planeta.

As comendas sobre a terra
sacudida, ferida, incendiada,
o reparte de selva e água
nos bolsos, os Errázuriz
que chegam com seu escudo de armas:
um chicote e uma alpargata.




XXIV
O coração magalhânico (1519)

De onde sou, às vezes me pergunto, de que diabos
venho, que dia é hoje, que acontece,
ronco, no meio do sonho, da árvore, da noite,
e uma onda se levanta como pálpebra, um dia
dela nasce, um relâmpago com focinho de tigre.



Desperto de repente na noite pensando no extremo sul
Vem o dia e me diz: “Ouves
a água lenta, a água
sobre a Patagônia?”
E eu respondo: “Sim, senhor, escuto”.

Vem o dia e me diz: “Uma ovelha selvagem,
longe, na região, lambe a cor gelada
duma pedra.
Não escutas o balido, não reconheces
o vendaval azul em cujas mãos
a lua é uma taça, não vês a tropa, o dedo
rancoroso do vento
tocar a onda e a vida com o seu anel vazio?”


Recordo a solidão do estreito
A longa noite, o pinheiro, vêm aonde vou.

E se transtorna o ácido surdo, a fadiga,
a tampa do tonel, quanto tenho na vida.

Uma gota de neve chora e chora à minha porta
mostrando o seu vestido claro e desatado
de pequeno cometa que me procura e soluça.

Ninguém olha a lufada, a extensão, o uivo
do ar nas pradarias.

Me aproximo e digo: vamos.
Toco o sul, desemboco
na areia, vejo a planta seca e negra, toda raiz e rocha,
as ilhas arranhadas pela água e pelo céu,
o Rio da Fome, o Coração de Cinza,
o Pátio do Mar Lúgubre, e onde assovia
a solitária serpente, onde cava
o último zorro ferido e esconde seu tesouro sangrento
encontro a tempestade e sua voz de ruptura,
sua voz de velho livro, sua boca de cem lábios,
algo me diz, algo que o ar devora cada dia.



Os descobridores da América aparecem e deles nada fica
Recorda a água quanto aconteceu ao navio.

A dura terra estranha guarda as suas caveiras
que soam no pânico austral como cornetas
e olhos de homem e de boi dão ao dia o seu vazio,
o seu anel, o seu ressoar de implacável sulco.

O velho céu busca a vela, ninguém
já sobrevive: o brigue destruído
vive com a cinza do marinheiro amargo,
e dos entrepostos de ouro, das casas de couro
do trigo pestilento, e da
chama fria das navegações
(quanto golpe noite [rocha e baixel] no casa,)
fica apenas o domínio queimado e sem cadáveres,
a incessante intempérie apenas partida
por um negro fragmento
de fogo falecido.



Só se impõe a desolação
Esfera que destroça lentamente a noite, a água, o gelo,
extensão combatida pelo tempo e pelo fim,
com sua marca violeta, com o final azul
do arco-íris selvagem
se afogam os pés de minha pátria em tua sombra
e uiva e agoniza a rosa triturada.

Recordo o velho descobridor
Pelo canal navega novamente
o cereal gelado, a barca do combate,
0 outono glacial, o transitório ferido.

Com ele, com o antigo, com o morto,
com o destituído pela água raivosa,
com ele em sua tormenta, com seu rosto.

Ainda o segue o albatroz c a soga de couro
comida, com os olhos fora do olhar
e o rato devorado cegamente olhando
entre paus partidos o esplendor iracundo,
enquanto no vazio o anel e o osso
caem, resvalam pela vaca-marinha.



Magalhães
Qual é o deus que passa? Olhai sua barba cheia de vermes
e seus calções aos quais a espessa atmosfera
se agarra e morde como um cão náufrago:
e tem peso de âncora maldita a sua estatura,
e silva o pélago e o aquilão acorre
até seus pés molhados.
Caracol da escura
sombra do tempo, espora
carcomida, velho senhor de luto litoral, caçador
sem estirpe, manchado manancial, o esterco
do estreiro te manda,
e de cruz tem o seu peito só um grito
do mar, um grito branco, de luz marinha,
e de tenaz, de tombo em tombo, de aguilhão demolido.



Chega ao Pacífico
Porque o sinistro dia do mar termina um dia,
e a mão noturna corta seus dedos um a um
até não ser, até que o homem nasce
e o capitão descobre dentro de si o aço
e a América sobe a soa borbulha
e a costa levanta o seu pálido arrecife
sujo de aurora, turvo de nascimento
até que da nau sai um grito e se afoga
e outro grito e a alba que nasce da espuma.



Todos morreram
Irmãos de água e piolho, de planeta carnívoro:
vistes, enfim, a árvore do mastro encolhida
pela tormenta? Vistes a pedra esmagada
sob a louca neve brusca da lufada?
Enfim, já tendes o vosso paraíso perdido,
enfim, tendes a vossa guarnição maldizente,
enfim, vossos fantasmas atravessados pelo ar
beijam sobre a areia o rasto da foca.


Enfim, a vossos dedos sem anel
chega o pequeno sal do páramo, o dia morto,
tremendo, em seu hospital de ondas e pedras.




XXV
Apesar da ira

Roídos elmos, ferraduras mortas!

Mas através do fogo e da ferradura
como de um manancial iluminado
pelo sangue sombrio,
com o metal fundido no tormento
derramou-se uma luz sobre a terra:
número, nome, linha e estrutura.


Página de água, claro poderio
de idiomas rumorosos, doces gotas
elaboradas como cachos de uvas,
sílabas de platina na ternura
de uns peitos puros aljofarados,
e uma clássica boca de diamantes
deu seu fulgor nevado ao território.


Já longe a estátua depunha
seu mármore morto, e na primavera
do mundo, amanheceu a maquinaria.


A técnica elevava o seu domínio
e o tempo foi velocidade e lufada
na bandeira dos mercadores.


Lua de geografia
que descobriu a planta e o planeta
estendendo geométrica formosura
em seu desenvolvido movimento.


Ásia entregou o seu virginal aroma.

A inteligência com um fio gelado
foi atrás do sangue a fiar o dia.


O papel repartiu a pele nua
guardada nas trevas.


Um vôo
de pombal saiu da pintura
com arrebol e azul ultramarino.


E as línguas do homem se juntaram
na primeira ira, antes do canto.


Assim, com o sangrento
titã de pedra,
falcão encarniçado,
não só chegou o sangue mas o trigo.


A luz veio apesar dos punhais.
Sou o Autor, diz o Autor, e aproxima-se das pessoas que estão simplesmente a assistir e lhe deixam, a ele, a solidão incólume.
Boa-noite.
E as pessoas que assistem são estátuas com cabelo, um sorriso talvez — com esse ar ambíguo das estátuas: branco, fatal, atónito.
As estátuas não têm amor nem adivinhação.
Estão cravadas nas poltronas e nada fazem por esse Autor repentinamente aparecido no meio de sombras e luzes.
Contudo, esperemos ao menos que não sejam os «juízes».
São majores, advogados, comerciantes, professores.
Estátuas sentadas.
Estava ali a pensar, há pouco, para que serve aparecer.
(Ele refere-se, evidentemente, a um momento teatral anterior, que pode desenhar-se desta maneira:
O pano sobe.
A cena encontra-se na obscuridade.
Três panejamentos negros cobrem o fundo e os lados do palco.
A um canto, ao fundo, de preferência à esquerda, está um homem sentado numa poltrona de couro.
Fuma.
Tem ao lado um cinzeiro de pé alto.
Nada mais existe no palco.
O homem expele o fumo com força, uma última vez, e atira o cigarro para o cinzeiro.
Ergue-se devagar.
As luzes aumentam de intensidade sem, no entanto, iluminarem francamente a cena.)
Não serve para nada, continua, a menos.
Levanta um dedo, e todo o corpo como que se precipita para o alto desse jacto de energia.
A menos que se execute um milagre.
E toda a sala permaneceria muda e à margem da (miraculosa) solidão, se o Demónio, que passava pelos corredores, não tivesse encontrado a porta entreaberta e, espreitando, não dissesse: um milagre?
Sim, responde o Autor, um pequeno milagre.
Aqui é o lugar da malícia do Demónio.
Pequeno?, pergunta.
Então o Autor diz que tentará explicar.
Massas de sombra e de luz esperam atrás dele.
O espaço onde se encontra hesita entre vários, inconcluídos pensamentos.
Nem a temperatura, a pressão, a humidade se fixaram.
Eu apareço como exemplificador — mostro o estilo, o exemplo.
Um operário em fato-macaco levanta um dos panos laterais e introduz em cena meio corpo.
Pergunta: começa-se?
Ainda não, responde o Autor, estou a explicar umas coisas.
Quando acabar, chame, diz o operário, e desaparece.
Senhores militares, estudantes, médicos — minhas senhoras — meus senhores — ides assistir a um acto simbólico.
É esse o milagre, o pequeno?, pergunta o Demónio no fundo da sala.
Sim, é esse — e é pequeno.
Bate palmas, e entram alguns operários.
Agora?, perguntam.
Os operários saem e voltam com uma carpete, cadeiras, pequenas mesas e o mais que possa interessar para que surja uma sala-de-estar segundo a convenção.
Um momento, interrompe o Autor.
E os operários conservam-se a um canto, pacientemente à espera de poderem arrumar os móveis e objectos.
Eu ia pedir-vos, senhoras, senhores, para aceitardes o direito de poder imaginar a acção um pouco como quisésseis.
O que aqui se passar poderia passar-se noutro sítio qualquer, com pessoas diferentes e de maneira diversa.
Mete pessoas?, pergunta o Demónio.
Não haverá sempre pessoas?, não estaremos por acaso — tu, eu — bloqueados, sufocados, esmagados por pessoas? — há sempre pessoas.
E as pessoas estão em baixo, sorrindo, olhando — talvez, talvez.
Enfim, procuro defender o meu símbolo, apesar de tudo.
Podeis começar, senhores operários.
E para vós, senhoras, senhores, que simplesmente assistis, vou fazer, enquanto eles dão a este espaço o aspecto concreto da realidade, um pequeno truque de prestidigitação.
Uma coisa poética, pela qual procurarei dar a impressão de que repito o acto iluminante do Génesis.
É o milagre?, perguntam impertinentemente do fundo da sala.
Um milagre que não é precisamente uma arbitrariedade.
Os poetas arrogam-se o direito de recomeçar o mundo.
Aqui principia o mundo, se é verdade que pode principiar em qualquer parte e tempo.
E então arregaça as mangas do casaco como um prestidigitador de circo.
Mostra as mãos, de um lado e de outro.
Nada na manga, diz o Demónio.
Com efeito, nada na manga.
Dirige-se para os panejamentos negros que puxa, e caem, deixando à vista as paredes com estantes de livros, quadros, retratos de família, etc.
Bonito, não é?
Fiat lux!
E a luz fez-se.
Olha subtilmente para as estátuas, enquanto ao fundo rebenta uma gargalhada.
Depressa, diz para os operários, esta gente espera a acção.
A acção, não é?
Pois claro.
Onde estão as portas?
Uma para comunicar com o resto da casa.
Isto é a sala-de-estar de uma família.
Ora é preciso que as pessoas entrem e saiam.
Que vivam por toda a parte, por causa da verosimilhança.
Gosto muito da verosimilhança.
E outra, outra porta para fora.
Porque podem chamar de fora, da noite, do vento, e a pessoa por quem chamam poderá querer sair.
Estavam mal as pessoas, se o Criador.
Com a licença de todos, o Criador aqui sou eu.
Se o Criador, dizia, lhes não desse uma porta.
É tudo?, pergunta o Demónio.
Tudo, sim.
E o milagre?
Bem, o milagre.
Nada há a acrescentar, senão talvez que as pessoas que simplesmente assistem nunca se movem, porventura jamais se moverão.
Talvez nem mesmo sorriam, ou olhem.
Estão sentadas, vamo-lo supor.
Sentadas e hirtas, e se calhar não chegam a compreender que é para elas tudo o que se faça.
A paixão forma-se, cresce, desloca-se à sua frente.
Alguém se esgota à sua frente — o caloroso prestidigitador, sob a ironia de um demónio devoluto, emprestado pelas fábulas.


Escreve-se.
Há as nuvens, as árvores, as cores, as temperaturas.
Há o espaço.
É preciso encontrar a nossa relação com o espaço.
Fazer escultura.
Escultura: objecto.
Objectos para a criação de espaço, espelhos para a criação de imagens, pessoas para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de silêncio.
Temos enfim o silêncio: é uma autobiografia.
É algo que se conquista à força de palavras.
Pode-se morrer, depois, quero dizer.
Um amigo: quando já sabemos como viver estamos prontos para a morte.
Estou descontente.
Há primavera, verão, outono e inverno — no espaço.
Começa assim o Ricardo III:
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lourd’d upon our house
In the deep bosom of the Ocean buried.
Now are our brows with victorious wreaths;
Our bruised arms hung up for monuments;
Our stern alarums changed to merry meetings;
Our dreadful marches to delightful measures.
Gloucester não é feito para estes tempos de paz, os jogos voluptuosos, os delicados labirintos da beleza.
É monstruoso.
Why, I, in this weak piping time of peace,
Have no delight to pass away the time,
Unless to see my shadow in the sun
And descant on mine own deformity.
E ele realizará uma autobiografia activa, uma sufocante acumulação de crimes.
Uma soma de cadáveres.
Um cadáver ele mesmo, acto V, cena V.
É o silêncio dele.
Estou descontente.
Eis o inverno do meu descontentamento.
Autobiografia.
Denominação: dominação das coisas.
O amor e a palavra são belos crimes — e imperdoáveis.
E quem pode amar o crime senão o criminoso e, por vezes, devido a um ainda mais raro talento, a sua vítima?
O autobiógrafo é a vítima do seu crime.
Melhor verdade, porém, é que a única graça concedida ao criminoso é o seu próprio crime.
Estou só: escrevo.
A alegria de escrever.
A temperatura, a velocidade, a cor das palavras — a maneira.
Latejam e respiram.
Dormem e despertam — andam.
Olham para a nossa ciência e para a nossa inocência.
Amam-nos.
Descobrir o seu sistema de cristalização, ver como a luz se refracta através delas.
As montanhas deslocam-se, pela energia das palavras, aparecem pessoas, animais, girassóis, plantas negras, lugares negros — e o sol, pela energia das palavras, cria-se o silêncio, pela energia das palavras.
année par année sont des années sans années
pas par pas sont des pas sans pas
Uma notícia de jornal: uma estátua em granito, com mais de 2 metros de altura e pesando meia tonelada, desequilibrou-se e tombou sobre o escultor que a tinha feito, esmagando-o.
Porque não é assim: o homem pesa 60 toneladas, mede 22 metros de altura e 24 de largura, e ocupa uma superfície de 70 metros quadrados — é em aço inoxidável.
Escrever é perigoso.
(…)
Sim — no entanto, já me disseram isso: que eu devia ser paciente.
E os que mo disseram foram tão pacientes, pelo seu lado, que apodreceram.
Quanto a mim, tenho pressa.
Porque eu penso que vou morrer, e então como posso ser paciente?
Gostaria de escrever o livro de que tenho medo, mas os meus dias, afinal longos, são ameaçados pela esterilidade.
Nada disto é fácil.
Suporto mal a carga das experiências e inexperiências: um homem, bela fábula também para apodrecer, e (desta vez) depressa.
A minha convicção era esta: eu esgotara a cidade.
Então fiz a mala e dirigi-me para o norte.
O norte era um espaço organizado segundo outras regras, de certo modo opostas às da cidade esgotada.
A experiência que possa ou julgue ter apresenta-me o norte como um estilo ao mesmo tempo rigoroso e livre, onde as primeiras qualidades são talvez a verdade, a pureza e o esforço.
A minha vida na cidade orientava-se pelo princípio da dissipação.
O facto que eu fugia de admitir, isto é: que o livro me perseguia, o livro aterrador que eu aspirava escrever, para que fosse a minha purificação — seria colocado, o livro, o facto, seria colocado, no norte, numa nova perspectiva.
Sim.
Já me não equilibrava nas linhas do antigo estilo.
Havia peste na cidade.
Suponho que um perfeito desamor se estabelecera entre mim e os dias.
Repugnavam-me as casas brancas, a cal martelada pelo sol, e o rio — as grandes águas pesadamente luminosas.
Era a peste.
Mas a peste não é só esta face quente e branca que confunde o poder e a delicadeza dos pensamentos.
O sul comporta as noites aparentemente plácidas, de que os dias vazios são uma ambígua anunciação, onde um furor sensual empurra à embriaguez, à alegria dramática — exigência de atingir depressa os limites.
Eu vacilava então entre diversas pistas, convencido de que o ardor me guiaria ao melhor lugar, quero dizer: à exaltação mais alta.
Onde me conduzia o livro, o tema, aquela perseguição?
Que espécie de morte me vigiava — terrível e salvadora?
Em pequenos escritos de uma crueldade minuciosa mas lateral, eu fazia perguntas, e do outro lado aparecia o norte, com a fascinação da sua luz imóvel.
Era a sua fábula o que eu deveria aprender: descobrir o seu prestígio inocente.
E nessa fixa claridade desabrochariam os meus obscuros bestiários — o livro.
(…)
O livro, o livro.
Nos dias nevoentos fecho as janelas, acendo a luz forte, e deito-me no tapete.
Leio ou penso.
Ou então fumo, enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem, e as mais pesadas descem e as mais leves se tornam pesadas, até ser impossível destruir o silêncio.
É fascinante, debaixo de uma luz que brilha tanto.
Lá fora, a terra — a terra das criaturas que se aproximam umas das outras, se tocam e falam.
O silêncio é sólido, iluminado por cima, aquecido pelos lados.
Durante seis meses fumo e leio, estendido no tapete.
Depois chega o verão, e subo à montanha, e vou para o mar.
Rebento de sol e água, do odor a terra quente e agulhas de pinheiro.
Estou tremendamente forte.
Bebo vinho.
Uma noite começo a escrever.
Tenho uma memória: nada foi esquecido.
Vem adequado agora a um vivo sentido de expressão.
Feliz, eu caminho para o esgotamento, nesses terríveis dias da fecundidade.
As pessoas perdem o nome, os acontecimentos libertam-se do seu movimento centrífugo: fica um núcleo cerrado de significações.
Inspiro-me na minha alegria, na morte acumulada.
Vivo sobre um doloroso e minucioso sentimento de masculinidade — como se isso fosse uma doença.
Poderei dizê-lo: inspiro-me no que é uma força e uma terrífica fragilidade, diante da lembrança e do esquecimento.
Depois: um ritmo, uma libertação.
Há dentro da gaveta uma rima de folhas escritas de ambos os lados.
Escrevi-as para os sombrios tempos do esgotamento.
Eu sou — e ali está a minha prova.
Dias, dias, noites inteiras — sobre o tapete, enquanto a chuva, o sol, o vento, o mundo.
Tempo consumido por uma tranquilidade imóvel.
Mas o bolbo fermenta.
Começo a andar em volta do quarto e a sair do quarto.
Sim, sim, digo eu, sim.
Ando de um quarto para outro, fechando portas, voltando atrás para abrir portas.
Depois paro e fumo diante das janelas.
Eu, diante da noite, com as mãos cobertas de sangue.
Eu, cheio de medo.
Irrisória medida pessoal: comida, urina, fezes, esperma, suor.
As unhas e os cabelos que crescem.
E a noite adiante, atrás, por cima.
Uma distância avassaladora e inóspita.
Desamor, crueldade, sensibilidade na criatura, na estranha criatura coroada com a sua comida e as suas fezes.
E sangue nas mãos, não há lágrimas — masculinidade, podridão fria.
Os papéis são um motor, trabalhando ininterruptamente; os papéis trabalham pelos dias dentro e no meio da noite.
Um tremendo motor.
Acordo de madrugada para ouvir a trepidação do motor.
Comunica-se à mesa, e da mesa ao soalho, às paredes, e a toda a casa.
É uma força espantosa.
Divago pela casa, bêbado de hesitação, dissipo-me em passos, mergulho em sonos brutais.
Uma manhã, caminho debaixo de árvores frias.
A terra trabalha à minha volta, interior e silenciosa, o mar vibra sob um céu extenuantemente liso.
Enfrento este calmo sonho do mundo, eu — o homem exaltado.
O meu poder é profundo e obscuro.
E então canto.
É uma canção essencial, ingénua — desalojada dos labirintos da ciência.
Empunho essa arma inocente, atravesso com ela meu ser dúbio, o vocabulário das contradições.
Sim, sim, penso eu, sim.
Talvez a alegria comece nesta terrível purificação.


Vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e disseram: porque fizeste isso?
Pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Pensei: quem sou eu para que me ataquem as vozes?
E o sangue vacilou na minha carne, as mãos tremeram, e a minha boca estava gelada.
Porque eu sabia quem era — conhecia-me.
Que fiz eu?, perguntei, e eles olhavam-me com a sua terrível melancolia.
Vieram ter comigo numa rua de não sei que cidade, e quem sabe se eu era puro?
Tinham caras ferozes e dolorosas, e queriam conhecer a razão por que eu fizera aquilo.
Olhei em volta — e apenas uma noite sufocada pelo nevoeiro, o rumor apenas do vento arrastando papéis velhos pelas ruas.
Era uma vez um lugar — pensei — onde os pássaros apanhavam insectos e os cravavam nos espinhos dos cardos selvagens.
Era uma vez uns pássaros que cantavam, enquanto os insectos agonizavam enterrados em espinhos brancos e duros.
O seu canto era belo.
E então, voltando-me para aqueles rostos amargos e cruéis, perguntei: quereis cantar?
E eles sorriram, como quem sabe, e disseram: porque fizeste isso?
Serei um inocente? — isto, só isto o que me acudiu.
E pus-me a andar, enquanto eles me seguiam quase sem ruído pelo meio do nevoeiro.
De súbito, percebi que eu nada sabia, nada, que a minha ciência era inane, e me limpava de toda a culpa.
Estremeci de alegria e parei voltando-me para eles, e perguntei, radiante: que fiz eu?
Um deles avançou para mim e passou a mão direita pelo meu rosto, numa carícia leve e, ao mesmo tempo, investigadora.
Recordei todo o tempo inútil que vivera, e aquilo que opusera ao mundo, e pensei: como hei-de morrer, com que espécie de amor, de louvor, hei-de eu morrer?
Já sabia então toda a profundeza do meu crime, e como o meu espírito era frágil e cruel.
Terei cantado alguma vez? — perguntei, e aquele que avançara até mim recuou para o grupo, e todos me olhavam.
Ignoro em que cidade pode o nevoeiro correr assim pelas ruas, e deixar à volta dos rostos um espaço branco onde uma luz difusa trema longamente, como se não houvesse tempo e o peso incalculável das presenças fosse irremovível.
Vieram ter comigo nessa inexplicável cidade e, enquanto o nevoeiro passava, olhavam-me implacavelmente, conhecendo o meu medo, o ponto instável onde inocência e crime se equilibravam no meu coração, e disseram: porque fizeste isso?
Eu sorri.
Decerto, comecei a dizer.
E de novo reparei que os rostos escapavam ao nevoeiro, quase brilhando na massa escura e gelada da noite.
E o meu rosto, brilharia ele também, estaria como que suspenso na noite, seria um rosto implacável?
Como recusar que eu sempre me preparara para a morte do mesmo modo que se prepara uma vingança?
Decerto, disse sorrindo, decerto houve um erro qualquer, porque eu não posso ser procurado.
E recomecei imediatamente a andar.
Sim, isto é um lugar, isto é uma noite, mas há outros lugares e outros tempos.
Há uma libertação, algures, num tempo que não sei, mas que existe.
E eles seguiam-me, e tanto fazia que eu caminhasse depressa como devagar, porque se mantinham à mesma distância.
Ando à procura da minha velocidade, mas o que é isto, que é procurar a sua própria velocidade, se aparecem vozes com uma pergunta fora do tempo e dos lugares?
Há um erro, gritei, e enfrentei-os, há um erro, um erro.
E então um deles avançou para mim e passou a ponta dos dedos pela minha boca.
E não sei se eram os dedos que tremiam ou se era a minha boca, e não sei porque tremeriam os dedos ou tremeria a boca.
Ele afastou-se devagar, e eu perguntei: que fiz eu?
As ondas de nevoeiro abraçavam as figuras imóveis e o vento arrastava jornais velhos.
Os rostos continuavam a palpitar no ar frio.
Um dia chegará a luz.
Um dia correrão as águas, e as plantas sairão das trevas com a chama branca das suas flores, e alguém louvará o renascimento da vida.
Um dia o homem estará nu e inocente.
Então reconheci os seus rostos atrozes de ressuscitados, e aquela voz que irrompia do tempo e violava a sua qualidade mortal, para dizer: porque fizeste isso?
Quem sou eu para que as vozes me ataquem?
Porque fizeste isso? porque fizeste isso? porque fizeste isso?
Ah, um pouco de paz, um dia de paz, apenas um dia, para que saiba ao menos a qualidade da minha culpa.
E um deles avançou e deu-me um beijo no rosto, e depois recuou, e depois recomecei a minha caminhada sem propósito, e depois senti que a face me queimava no sítio do beijo, como uma chaga.
Era uma rua enorme, estreita e varrida pelo nevoeiro húmido.
Eles andavam atrás de mim, quase sem ruído.
Talvez a inocência seja mesmo a minha verdadeira vocação.
Que espécie de ciência terão eles, para fazerem tal pergunta?
Era uma vez um lugar onde pássaros terríveis cantavam inspirados pela agonia dos insectos.
O seu canto era de uma beleza inocente e parecia louvar a própria vida.
Há um erro, disse eu, e parei para olhar as caras brancas e amargas.
Quereis cantar?, perguntei, quereis alimentar-vos da minha inocência?
Então um deles destacou-se do grupo e veio para mim, cambaleando como um ferido, e depois tomou-me as duas mãos nas suas e levou-as lenta e apaixonadamente aos lábios, e comecei a chorar em silêncio, enquanto as minhas mãos ficavam entregues àquele beijo de um amor terrível.
Porque fizeste isso?, perguntaram os outros, dirigindo-se a mim.
E os seus rostos eram implacáveis.
O que estava junto de mim abandonou-me docemente as mãos e voltou para o grupo.
Disse: porque fizeste isso?
Um dia chegará a primavera, num lugar longe daqui, haverá homens e mulheres para louvar a vida, pensei eu.
E, virando-me para eles, perguntei: que fiz eu?
Ah, vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Porque fizeste isso?, perguntavam.
Mas nem eu avaliava bem a verdade da minha culpa ou da minha inocência, nem conhecia que espécie de sabedoria era a deles.
E caminhava pela cidade cheia de nevoeiro, e eles seguiam-me e às vezes beijavam-me apaixonadamente as mãos, e eu dizia: que fiz eu?
Se acaso eu pudesse pensar na morte, isso era como uma vingança, e parecia que eles sabiam tudo.
De nada servia que eu protestasse existir um erro.
Mostravam-me o seu amor demoníaco, e acusavam-me até eu sentir que tudo vacilava dentro de mim.
Talvez agonizássemos todos e todos nós esperássemos cantar, movidos pela agonia alheia, talvez estivéssemos ligados por insondáveis tramas de inocência e culpa, e as vozes fossem um obscuro esforço de libertação.
Eu parava e dizia: mas que fiz eu?
E um deles avançava para mim e encostava o seu rosto ao meu e afastava-se.
E depois eles perguntavam: porque fizeste isso?
Quem sabe?, talvez fosse muito rudimentar toda a nossa sabedoria de crime e inocência, e o amor e o medo enchessem o nosso coração, e assim caminhássemos pelas trevas com os rostos brilhando ao alto — dolorosos, implacáveis e doces, doces.
Vejo-lhes o rosto sem sombras, um pequeno rosto branco que tem raízes em águas lisas.
A peste neles é uma tarefa tranquila.
As raízes bebem-na na própria paz, e o sono não dá conta.
Sólido sono que nenhum pavor atravessa.
Um dia hei-de falar melhor deste sono, desse distraído e falso equilíbrio que regras estéreis secretamente alimentam.
Eu via esses rostos, esse sono, e não tinha paz.
Sabem como é?
Começamos por reconhecer aí os seres do nosso amor e gentileza — sei lá — a mãe, as irmãs, a rapariga cujas altas ancas atravessavam os quartos obscuros, atravancavam corredores, e onde a luz viva se quebrava.
Nas fotografias antigas, com forma oval e uma cor ambígua, a três quartos, de frente, de perfil — sim, reconhecemos isso.
São rostos brancos, e dormem.
Dormem o sono onde a lepra estremece: a tenebrosa semente.
Depois vemos que tudo era vazio, lá dentro: era uma casca — e, precisamente, nada significava.
Mãe — dizemos nós.
Mas a mãe fora tomada por aquela grande desatenção.
E chamamos pela jovem tremendamente irradiante e íntima.
Mas nada há, além de um nome inventado pelo nosso tempo e colocação, o nosso próprio mistério.
Fazemos um apelo aos retratos, cercamo-los de uma quente expectativa, e temos sobre eles uma teoria emocionante.
Contudo, é forçoso deixá-los: dormem daquele sono.
Estou rodeado por dezenas de cabeças assim — calmas e vazias.
Vou para os lugares do norte — é talvez um projecto.
Sim, tenho esse projecto.
No norte a neve é grande, e eu andarei sobre ela, possivelmente descalço.
Lá em cima, se me aplicar bastante, segundo uma regra minha interior que hei-de descobrir, ficarei com os pés queimados.
Quando voltar a ver as antigas memórias, terei os pés cobertos de cicatrizes.
Que pensarão de mim?
Que sou um mártir? um vagabundo a quem faltaram os sapatos? um homem a quem faltou a prudência?
Deixemos-lhes os alvitres, os sensos morais.
Temos de pensar nos nossos pés.
Não para lamentos.
Porque, evidentemente, quem possui pés marcados não pode deixar de ser suspeito.
Quero eu dizer: se a neve e o gelo os marcaram, como fogo, é porque o coração tinha o seu crime, a sua regra violenta.
Escutem vocês.
Não temos família, nem amor, nem paz, nem casa, nem país, nem fraternidade, nem.
Realmente nem isso.
Nem projecto.
Quando eu disse muito baixo: mãe.
Sabem vocês o que aconteceu?
Veio aquela mulher muito velha, sonâmbula, que sorria estupidamente, que deveria estar a dormir.
Aposto em que era oca, igual ao ovo de avestruz que havia na horrível sala de jantar.
Bem sei: a minha versão era outra.
Uma mulher silenciosa, sentada junto a uma janela com cortinas brancas onde batia o vento marinho.
A criatura gentil e atenta, cuja melancolia era uma espécie de inteligência subterrânea que todas as coisas, e uma memória oculta, ajudavam no silêncio.
Mas a velha oca sorria, e a inteligência dela era apenas andar pela casa.
Uma galinha.
Vejo-a a esgravatar a terra, a morrer da sua peste, com a cabeça dormente sobre as curtas asas.
O que eu digo é bastante simples: a gente precisa de encontrar o seu verdadeiro lugar para morrer.
Aí é que se vive.
Não é junto de fotografias amarelas, de mães empestadas, de raparigas esplêndidas guardando com ignorância o seu cancro fatal.
Onde é bom para morrer, não há perigo.
Está limpo, é definitivo.
Oh, deixemo-nos de invenções menores.
Já somos puros e responsáveis, depois de tudo o que sucedeu: as pessoas que dormem embrulhadas em volta da sua tenebrosa doença, os retratos oblíquos, inclinando o seu suspeito sorriso e a sua seriedade gramatical.
Merda para os espantalhos.
Estamos sós, libertos dos bons sentimentos, das pequenas grandezas de alma, das vozes solícitas.
Fomos ao norte ou, se não fomos, havemos de ir — isso é o menos.
E aquela dos pés descalços sobre a neve, o diabo tece-as.
Pode bem vir a ser uma verdade.
Não seria assim uma coisa como que heróica, hein?
Uma espécie de santidade, martírio, ou crime exemplar?
Às vezes penso mesmo que é necessário assassinar alguém, ter as mãos cobertas de sangue.
Não que isto possa vir a ser o começo de uma ressurreiçãozinha, mas apenas porque há a necessidade de algo bastante concreto.
Temos contas a liquidar, e o sangue continua a ser, vindo da simbologia antiga, um sinal indiscutível.
Não melhoraria coisa alguma, não senhores.
Mas — enfim — havíamos actuado, tínhamos esse acto como reserva de consciência.
Afinal a mãe estava morta, e a avó que empestava a casa estava morta, e morta estava aquela extraordinária rapariga de ancas altas, a que andava pela obscuridade, essa tinha a sua doença repugnante e estava morta.
Chegámos aqui a um ponto importante.
A minha teoria é a seguinte.
Matá-los não era possível, pois eles estavam todos mortos, sorrindo nos corredores, nas janelas, nos retratos.
Mas nós devíamo-nos sentir os executores.
A sua justa morte, posterior, deveria ter sido obra nossa, milagre, violência nossa.
E então partíamos para a neve, com uma alegria feroz, uma essência pura — libertos por nossas próprias mãos.
Que esplêndidos pés marcados.
Mas afinal sentamo-nos a uma mesa e escrevemos as palavras ambíguas para que haverá todos os sentidos, aqueles mesmo por onde escapará a pequena parte de nobreza que era a nossa intenção.
E agora, para mais, assaltam-me imagens de uma beleza terrível e degradante para o que tenho pela minha alta vocação: o esquecimento.
Sabem o que vejo?
Mãos quentes e seguras que fazem desenhos sobre a mesa, no ar, na conversa.
Irmãs, primas, mulheres que atravessam um frio e nítido pomar de laranjeiras anãs, o cabelo húmido, o rosto grande aberto, o olhar muito vivo.
Enquanto sufoco com tanta beleza, eu, criança comovida, pequeno monstro sensível entregue às ciladas da falsa memória.
Na realidade, eu deveria estar no deserto, de pé, porque tudo é impiedoso, e eu sou impiedoso.
É preciso deitar fogo às ervas, as ervas altas, estar sobre areia, sobre cal.
Há uma pureza, decerto.
E não será feita com detritos, emoções fáceis, figuras repetindo gestos a que nos aplicámos a dar uma virtude — e que constituem depois o exemplo do tempo, do lugar, do acto.
A história que eu conto é esta.
Houve um engano nos nossos pensamentos, e do engano fizemos a alegria e a tristeza, chegámos a fazer a nossa força.
A pureza não deve ser a ingenuidade e a segurança com que a podemos ter.
Por isso falo de uma viagem onde é possível perder o próprio nome, e morrer disso.
E então viver.
Não dormindo, como as nossas bestas respeitáveis.
Viver — digo eu.
E que o nosso afastamento, o silêncio vibrante, a grande morte pensada e amada nas profundidades — fossem bastante para vergar as bestas todas, empurrá-las pelo seu próprio sono abaixo, afundá-las até ao inferno.
Gostaria de cantar quando o ar estivesse completamente límpido.
Mas não passo de um fraco — nem sequer matei os prestigiosos monstros do meu tempo: todas essas criaturas que me entregam uma velhice pecaminosa, essas obscenas figuras de retórica que são as descobertas da intimidade.
Todos os dias os mortos ressuscitam e bebem o meu sangue de homem, e eu sorrio-lhes, cheio de gratidão e amor.
Grande filho de puta.
O tempo age em nossas vidas, como um guardião, um protetor invisível, um acolhedor, um corretor de nossas atitudes, um memorizador das nossas ações que nos tornam pessoas que com o passar dos anos, começa sentir saudades de tudo aquilo que a sua mente ainda armazena e traz a tona de um recordar. Por mais distante que tenha sido o ocorrido, a mente sempre armazena, as melhores lembranças das nossas vidas.

Assim, sentado num banco da solidão e bebendo as gotas do meu passado insistente em me fazer recordar, fiz uma mente regresso e comecei viajar nessas andanças do meu cérebro que ainda guarda momentos que forçosamente tenta extrair e exteriorizar, para que eu possa transcrever cada partícula de tempo em que vou recordando.

Saudade bate, coração pulsa, alma sente, e a vida me cobra um proceder como se criança eu ainda fosse, ao ver tantas crianças ainda por mim passar, com a leveza desses infanto recordar que hoje mima o meu ser de gente grande almejando ser “minino de calças curtas” a perambular pela vila com os olhares juvenis onde era proibido não ser, não fazer e não se sentir feliz.

Talvez, você nunca em sua vida, tenha ouvido falar da Serra. Da Serra do Aporá, que fica perto de Cajueiro, (Acajutiba) de Barracão, (Rio Real), Mocambo ou Novolinda, (Olindina) da Natuba (Nova Soure) de Sobrado (Aporá) De Dendê, Bomfim, Vila Rica (Crisopolis). Não! Jamais eu poderia condena-lo por isso, afinal, nossos topônimos talvez estejam muito distantes dos teus. Mas saiba que foi por aqui, nessas imediações entre litorais e sertões que eu fui criado e tido como gente vivente para desbravar essas terras. Oriundo sou de outro local onde por lá deixei enterrado meu umbigo como uma identidade, um pertencimento e uma forma de me achar inserido nalgum canto desse imenso país. Talvez, isso nem implique mais em identificar-me lá onde meu umbigo um dia foi enterrado, pois foi daqui que comecei meu primeiro contato com o povo que passou ser meu povo, com a gente que passou a ser a minha gente, e que por este aceito fui e por isso identifico-me até com o seu modo de falar e de fazer a vida ter sentido nesse viver alucinado em busca dos sonhos que nunca se perdem pelo andar desse mundo tão complexo e cheio de descobertas, lembranças, prazeres duvidas, sonhos e até decepções. Na complexidade desse meu discurso em busca de mim mesmo, é que me apresento para que entendam que eu também tive quimeras que hoje as lembranças tangem o meu viver para esses mais remotos encantos da minha vida. Assim, passo a lhes convidar para conhecer um pouco dessa minha Serra, a Serra do Aporá que fica perto de todas as cidades acima citadas, para não ser redundante.

Por favor, queira por gentileza concentrar sua atenção em mais esta narrativa que lhes passo como uma reparação trazida nesse momento pelos deleites das minhas lembranças.

EITA, a idade chegou, o cansaço me veio e a fadiga me alcançou.

Sentado num banco de praça (perto de casa para não me afastar muito) vejo as crianças brincando numa gritaria exagerada como somente elas sabem e podem fazer. Sim, podem. Toda criança pode ter o direito de gritar, extravasar a meninice e ao seu modo ser feliz. Afinal, ser criança, é um curto tempo que passa ligeiro e em nós deixa saudades, ainda que vivamos 100 anos.

Avisto um dos meus netos correndo com seus coleguinhas, e outro que passa na minha frente e feliz grita pra chamar minha atenção: OLHA VOVÔ. Todo orgulhoso em pedalar sua bicicleta.

Meus olhos se enchem de saudades e numa fração de segundos, eu me lembro da bicicleta que papai comprou pra mim e da alegria que eu senti em poder dizer: Eu tenho a minha bicicleta que papai comprou pra mim.
Era pra ir pra escola, pra ir à venda comprar algo pra mamãe, pra dar um recado, pra chamar alguém para ajudar em casa e principalmente para fazer o que o meu neto está fazendo agora: PARA BRINCAR. Preencher o tempo de menino em meio a tantos gritos aproveitando aquela liberdade que só quem é (ou quem já foi) criança sabe o seu significado.

A vida passou, Itamira cresceu o açude que era imenso, diminuiu juntamente com o tanque grande. Quando a gente é criança tudo é grande. O pé da serra era imenso, a ladeira do João Luiz era enorme e atolava carros por lá quando chovia e os tanques transbordavam e as pessoas iam pescar e saiam carregando suas enfieiras de peixes.

Vou tentar Descrever um pouco do meu viver numa vila que me viu crescer, amparado nessa minha meninice ali vivida, mesmo sabendo que a mente, não vai obedecer alguns detalhes que o tempo apagou. Mas deixou alguns lampejos dessas lembranças onde agora passo a fazer a minha narrativa, ou o que sobrou de todo esse meu lembrar.

Existia a praça onde eu morava com minha família, seguindo reto chegávamos à casa de Manezinho e Dona Bemvina que era a mãe de Tinego. O comércio se dividia assim:
Tinha a pensão de Dona Amélia e de Dona Eduarda. A farmácia de Terezinha de Pasquinho, O bar de Manoel de Juca, o Departamento de Correios e Telégrafos (D.C.T) onde minha mãe trabalhava, tinha a loja Santos de Olímpio e o armazém de Guilherme Chaves, (ambos da cidade de Olindina). A loja de Jaldo Mendes (De Inhambupe) as padarias de Seu Zé Batista/Seu Enoque e também a de Noel, a venda de Raimundo do gás, o comércio de Zé do Ouro, a venda de tio Joel, a tenda do Sr. Timóteo, e lá na saída da rua a tenda de “Seu Lalu” (o 10º Prefeito do município) o bar de “Seu” Rozi, a venda de João da Pedra (Pai de Dezinho) a venda de “Seu” Zé da jaqueira (Eram dois irmãos do Retiro), o Bar de Cabo Mário, a cachaçaria de Durval (Pai de Herbert) de Inhambupe, que até hoje mantém o comércio. Na esquina (onde hoje é de João papa, era a venda de Clovis Mendes Vasconcelos). Por ali também tinha o bar de Antônio Vieira (TONHO DE ZÉ VIDA TORTA), a loja de tecidos do Sr. Godofredo Mendes de Souza (O quarto Prefeito), O Sobrado do Finado Mauricio e Dona Julia. No bar que era de Manoel de Juca (Que antes era de Otoniel) foi instalado o primeiro supermercado de Itamira, cujo proprietário era o Daniel (da cidade de Inhambupe).

O beco do mercado (Que por uma insanidade ou falta de conhecimento cultural de preservação de um patrimônio derrubaram para construir uma instalação da prefeitura) que dava acesso, e ainda dá a praça da igreja, onde do lado esquerdo tinha as vendas de Dedézinho do pé da serra e a marcenaria do “Seu” Zé Biita casado com D. Alice do tijuco. No fim da rua (a esquerda) existia uma casa que abrigava a cisterna.

Subindo, sentido a saída para Aporá que hoje se chama Av. Coronel José Simões de Brito (Que até hoje nem sei quem foi, mas carece de um estudo sobre a vida do Homem que empresta o seu nome para uma das principais vias da cidade).

Tinha o armazém do Seu Neném de Pequeno (irmão de Pasquinho) a venda de João de Francisquinha, depois a casa de Paraguai, o comércio do Senhor Cosmo ai vinha à farmácia de Terezinha, - onde fora ali a recepção do casamento de Milton e Esmeralda- A casa de Nezinho de prazer e D. Amélia (Os pais de Zé Renato, ou Zé Tiliba), depois a do Senhor Agenor Mendes de Oliveira 8º Prefeito, (contando com a curta Gestão de Zezito Correia). Seguindo reto iriamos encontrar a casa de Chica Dantas, Tio Lucas, quase em frente à casa de Mané de Zé Santo e Dona Ana (Mãe de Mariazinha, Tais e Louro Som) e seguindo pelo lado esquerdo, a casa de Seu Zuminho e Dona Zefa. (RAPAZINHO DIREITO) era assim que ele chamava meu irmão Raimundo e eu.

E lá adiante a casa de Pedro Bueiro e Dona Martinha, e em seguida a casa e a tenda de ”Seu” Vicente Ferreira, Sinó e toda família, que eu os tinha E TENHO como parte de minha família também, em face de aproximação que tínhamos com eles e com os meninos.

A venda de Ulisses de Cosmo. E do lado esquerdo a casa de Dona Elisa e do lado direito, Dobrava-se ali na esquina que dava acesso a casa do Senhor Pionório, na tão conhecida Rua da Delegacia. Onde vi muitas perversidades acontecer naquela época, com os presos que eram levados para lá. (Por falar nisso, vale ressaltar os nomes dos soldados: Etevaldo, - que vivia maritalmente com Dona Santinha irmã de Tio Sé, e outro por nome Antônio Soldado, que me parece que era da região de Serrinha).
Seguindo até o final, dava acesso ao Caetano (Terras do “Seu” Suta, que posteriormente passa pertencer ao “Seu” Zelito de Celi) que seguindo ia sair lá adiante já perto onde hoje é a casa dos herdeiros do nosso querido ZÉ RIACHÃO – O BRASILEIRO. Dali, seguindo para a direita na bifurcação, ia pro campo de bola (O carecão), mas antes tinha a casa de Seu Mané Felix, passava em frente da casa do “Seu” ZE LAPADA, lá adiante era a casa de “Seu” Chiquinho curador, a casa de Tonho curador, Freboni, Manelinho, Geronisso, Badinho e a esquerda descia pro açude, passava pela casa do “Seu” Marciano, mais adiante, a casa de Domingo futuro, Pedro Cambueiro, “Seu” Bispo até chegar às aguadas.

Na saída da rua (Sentido Inhambupe) primeiro tinha o acesso ao cansa bode (e ainda tem que seguindo por ali vai pra várzea, chapada e por ai afora).

Seguindo pela direita: A casa de Zé Pedro de Negune, Nezinho da Várzea, Dona Vina, (Alguns ranchos de feira) D. Zélia e Mané Dantas. A rua acabava ali.

Mais a esquerda era a saída principal onde hoje é o posto medico (Ao lado da casa de Seu Nestor e Dona Anizia, Mãe de Neuman, Neumize e Neurandi, e mais adiante era o matadouro, onde nas imediações era a casa de Dona Julia (Mãe de Zé de Mauricio, Salvador e Aurélio). Foi ali na casa de Dona Julia, que eu vi chegar o caixão do Sr, Antônio de Mariana, que era proprietário de um caminhão e muito amigo do meu pai, o Sr. Otácilio (PARAIBA).

Lá em cima na saída pelo lado direito era a casa de Chico Surdo e em seguida A malhada de Dona Agda, a casa de Zé Vida Torta e D.Salvelina, E quase em frente, era(E AINDA É) a casa de Totonho e Dona Coité, vizinho de Fraterno e Honorata. Seguindo ainda pelo lado esquerdo, a casa de Dona Mariquinha, João de Pedro a casa da avó de Tizío (Esqueci o nome dela, que era também avó de um sujeito chamado Marivaldo) e o prédio escolar.

Existiam ali quatro entradas para o carrapato: A primeira onde hoje é a casa de Boquinha, a segunda a casa do Finado Teodoro Mendes a terceira após o Prédio, (Vizinho a Zé Caiçara e Dona Moça) em frente à matança de Zé Maia (Pai de Zé Pretinho) a quarta era depois da casa de Seu Zé Pereira, que após a entrada era a casa de Seu Pedrinho e em frente à casa de Seu Do Reis. Passando dessa casa vinha a morada de Bento e Zita (Que eram os pais de Teobaldo, Miudinho, Carminha e tinha uma outra que não recordo o nome). Logo em frente - Colado com seu Pedrinho - morava a finada Caetana e depois era a casa de Zé Maia e Dona Davina, e em seguida era a casa de D.Odete (que era vizinha de Januária de Vitoriano, pai de Marão) e quase em frente morava Pedro Sergipano com a professora Nenzinha e família.

Ao lado dele a roça de Manoel Dantas que ficava em frente à casa de Seu Lucas e Dona Nita, e em frente morava Seu Juca e Dona Zulmira, e ao lado deste, Seu Luiz e Dona Maria (que eram os pais de Dadá, Zé e Alice). A frente morava Dona Nicácia seus filhos e sua filha Izilda.

Ali no sitio residiam Jeronilson, Petu, Rui que foi casado com Amália, Antônio de Apolônio, o Pai de SEU NÉ, Ricardo, D.Raquel (Mãe de Zé) Seu Olímpio, Mané Coruja, Seu Davi (e sua grande família), os pais do finado Zelão, e Seu Amando e chegava às vendas, ali entrada da chapada.

Como não guardar na mente tantas lembranças que hoje mesmo estando grande ainda sinto-me pequeno demais, como se ainda coubesse o meu corpo no afago dessa terra que um dia me teve embalando em seus braços que eram tão meus, mas que o tempo (como um guardião, um protetor invisível, um acolhedor, um corretor de nossas atitudes, um memorizador das nossas ações que nos tornam pessoas que com o passar dos anos crescem) tirou-me de lá, mas nunca me afastou de fato daquele torrão que ainda AO MEU MODO, eu amo sem saber explicar como e nem por que. E, num suspiro de saudades eu afirmo em dizer que eu, sim, que eu sou da Serra, da mesma Serra do Aporá, da então Itamira que um dia hei de ver emancipada, onde hoje pra ela, dedico essas minhas memórias.

Fim... Mas sem nunca terminar, pois amor, nunca termina, aquilo que um dia a vida começou.

Carlos Silva - poeta cantador, Mestre de culturas populares e Itamirense de todo meu coração inspirado nas saudades tão minhas que divido com todos aqueles que entendem o que quero de fato dizer.

Com gratidão e muito afeto, Muito obrigado.

Contatos (75) 99838-5777
E-mail cscantador@gmail.com Instagran; Carlos_poetizado


Caminhando a passos lentos, voltando do trabalho muito mais tarde do que eu queria, senti a garganta arranhar, estava muito frio e eu parecia que adoeceria muito em breve. "Mais essa agora!" Pensei. Como se já não bastasse as pilhas de relatorios para revisar inadiavelmente, eu ficaria doente e dolorido. Meus resfriados sempre eram fortes e me deixam muito mal.

As ruas da minha cidade são muito escuras e eu ando sempre a pé. Meu dinheiro é curto e eu tenho que sustentar a mim e ao meu filho, o Felipe. Felipe tem só cinco anos e sente muito a falta da mãe. Minha querida e amada Julia, que Deus a tenha.

Chegando perto de casa eu sempre vejo a luzinha da Tv ligada da janela, já passam das nove e meia da noite e Felipe sabe que já devia estar dormindo. A babá só fica até as oito então ele aproveita pra fazer suas travessuras quando ela sai. Sempre que ele ouve o barulho do velho portão de metal rangir eu vejo a luzinha da TV apagar, e como num passe de magica, quando eu entro em casa ele deita na cama e finge estar dormindo.

Menino travesso,o meu, mas eu prefiro que seja assim, pelo menos não é uma criança triste.

Esta noite em especial eu cheguei e o Felipe não fingiu dormir, ao invez disso ele desligou a TV e me esperou na porta. Parecia chateado.

- Papai! Eu fiquei com medo.

Ele abraçou minhas pernas com força e pareceu choramingar.

Meu coração estava partido, o que tinha feito meu garotinho levado chorar?

Eu acariciei seus cabelos escuros e me pareceram suados e oleosos. Afastei-o devagar e com delicadeza e me agachei para nivelar a altura.

-Do que você teve medo filho? Aconteceu alguma coisa?

Ele esfregou os olhinhos molhados e avermelhados de sono. Seus olhos eram verdes, iguais os da Julia, lembrava muito a mãe.

-A Bárbara, foi embora muito cedo, eu não gosto de ficar sozinho aqui.

Eu fiquei confuso, Bárbara era a babá, sempre foi muito confiável, e ela sempre me avisava quando tinha de sair antes do horário, não me lembrava dela ter dito nada a mim hoje.

-Como assim filho? A Bárbara sempre sai ás oito, quando a lua começa a aparecer lembra? E minutinhos depois o papai chega, só hoje que eu me atrasei um pouquinho.

-Sim Papai! Mas hoje ela saiu quando ainda tinha sol, fiquei muito tempo sozinho, você não chegava nunca mais, achei que você tivesse ido embora.

Felipinho desabou a chorar, e aquilo deixou meu coração em frangalhos, ao mesmo tempo que me deixou enfurecido. Como a Bárbara pode fazer isso sem avisar, deixar meu pequeno sozinho sem mais nem menos.A que horas ela saiu?

-Filho, calma, você já tomou banho?

-Não. Ela saiu sem me dar banho.

Ela sempre da banho no Felipe por volta das seis, antes de ele fazer a lição, jantar e ir pra cama, se ela saiu sem dar banho nele, significava que ela havia saído no meio da tarde. Eu fiquei extremamente zangado. Respirei fundo, não podia transparecer minha fúria a uma criança.

-Vamos para o banheiro, papai vai te dar banho e aí a gente vai dormir, ta bom?

- Ta bom, mas eu posso dormir com você hoje pai? Só hoje!

Tinha um nó na minha garganta. Engoli meu choro.

-Pode sim meu anjo.

Dei um banho no Felipe, ele estava bem sujinho, talvez de tanto brincar, ele pareceu mais alegre naquela hora, fazia muito tempo que eu não dava banho nele e ele gargalhava fazendo espuma pra todo lado. Coloquei ele na cama e acho que não demorou nem cinco minutos para que ele pegasse no sono, o pobrezinho parecia exausto.

Deitei na cama ao lado dele, mas não podia dormir, não sem uma explicação, Levantei e sai do quarto silenciosamente, encostei a porta.

Fui até a cozinha e peguei meu celular. Liguei pra Bárbara. Ela atendeu ao terceiro toque.

-Alô.

-Alô, Bárbara, aqui é o Gregório.

-Ah, seu Gregório, oi.

-Bárbara, o Felipe me disse que você saiu mais cedo hoje, o que foi isso? Aconteceu alguma coisa? Não me lembro de você ter dito nada.

-Não. É que na verdade eu não vou mais.

-Como assim não vem mais? E o nosso contrato? O que aconteceu?

-Eu não posso é que .... Não consigo, não da.

- Como assim? Por que não?

-Essas pessoas estranhas paradas aí na frente da casa o dia todo, é perturbador, eu não posso com isso, to muito apavorada e .... Não vou, não mesmo.

Eu não conseguia processar o que ela estava falando, não estava entendendo bulhufas.

- Que pessoas, menina? Não tem ninguem aqui, do que você ta falando?

- Desculpa, seu Gregório, me desculpa mesmo, manda o Beijo pro Felipinho, fala que eu adoro ele tá?

- O que? Não, espera, como assim?

Ela desligou.

Que porra Bárbara!

Joguei o celular no chão. Estava desamparado. E agora o que eu iria fazer? Ela esteve cuidando do Felipinho por dois anos, como eu iria achar uma substituta tão em cima da hora?

Sentei na cadeira e dei uma respirada. Pequei meu notebook e mandei um e-mail pro meu chefe, não poderia ir trabalhar no dia seguinte, ficaria cuidando do meu filho.

As palavras dela não me saiam da cabeça. De que pessoas ela estava falando?

Levantei e fui até a janela da cozinha, abri só uma pequena fenda da cortina, do outro lado da rua quatro figuras encapuzadas estavam paradas olhando pra casa, quando me perceberam espiar, acenaram pra mim.


Acordei meio suado, parecia já ser tarde, só me lembrava de ter ido me deitar ao lado do meu filho, eu estava apavorado e me perguntando quem seriam aquelas pessoas estranhas em frente à minha casa. Esfreguei os olhos tentando despertar, rolei para o lado e a cama meio bagunçada estava vazia. O Felipe não estava ali.

Levantei de supetão, estava tremendo, não sei se de frio ou de nervoso. Talvez fosse os dois. Procurei no banheiro, nada. Chamei meu filho e não houve resposta.

Estava atordoado, meu deus, meu filho. Fui correndo até a varanda dos fundos e vi o Bolinha, nosso cachorro comendo um pedaço enorme de carne. Estranhei aquilo, eu não havia dado nada a ele, tinha acabado de acordar. Não dei muita importância, precisava achar meu filho.

Corri para a sala, estava vazia, da forma que estava na noite anterior. Estava ofegante, parecia que eu ia desmaiar quando ouvi um barulho de talher na cozinha.

Corri até lá desesperado, entrei pela porta escorregando no piso por causa das meias, e vi meu filho, sentado à mesa, que estava farta, cheia de frutas e doces caseiros. Foi um alivio enorme, tão grande que minhas pernas amoleceram, soltei todo o ar dos pulmões.

-Filho! Não ouviu o papai te chamar?

Ele com toda a sua tranquilidade de criança, balançando as perninhas na cadeira terminou de mastigar uma colherada de cereal com fruta.

-Não ouvi papai, desculpe.

Eu não sabia o que dizer, estava ficando paranoico, dei um beijo na testa dele e fui pegar uma xícara de café, estava aliviado. Enchi uma xícara bem cheia de café e me escorei no balcão, fui dar um gole e me virei para mesa e só então me dei conta. Quem havia preparado aquilo tudo?

Meus olhos arregalaram, meu coração palpitou, me senti tremer novamente, coloquei de vagar a xícara em cima do bancão e vagarosamente me aproximei do Felipe, meu corpo em choque tentando entender, olhei para ele e perguntei pausadamente, engolindo em seco.

-Felipe.

-hum?

-Quem preparou isso tudo pra você?

Ele me olhou confuso.

-Você?

Eu esfreguei a mão na testa, não estava conseguindo conter meu nervosismo.

-Não filho, o pai tava dormindo.

Ele fez uma expressão pensativa, entendo que pra ele deveria estar ainda mais difícil de compreender.

-humm, a Bárbara?

Ele estava tentando adivinhar.

-Não querido, a Bárbara não veio hoje. Você viu alguém aqui hoje cedo? Quero dizer, fazendo alguma coisa?

-Não. Já tava aqui. Ah! Você deixou a porta aberta ontem pai. tava tudo frio aqui.

Eu senti tontura, parecia que eu ia enfartar. "não eu não deixei". Pensei. Me apoiei na mesa para me manter de pé.

-Sim, claro, me esqueci, Obrigado.

Fui até a porta da frente, andando meio duro, parecia um robô inexpressivo, em choque. Olhei para fora com medo do que eu veria, mas para minha surpresa não havia nada estranho, aquelas pessoas da noite passada não estavam mais lá, olhei para a rua cima a baixo, procurando nem eu sei o que, e não vi absolutamente nada fora do normal. Quando já estava quase fechando a porta vi no chão um papel meio amassado, resolvi desamassar para ver o que tinha ali, e para meu espanto, desenhado à lápis havia um símbolo estranho, um pentágono com uma estrela de seis pontas no meio, e quatro assustadores olhos desenhados no centro da estrela, havia também outro pedaço de papel colado no canto da folha com o carimbo de um ponto de interrogação.

O que essas aberrações estavam querendo me dizer? Eu estava surtando, guardei o papel no bolso do pijama, dei mais uma olhada para fora e fechei a porta. Tranquei.


Coloquei um agasalho no Felipe e me aprontei para pegar o ônibus rumo a biblioteca municipal, eu vou scannear essa porcaria e fazer uma busca na internet para ver se eu acho alguma coisa que faça sentido, se eu tiver sorte pode ser que seja alguma piada de mal gosto que se tornou viral.

Estávamos aguardando no ponto quando eu vejo de longe um golzinho velho vermelho se aproximando e parando bem perto de nós, a janela do carro se abriu devagar e fazendo um rangido estranho.

-Falaa Greg!

Era o Barba, meu amigo do trabalho, o apelido dele é esse por causa da barba comprida que ele mantem e cuida igual cabelo de mulher. A maioria do pessoal até já esqueceu o nome dele de verdade, eu mesmo que o conheço desde que entramos juntos na empresa me esqueço as vezes, O nome dele é Jurandir, então Barba, pega mais fácil.

-Eae Barba!-Respondi.

Ele olhou para o Felipe, que estava distraído.

-Oi Felipinho, como você ta campeão?

O Felipe adora o Barba, ao perceber que era ele ficou todo agitado.

-Oi Tio Barba! Eu cresci um tanto assim - Ele fez um sinal exagerado de tamanho com os braços.-

-Tudo isso rapaz? desse jeito vai bater a cabeça nas nuvens eim.

-Uau! Eu acho que eu vou sim, dai eu vou comer um pedaço delas, porque elas são de algodão doce, só que branco.

Levei a mão na testa, que imaginação era aquela, rimos muito.

-Mas eai Senhor Gregório, pra onde você ta indo? Fiquei sabendo do que a Barbara fez, ela não é disso cara, que foda.

-Eu to indo na biblioteca agora. Pois é cara, sacanagem, acontece que ...

-Não, não, me conta no caminho, vou dar uma carona pra vocês entra aí.

Ele jogou umas tralhas pro canto do banco de trás e eu acomodei o Felipe no assento. No caminho até a biblioteca contei tudo o que tinha acontecido pro Barba, ele não falou nada até eu terminar, só balançava a cabeça.

-Uff. - ele soltou o ar como se fosse algo pesado.- Mano, que porra de história bizarra que tu acabou de me contar. Verídico mesmo?

-É claro que é caramba! Da onde que eu ia inventar um troço desse? Você me conhece, sou quadradão demais pra isso de inventar coisa.

-Mas assim, os caras, deixaram o desenho e PUFF desapareceram no ar?

-O que? Não! -Eu estava frustrado, ela não estava me levando a sério-. Eles só deixaram lá e foram embora, seja lá pra onde gente estranha mora.

-Eu vou te ajudar a resolver essa fita aí.

-Não precisa, deve ser bobeira.

-E daí se for bobeira? Agora eu quero saber, sou doido nesse negócio de teoria da conspiração, meu sonho investigar essas paradas.

-Cara, não é teoria da conspiração.

-Não corta o meu barato, falou? Pra mim é sim, esses negócios existem em toda parte irmão, ou você acha que o homem foi mesmo pra lua? Não se iluda!

-Ta bom. -Ri-. Mas eai, porque você não foi trabalhar hoje?

-Peguei atestado, doido.

-Você ta doente?

-To, doente daquele monte de relatório, deus me livre.

-Não acredito, O Marcelo vai ter que fazer tudo sozinho?

-Vai. - Ele me deu um olhar maléfico e demos uma gargalhada juntos.- Aquele mala vive puxando o saco do Afonso, ele que se vire, não é o senhor prestativo, senso de dono da empresa? Se vi-re.

-Bem feito.

Chegamos em nosso destino, eu já mais descontraído por causa da conversa com o Barba. A biblioteca municipal é um lugar enorme, deve ter sido construído lá por mil oitocentos e pouco, porque tem um aspecto bem antigo. Estacionamos o carro e subimos a longa escadaria até a porta. Chegando lá me virei pro meu filho.

-Filho, o papai vi ter que procurar umas coisas e pode ser que demore um pouquinho, lá dentro tem uma sala de joguinhos e uma tia bem simpática que vai cuidar de você, você promete que vai se comportar?

Ele balançou a cabeça em sinal de sim e saiu correndo para a entrada da sala de jogos.

Me aproximei da moça da recepção. Era uma mulher bonita, cerca de 30 anos, morena.

-Quanto tá a hora da salinha? - Perguntei pra ela-.

-São 20 reais, senhor.

Meu bolso doeu, aqueles homens misteriosos estavam me custando os olhos da cara.

-Me ve 1 hora então, por favor.

-Nome?

-Gregório Aparecido Boulevard.

-Nome da criança?

-Felipe de Alcântara Boulevard.

-Vamos anotar o telefone do senhor para contato.

Ela retirou uma fitinha com o nome do meu filho, amarrou no pulso dele e girou a catraca, Felipe saiu correndo feito um doido e sumiu no meio das crianças e dos brinquedos.

Não pude conter minha preocupação, não gostava de deixa-lo sozinho assim, mas desta vez foi preciso. Parece que transpareci demais, o Barba percebeu.

-Relaxa, a recepcionista bonitona vai cuidar dele.

Eu ri.

-Deixa só a Cristina ouvir isso.

-Deus o livre, ela arranca meu couro.

Adentramos a imensa biblioteca e fomos confiantes rumo a nossa caçada ao desconhecido.

Digitalizei o pedaço de papel e fiz uma busca rápida na internet. Nada.

Olhei para o Barba que assim como eu se sentiu frustrado. Resolvi fazer uma busca em livros de papel. Imprimi uma cópia do símbolo para o barba e pedi para ele seguir pelo lado esquerdo da biblioteca e procurar por livros de simbologia ou qualquer coisa que remetesse ainda que vagamente aquilo. Eu segui pelo lado direito.

Voltamos minutos depois, ambos com os braços cheios de livros pesados, colocamos sobre a bancada.

Depois de quase uma hora folheando páginas e mais páginas e sem sucesso algum, me senti exausto, estava quase na hora do Felipe sair da salinha de jogos e eu decidi fazer uma última busca desesperada. Sai entremeio as imensas prateleiras lendo os títulos nas bordas dos livros o mais rápido quanto podia, quando um deles em especial chamou minha atenção, era um livro velho de capa de couro cujo título era "Os lugares mais misteriosos do Brasil e suas histórias".

Me aproximei dele, e retirei da prateleira pela borda, analisei a capa em busca de algo que indicasse se aquilo tinha alguma relação ainda que mínima com meu símbolo misterioso, como não encontrei nada concreto olhei novamente para prateleira na intenção de colocá-lo no lugar, mas o que vi, me fez tremer os ossos. Do outro lado, no espaço vazio que o livro deixara havia um homem parado, cujo o olho estava posicionado perfeitamente na brecha, um homem de pele escura e olhos verdes como folha.

Eu travei, não sabia mais falar, gritar nem me mover, com muito custo consegui chamar o Barba que estava apenas a alguns passos de mim.

Ele parou ao meu lado confuso e olhou para prateleira, ao perceber aquele homem ali, ele entendeu o motivo do meu pavor. Barba sempre foi mais destemido que eu, e resolveu enfrentar a figura que viamos.

-Ei! Ei cara, o que você ta querendo, meu irmão?

O homem moveu-se saiu do nosso campo de visão, mas ouvimos sua voz grave e calma quando ele disse do outro lado:

-Aquele que com aplicação procura, sempre acha.

Barba puxou meu braço, me tirando do meu estado de choque.

-Vamos Greg! Vamos caramba. Vamos pegar esse cara.

Caminhamos a passos rápidos até o fim do corredor para dar a volta e nos encontrarmos com nosso colega misterioso, mas quando dobramos a esquina não encontramos nada incomum. Do outro lado só havia um grupo de estudantes de cerca de vinte anos sentados em volta de uma grande mesa.

Barba se aproximou de um deles e questionou:

-Desculpa interromper, pessoal, mas vocês viram um cara grandão, pele escura, olhos verdes por aqui?

O garoto olhou para os colegas como quem refazia a pergunta a todos e como ninguém se manifestou, respondeu:

-Foi mal, não prestamos atenção não.

Barba deu dois tapinhas no ombro do rapaz como quem diz um obrigado silencioso.

Nos afastamos andando lentamente, confusos e decepcionados. Peguei o Felipe na saída da salinha e só então me dei conta que ainda estava com o livro na mão. Dei meia volta, na intenção de retornar à prateleira para devolve-lo quando ouvi um grito e um alarme soou. No alto falante um rapaz repetia freneticamente. "incêndio na sessão 7, incêndio na sessão 7. Repito. Isso não é um teste, incêndio na sessão 7. Todos os leitores e funcionários favor dirijam-se para a saída mais próxima. Repito(...)"

Coloquei o livro dentro do meu casaco, pequei meu filho no colo e fomos até a saída principal. Atrás de nós um caos de pessoas saindo apressadas e desnorteadas.

Em silencio andamos até o estacionamento e entramos no carro.

Barba suspirou forte, e soltou um palavrão em tom animado e incrédulo.

-Que merda foi essa meu amigo? Caraaaaalho, que isso? Mano, sessão sete não era a que a gente estava? Caraaaalho, isso foi insano.

Eu estava com o olhar fixo a minha frente, era muito para processar, estava nervoso.

-Barba, e-eu roubei um livro da biblioteca municipal!

-O que

-E-eu nunca roubei nada na vida, nem bala, uma vez a moça me deu um real a mais no supermercado e eu devolvi. Eu roubei um livro da caralha da biblioteca municipal!

-Você ta fumado Gregório? Me atualiza aí que eu não to entendendo porcaria nenhuma do que você ta falando.

Abri o casaco, retirei o livro de dentro dele e apontei para o Barba. Estava eufórico.

O Barba olhou pra ele, processou por alguns segundos. Soltou uma gargalhada e ligou o carro.

-Ora, ora, parece que temos um grande ladrão entre nós. Próxima parada, Banco Central.

-Cala sua boca!- Ri.

O transito naquela área estava péssimo por conta do fuzuê do incêndio. Caminhões de bombeiro pra todo lado, curiosos dirigindo devagar e policiais isolando a área. Pedi pro barba ligar o rádio do carro pra gente saber o que os repórteres estavam falando sobre o acontecido.

Em várias estações de rádio, ouvimos notícias de que o incêndio fora criminoso, estavam analisando as câmeras de segurança para identificar o culpado. Chamaram o ato de terrorismo.

Naquele momento estávamos tensos. Aquilo tinha tomado proporções muito maiores do que jamais pudemos imaginar. Não eram apenas caras estranhos querendo fazer uma pegadinha de mal gosto, era algo muito sério, e o pior de tudo é que eu estava envolvido.

-Mano. -Eu disse tentando não parecer nervoso-. O que eu vou fazer agora?

Barba me olhou por uns instantes.

-Você? Você nada. NÓS vamos dar um jeito nesses caras. Vamos na polícia, talvez eles nos ajudem em algo.

Me exaltei.

-Policia? Você ta locão? Eu não posso ir na polícia! E-eu, eu roubei a merda de um livro!

-Ta bom, ta bom! Calma! Vamos resolver nós dois então. Eu e você. Sem polícia.

-Melhor assim.- Esfreguei as mãos no rosto tentando aliviar a tensão e pensar lucidamente-. Mas o que nós dois contadores de uma empresa furreca podemos fazer? Estamos fu...- Lembrei que meu filho de 5 anos de idade estava no banco de trás ouvindo todos aqueles palavrões. Me senti um péssimo pai.- Estamos lascados!


Barba me deixou na porta de casa, tudo parecia estranho ali, segurando a mãozinha gelada do meu filho tudo que eu conseguia sentir era medo. Eu havia passado o dia todo correndo atrás de mistérios e me esqueci completamente que, apesar das minhas horríveis aventuras eu ainda era um pobretão que por acaso trabalharia na manhã seguinte e não tinha nenhuma babá.

Barba já estava saindo quando pedi para que esperasse um pouco e abaixasse os vidros. Precisava fazer um pedido a ele:

-Mano, tem como você me arrumar um desses seus atestados aí? Ainda to sem babá cara.

Barba fez uma expressão malandra.

-É claro que eu consigo, Brother! Peguei um de 7 dias pra mim. Te arranjo um igual, até você acertar essas paradas suas aí com os iluminatti.

Não acreditava que tinha escutado aquilo. Barba era mesmo muito doidão. Ri muito.

-Sim claro! E com os Maçons também.

Barba riu, mas depois fez uma expressão pensativa.

-Mano! Será que eles são Maçons?!

Não podia acreditar naquilo. Bati a mão na testa.

-Vai pra casa, Barba.

Ele arrancou com o carro em alta velocidade e saiu fazendo uma barulheira pelo bairro todo.

Aquele velho golzinho deve estar todo ferrado com as loucuras que o Barba apronta com ele. O que se pode fazer? O cara vive intensamente. Eu, por outro lado, não passo de um pamonha.

Destranquei a porta e logo que ela abril Felipe saiu correndo pra dentro, imaginei o quão cansado das aventuras de hoje ele deveria estar, correu pra geladeira e pegou um pedaço enorme de chocolate que estava lá esquecido. Pensei em repreende-lo por comer doces àquela hora, mas não o fiz, só desta fez não faria mal algum.

Comecei a dar uma organizada na casa, quando fui procurar o Felipe para organizar os brinquedos da sala o encontrei jogado na minha cama dormindo ainda com o chocolate lhe lambuzando as mãozinhas. O cobri e voltei aos meus afazeres domésticos.

Pensei em abandonar toda aquela loucura, aqueles homens de capuz e o episódio todo da biblioteca, não era nenhum agente secreto para ficar resolvendo mistérios, mas era um pai que precisava tomar conta de seu filho pequeno. Decidi que no dia seguinte devolveria o livro à biblioteca e diria que na correria o levei por engano e se acaso aqueles homens aparecessem novamente eu chamaria a polícia. Era o mais sensato a se fazer.

Estava perdido em meus pensamentos quando ouvi uma batida na porta, dei um pulo do susto que levei, não estava esperando ninguém, provavelmente o Barba havia esquecido algo e voltou para dizer.

Abri a porta calmamente, mas não foi o Barba que vi, na verdade era uma figura completamente diferente, uma moça loira, não mais que quarenta anos, trajando um vestido fino vermelho, parecia uma celebridade. O único pensamento que me passava pela cabeça era o que um ser tão deslumbrante fazia à minha porta no subúrbio do mundo. Quase não consegui dizer nada.

-Senhor Boulevard? -Ela perguntou com um sotaque russo-.

Balancei a cabeça como que para desfazer minha cara de bocó.

-Eu mesmo, pois não?

Ela me entregou um envelope igualmente vermelho com meu nome escrito em letra cursiva.

-Compareça neste endereço hoje ás 20:00 horas.

Não entendi porcaria nenhuma, percebi naquele momento que de uns dias para ali eu não entendia nada de porcaria nenhuma. Tentei parecer educado.

-Perdão Senhorita, do que se trata?

Ela não tinha expressão alguma.

-Posso lhe dizer que não se trata de um convite.

Fiquei atônito e com um pouco de raiva também, eu agora seria forçado a ir a lugares.

Abri a boca para protestar, mas ela não permaneceu para me escutar, virou as costas e andou até um enorme carro preto que estava parado em meu portão, sentou no banco de trás e saiu sem nem se quer olhar novamente para mim.

Pronto! Pensei. Mais essa agora! Eu já tinha decido não entrar nessa loucura.

Passei a tarde tentando ignorar aquele envelope maldito, mas eu sofria de um mal incurável, a curiosidade.

Abri o envelope e dentro dele só havia um bilhete simples escrito à mão com um endereço. Naquele momento eu entendi o que me forçaria a ir até lá. Eu mesmo.

Liguei pro Barba e pedi pra ele cuidar do Felipe naquela noite. fucei o guarda roupas em busca do meu terno de casamento, me pareceu pela aparência da moça que eram pessoas poderosas com a qual iria lidar, então precisava me misturar. Ao retirar meu velho paletó empoeirado no cabide, meu coração apertou. "Que saudades Julia, meu amor. Se ao menos você estivesse aqui".

Afastei meus pensamentos tristonhos e me trajei a rigor.Escutei alguém bater à porta, era o Barba, finalmente.

Estava com um cigarro de seda na boca.

-Que porra é essa aí,Barba?

Ele soltou a fumaça e me respondeu com a voz rouca:

-Maconha.

-Eu sei que é maconha seu animal. Eu quero dizer.. cara tem uma criança aqui, você sabe né.

- Ou, eu sei ta. -Jogou o cigarro no chão e pisou em cima-. aí, pronto já joguei fora.

-ah, sim agora ta melhor mesmo. - Estava nervoso, passei a mão pela cabeça-. Deus, eu vou deixar o meu filho com um drogado!

- Cara não surta, relaxa, vai lá encontrar a loira gostosona.

-Eu não ... olha, só não deixa ele sair de casa ta? Ele se vira.

-Ta bom.

Eu não sabia que rumo aquilo estava tomando, peguei as chaves do carro do Barba emprestado e saí sem ter a mínima ideia do que me aguardava.


Dirigi uns vinte minutos pela rodovia, o endereço que a moça me deu era de uma zona rural, não sabia ao certo qual entrada lateral tomar, então parei no acostamento e peguei o bilhete novamente. No final da descrição do endereço estava descrito "Fazenda Escorpião". Dirigi mais uns quinhentos metros e encontrei a entrada com esse nome.

Parado ali na entrada de uma longa estrada de terra eu refleti se eu realmente estava fazendo uma boa escolha, e se me fizessem algum mal, como ficaria meu filho? Ele já não tinha mais a mãe e por conta de uma besteira perderia o pai também?

Pensei em dar meia volta e acabar com aquilo, mas antes que eu pudesse tomar qualquer atitude alguém bateu no vidro da janela. Quase morri de susto, do lado de fora um homem alto, trajado de segurança, usando terno e aqueles comunicadores de ouvido, pedia para que abrisse a janela:

-Boa Noite senhor. Preciso dos seus documentos de identidade e bilhete de convocação.

Eu ainda estava me recuperando do susto, não sabia como lidar com aquilo, com as mãos tremulas e ansioso abri o porta-luvas e entreguei o que ele me pediu. Minha testa suava, eu estava realmente nervoso.

Ele deu uma olhada, falou alguma coisa no comunicador em uma língua que eu não consegui compreender e me devolveu a documentação.

-Siga em frente por mais cem metros, há uma vaga no estacionamento reservada para o senhor após o portão principal. Tenha uma boa noite.

Acenei com a cabeça para identificar que tinha entendido.

-Obrigado.

Era isso, a partir dali não tinha mais volta, se alguma coisa parecesse fugir do controle eu planejava sair de lá o mais rápido possível, dirigi mais um pouco a frente quando avistei um enorme portão branco perolado, era magnifico, digno da realeza.

Ao ultrapassar o portão havia uma vaga logo a frente, no meio de vários carrões de luxo com o meu sobrenome escrito em uma placa. Estacionei o golzinho, que parecia tímido e ofuscado em meio a tantas maquinas milionárias.

Subi uma pequena escadaria de mármore e parei frente a uma enorme porta branca. Toquei a campainha.

Segundo depois a porta se abriu, e lá estava novamente a minha frente aquela mulher deslumbrante, trajando um vestido de veludo preto, igualmente charmosa e fina.

-Por favor entre, estávamos te aguardando. Madame Nikole Ivanov, ao seu dispor.

Entrei meio desconfiado a casa mais parecia um palácio, escadarias enormes de mármore se elevavam em espiral até um segundo piso com pequenas salinhas como em um teatro.

Entramos em uma enorme sala redonda com várias cadeiras organizadas em um semicírculo, contei pelo menos umas vinte, mas sei que haviam mais. Sentados uma em cada cadeira estavam pessoas poderosas, vi alguns vereadores a até mesmo o prefeito em uma delas, o restante deveria ser empresários ou celebridades, não sabia dizer, só conseguia ver a riqueza e o poder em suas faces pomposas.

No meio deles havia apenas uma cadeira vazia, imaginei que seria a minha então tomei-a e me sentei. Ainda estava nervoso com aquela situação, minhas mãos me entregavam e eu batia os dedos no apoio ansiosamente.

Minutos após a minha chegada, Madame Ivanov, que havia se retirado, voltou a sala empurrando uma cadeira de rodas com um senhor muito idoso sentado nela. Colocou a cadeira o centro da sala, para que todos nós o víssemos. Apesar da idade avançada o senhor estava finamente trajado, e tossia em intervalos muito pequenos.

Ivanov parou ao seu lado e começou a discursar:

-Sejam bem-vindos a nossa trigésima sessão de sucessão. Como muitos de vocês já sabem, meu pai, Dom Dimitri Ivanov, está muito doente. Após a sua partida, eu, tomarei o seu lugar como suprema mestre da fraternidade brasileira.

Fiquei confuso e agitado, aquilo era o que? Algum tipo de seita? Estava perdido, mal sabia como me comportar. Ela continuou:

-No entanto, para tomar o meu lugar como governador geral da fraternidade, meu pai escolherá um de seus herdeiros. Eu já tenho o nome de cada um de seus filhos, e ele, junto aos supremos mestres de cada país fará a melhor escolha.

Minha cabeça rodava, governador geral? Nossos filhos? Eu não envolveria o Felipe nessa loucura, eu nem mesmo fazia parte daquilo tudo, não tinha a mínima ideia do porque havia sido levado até aquilo. Protestei.

-Perdão, Madame Ivanov, mas receio que meu filho não fará parte desta votação, eu nem mesmo faço parte disso.

Todos na sala voltaram suas atenções para mim. Me senti suar. A face da mulher era inexpressiva, não poderia dizer de forma alguma como ela sentiu diante da minha objeção. Só depois de alguns segundos me analisando ela exclamou:

-Não. O senhor certamente não, Senhor Boulevard. No entanto a Senhora Julia, era uma de nossas mestras. Você é o representante dela como esposo, devido a infortuna circunstância de sua ausência, nada mais.

Me senti amolecer, tontear, tamanho o meu choque. Julia? Não, não poderia ser. Como? A Julia fazia parte dessa bizarrice. Como eu nunca soube de nada? Porque ele envolveu nosso filho nisso? Eu estava com raiva, como a mulher que eu amava era membro de uma fraternidade louca e eu não sabia? Ivanov continuava a falar.

-Nesse momento faremos uma pausa de quinze minutos para a tomada de decisão dos supremos mestres. Aguardem, por favor.

Ivanov saiu da sala empurrando a cadeira de seu pai. Eu ainda sentado na cadeira, suava frio. Não conseguia processar aquilo, minhas mãos tremiam e ninguém ao meu redor parecia estar preocupado. Quinze minutos pareceram ser horas até que Nikole e o velho senhor retornaram:

-A decisão foi tomada.

Ela tinha um envelope vermelho em mãos. Eu só conseguia pensar. "Que não seja o meu filho, por favor, que não seja o meu filho".

Ela abriu o envelope e leu o cartão que estava dentro dele. Ela soltou um risinho irônico, pareceu sair involuntariamente, só então exclamou:

-Felipe de Alcântara Boulevard.

Meu mundo caiu, naquele momento, eu senti vontade de vomitar, mas não pude, estava paralisado. As pessoas ao redor sussurravam umas com as outras, incrédulas. Meu coração acelerava cada vez mais. Parecia que eu iria explodir. Escutei uma voz masculina vindo do outro lado da sala em tom alto. Era o prefeito.

-Governadora, isso é inconcebível! O garoto é uma criança!

Nikole deu com os ombros como quem diz que não há o que fazer. Pediu silencio a todos.

-Devido a esse atípico fato, declaro que o senhor Gregório será o Mentor de Felipe até que ele alcance a maior idade. Isso não indica a detenção do poder a ele, O cargo é de Felipe por direito, ele só responderá por ele até que o menino alcance a maior idade.

Os cochichos retornaram, os participantes pareciam não aceitar a decisão. Ouvi alguém gritar no meio deles.

-Isso é um absurdo!

Madame Ivanov levantou a voz.

-Absurdo ou não, é a decisão dos supremos. Esta sessão está encerrada! Há um coquetel na sala ao lado, aproveitem.

Ela saiu, soltando o ar de stress. Todos levantaram e se dirigiram para a sala indicada ainda cochichando indignados. Fui atrás de Ivanov.

-Madame Ivanov por favor espere! Nikole!

Ela se virou para mim, também não parecia muito satisfeita.

-Precisa de alguma coisa Senhor Boulevard?

Eu ainda estava muito nervoso, não sabia como começar.

-Olha, eu sei que eu não faço parte disso, a Julia nunca me disse nada sobre vocês, eu realmente não sei o que fazer.

Eu estava desesperado. Ela cerrou os olhos, parecia surpresa.

-Não? Interessante.

-Não, não, não, nada de interessante, olha você não entende, aqueles caras de capuz assustaram minha babá, eu não tenho ninguém, não sou esses ricaços aí, preciso trabalhar, não da.

Ela arregalou os olhos, pareceu assustada.

-O que você disse?

Fiquei confuso, o que eu disse que a assustou?

-Eu não sou rico?

-Não isso, idiota, os caras de capuz, o que você disse sobre os caras de capuz?

-Bom, eles ficam me observando em frente à minha casa, deixam bilhetes.

Ela pareceu ficar nervosa, passou a mão na testa tentando se recompor.

-Quatro caras de capuz, é isso?

Eu não estava entendendo, o que havia de errado.

-Sim, quatro deles, eles não são dos seus?

Ela se apoiou na parede, parecia apavorada, e eu me apavorava mais ainda vendo aquilo.

-Não, não são dos nossos. Isso é ruim, muito ruim. Já estão aqui.

Madame Ivanov me deixou sozinho na sala, saiu rápidamente batendo o salto alto no piso de mármore fazendo ecoar um som seco de trote pelo grande salão. Eu fiquei ali parado, confuso, nervoso e ávido por respostas. Levei as mãos à cabeça e dei aguns passos desnorteados pelo salão até decidir sair dali e ir para casa.

Cruzei o salão até a porta principal andando tão rápido que se alguém me observasse de longe poderia até mesmo dizer que eu estava correndo, entrei no carro e me sentei no banco do motorista sem saber ao certo ainda o que fazer, e foi ali, no silêncio e na solidão que tudo finalmente pesou.
Pensei naquelas pessoas, na votação, na minha esposa. Desferi socos desesperados contra o volante e me peguei chorando. Lembrei do meu filho, me recompus, limpei o rosto na manga do terno e girei a chave.

Não me lembro muito bem de como cheguei em casa, mas cheguei inteiro, estacionei o carro e olhei para a casa. Dela podia se ver apenas uma janela iluminada, era a luz da sala de estar. Entrei ainda amargurado, deixei as chaves na mesa da cozinha e fui até a sala. A cena que encontrei me fez dar o primeiro sorriso do dia, Barba e Felipinho estavam apagados, babando no sofá abraçados, ambos fantasiados de pirata com objetos improvisados. Aquilo aqueceu meu coração. Apesar de toda a loucura eu ainda tinha pessoas que me amavam acima de tudo.

Apaguei a luz da sala e deixei os dois dormindo lá, do jeitinho que estavam, não me atreveria a acorda-los. Entrei no quarto e me despi do meu traje de gala. Estava quase me deitando quando observei o livro que roubei da biblioteca, abandonado no criado mudo. Me peguei pensando no porquê diabos eu tinha me interessado por aquele livro tão aleatório e sem sentido.

Fui até ele e o encarei por um tempo, enquanto minha mente vagava buscando uma explicação, me lembrei da Julia, viva e linda. Amava ver a maneira como ele erguia seus cachos escuros em um coque para ler livros malucos para o nosso pequeno bebê.

Enquanto me deliciava em minhas memórias, por um instante pareci me recordar da minha esposa carregando um livro muito parecido com aquele que eu agora estava segurando, forcei a memória por alguns instantes até me dar conta de que com toda a certeza era o mesmo livro.

Folheei o livro desesperadamente tentando encontrar qualquer coisa fora do comum. depois de muito tempo e sem sucesso, esbravegei e soquei-o contra a madeira do criado mudo. O barulho que aquilo fez fi estranho, oco. Peguei a rapidamente o exemplar de volta e analisei com todo o cuidado a capa grossa que o revestia, até que percebi um relevo quase imperceptível que surgia na contra capa. Com um pedaço de clip de papel consegui desgrudar a parte em relevo da capa. Dentro do buraco, havia um fino medalhão prateado com um entalhe muito peculiar. Um circulo, uma estrela e quatro olhos sinistros. As palavras pularam da minha boca:
- Mas que merda, Julia!

Acordei energizado, tomei um banho rápido, peguei o celular e liguei para o Barba.

-Barba?

- Oi? Greg? Ta tão cedo cara, aconteceu alguma coisa?

- Eu tenho uma ideia, preciso da sua ajuda.

- Chego aí em dez minutos.



Deixei o Felipe com a Cristina, esposa do Barba, expliquei sobre o medalhão para ele. Tirei uma foto do objeto e imprimi o maior que pude. Colei na minha porta da frente, abri duas cervejas e sentamo-nos no sofá.

Barba me olhou com expectativa, algo em seus olhos indicava animação e adrenalina, características as quais eu invejava imensamente. Cansado do meu silencio ele questionou.

-E agora?

-Agora esperamos.

Dei uma golada na minha bebida e permaneci frígido. Estava decidido a obter todas as respostas ali.

O dia se desenrolou sem grandes emoções e a noite já quase caía enquanto eu e Barba permanecíamos jogados no sofá da sala, sem esperança alguma e assistindo um programa de culinária da tevê local.

Barba me dirigiu um olhar cansado e levantou para despedir-se, nesse exato momento ouvimos alguém bater à porta. Levantei de supetão e parei por um momento hesitante frente ao trinco, respirei fundo e abri.

Parado de frente para mim com uma postura invejável, completamente ereta e trajando uma farda muito bem alinhada, estava um homem de meia idade muito provavelmente militar. Sua expressão estava séria e seus duros olhos me encaravam com repreensão.

-Boa noite, Boulevard. O senhor tem a mais vaga noção da origem completamente sigilosa do símbolo que ostenta de forma tão vulgar em sua porta da frente?

O sangue me inundou os olhos, a petulância que me saltava à boca ignorava completamente a figura intimidadora daquele oficial.

-Na verdade, não tenho mesmo. Sou completamente leigo a respeito dessa coisa que vocês chamam de sigilosa e que por motivos que eu nem mesmo sei dizer acabou em minhas mãos civis. A imagem continuará aí até que essa merda toda me seja esclarecida.

Me arrependi de ter aberto a boca no pontual momento em que a fechei, mas já era tarde, tudo já havia sido dito e eu esperava qualquer que fosse a consequência agressiva que provavelmente sofreria.

Contradizendo todos os meus temores e instintos, o homem virou as costas e saiu, dirigiu-se à um carro preto e antigo que estava estacionado próximo ao meu portão. Quando pensei que havia sido deixado falando sozinho, a porta traseira do veículo se abriu, e de dentro dele surgiu o que julguei ser um homem muito robusto trajando uma roupa completamente preta e com o rosto coberto por um capuz.

Meu coração palpitou forte e a minha mente já estava a planejar um plano de fuga, eu queria correr, me esconder. A única frase que eu pude formar naquele momento e que saltaram dos meus lábios mais rápidos do que poderia pensar foi: "Fodeu! ".

Breves Apontamentos de Rebites para Um Rascunho de Quase Resenha Cítrica:

Márcia Denser, Sangria Desatada em Suas "Desestórias"

Rastilhos em Polvorosa em Apontamentos Para Desestórias

01.Tô na "leção!" da Márcia, PQP, que tornado de informações, lucidezas, ela ferina, libertária, mordaz, alucilímpida; um livraço, vale quando pesa, quem não ler é desconectado do que realmente se passa nos bastidores dos totens, antros, subterrâneos de pompas, o raio que o parta. Aliás, o livro é um raio abrindo memórias ressentidas, ressecadas, vc acaba por rever-se no aparelhamento da história como um coice, uma aula, uma lição, um verdadeiro mapa mundi de sepulturas malcaiadas, e tem que ler bebendo - para não acabar numa roleta russa de remorso e estupidez...

02.Que loucura o livraço da Márcia, tá tudo ali, um ensaio sobre terremotos; o olhar ferino- mordaz extremamente lúcido dela, libertária, porra louca, em lições de brasis e mundis, aulas sobre tudo, repassando histórias, falsidades, insurreições, um livro-aula-campi, quem não ler nem se sentirá na sobrevivencialização... Tô relendo e anotando, PQP, tb tô anotando me sub/vertendo comentários, porradas, vai ficar uma zona, mas vou indo, que mente vodkiana, hein? Temos que ser resgatados do inferno da mesmice, do achismo, do ódio customizado com rúculas de aberrações, bizarrices e toxinas?

Começo:

"Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz".

(Roland Barthes)

-DESESTÓRIAS DE MÁRCIA DENSER - Márcia Escorraçai por Nós

Somos todos discípulos do ridículo, somos todos apóstolos do caos, pobres tantãs entre embrutecimentos de comodismos? Parceiros em potencial de analfas, reaças, amebas, consumistas, nessa ridícula e cotidiana rotina pica-couve do raio que o parta a fórceps? Henry Muller, tenha piedade de nós. Irreverente, a escritora/romancista La Denser, o tango fantasma dela metamorfoseando em nosotros caras pálidas seus ledores-camaleões-chacais, numa terra em transe? Ave Césio. Os que vão subviver são uvas verdes no rede-moinho das aparências hostis. Uma refugiada ou uma desertora, a autora-escritora ela mesma esturricada de contemplações ferinas? Ah, escorraçai por nós. Nós? -Núcleo de Otários Subordinados. Nesses tempos tenebrosos (Brecht), deveríamos todos errantes ser vacinados contra raiva desde o ventre. O escuro é nosso e ninguém taxa. Eis a nossa cota de trevas. Coxinhas, grávidas e black bloc primeiro; La Denser tirou o medo-rabo do pedestal do lepo-lepo em DESESTÓRIAS, ou não-histórias, crônicas, artigos, opiniões, ensaios, tudo numa leva do bem bolado e bem sacado no estertor. Ah a indignação pondo mais do que história-remorso. Só mesmo se inventariando do que se enlivra e regurgita seus vagidos narrativos, feito orgasmos múltiplos de doses duplas de realidade e soterramento para o éter-na-mente. Saravá "gentehumana"... "É nós" nas tretas. O erótico virou pinóquio de chuchu com supositório de comodismo do mínimo impuro, do laquê de impunidade na opus dei da rapaziada, tudo dentro do campo da impune mediocridade-leviatã. É o "anacronismo" de La Denser salpicando de querelas as brutezas da vida. A saci-Denser capitulando em livros suas epístolas, bravatas e panurgismos. Debaixo do tapete infame das etiquetas há muito lixo e talvez até haja mais vidas do que no sofá com vaginas e estercos de sacos roxos com oxiurose. Pois ela discorre brava/mente sobre FHC, blogs, lobbys, 11 de setembro, Tea-Party, Bush e Sherazade. Acredite se quiser. Eu não teria coragem de escrever sobre a Marcia Denser a palo seco, e, falando sério, o selfie pode esperar. Ela é o prego enferrujado do faquir nas etiquetas do deleite derramado. Nas barricadas dos bares da vida ela foi "contracorrentes" (Ítalo Moricone) e nessa contracorrente deixa sua página de sangrias desatadas a evocar por nós, nas labaredas das loucurezas, honrando as calças. Estradas e bandeiras? Abre-se o livro e começa a expectativa já que o estado gozoso tb é lê-la e assim tomar sentido das bandas podres dos curtumes e fermentos dos ciclos historiais minados, e nas catanças de escrevinhares jorram as escrevivências dela, que bota fogo na canjica e relampeja em prismas fumegantes essa sua selvagem/realista literapura.

Ah a banda dos contentes (como diria o filósofo Erasmo Carlos), ela salta o surto com limpidez extraordinária. Alma gêmea? Algemas. O tesão de escrever sola pelos cotovelos e dispara cogumelos-torpedos de enredos ferozes. Transgredir é preciso. Nesse mondo-saigon (em que a terceira guerra mundial já começou e não fomos avisados), Márcia Denser incorpora a alma libertária-femina e escarra na grã-ralé, na grã-finagem-lesma, entre tantos parasitas e mochileiros sem galáxias ostentando o nada e o ninguém, mas ela sucumbe, soçobra no mar de sargaços destilando falatório, palavrórios e outras lucidezas.

Gente é para morrer de fome, contrariando o dizer do Veloso Caetano, isso é o que se lê nas entrelinhas da mundialização de mediocridade universalizada do livro, um clássico. Desestórias é isso; puro sangue - literalmente um pé no sacro das grifes, na patuleia desequilibrada das raves pro açougue das almas, e dos sais nodosos que não tiram a epiderme-cela de cada um. Ah a craca do ego doentio da "sifilização" fazendo pilates para morrer sem sair do lugar que está e é. Juntos somos cavalos? A massa podre desgovernada pela mídia-ração grita: fora cérebro. Mas o aço da palavra da Denser respira pelos gumes das navalhas na carne. Vc só a lê se inteirando se estiver muito bem desperto. Ela flui a narrativa e evoca a literata-libertinagem da verdade que dói mas vc não quer acreditar. Numa sociedade de estercos que sofre o open-doping da mídia-abutre, ela dá seu testemunho de saber lidar com suas estocadas antropogênicas. Que porra é essa?

Ela é toda adrenalina nos passando o que corrói o olhar, o enfoque, a evocação da escrita-salitre. Dá seus cortes, pincela, feito seu testemunho de presença nessa terra cobaia de deuses e pagãos. Criares diferenciados. As máscaras do capital, da política, do NEOLIBERALISMO-câncer, ela tira repentes de teatros figurativos, engessa a imagem e diz: isso não é bem isso. Retrata abismos temporais datados. Ah o cinismo de uma sociedade pústula e seu mundinho de siricoticos com rivotril e ansiolítico e cocaina. Que pocilga é a vida? Tudo cheirando a goma-lacta, creolina, oxxi, crack, e ainda os que vão todo ano num crime lesa-fisco comprar fantasias de Patetas na Disneylândia, sem saber um nada do que rola por trás, no entredentes, nos bastidores, ela mesmo escrevendo como se com uma faca entredentes. Evoé, Baco. Ah os desvãos da alma do lucro-fóssil, a vaca profana dos podres poderes, num mundo com regras pétreas de imbecilidade, em que ela se exila na escrita como pode... Sorte nossa.

Senhoras e senhores, o circo tá armado e Márcia Denser é um perigo: ela pensa. Mais, ela cria, pior, ela salga essa sodomogomorra que é a vida. Subversiva, intolerante, granada sem pino, fio descascado. Sua açodada visão estrebucha o que tem verniz adulterado, criticando os puteiros do sistema. Desde o capitalhordismo americanalhado, às instituições de fachadas do crime organizado, falsas ofertas e procuras, falso mercado, não obedece, logo, cria. Talvez, afinal, uma revelação dessa fossa borralheira que é a vidamorte sempre a lhe atiçar os ânimos e os olhos, e talvez ainda ela seja de uma forma ou de outra a nossa trombeta de Arendt tupiniquim. Extraterrestres venceremos? Estamos fudidos e mal pagos. Deixem-na sangrar pra nós, por avessos virais, em seus livros/livrações. Vinhetas, pertencimentos, perguntações, mulherices, gordices, reflexões criticas, calhordices, detonando o indecente com fachada, pontuando pautas do arco da velha, contra siglas, antros de escorpiões, vertentes de chorumes existenciais... Diz do homem otarius, da consciência perversa, de amnésia histórica, dos nomes do jogo, da vida besta. Ah DESESTÓRIAS é tudo isso em soma e sumo. Ela vagamundeia o arbítrio, o cético, as ferrugens, num macadame de enxergar o couro grosso da mentira, do embuste, do que contempla com filosofia toda própria e argumentação textamental de fina estampa e grosso calibre, tudo junto e misturado, isso mesmo, um mosaico do que é e não é. Ah, pergunta o leitor atiçado, e o livro Desestórias propriamente dito? Pois é isso mesmo que a teimar estou somando tudo para falar na "livra" que é aqui a enciclopédia (livre) de La Denser. Ela é o livro. No livro ela destripa o mico das inverdades, entre utopias e distopias conta ao seu modo especial, sarcástico, bombástico, deixando o leitor numa zona de desconforto: como pude não pensar eu tb sob essa ótica, ou sacar o indizível que ela na cara dura nomina, ou, pior, muito pior, deixar que eu entenda que tolo e coxinha eu assinei achando que sabia do riscado e a coisa está muito pior pra raça... Somos todos espíritos de pornôs? Vai doer mais em quem ler? Porque não é aceitável assumirmos a comodidade do inferno de nós. Pois esse é um livro que a gente sofre pra caralho na leiturança e muito no final da leitura, como se de toda a existência os acontecidos fossem gatos escalpados entupindo nossa visão com mentiras e lambanças. O pavio curto dela mantém acesa a esperança de que, sim, o mundo acabou, camaradas... A NUDEZ DO Brazyl S/A. A nova geopolítica manda. A nova desordem econômica mundial grassa e detona. As honras são capachos. E tudo cheirando a mofo e naftalina de togas, patentes, tungas, túnicas, igrejismos, palácios, impérios, farsas e fardas. O lixo da história? Ela retrata, conta a sua opinião crua. Diz das estratégias de manipulação da elite. Diz da arte do equivoco, da ideologia do choque e do saque colonial... Privatização da consciência? É com ela mesma. E vai fundo em heresias, rituais, tudo na sua cara...

A crítica a consagra:

"Márcia Denser é densa, vivaça, ferro e foro nas etiquetas:

Suplementopeernambuco - #PernambucoLeu: "Marcia Denser é uma das nossas vozes mais pungentes da literatura brasileira contemporânea. Para traçar o que foi o Brasil nos estranhos anos da virada entre ditadura e abertura política precisamos retornar à sua personagem mais famosa, Diana Marini - Diana caçadora, publicitária, louca e perdida numa São Paulo cinzenta que era no fundo todos nós. DesEstórias marca sua estreia no terreno da não-ficção, reunindo observações sobre literatura, sobre o mundo lá fora e aqui dentro, não deixando escapar nem um restaurante banal onde encontra os amigos, um ambiente em que é "tudo baratíssimo, lembrando um mix de naufrágio com suicídio empresarial no melhor estilo anos 50, uma vez que ainda sobrevive graças à frequência de teatros off-Roosevelt - atores, dramaturgos, diretores, técnicos, público, fãs de tudo isso retra e supra". E quando se olha no espelho não se esquiva de sombras, como nesse trecho em que reflete sobre seu trabalho: "isto não é autoficção, tampouco autonaufrágio, até porque escritor é aquele nadador com várias medalhas olímpicas que, cada vez que chega à beira da piscina, se dá conta que não sabe nadar, já o fez um dia, mas agora ele não lembra, contudo mergulha mesmo assim, toca o fundo e milagrosamente consegue emergir. Absolutamente só e ofegante, mas vivo, porra". E cada vez mais viva!", por @schneidercarpe #instalivros #instabook #literatura #leiamulheres #menos1naestante"

Rir aos quatros ventos. Ferir-se de ler. Ah essa cavalgadura do achismo. Os asnóias precisam de belzeboys e belzebundas para terem altar. Mais médicos? Não, mais médicis... A seco ninguém segura esse rojão, muito bem cantou Chico Buarque, deve ser isso porque a Márcia Denser escreve estopins. O cínico está pegando fogo? Saques o celular. Ah o selvagem coração da divida social dos infelizes miseráveis do progresso sem consciência, em arremedos de fés quase isso mesmo, fezes. E o endividamento moral coletivo? Ah o carnegão da pose. Macacos nos moldam. "Num mundo totalmente globalizado e informatizado, tornou-se impossível ocultar a realidade sob o manto da ideologia"(PG. 279/Desestórias). E descreve sobre Flips, Ongs, Haiti, Delivery, Favela, Jogos, Sacis, Erotismo, preconceito, Feminismo, lobotomia, DogVille, Paulistices, Vinis, Gordier, Bachianas, sítios, rituais, estágios, afins e pertencimentos pertinentes. Sempre com filosofia/sabedoria/acidez narrativa fora de série e as vezes irônica e mesmo muito fora do sério, que nem tudo que reluz é fêmea. Ela faz chover no piquenique das ideias, mostra reinados nus, e saltita aqui e ali sobre a sociedade-cadáver. Gotham City só existe no gibi? Leiam aos poucos. Leiam bebendo doses homeopáticas de vodka russa pura. Vai ser um porre, PQP, as toupeiras vão botar as panelas no vaso sanitário. As hienas vão entrar numa TPM temporã. Ah o conservadorismo e suas pataquadas amorais. Ela traz imagens do pântano, diz de núcleos de abandonos de todos os tipos, conta das tripas sociais (mídia), e expõe disso tudo cicatrizes e sequelas. Você abre em qualquer pg e lá viça a contação raçuda e logo se sente (está) no finca-pé dessa deriva ao notório como é e vc nem sacava que era. Toma um porre de informações e se assusta. Ela dita o ritmo, dela. Como não saquei isso à época? Se eu contar, vcs não vão acreditar. Leiam a obra. Ah a sabedoria pansexual dessas mulheres que tanto sacam que acabam a mosca na sopa das breguices e achadouros disformes do real. Enquanto o meio desinforma, ela desenforma tudo e revela-se: tá na área é grilo esclarecido. Fica entre uma inventariante de remorsos, de tropeços, de relicários e perdulários. Com seu software todo peculiar, um imaginário e um conhecimento superior, MARCIA DENSER deixa com esse livro sua marca indelével de uma puta escritora, nessa obra-master em que se afirma nela e nos confirma MÁRCIA DENSER como uma literata monstro.

Querem saber? Leiam o livro.

Depois não digam que eu não disse. Márcia Denser, Escorraçai por nós...

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Silas Corrêa Leite - E-mail: poesilas@terra.com.br

Autor entre outros de GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, Editora Autografia, RJ, 2015.

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BOX

Livro DESESTÓRIAS, Crônicas e Relatos

Autora Márcia Denser - https://www.facebook.com/marcia.denser

Editora Kotter Editorial

332 pgs, 2016 - www.kotter.com.br

E-mail: kotter@kotter@bom.br

CIHUACÓATL - a mulher chorona
introito
I
Quem foi, depois de ser tantas,
A mais triste das mulheres?...
Aquela a chorar quereres,
Vagando nas noites santas
Face a dores e prazeres.

II
Deusa de imensos poderes,
Servira aos Astecas na guerra.
Hoje, está presa a essa terra
Sem mais outros afazeres,
Senão ser aquela que erra.

III
Ela, a Chorona, que aterra
Os sós em noite de lua
E sobre as águas flutua:
Espectro que alhures berra
As dores da culpa sua...

IV
Quem em prantos continua
Sempre a vagar cerca às águas
Onde se repete as mágoas
Que leva após pela rua
Aos sobrados e meias-águas

V
D'alvos véus, saias e anáguas,
A atravessar toda a vila...
Que nas desoras, tranquila,
Contrastava com as fráguas
De seu olhar que cintila.

VI
Gravada em minha pupila
Feito uma fotografia:
Defronte à matriz sombria,
Enquanto no adro desfila
Em meio à noite vazia.

VII
Já sem descanso ou alegria,
Anda a clamar pelos filhos
E a murmurar estribilhos
De cantigas que se ouvia
Entre bardos andarilhos.

VIII
Segue sem mais empecilhos
Alhures a lamentar
Até com algum topar
E, refulgente de brilhos,
Mais ess'outro assombrar.

IX
Deveras n'esse lugar,
Onde Deus é tão benquisto,
Muitos ainda a têm visto
Chorosa a Chorona a andar
Sem jamais pôr termo n'isto...
a chorona do lago
X
"Quem será esta que avisto,
Por sobre as águas do lago!?"
-- "Quem vem lá?" -- eu mais indago.
-- "Quem lá vem?" - ainda insisto.
"És ser d'outro mundo ou mago?!"

XI
Só o vento, frio e pressago,
Ora à minha voz responde.
Na noite escura s'esconde
Aquele ser tão aziago
Vindo não se sabe d'onde.

XII
-- "Mais às profundezas sonde
À procura da verdade!" -
Berrava para a entidade
Ainda que a mesma estronde
Sismos fendendo a cidade.

XIII
Nas ondas, a claridade
Se aproximou lentamente.
Mas, incertos se alma ou gente,
Fomos em comunidade
Co'os sacerdotes na frente:

XIV
O mais velho simplesmente
Calou-se contemplativo.
Ainda que sem motivo
Ou outra razão aparente
De tão súbito emotivo:

XV
-- "É Cihuacóatl! Eu vivo
A escutar de nosso fim..." -
De facto, irrompe ela assim
Clamar do povo cativo
Ao soar d'estranho clarim:

XVI
-- "Ai, meus filhos! Ai de mim!
Aonde os levarei, de resto,
Por de destino tão funesto
Poderem fugir enfim?
Só a lamentos me presto!..."

XVII
E abria os braços n'um gesto
Que abarcava toda a vila...
Triste visão à pupila,
Clamando em seu só protesto
Desde a lagoa tranquila.

XVIII
Nas águas o luar cintila
E o vento frio do Norte
Envolvente, agudo e forte,
Sobre as campinas siliba
Augúrios de dor e morte.

XIX
Advertidos da má sorte,
Antes que o mal se consuma
Fomos ter com Montezuma,
Anunciar em sua corte
As profecias, uma a uma:

XX
-- "Alteza, como costuma
A deusa ao povo falar,
Cihuacóatl a prantear
É vista em meio à bruma
Vossa desgraça anunciar."

XXI
"Conta que vêm pelo mar
Gentes mais sábias e antigas,
Que muito embora inimigas
Com poucos irão triunfar
Quer com finezas; quer brigas."

XXII
"Vossas alianças e ligas
Que haveis na paz e na guerra
-- A expandir do mar à serra
Com glórias e com fadigas
A ordem dos céus sobre a terra" -

XXIII
"Caem sob a treva que aterra
Os homens em confusão
E os faz perdidos em vão:
Sois império que s'encerra
Na mais plena escuridão!..."

XXIV
"Por tal, reporto a visão
De sacerdotes e povo
Que têm, de novo e de novo,
Visto da deusa o clarão
N'estes versos que vos trovo."
os oito sinais
XXV
"Se este clamor vos renovo
É por recordar sinais
Que vos encadeiam finais.
Se em face de vós me comovo
É por sabê-los mortais:"

XXVI
"À deusa com os seus ais
Mais outros sete presságios
Vêm se somar feito estágios
De moléstias terminais
Ou de sinistros naufrágios..."

XXVII
"Ou tal contam os adágios:
"'Nada há tão ruim que não piore.'"...
Mas, antes que algo melhore,
O invasor busca apanágios,
Ainda que nos explore!"

XXVIII
"Primeiro, não se apavore
Quem vir cair uma estrela
Em pleno dia e, após ela,
Qual sarça de fogo core
O céu da noite singela!..."

XXIX
"Depois, em meio à procela
Chamas altas eu contemplo
A consumir todo o templo
Onde um deus se revela
Nosso antepassado exemplo!"

XXX
"E ainda, qual contraexemplo,
Dois relâmpagos seguidos
Explodem incandescidos
Sobre o jardim do antetemplo
De Tzonmolco e mil feridos!"

XXXI
"Por mais e mais desvalidos
Inunda-se Anáhuac, o vale...
Das alturas da Huey teocale
Tenochtitlã vê perdidos
Os prédios de quanto se vale."

XXXII
"Passados males seguidos,
Eis que caminhando às pressas
Homens de muitas cabeças
De mundos desconhecidos
Em meio a trevas espessas!..."

XXXIII
"Por fim, cumprindo as promessas
Da volta de nosso deus
Trazem rara ave os plebeus
A ver nas íris possessas
Soldados nos olhos seus."

XXXIV
"Montezuma, semideus
E grão-senhor dos Astecas!
Após quatro anos de secas,
Eis diante dos olhos meus
A deusa-mãe dos Toltecas..."

XXXV
"Por entre agaves e arecas
Andando junto a junquilhos
Antevê tolos rastilhos
Nos quais as hordas carecas
São mortas feito novilhos."

XXXVI
"E assim, coberta de brilhos,
Vinha chorando lamúrias.
Augúrios de tais penúrias
Os massacres de seus filhos
Ecoam pelas centúrias"...
a filicida
XXXVII
-- "Quem é essa cujas fúrias
Fizeram-na desgraçar?!?
Como ousa uma mãe matar
Filhos de suas luxúrias
E seus amores sem par?..."

XXXVIII
"Quem crianças fez afogar
Para horror de seu amante!? --
Mas agora, a todo instante,
Mira e remira o lugar
Tendo-se os meninos diante.

XXXIX
E desde então vaga errante
Sempre a chorar, de sorte
Que até se lhe nega a Morte
De pôr-lhe termo consoante
À maldição do ex-consorte.

XL
Muito embora desconforte
Seu choro a quem longe a vê,
Logo lhe nega mercê
Ao sabê-la por seu porte
Alma, não gente que crê...

XLI
O mal por paga se dê
Este mal pior, pois, eterno!
Falta do zelo materno,
Fez o que nenhum porquê
Responde senão no inferno.

XLII
Porém, no mundo moderno
Ainda a veem caminhando
Pelas noites, quando em quando,
Em meio às nevoas do inverno
Chorosa e chorona errando.
mulheres da meia-noite
XLIII
Pelos lugares onde ando
Escuto histórias como estas
De mulheres tão molestas
Pela escuridão penando
Por suas acções funestas.

XLIV
Com semelhanças honestas
Às famosas mexicanas,
Lendas sul-americanas
Também recordam modestas
As tristes almas mundanas.

XLV
Embora pareçam humanas,
Há tempos elas não são...
E alhures vagando em vão
Espalham, belas e insanas,
Murmúrios na escuridão.

XLVI
Têm em comum a ilusão
De repararem malfeitos
Ao aterrorizar sujeitos
Que encontram na escuridão
E logo lhe estão afeitos.

XLVII
Visto a princípio insuspeitos
Seus olhos na noite escura,
Aproximam-se à procura
De serem por ela aceitos
Face à tão bela figura.

XLVIII
Têm uma certa finura
De suaves gestos e falas
Enquanto lh'enchem de galas
E exaltam-lhe a formosura,
Coçando-se as barbas ralas...

XLVII
E ela, tentando tocá-las,
Não dão senão arrepios
Visto d'ela os dedos frios
Lhe traem as mãos ao mostrá-las
Pálidas a homens vadios.

XLVIII
Estes percebem sombrios
Os olhos d'aquela bela,
Passando a ter junto d'ela
Pasmos um tanto tardios
Tal repulsa lhes revela.

XLIX
-- "Mas que mulher era aquela?"... --
Dizem consigo ao partir
Ainda sem descobrir
Qual plano que teria ela
Quando o parou a sorrir.
a loura do bonfim
L
Em Minas costuma-se ouvir
Da loura que ao sem-abrigo
Leva, amorosa, consigo
Para o seu lar sem porvir
Que é o seu frio jazigo!...

LI
Sim, esta de que algo digo
Reside n'um cemitério...
Buscando a si refrigério,
Seduz quem se acha a perigo
De cometer um adultério.

LII
Envolta em alvo mistério
Cerca o rapaz linda e loura.
Enquanto a coruja agoura,
Lhe invita a falar a sério
Antes d'aurora vindoura.

LIII
Ela o coitado desdoura
De admirar seu triste fim.
E, manso, o encaminha enfim
Qual rés furtada à lavoura
Por ardiloso festim.

LIV
Chorando, diz: "Ai de mim!!"
E tão-logo o carro estaca
Rápido o passa na faca!...
"Cemitério do Bonfim"
Estava escrito na placa!

LV
Amanhã, no edifício Acaiaca,
Pouco antes que o sol desponte,
A ver o céu traz-do monte
Que à serrania destaca
A bela Belo Horizonte.

LVI
A loura outra vez nos conte
Sua história passional
Estampada no jornal:
"Dama do Bonfim na fronte
Esfaqueia um marginal."

LVII
Desgraçada tal-e-qual,
Sabe viver seu papel:
Morta sem amor e anel,
Vagará espiritual
Sem nunca chegar ao céu.

LVIII
Andando de déu em déu
Toda noite se renova
Repetindo a sua trova:
Dos altos do arranha-céu
Até as funduras da cova!

LIX
Mas quem de seus beijos prova
Há-de viver assombrado
Ferido ou não no costado.
Certo de que se comova
De à própria morte beijado...
a saiona
LX
-- "Qual o mais terrível Fado
D'entre as almas penadas?
O da mulher das baixadas
Que homens infiéis tem matado
Vagando pelas estradas..."

LXI
Como as outras desgraçadas
Esta também enlouquece
Ao ouvir quem mal a conhece
Contar do esposo escapadas
E grande ciúme padece.

LXII
E logo após lhe acontece
De homicida se tornar:
Filho e esposo faz matar
Além da mãe que parece
Pouco antes a amaldiçoar:

LXIII
-- "Matas quem soube te amar?
Maldita sejas: Não morres!
D'oravante tu percorres
As planuras sem findar
Buscando quem te desforres!"

LXIV
E, n'isso, do alto das torres
Das célebres catedrais
Um brilho intenso demais
Incandesceu sobre os jorres
Das fontes dos mananciais...

LXV
Desde então caça os mortais,
Belíssima de saião preto
A seduzir o incorreto:
Quem da regra dos casais
Burlando em passeio secreto.

LXVI
Se d'esses o país repleto,
Nos Llanos de Venezuela,
Muito comentam d'aquela
Que esmagava feito inseto
Quantos bulissem com ela.

LXVII
Tão violenta quanto bela
Tem para nossos desvelos
Negros e longos cabelos
E olhos aos que sem cautela
Têm sido o pior dos flagelos:

LXVIII
Cortantes, são dois cutelos
Sua mirada de luta,
Que na amorosa disputa
Hipnotizam os donzelos
N'uma mudez absoluta!...

LXIX
-- "Portanto, nem se discuta:
Mulherengo d'esta zona,
Que com as outras desfruta
Reveja a sua conduta
Antes que apareça a Saiona!
epílogo
LXX
De volta à vossa poltrona,
Eu vos deixo n'este ponto.
Pois já, assombrado e tonto,
Como alguma beladona
M'entorpecesse de pronto...

LXXI
Mas vós, leitor que confronto,
Apurai vossos ouvidos
A perceber os gemidos,
Passando conto por conto,
Em desespero vividos.

LXXII
Buscai ouvir os sofridos
Que vagam por esse mundo
Para entender quão profundo
O pavor dos tempos idos
'Inda nos homens fecundo.

LXXIII
Ainda que horrendo e imundo
Insisti, haja o que houver,
Sobre os abismos do querer.
Perguntai, sempre mais fundo:
-- "Quem é aquela mulher!?"

Betim - 13 01 2017

Breves Apontamentos de Rebites para Um Rascunho de Quase Resenha Cítrica:

Márcia Denser, Sangria Desatada em Suas “Desestórias”

Rastilhos em Polvorosa em Apontamentos Para Desestórias

01.Tô na "leção!" da Márcia, PQP, que tornado de informações, lucidezas, ela ferina, libertária, mordaz, alucilímpida; um livraço, vale quando pesa, quem não ler é desconectado do que realmente se passa nos bastidores dos totens, antros, subterrâneos de pompas, o raio que o parta. Aliás, o livro é um raio abrindo memórias ressentidas, ressecadas, vc acaba por rever-se no aparelhamento da história como um coice, uma aula, uma lição, um verdadeiro mapa mundi de sepulturas malcaiadas, e tem que ler bebendo - para não acabar numa roleta russa de remorso e estupidez...

02.Que loucura o livraço da Márcia, tá tudo ali, um ensaio sobre terremotos; o olhar ferino- mordaz extremamente lúcido dela, libertária, porra louca, em lições de brasis e mundis, aulas sobre tudo, repassando histórias, falsidades, insurreições, um livro-aula-campi, quem não ler nem se sentirá na sobrevivencialização... Tô relendo e anotando, PQP, tb tô anotando me sub/vertendo comentários, porradas, vai ficar uma zona, mas vou indo, que mente vodkiana, hein? Temos que ser resgatados do inferno da mesmice, do achismo, do ódio customizado com rúculas de aberrações, bizarrices e toxinas?

Começo:

“Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”.

(Roland Barthes)

 

-DESESTÓRIAS DE MÁRCIA DENSER – Márcia Escorraçai por Nós

 

Somos todos discípulos do ridículo, somos todos apóstolos do caos, pobres tantãs entre embrutecimentos de comodismos? Parceiros em potencial de analfas, reaças, amebas, consumistas, nessa ridícula e cotidiana rotina pica-couve do raio que o parta a fórceps? Henry Muller, tenha piedade de nós. Irreverente, a escritora/romancista La Denser, o tango fantasma dela metamorfoseando em nosotros caras pálidas seus ledores-camaleões-chacais, numa terra em transe? Ave Césio. Os que vão subviver são uvas verdes no rede-moinho das aparências hostis. Uma refugiada ou uma desertora, a autora-escritora ela mesma esturricada de contemplações ferinas? Ah, escorraçai por nós. Nós? -Núcleo de Otários Subordinados. Nesses tempos tenebrosos (Brecht), deveríamos todos errantes ser vacinados contra raiva desde o ventre. O escuro é nosso e ninguém taxa. Eis a nossa cota de trevas. Coxinhas, grávidas e black bloc primeiro; La Denser tirou o medo-rabo do pedestal do lepo-lepo em DESESTÓRIAS, ou não-histórias, crônicas, artigos, opiniões, ensaios, tudo numa leva do bem bolado e bem sacado no estertor. Ah a indignação  pondo mais do que história-remorso. Só mesmo se inventariando do que se enlivra e regurgita seus vagidos narrativos, feito orgasmos múltiplos de doses duplas de realidade e soterramento para o éter-na-mente. Saravá “gentehumana”...  “É nós” nas tretas. O erótico virou pinóquio de chuchu com supositório de comodismo do mínimo impuro, do laquê de impunidade na opus dei da rapaziada, tudo dentro do campo da impune mediocridade-leviatã. É o “anacronismo” de La Denser salpicando de querelas as brutezas da vida. A saci-Denser capitulando em livros suas epístolas, bravatas e panurgismos. Debaixo do tapete infame das etiquetas há muito lixo e talvez até haja mais vidas do que no sofá com vaginas e estercos de sacos roxos com oxiurose. Pois ela discorre brava/mente sobre FHC, blogs, lobbys, 11 de setembro, Tea-Party, Bush e Sherazade. Acredite se quiser. Eu não teria coragem de escrever sobre a Marcia Denser a palo seco, e, falando sério, o selfie pode esperar. Ela é o prego enferrujado do faquir nas etiquetas do deleite derramado. Nas barricadas dos bares da vida ela foi “contracorrentes" (Ítalo Moricone) e nessa contracorrente deixa sua página de sangrias desatadas a evocar por nós, nas labaredas das loucurezas, honrando as calças. Estradas e bandeiras? Abre-se o livro e começa a expectativa já que o estado gozoso tb é lê-la e assim tomar sentido das bandas podres dos curtumes e fermentos dos ciclos historiais minados, e nas catanças de escrevinhares jorram as escrevivências dela, que bota fogo na canjica e relampeja em prismas fumegantes essa sua selvagem/realista literapura.

Ah a banda dos contentes (como diria o filósofo Erasmo Carlos), ela salta o surto com limpidez extraordinária. Alma gêmea? Algemas. O tesão de escrever sola pelos cotovelos e dispara cogumelos-torpedos de enredos ferozes. Transgredir é preciso. Nesse mondo-saigon (em que a terceira guerra mundial já começou e não fomos avisados), Márcia Denser incorpora a alma libertária-femina e escarra na grã-ralé, na grã-finagem-lesma, entre tantos parasitas e mochileiros sem galáxias ostentando o nada e o ninguém, mas ela sucumbe, soçobra no mar de sargaços destilando falatório, palavrórios e outras lucidezas.

Gente é para morrer de fome, contrariando o dizer do Veloso Caetano, isso é o que se lê nas entrelinhas da mundialização de mediocridade universalizada do livro, um clássico. Desestórias é isso; puro sangue - literalmente um pé no sacro das grifes, na patuleia desequilibrada das raves pro açougue das almas, e dos sais nodosos que não tiram a epiderme-cela de cada um. Ah a craca do ego doentio da “sifilização” fazendo pilates para morrer sem sair do lugar que está e é. Juntos somos cavalos? A massa podre desgovernada pela mídia-ração grita: fora cérebro. Mas o aço da palavra da Denser respira pelos gumes das navalhas na carne. Vc só a lê se inteirando se estiver muito bem desperto. Ela flui a narrativa e evoca a literata-libertinagem da verdade que dói mas vc não quer acreditar. Numa sociedade de estercos que sofre o open-doping da mídia-abutre, ela dá seu testemunho de saber lidar com suas estocadas antropogênicas. Que porra é essa?

Ela é toda adrenalina nos passando o que corrói o olhar, o enfoque, a evocação da escrita-salitre. Dá seus cortes, pincela, feito seu testemunho de presença nessa terra cobaia de deuses e pagãos. Criares diferenciados. As máscaras do capital, da política, do NEOLIBERALISMO-câncer, ela tira repentes de teatros figurativos, engessa a imagem e diz: isso não é bem isso. Retrata abismos temporais datados. Ah o cinismo de uma sociedade pústula e seu mundinho de siricoticos com rivotril e ansiolítico e cocaina. Que pocilga é a vida? Tudo cheirando a goma-lacta, creolina, oxxi, crack, e ainda os que vão todo ano num crime lesa-fisco comprar fantasias de Patetas na Disneylândia, sem saber um nada do que rola por trás, no entredentes, nos bastidores, ela mesmo escrevendo como se com uma faca entredentes. Evoé, Baco. Ah os desvãos da alma do lucro-fóssil, a vaca profana dos podres poderes, num mundo com regras pétreas de imbecilidade, em que ela se exila na escrita como pode... Sorte nossa.

Senhoras e senhores, o circo tá armado e Márcia Denser é um perigo: ela pensa. Mais, ela cria, pior, ela salga essa sodomogomorra que é a vida. Subversiva, intolerante, granada sem pino, fio descascado. Sua açodada visão estrebucha o que tem verniz adulterado, criticando os puteiros do sistema. Desde o capitalhordismo americanalhado, às instituições de fachadas do crime organizado, falsas ofertas e procuras, falso mercado, não obedece, logo, cria. Talvez, afinal, uma revelação dessa fossa borralheira que é a vidamorte sempre a lhe atiçar os ânimos e os olhos, e talvez ainda ela seja de uma forma ou de outra a nossa trombeta de Arendt tupiniquim. Extraterrestres venceremos? Estamos fudidos e mal pagos. Deixem-na sangrar pra nós, por avessos virais, em seus livros/livrações.  Vinhetas, pertencimentos, perguntações, mulherices, gordices, reflexões criticas, calhordices, detonando o indecente com fachada, pontuando pautas do arco da velha, contra siglas, antros de escorpiões, vertentes de chorumes existenciais... Diz do homem otarius, da consciência perversa, de amnésia histórica, dos nomes do jogo, da vida besta.  Ah DESESTÓRIAS é tudo isso em soma e sumo. Ela vagamundeia o arbítrio, o cético, as ferrugens, num macadame de enxergar o couro grosso da mentira, do embuste, do que contempla com filosofia toda própria e argumentação textamental de fina estampa e grosso calibre, tudo junto e misturado, isso mesmo, um mosaico do que é e não é. Ah, pergunta o leitor atiçado, e o livro Desestórias propriamente dito? Pois é isso mesmo que a teimar estou somando tudo para falar na “livra” que é aqui a enciclopédia (livre) de La Denser. Ela é o livro. No livro ela destripa o mico das inverdades, entre utopias e distopias conta ao seu modo especial, sarcástico, bombástico, deixando o leitor numa zona de desconforto: como pude não pensar eu tb sob essa ótica, ou sacar o indizível que ela na cara dura nomina, ou, pior, muito pior, deixar que eu entenda que tolo e coxinha eu assinei achando que sabia do riscado e a coisa está muito pior pra raça... Somos todos espíritos de pornôs? Vai doer mais em quem ler? Porque não é aceitável assumirmos a comodidade do inferno de nós. Pois esse é um livro que a gente sofre pra caralho na leiturança e muito no final da leitura, como se de toda a existência os acontecidos fossem gatos escalpados entupindo nossa visão com mentiras e lambanças. O pavio curto dela mantém acesa a esperança de que, sim, o mundo acabou, camaradas... A NUDEZ DO Brazyl S/A. A nova geopolítica manda. A nova desordem econômica mundial grassa e detona. As honras são capachos. E tudo cheirando a mofo e naftalina de togas, patentes, tungas, túnicas, igrejismos, palácios, impérios, farsas e fardas. O lixo da história? Ela retrata, conta a sua opinião crua. Diz das estratégias de manipulação da elite. Diz da arte do equivoco, da ideologia do choque e do saque colonial... Privatização da consciência? É com ela mesma. E vai fundo em heresias, rituais, tudo na sua cara...

A crítica a consagra:

“Márcia Denser é densa, vivaça, ferro e foro nas etiquetas:

Suplementopeernambuco - #PernambucoLeu: "Marcia Denser é uma das nossas vozes mais pungentes da literatura brasileira contemporânea. Para traçar o que foi o Brasil nos estranhos anos da virada entre ditadura e abertura política precisamos retornar à sua personagem mais famosa, Diana Marini - Diana caçadora, publicitária, louca e perdida numa São Paulo cinzenta que era no fundo todos nós. DesEstórias marca sua estreia no terreno da não-ficção, reunindo observações sobre literatura, sobre o mundo lá fora e aqui dentro, não deixando escapar nem um restaurante banal onde encontra os amigos, um ambiente em que é "tudo baratíssimo, lembrando um mix de naufrágio com suicídio empresarial no melhor estilo anos 50, uma vez que ainda sobrevive graças à frequência de teatros off-Roosevelt - atores, dramaturgos, diretores, técnicos, público, fãs de tudo isso retra e supra". E quando se olha no espelho não se esquiva de sombras, como nesse trecho em que reflete sobre seu trabalho: "isto não é autoficção, tampouco autonaufrágio, até porque escritor é aquele nadador com várias medalhas olímpicas que, cada vez que chega à beira da piscina, se dá conta que não sabe nadar, já o fez um dia, mas agora ele não lembra, contudo mergulha mesmo assim, toca o fundo e milagrosamente consegue emergir. Absolutamente só e ofegante, mas vivo, porra". E cada vez mais viva!", por @schneidercarpe #instalivros #instabook #literatura #leiamulheres #menos1naestante”

Rir aos quatros ventos. Ferir-se de ler. Ah essa cavalgadura do achismo. Os asnóias precisam de belzeboys e belzebundas para terem altar. Mais médicos? Não, mais médicis... A seco ninguém segura esse rojão, muito bem cantou Chico Buarque, deve ser isso porque a Márcia Denser escreve estopins. O cínico está pegando fogo? Saques o celular. Ah o selvagem coração da divida social dos infelizes miseráveis do progresso sem consciência, em arremedos de fés quase isso mesmo, fezes. E o endividamento moral coletivo? Ah o carnegão da pose. Macacos nos moldam. “Num mundo totalmente globalizado e informatizado, tornou-se impossível ocultar a realidade sob o manto da ideologia”(PG. 279/Desestórias). E descreve sobre Flips, Ongs, Haiti, Delivery, Favela, Jogos, Sacis, Erotismo, preconceito, Feminismo, lobotomia, DogVille, Paulistices, Vinis, Gordier, Bachianas, sítios, rituais, estágios, afins e pertencimentos pertinentes. Sempre com filosofia/sabedoria/acidez narrativa fora de série e as vezes irônica e mesmo muito fora do sério, que nem tudo que reluz é fêmea. Ela faz chover no piquenique das ideias, mostra reinados nus, e saltita aqui e ali sobre a sociedade-cadáver. Gotham City só existe no gibi? Leiam aos poucos. Leiam bebendo doses homeopáticas de vodka russa pura. Vai ser um porre, PQP, as toupeiras vão botar as panelas no vaso sanitário. As hienas vão entrar numa TPM temporã. Ah o conservadorismo e suas pataquadas amorais. Ela traz imagens do pântano, diz de núcleos de abandonos de todos os tipos, conta das tripas sociais (mídia), e expõe disso tudo cicatrizes e sequelas. Você abre em qualquer pg e lá viça a contação raçuda e logo se sente (está) no finca-pé dessa deriva ao notório como é e vc nem sacava que era. Toma um porre de informações e se assusta. Ela dita o ritmo, dela. Como não saquei isso à época? Se eu contar, vcs não vão acreditar. Leiam a obra. Ah a sabedoria pansexual dessas mulheres que tanto sacam que acabam a mosca na sopa das breguices e achadouros disformes do real. Enquanto o meio desinforma, ela desenforma tudo e revela-se: tá na área é grilo esclarecido. Fica entre uma inventariante de remorsos, de tropeços, de relicários e perdulários.  Com seu software todo peculiar, um imaginário e um conhecimento superior, MARCIA DENSER deixa com esse livro sua marca indelével de uma puta escritora, nessa obra-master em que se afirma nela e nos confirma MÁRCIA DENSER como uma literata monstro.

Querem saber? Leiam o livro.

Depois não digam que eu não disse. Márcia Denser, Escorraçai por nós...

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Silas Corrêa Leite – E-mail: poesilas@terra.com.br

Autor entre outros de GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, Editora Autografia, RJ, 2015.

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BOX

Livro DESESTÓRIAS, Crônicas e Relatos

Autora Márcia Denser - https://www.facebook.com/marcia.denser

Editora Kotter Editorial

332 pgs, 2016 – www.kotter.com.br

E-mail: kotter@kotter@bom.br

 

 

 

 

 

 

Olhares da consciência

Ao enxergardes vossos olhares alheios, e não mais julgardes os vossos bens, e sem maiores detalhes perdoardes a tudo e a todos, inclusive a vós mesmo, ou, se não o fizerdes por não mais haver necessidade... Parabéns, teríeis alcançado a felicidade sem causa, portanto, sem efeito. Venceríeis o maior de todos os inimigos: "Vosso Ego". Chegaríeis à iluminação da bem-aventurança.

Congratulações

Você jamais esteve só, posto que dentro de você existam muitos seres povoando a sua mente e todo o seu ser. Você integral é um universo desmesurado do ponto de vista físico-mental. É tão somente botar essa poderosa mente a pensar e visualizar esses pensamentos, e travar seus melhores diálogos com esses seres mentais, que na realidade são entidades espirituais. É assim que agiram e agem as mentes luminares da humanidade. "Sonhar é viver", quem já não ouviu essa frase verdadeira de um provérbio popular? Então, ratificamos: basta pensar e pensar até visualizar esse pensamento transformando-o em sonho verdadeiro a ocupar o vazio mental, saindo da solidão. A solidão geralmente aparece com a perda de bens pessoais, o sentimento de perda dá azo aos vampiros espirituais, os quais se alimentam das dores dos seres humanos acossados por esse sentimento de estar só, ao léu, abandonado, esquecido, desvalorizado, enfim, é realmente uma dor estranha e muito intensa que às vezes leva à loucura, e até à morte. Porem, isto jamais acontecerá se você se dispuser a entrar em estado de graça, fato que somente depende de você. É como se você fosse ajudar seu filho e ele aceitasse a sua ajuda, assim, deverá estar aberto à ajuda de seu pai espiritual, ou de seus irmãos mentores.

Obs. Entidades podem ser entendidas como energias.

Criar é a arte de sair da solidão.

Nada é mais vivo do que a arte, ela é divina, posto que fuja dos pragmatismos acadêmicos, a verdadeira arte é impar, é a marca registrada do verdadeiro artista, pois, a arte é a ação de criar, e criar aquilo que na sua essência é ímpar, por isto o artista é admirado na arte que cria. Vejamos um músico que fez uso do aprendizado convencional, estudando profundamente o solfejo, e a leitura das notas musicais, porém, ao executar o seu instrumento, se não criar a arte de seu sentimento, é mais um apenas na sua mediocridade musical. Isto acontece com escritores, músicos, cantores, pintores, escultores, atores, etc. Então, a arte tira você da solidão, e aqui pode se enquadrar o artesanato, enfim, qualquer ocupação que lhe faça feliz. A mais nobre de todas as artes é indubitavelmente a filantropia do amor convencional. Esta com certeza suplanta todas as demais.

A solidão é você, portanto, aprenda conviver consigo mesmo.

A solidão dá-nos a impressão de ser um grande vazio, porém, a sutileza mental vai, além disto, pois, na solidão existem os maus pensamentos camuflados de "vazio", pode crer amigo leitor! A solidão faz parte da sua mente pensante, ora, qualquer ação depende de sua mente e, muitas vezes você pratica atos inconscientemente, haja vista, quando está dirigindo o seu auto, quantas e quantas vezes você muda de marcha e jamais se dá conta deste ato corriqueiro. Então compreenda que essa suposta solidão está acompanhada de sentimentos melancólicos, fazendo-o entrar em depressão. São resquícios de sofrimentos e condicionamentos passados. É mais ou menos como aquele que envelheceu e não se deu conta deste fato, então vem a aposentadoria forçada pela idade e, ele se acha um imbecil inútil, posto que antes arcasse com as despesas do lar, coisa que foi ceifada pela minguada aposentadoria. Muitos desses honrados senhores morrem literalmente de solidão, achando ser solidão. Na realidade a pseudossolidão tem muitos sentimentos nela embutidos.

Vamos falar da solidão vista como estando você a sós, e mais ninguém, insulado no mais profundo degredo o que pode acontecer em qualquer parte do planeta. Quando a "Coisa" vem lhe assolar a alma, tirando-lhe a paz sem motivo "lógico", através da chamada depressão, que no fundo trata-se de estado de espírito depauperado. Uma tristeza enorme invade o seu ser, e você não sabe como agir e sem saber a sua causa. Devemos entender que o condicionamento é algo que realmente fabrica o estado mórbido de solidão. Quando alguém se torna condicionado, hipnotizado pelo ato contínuo de agir sob a repetição mental, e, quando perde esse condicionamento, chega-se à solidão. É como a nave que perdeu seu norte. É o grande saudosismo daquilo que se foi e, que ficou nos dias felizes do passado. Notamos então uma infeliz atitude humana, a de distrair a mente com o mesmismo, e por isso mesmo a grande maioria humana chamada de povo, e pejorativamente de "povão" é subjugada por uma ínfima quantidade de déspotas que a governam. Pelo simples fato de se distrair a mente repetindo a mesma e velha história do dia-a-dia. Isto é a mais pura preguiça mental, porém, livram-se da solidão pela maneira mais simples, obedecendo ao sistema. Na velhice é comum sentir-se assim, já que a sociedade de certa maneira joga seus velhos formados neste condicionamento a escanteio. E isto é fato recorrente, e seria hipocrisia negá-lo. Mas, sabendo-se de que a existência humana é assim o jovem deve se preparar para enfrentar esses dias, para não sucumbir na solidão. E essa preparação depende muito do seu estado de espírito, já que todos um dia se não morrerem, ficarão velhos e consequentemente morrerão. Porém, esse estado de solidão não é privilégio de velhos, e sim dos mais jovens também. São seres humanos criando seus mundos e apegando-se a eles, e quando os perdem sentem-se frustrados e vêm à solidão. Então se cria a misantropia, a xenofobia, não querendo mais saber de pessoas, culpando-as de serem as causadoras ingratas desses momentos doloridos. Quando se chega à senilidade há de se dar lugar aos jovens profissionais, e há de se entender que é assim a vida. No entanto, deve-se adaptar ao momento de cada existência, pois, sempre há o que fazer para se obter os dias felizes da terceira idade. A filantropia tem sido a saída para muitos idosos. Pois, sentem-se úteis ao praticá-la despistando a solidão.

A sua mente é um universo desmesurado, onde existem pensamentos incríveis a afetar suas ações. Então você vê fantasmas onde eles não existem. Da mesma maneira vê paraísos. E assim vê a solidão. Aqui vale dizer que, apesar deles não existirem, sua mente pode criá-los. Aliás, qualquer sentimento humano ocupa um espaço no universo, onde se aceita todas as formas de energias criadas pela sua mente desde a nostalgia à alegria. Muitos suicídios acontecem com a desculpa da solidão. Então não se entende o que é solidão, posto que muitos citadinos e até cosmopolitas cometam essa atrocidade, esse sacrilégio. Aliás, suicídios existem de muitas maneiras, o lento, que se pratica fazendo uso de barbitúricos, ou de drogas literalmente, ou com overdoses usadas pelos homens de grandes centros urbanos à forca dos solitos periféricos. Então a solidão é intrínseca, advinda do nosso mundo interior, que é o maior universo criador do bem e do mal. Ela se apresentará somente à cabeça baralhada, estouvada, tisnada, perdida nos fatos da vida, aquela com problemas existenciais. Eis o ditado popular: "Cabeça vazia é oficina do Diabo". Obviamente este verbete "vazio" não é realmente o valor do significado deste ato, aqui neste caso haveria de ser: "cabeça ocupada com o mal", ou "cabeça desequilibrada". Nossa mente é tendenciosa, está sempre a procurar algum sonho do lado prazeroso ao masoquista da vida (o que não deixa de ser prazer àquele que o detém como fetiche). Dor e prazer são as causas naturais da vida humana e seus encantos e desencantos. Portanto, o vazio aqui descrito é o fator indutor da mente, direcionando-a rapidamente aos maus pensamentos, até porque é mais fácil destruir do que construir, haja vista implodir um prédio e reconstruí-lo, nota-se uma distância enorme entre estes dois atos. Então há de se lutar contra os pensamentos distorcidos, aqueles que podem nos trazer grandes dissabores. Somos pegos pelas nostálgicas lembranças de nossas perdas, como dos entes queridos os quais nos deixaram, e com essas lembranças ficaram os sentimentos mais nobres de perdas como do amor, da consideração, da amizade, companheirismo, apoio, ombro-amigo, podemos citar os bens da saúde e beleza física, daquele carrão, daquela mansão, daquele monte de dinheiro, posição social, enfim, tudo aquilo que um dia fenece.

Vamos esclarecer, cabeça vazia é aquela privilegiada com o dom da meditação profunda, cheia da essência divina que é o seu eu maior, sua essência, seu substrato, sua alma... Jesus Cristo disse aos seus discípulos: "Apresentai-vos a mim vazios para que eu vos encha". Deixar a mente vazia não é tão simples àquele que está preocupado com os bens desta vida, posto que direcione todas suas energias a esses bens. Porém, é possível ser despojado, sem desprezar esses bens, sempre dependendo de cada cabeça. Afirmamos categoricamente: é o equilíbrio que nos tira da solidão. Todos esses sentimentos são dirigidos ao mundo virtual àquele que tem a grande força, embora, não se preste tanta atenção nesta preponderante verdade. Vamos tecer uma simples comparação com o nosso mundo paralelo e etéreo à luz da nossa visão. Uma bomba nuclear é ínfima ao compará-la com a sua força destruidora, posto que suas partículas sejam invisíveis, porém, sua força destruidora é bem visível aos que sobrarem de sua devastadora catástrofe. O sentimento de solidão é semelhante a uma dessas bombas nucleares, pois, traz em seu bojo o desânimo, a apatia pela existência, portanto, para se livrar desse malfadado sentimento, se faz necessário ocupar a mente com um sonho, ou apenas um afazer diário como este de escrever, este ato obriga o escritor a pensar, ou entrar em estado de graça usando a intuição, a mãe de toda a criação humana, prerrogativa que serve para todas as artes, ofícios e ciências. Rivalizamos a potência de uma bomba nuclear e seu efeito óbvio, destruidor. É como a solidão, força invisível, porém, devastadora. Naturalmente estamos tecendo comparações com as forças da matéria invisível às da mente também invisível. Porém, podemos fazer o mesmo, comparando com o poder construtor do raio laser, que muito tem ajudado a ciência médica nas curas e muito mais, com o amor incondicional.

O amor incondicional elimina o medo e a solidão.

Quem pensa que o amor incondicional é andar por aí fazendo "caridade hipocritamente", está redondamente enganado. O amor implica em grande sabedoria, aliás, não há sabedoria alguma capaz de explicá-lo. Ora, ora, se há muito tempo Jesus, o Cristo, disse: "Deus é amor", então aqui tudo se resume, e não há quem explique Deus. Porém, resta-nos o consolo de senti-lo, cada um a sua maneira. Quem ama de coração sincero, é generoso, não tem malícia, não se preocupa com as atitudes alheias, porém, se precata, é sábio, como disse novamente o mestre Jesus: "Sede simples como a pomba e prudente como a serpente". Anteriormente quisemos dizer exatamente isto com relação à solidão, sendo que nossos pensamentos são sutis, e se não nos ativermos aos seus engodos, apenas ficaremos a sofrer por conta das entidades maléficas a sugarem nossas energias. Então a luta começa dentro da gente. Autoengodo é o nome, autochantagem emocional, a luta interna é a maior inimiga do homem, ou seja, você lutando contra seus pensamentos insanos. Querendo entender aquilo que não tem a menor necessidade de ser. A perturbação mental é terrível ao seu portador, que age aleatoriamente trazendo graves consequências à família e amigos, ou estranhos. Quando a solidão se aprofunda na mente desavisada, tudo se espera do paciente sofredor chegando às raias da loucura, e como verdadeira obsessão pode causar grandes males aos outros. Temos vistos crimes hediondos de filhos contra pais, pais contra filhos, irmãos contra irmãos, sem causa que justifique crimes tão bárbaros. Com certeza essas mentes estiveram vazias por lapso de tempo e logo foram empurradas para tais atos criminosos. Pois, na nossa sociedade moderna, nada justifica crime nenhum, imaginemos então quando cometido entre filhos e pais. Aqui se encontra a solidão, revestida com outros nomes, pois, quando ela chega avassala a mente incauta, há de se vigiá-la constantemente. Naturalmente quando uma mente se encontra ociosa, na realidade fica maquinando o mal, até de forma inconsciente, dá aquela impressão de vazio estonteante, porém, o subconsciente jamais pára de trabalhar e, perdendo a razão vai fazer o que não se deve fazer. Ficando mais ou menos assim, você chega para uma pessoa desequilibrada, perturbada e pergunta a ela se tal atitude errada deve ser evitada com a mais absoluta certeza era dirá que sim. Porém, ao transcorrer das horas passa a cometer aquele ato errôneo, ou seja, o mesmo ato que condenou horas atrás sem a menor cerimônia, e sem peso na consciência. São pessoas de mentes cauterizadas. Como aquele político sem escrúpulo, que prega na sua tribuna a honestidade, mas, pratica a desonestidade. Conhecemos muitos deles, e o povo também com a sua mente queimada continua reelegendo-os. Para não sentir a solidão a mente incita a pessoa a fazer qualquer banalidade.

Saudade e culpa

Estes dois sentimentos que fazem da solidão, um misto de "solitude culposa, ou de peso na consciência" quando praticada contra àqueles que já se foram, e nada se pode fazer do ponto vista físico. Restando somente o amor próprio transformado em autoperdão. Trata-se de "não chorar o leite derramado" sem perder a consciência do erro cometido, e do autoperdão adquirido. Errar é humano, e autoperdoar-se também. Quem se foi também foi humano e cometeu também seus deslizes com outros irmãos. Portanto, o perdão é divino, e o autoperdão implica em amar o próximo como a "si mesmo", quem não aprendeu a se perdoar não sabe amar nem a si e nem ao seu próximo. Da solidão podem surgir bons pensamentos de louvores à solitude, trazendo alento, o verdadeiro alimento de nossas vidas como o poema que se segue.

Magia da vida

Oh... Magia que a mim me deu vida um dia. Olhando ao céu de anil, procuro analisar o meu perfil, perfilado aos seres viventes neste plano varonil e inocente. Varão aperfeiçoado para a luta neste planeta azul, às vezes de força bruta, com muito verde ainda, antes da morte finda. Reluzente luz da vida universal. Apenas um ponto vivo, este sou eu, juntamente com outros tantos desejosos em saber o que acontece no misterioso plano astral. Vidas vêm, vidas vão pelos vãos dos dedos.Vida enrolada ou normal, aguardando o maior segredo, neste velho e vão degredo à procura do nada absoluto, vida e luto. Porém, a mim me convém saber do agora, apesar do momento, haja aurora, pois, sei que nada sei. Descortina-se o verbo o qual devo conjugar ao giro desta vida a girar, e cumprir o meu dever eterno, mais uma vez. Vida terrena, vida animal, ora açúcar, ora sal. Aprendizado do bem, e também do mal. Porém, não deve me assustar, esta é a escola de bilhares e bilhares de seres sentados em bancos escolares, a descolarem ensinamentos eternos, e a serem usados nos tempos etéreos, quais somente a eternidade pode conceber a essa escola na qual vim para aprender.

Duro na queda

Seja duro com a solidão, pois, fazer que não a vê; seja ignorar a vida, traduzindo-a em jardim florido, isso só se vê mesmo na tevê, àquele que se acovardou e para si guardou o seu avaro prazer. A vida é luta renhida, sim senhor, para se crescer com paciência, tolerância e clemência na prática do amor deixando a ânsia de sobrevivência e na labuta da malquerença apenas se defender. Seja duro na queda, posto que sofra menos, saindo de lugar grande sem se tornar pequeno. Lutar em desânimo aumentará o veneno. Faça-se duro para tornar sua vida amena. Faça-se mais do que inteiro, porém, mantenha-se sereno. Que diferença faz, ser menina, moça, jovem, menino ou rapaz.

Estamos todos na eternidade!

Jbcampos

A SUBLIME ARTE DE VIVER

O Ano é 95 d.C. O cenário é a solitária de Patmos, no Mar Mediterrâneo, próximo da Ásia Menor. Patmos era improdutiva, deserta e rochosa. Um local seguro para os navios aportarem durante as tempestades, mas inadequado para a habitação de seres humanos.

Mas, no primeiro século da era cristã, Patmos era uma colônia penal usada pelos romanos. Cercado de águas por todos os lodos, era uma penitenciária de segurança máxima: o Alcatraz daqueles dias.

Separado dos irmãos em Crista, não tendo comida suficiente, precariamente vestido, dormindo numa caverna fria, escura e solitária. João estava ali como prisioneiro. Seu Crime? Pregar o evangelho de Jesus Cristo (ler: Apoc. 1:9).

Com o Som de Trombeta

João identifica-se à Igreja como um irmão e companheiro na aflição, ou tribulação. Por que João não se apresenta como apóstolo e líder das igrejas da Ásia? É porque, naquele momento, os dias de seu ministério já haviam ficado para trás. João desempenhava ali a última tarefa de sua vida.

É justamente quando sofremos, e nos sentimos esquecidos, que Deus se manifesta para usar-nos de modo maravilhoso. João pensava que o seu ministério já havia chegado ao fim. Mas o melhor estava para vir... É nessa hora de sofrimento e aparente derrota que Cristo se manifesta na vida de João.

Foi em meio ao confinamento que João ouviu o alerta final de Jesus Cristo: "Eu fui arrebatado em espírito no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma grande voz, como de trombeta" (Apoc. 1:10).

João ouve uma voz semelhante a trombeta - uma voz forte, distinta, penetrante e dominadora. A voz de Jesus Cristo. Já haviam se passado mais de 65 anos desde que João a ouvira pela última vez intimando-o a deixar a rede para segui-Lo. Tempos mais tarde, ouviu-A soar: "Está consumado!" Depois, ouviu-a em tons de despedida e na promessa de retornar a este mundo.

Agora, João ouve novamente aquela voz. Desta vez, diferente. Ele não ouve o sussurro gentil do Servo do Senhor que, como o profeta anunciara: "Não clamará, não se exaltará nem fará ouvir a Sua voz na praça" (Isaías 42:2). Ao invés disso, João ouve a voz forte e penetrante do Cristo glorificado que soa aos seus ouvidos como uma poderosa trombeta.

O Filho do Homem

Ao ouvir a voz como som de trombeta, João virou- se e viu sete castiçais de ouro. Nos tempos antigos, os castiçais eram colocados no canto do aposento com uma pequena lamparina sobre si. O propósito do castiçal era manter a lâmpada no lugar de maior destaque do aposento. O castiçal não era a luz; ele era o suporte da luz. O mesmo ocorre conosco. Somos o suporte da luz de Cristo, neste mundo em trevas. Esta é a missão da Igreja.

Os castiçais visto por João são de ouro, o metal mais precioso. O ouro representa o grande valor da igreja. Nosso valor é incalculável. Jesus derramou seu preciosíssimo sangue para nos resgatar. Pagou por nós um preço superior ao do ouro e da prata (I Pedro 1:18- 19). Somos preciosos para Ele!

No meio dos castiçais, João vê a figura como de um homem. Não um homem comum! Não um homem qualquer, mas o Filho do Homem. Este é um título messiânico profundamente enraizado no Antigo Testamento, pois fala daquele que haveria de vir, ungido pelo Espírito, para inaugurar o reino de Deus na Terra.

O Profeta Daniel viu o Filho do Homem vindo para governar o mundo com soberana autoridade: "Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do Céu um como o Filho do Homem... E foi- lhe dado o domínio e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas O servissem: o Seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o Seu reino o único que não será destruído" (Daniel 7:13-14).

João observa as vestes de Cristo. Seus trajes suntuosos significam Sua autoridade suprema sobre a Igreja - a Sua soberania. Jesus não está mais vestido como Servo sofredor. Ele é visto com as vestes de um poderoso governante - as vestes daquele que domina: Ele estava "...vestido até os pés com um, vestido comprido. e cingido pelos peitos com um cinto de ouro"(Apoc. 1:13).

Nos tempos antigos, este era um aparato de reconhecida autoridade, dignidade e poder. Quanto mais longo o vestido, maior a autoridade. Por isso, na visão que lsaías teve de Jesus glorificado, as orlas de Seu vestido enchiam o templo (lsaías 6:1). O domínio de Cristo é infinito, não cabia no templo sequer uma representação dele - por menor que fosse a escala usada.

Seu Caráter Puro

João volta-se neste momento para a cabeça e o cabelo de Cristo: "E a Sua cabeça e cabelos eram brancos com lã branca, como a neve..." (Apoc. 1:14).

Os cabelos de Jesus são brancos. Não de um branco comum e vulgar. É um branco que refulge tão brilhantemente quanto a neve que cai num dia ensolarado. Este branco é símbolo da absoluta pureza e santidade de Cristo, Santidade é o atributo que mais sobressai em Cristo. É o topo de Seus atributos.

A Santidade de Cristo é vista em Seu ódio pelo pecado. Ele acha-se totalmente afastado do pecado. Para que se possa estar em sua presença, é necessário ser santo. Quando os anjos pecaram, foram expulsos do Céu, e separados da Sua presença. Por rejeitarem a Cristo Jesus, os homens serão expulsos de Sua presença no Juízo Final (e destruídos).

É santidade o que Cristo espera de Sua Igreja. Precisamos estar separados do mundo; não podemos ser como o mundo. Pedro nos adverte: "Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver. Porquanto escrito está: Sede santos, porque Eu Sou santo" (1 Pedro 1:15-16)

Seu Profundo Olhar

João contempla, neste instante, os olhos de Cristo, A visão torna-se sobremaneira impressionante. Raios de fogo saem dos olhos do Senhor Jesus: "...e os Seus olhos são como chama fogo" (Apoc. 1:14 u.pj.

Jesus vê os lugares mais profundos e secretos de cada Igreja. Nada Lhe está oculto. Porque "não há cri atura alguma encoberta diante dEle; antes todas coisas estão nuas e patentes aos olhos dAquele a Quem havemos de prestar contas" (Hebreus 4:13).

Jesus observa tudo com uma visão mais poderosa que raios X. Nada escapa à Sua atenção. Nada pode obscurecer-Lhe a visão. Nenhum conhecimento está fora de Seu alcance. Ele vê perfeitamente cada ministro e membro de Sua Igreja.

Com olhar penetrante, Jesus sabe completamente cada detalhe sobre nós. Não há pensamento secreto, palavra ou intenção que Jesus não conheça! De fato, Jesus conhece nossos pensamentos mesmo antes de os expressarmos (Salmo 139:4). Ele lê a nossa correspondência sem ter de abrir o envelope!

Com olhos penetrantes como chamas de fogo, Jesus olha para Sua Igreja. Ele diz à Igreja em Éfeso: "Eu sei as tuas obras" (Apoc. 2:2). A Esmirna, Ele observa: "Eu sei tuas tribulações" (Apoc. 2:9). A Pérgamo Ele fala: "Eu sei onde habitas" (Apoc. 2:13). Às Igrejas em Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia Ele diz: "Eu sei as tuas obras" (Apoc.2:19e3:1,8e 15)

Com "os Seus olhos como chamas de fogo" Jesus está a olhar e acompanhar a vida de cada membro de Sua Igreja. E o que é que Ele procura? A resposta pode ser dada numa única palavra: Santidade. Jesus busca. Jesus espera. Jesus sonha em ver santidade na vida dos membros de Sua Igreja.

Sua Disciplina Severa

A visão vai além . Observando a Cristo, João vê que de Sua boca saía uma arma mortal - uma espada: "... e da boca saía-lhe uma afiada espada de dois gumes..." (Apoc.1:16). À espada de dois fios mostra a autoridade judicial de Cristo para administrar disciplina em Sua Igreja. Quando a Palavra de Deus é desobedecida, Jesus empunha Sua espada para disciplinar. Mas o inimigo de Cristo não é a igreja, e sim o pecado.

Com esta espada afiada, Jesus remove cirurgicamente o pecado de Seu corpo - a igreja. O pecado é um tumor maligno! Se o seu corpo for atingido pelo câncer, com certeza você fará o possível para recuperar a saúde. Isso requer submissão ao bisturi do cirurgião. Não porque você odeie seu corpo, mas justamente por amá-lo.

O pecado, da mesma formo, tem que ser extirpado do corpo da Igreja - onde quer que ele se encontre! Jesus ama Sua igreja e deseja-lhe a saúde espiritual. Por isso, onde houver pecado Ele o remove com a Sua espada aguda de dois fios.

Embora pareça traumático, esse tratamento não é maléfico ou vão, O pecado tem de ser removido, a disciplina tem de ser aplicada, por amor ao membro e por amor ao corpo - a Igreja.

Em sua graça, Cristo muitas vezes contém Sua disciplina para dar mais tempo para que nos arrependamos. Ele prefere que nós mesmos tratemos o pecado. Mas não devemos pensar, nunca, que Sua tardança significa que Ele não vai nos disciplinar - que Ele esteja passando por altos nossos pecados. A Bíblia adverte: 'O Senhor é tardio em irar-se, e de grande poder. e ao culpado de maneira alguma terá por inocente (Naum 1:3).

Apelo

Esta visão, dada a João, nos traz um alerta final, da parte de Deus. O tempo é curto. todos as profecias estão se cumprindo. O fim se aproxima. Cristo virá em breve. Aliás. Ele já está voltando. Não há mais tempo a perder! Esta é a hora mais importante de toda a História humana São os momentos que precedem a volta de Jesus Cristo. E tempo de acordar e servir ao Senhor. E tarde da noite!

O apóstolo Paulo nos adverte: "e isto digo, conhecendo o tempo, que já é hora de despertardes do sono; porque a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé. A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos pois as obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz (Romanos13:11-12).

Esta passagem mostra crentes espiritualmente sonolentos. Indiferentes ao cumprimento das profecias. Alheios aos sinais da vinda de Jesus. Mas já é tarde, o amanhecer da volta de Cristo está despontando. A igreja precisa estar pronta; é hora de despertar e dar à trombeta o sonido certo. É hora de avisar o mundo! Jesus está voltando!

A Rua

Uma via de acesso que marca o espaço urbano de uma cidade. Rua tem nome... rua tem alma, porque ela conta histórias das pessoas da cidade homenageiam seus cidadãos ilustres, e as datas históricas que marcaram eventos.

Os nomes das ruas são homenagens aqueles que de alguma forma  contribuíram para o bem estar da cidade do país.  A rua marca a história, a saga de uma família, apesar do espaço ser o mesmo, o cenário arquitetônico transmuta-se em outras paisagens no decorrer do tempo.

Cada pessoa tem uma história familiar na rua onde moraram.  Entre muitas ruas que marcaram a minha vida rua 24 de outubro na cidade de Itararé interior de S. Paulo é a que mais marcou em minha vida. Por esses dia tive a oportunidade de caminhar por ela. Foi um momento impar na minha vida. Aproveitei curtir os momentos que a oportunidade me patrocinava na minha jornada nessa vida. Isso porque nos meu cinquenta e 63 anos de existência especificamente essa marcou a minha historia.

Essa rua, particularmente me traz recordações de um tempo que não volta mais, mas que ajudou a  consolidar minha personalidade, pelos eventos marcantes da minha vida que ali ocorreram. Eu lembro-me de quando chegávamos do interior do norte do Paraná, depois de uma extensa viagem de Jeep com minha família.

 Itararé, quase divisa com o Paraná no interior de S. Paulo e minha  cidade Natal. Era para mim a cidade grande; o moderno ali estava. O cinema da avenida S. Pedro, o Padaria do Marcondes da rua XV de novembro.

 Meu pai viajava com toda a família de Jeep por longas 10 horas de viagem pelas estradas poeirentas, que naquele tempo não tinha asfalto.  A alegria de rever meus avós e meus tios e primos eram tanta que mal dormia naquela primeira noite de chegada. No dia seguinte levantava-me bem de manhã para saborear um gostoso café com manteiga. O cheiro do café torrado do pão feito em casa  invadia as dependências da casa de minha avó.

Logo após o café eu ia para o jardim que minha avó cuidava com tanto carinho. O cheiro da tinta nas latas, o cal na bacia de barro, cheiro das flores essa cena e os odores que dela provinham me situava no lugar. A casa dos meus avós.  Meu avo era pintor de paredes e ao lado jardim ficava o depósito de latas de tinta , o pincéis que ele guardava para pintar  as casas. Sentava-me no Hall de entrada da casa e ficava contemplando o céu.

Após o café da manhã eu ia para o Hall da entrada do casarão e naquelas  manhãs  iluminada, ficava absorto no cenário, um céu sem nuvens. Ficava ali com meus braços entre os joelhos com as mãos sobre o queixo, contemplando os transeuntes e observando. A paisagem, enquanto aguardava  meus primos para brincarmos de bicicleta, pega-pega esconde- esconde.

O ritual da vaca amarela na hora do almoço, as brincadeiras no fim da tarde, a correria na praça à noite com todos os meus primos que era mais de 13, faziam a festa das minhas férias, tudo acontecia ali... Na Rua 24 de outubro. Por esses dias após muitos anos, tive a oportunidade de viajar para minha  cidade natal e depois de 40 anos passei em frente da  casa de minha avó.

Ela não existe mais...  No lugar do casarão uma linda residência de alvenaria com portões eletrônicos, de acesso controlado.  Mas o fato de estar ali naquele local, foi como se retroagisse no tempo.

  Assentei-me no meio fio, onde ficava o hall de entrada do casarão. Pousei meus cotovelos nos joelhos e coloquei as mãos no queixo, minha postura preferida no dia seguinte após a minha chegada na casa de meus avôs. Por um instante fechei os meus olhos. Confesso que foram momentos devocionais, onde a imagem. das cenas passadas me vinham a lembrança. Os meus  pais e meu avos  e a maioria dos meus tios já não se encontram mais em nosso meio. Apenas a memória daqueles tempos memoráveis, me trouxeram lindas recordações.

Nesse universo macro de múltiplas cidades e avenidas iluminadas existem ruas belíssimas nos grandes centros, mas  especificamente essa que cito não se refere à beleza estética do espaço geográfico. Mas por mais paradoxal que seja, lá está o cenário mais belo. Estou falando de um pequeno espaço de dois quarteirões de uma ruazinha de uma cidadezinha do interior de S. Paulo, onde o que menos havia era beleza do contexto geográfico. Mais uma vez, lá estava eu na minha rua preferida, Rua 24 de outubro, assentado quase no mesmo local. Percebi que no espaço entre dois Paralelepípedos, uma flor minúscula, sobressaia entre as saliências das pedras. Era como se eu recebesse uma mensagem da continência da vida.  Estava na rua mais linda da minha história. .

 Estou falando da beleza dos momentos que ali passei. A rua da casa de minha avó materna me fez lembrar um tempo que desapareceu nos grandes centros. Um centro de convivência familiar onde havia sentido ser família. É a minha história, o inicio da formação de minha personalidade. A rua está lá num espaço geográfico onde minha história aconteceu.  Momentos lindos que marcaram minha infância e o inicio de minha adolescência. Sentado na esquina que antes ficava situado a casa dos meus avôs me emocionei ao contemplar as pedras de paralelepípedos quase que eternas naquele chão.

 Essa pedras são como couraças da rua. Pensei na primeira vez que pisei nela, novamente estava ali na minha rua preferida. Percebi nos pequenos espaços que separavam as pedras uma das outras, uma tenra e minúscula flor vermelha que se sobressaia entre a graminha verde, que teimosa insistia a estar ali apesar dos pneus dos velozes veículos de nosso tempo. A rua do picolé colorido, das pipas, da bolinha de gude, do triciclo. A Rua do Biju, do jornaleiro, a rua do leite e do pão fresquinho que o padeiro deixava na porta pela manhã. É impossível não se quebrantar diante de um céu iluminado diante de um cenário onde as cenas da minha infância se desenrolaram.

Eu ali... Sentado, cinquenta e três anos anos mais tarde... E olhando aquela florzinha, é como se a rua me dissesse “a vida continua...” Outras pessoas construíram a sua história e outras estão a construir  na mesma rua, no mesmo espaço que foi palco de uma vida de uma numerosa família.

Refleti nessas coisas sutis que a vida cria, e haveis de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o seu mundo à rua onde moram, e por que certos tipos, os populares, só o são realmente em determinados quarteirões. Sem duvida o dia 30 de novembro de 2008 foi um dos dias mais felizes de minha vida. Foi um presente do acaso premeditado, pois fui parar na minha rua preferida para matar as saudades. Quantas coisas aconteceram ali. Vi os transeuntes, percebi dois garotos na calçada. A rua reiniciando a história na vida de outras pessoas.


Parafraseando aqueles versinhos

Se essa rua se essa rua fosse minha
Eu mandava eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas com pedrinhas de brilhantes
Para o meu coração alegre sempre estar.


Agradeci a Deus, pela vida dos meus avôs dos meus pais.  Levantei-me e continuei minha caminhada . A vida continua... A rua continua... Na sua missão sagrada, testemunhando e capturando as almas das pessoas que por ali viverem.

Lá na UPA, bem nos CONFINS da CIPA já não CEI se a ALCA CUT o IGP ou se o ITBI dá para o IPC, quanto mais se a NASA, o PENTÁGONO e o MST invadirão a RFFSA, a Amazônia ou a EMBRAER. Wells há mais sigla entre o CEO e a terra do que supõe nosso Van filosofia [só para não dizer que não falei de siglas].

Só SANSEI é que se UNE o CTN ao Leão [do] IMPOSTO [R]; o ERÁRIO o FISCO DEFICIT ao ECONOMÊS de mestre ERG [UE-se] imposto [s] a todo [s] num dial D sol para a CND só RIR perversa. Assim entorpe sob a umbra fiscal, dominados e subsumidos por singelas siglas e signos de aparência neutral serve o fisco maître no cardápio da Mesa de Renda o fel amaro da tributação, um purée, um AGU pra CEAS na DATAPREV's. Quando não é INSS, ICMS, IR, ISS? É IPI, IPTU, ITBI? É IRRF, IPV?

Potassa cáustica confisca do MERCOSUL e ainda cobram do POP assalariado a PIB DE ILUMINAÇÃO.

Ó Lady SELIC! Ó Sir. DOW JONES! Ó Inhá CONFAZ! Isso não SENFAZ!
Por que tanta usura jurássica? Tantos juros no purgo de Hades se nada fazem e nos dão DAIS?

Olha que até o Código de Hamurábi limitou a cobrança de juros nos empréstimos? Olha que até o Pentateuco fez a primeira condenação ética à cobrança de juros? Além de Aristóteles, o Antigo Testamento, a homilia de S. Basílio Magno, São Thomas de Aquino e o Condex normativo pátrio proíbe e pune a tal prática do "aluguel sobre o dinheiro"? Não vê que por cá tem que ter a CUT para dizer? Que para tanto imposto a pagar tem que ser Deus?

Junte-se a nós. Você pode. Vão pra PQP? Como diria Sartre: O inferno não são os outros, o inferno são os impostos!

Desde a.D e a.C batiza o Cristo o mesmo FOB.

É CEMPRE a idiossincrasia do reduzir a pó a nomenclatura toda CEMANA.

Se não for o repetitivo e o mal educado do CEO CIAC sem LER o ABC com o CPU do PC tarado molestando a UFIR da TR ou o DORT distúrbio [nado] osteomuscular a mandando há anos pegar na RAIS e por no DAT a seco sem DNOCS no IOF no MP no TCU lá onde o TIPI e o TFE tomam no CONTU? D'outro é o data show digital sem OFFSETT emendando uns fatos e fotos extra para as arquibancadas no COSPY DESK.

Triste é vê a BR na TPM rodada entulhada de pau e pedra, cheia de pó e lama no fim da estrada mal sinalizada KM da vida mandando o DNIT tomar lá nos buracos e nas curvas onde a BR-3 toma só pra vê a PRF nos por a nu pelado no RABECÃO do IML, enquanto o $ cínico do PEDÁGIO manda eu, manda tu, manda ele, manda nos e vos, manda você tomar nu... E soprar no BAFÔMETRO com a cara cheia de ALCA lá do DPVAT da SUSEP, no IPVA do CETRAN, do DETRAN, da CIRETRAN no CBT do CONTRAN bem fundo FED do DENATRAN?

Caracas! Quando não fora o HAMMAS, fora o HESBOLLAR do Bin Laden, agora é o Estado Islâmico jogando Boston no Tio SAM?

É a ASFARC ou a MIS U.S. A num ABREV [iar] do de cujus Hugo Chávez? Sin., pero non mutcho Maduro!

É o FBI com a Cia, a SUAT e a FAB no CPOR do DAC?
É o GATTE do DEIC no CTA da ROTA socando a MÁFIA e o SENAD na COSA NOSTRA!

INRI Cristo DIU? O Ministério da Saúde ANVISA: É só a KS por no PET a Vênus para conter o HIV da AIDS que a invejosa BCG mal curando o KOCH chega logo sem bacilo com a DENGUE de picadura para a ZICA da SUCAM?

Sou NERD. Sou Nerd mesmo? Como é que por "livre e espontânea vontade" fui obrigado a contribui com a CPMF e agora no K.O infecto de IMPI GIA com FEB e FAQ tonto sem CAL [oria] e KV de potência não há um só DOUTOR do CRM e leito no CTI da UTI? Não há uma AMBU COPOM da AMB nem o DDT da CEME na "gaiola" das UCAS? Ó OMS! AI que SUS!

Não! Não! Não sou OTAN!

Sem SUNAB, sem Inmetro e sem PROCON?

Sem ST, sem STM, sem TJ, TST, TSE, TRT, TRF, TCM, TCE e TCU? UA?
Goethe ou não Goethe [m] vão todos para o CNPq?
Ou vão parar na USP, na UnB. Parar na PUC e na UFMA?
Ou vão parar no CAPES, no SESU, no ITA? Lá terão Sophia e Sofos?

Sou do prozac, mas não vivo sem DP.
Sou da CF pra viver sem ter PF, sem ter CIVIL, sem ter PM, mas não chupar DOPS no xadrez!

Tenho CI e CPF do MF sim!

Tenho DOC - CRACHÁ - CEF - COMPROVANTE DE ENDEREÇO e fator RH.

Tenho no escorregado: HABEAS-CORPUS, SALVO CONDUTO meu ADV. e ALVARÁ.

DOU o DARF pago pontual em cash ou via TED o IRPF.
DOU o CNPJ? DOU no CNPJ ou IRPJ imposto recolhido sem sonegar

DOU a CTPS assinada e guia do FGTS autenticada.

Olha vê se não enche DIEESE?

O IBGE acusa o IGP de sabotar o PIB, mas jura o IPE e a OIT que o IDH é baixo.

Confessou a SEF e a INEPE, a FUNBEC, a FUNDEF, a SBPC e ao diretor do MEC que sem o finado MOBRAL o IDEB da Escola Pública que não ANDES sabendo, tomou um ZERO!
Deu nas ondas moduladas da RADIOBRÁS que nem a ONU a FEBEM suporta mais, e que a OEA com o UNICEF já não seguram as verdejantes parreiras do ENEM.

Ora, porque não aproveita então e vai de SUFRAMA dizer ao INPA falar ao SINRED denunciar ao sistema pátrio cuidar bem da FUNAI e do IBAMA sem parar de olhar para as florestas que aos poucos vão morrendo sem chorar na UTI vitimadas pelo lucro voraz da BOVESPA; do BM&F; do BID e o BIRD; do BCB; da FEBRABAN; das MADEREIRAS; do CAPITAL ESTRANGEIRO e da OMISSÃO do próprio gov.com. br.

Mayday... Mayday.

DDD, DDI, LBV, LBA.

Ligue já! Bela importa a PESTALOZZI e a saga boa da APAE!

Quanto mais tem ÍBIS no futebol, CRE, CRB? Dá FLA e FLU? Tem FIFA, FISA, FITE COE?

Quanto mais tem CBF, CBM, CBV, CBT, CBB, CBJ, CBA, CBAT? Tem CONMENBOL e COI?

Quanto mais tem FIPE, FINEP, FUNDEB, FESESP e FIESP?
Mutilam o Portinari, o Aldemir e a Tarsila do Amaral.
Bel. -art. [Belas-artes] ó PÍNEL?

Acaso querem o IPHAN no UHDF?

Que sandeus de nós meu Deus!

OXÊNTE! Não pare lá na sig [L] a? Não pare? Signos!
Siglonimizar? Siglonimização? O ato de criar siglônimos?

UÉ! Até o infixo afixo no interior das palavras, o DIS em indispor e o do por Z em florzinha já o conhece?

BAH! Inté o tê é té do até da aférese aparece?

Hein, hem! Assim não dá! Assim não dá inhô Zé?
UAI! Ou vai pra DF de JK ou segue pra MG de JF e BH?
Quando não é o PAC, é o PIB, é o PIS e o PASEP.
Quando não é o SEST, é o SEBRAE, é o SENAI e o SESC.
Quando não é o SENAT, é o SESI, é o SENAC e o SERPRO.

É o IBOPE inábil opinando ao INCRA que não há a sós "sem terras"?
Ó CREA! Não ABRAS boca IBOPE.

É o FUNRURAL fuçando na bengala do tio SERASA.
É o FIM! O MST no PNDH denuncia levar pau do TFP e sal da UDR.
É a INFRAERO de VARIG e o GOV. de VASP indo Pro G9 impressionar com o PRÉ-SAL a OLP e a OPEP.

É o SPU cobrando um mar de dunas e o domínio do mar azul para si.
É o SPC cagando na me e o cartório do ócio negócio carimbando os ossos do protesto.
É o ABECEDÁRIO do AA, AAA, AABB, BB, ABC, ABCD, AACD querendo a CEF... FUI!

Ora... Ora... Vão-se pro MAM ou pro MASP que os carregue.
Vou surtar. Vou surfar.
Vou sentar. Vou mesmo é [a] fundar uma ONG no sofá.
Vou pedir um empréstimo à SUDAM e um "papagaio" junto do BNDES.

Uni-duni-tê salame míngüe!
Para o PV que não vê? A mídia da TV?
Misericórdia D'us. Um PT saudação.
Vou é deitar e rolar.
Ainda bem que no THE END me resta a FUNARTE, a ABI, a OAB e a ABL.
A CNBB? A CNBB é só a voz roca de Deus no Brasil.
Ciranda cirandinha... Vamos todos cirandar...
Quem gostar de mim sem ANEL? Sou Eu ANATEL!




Leia o COMENTÁRIO DE: João Batista do Lago [Articulista e analista político, poeta e escritor, foi editor de vários jornais e tem livros publicados]. ["João Batista do lago, maranhense, pode ser considerado, atualmente, um dos mais completos poetas e cronistas do Brasil, haja vista a consciência plural e significativa de sua intuição cultural, fato que o faz passear entre musgos históricos gregos e o modernismo clariciano, espargindo o pensamento poético alemão, americano ou inglês, sem esquecer das taças saboreantes dos vinhos que enebriaram o cismar dos poetas franceses como BAUDELAIRE (Charles Baudelaire), MALLARMÉ (Stéphane Mallarmé), FRANÇOIS COPÉE (François Édouard Joaquim Copée) e MUSSET (Louis Alfred de Musset) - o poeta do amor. Como eu, o Maranhão e o Brasil também, creio, se orgulham de João Batista do Lago, uma das maiores expressões literárias do mundo moderno. Fato que, realmente não deixa a desejar se comparado a nenhum dos franceses acima citados". Marconi Caldas Poeta, escritor e advogado São Luís - Maranhão - Brasil 2007].

Esta poesia do poeta Serrão Manoel, aos meus olhos, é de uma modernidade gritante. Percebam que falo de modernidade e não de modernismo! Faço questão de acentuar esta diferenciação para, assim, poder fixar-me na nucleação primeira, fundamental e fundaste deste poema.

O poeta constrói o poema a partir do campo siglonômico, uma ferramenta indispensável à modernidade do tempo do aqui e agora. E ele o faz com mestria: humor, sarcasmo, sátira, denúncia...

E vai mais além quando nos aprofundamos numa análise de conteúdo: de forma ímpar presentifica sinais que se nos remetem aos campos da Política, da Economia, da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia...

Ao ler e reler este poema teve a nídita sensação de encontrar, na alma de cada verso, o espírito do "valor duplo, contraditório e indecidível" aventados pelo francês Jacques Derrida, isto é, Serão Manoel evidenciam nesta sua poética "posições" dos signos nos convocando a constantes e continuadas releituras do texto que vai construindo e desconstruindo valores desenhados no campo da mente de cada qual que toma conhecimento desta obra.

A siglomatização, como ele a infere a partir do título, é, ao mesmo tempo, uma convocação para a revolta, a partir do instante em que o campo siglonômico nos retorna ao ventre da nação como imbecis humanos destinados a obedecer ao status que letargia dos pela inocente incompetência de entender tantas siglas, mas ao mesmo tempo condenados à obediência de suas regras se não quisermos apodrecer no fundo de uma vida acivílica.

Ainda assim, o poeta, numa tentativa desesperada de desconstrução desse mundo real... Mais que real: surreal, oferece-nos sua indignidade como obra da mais pura razão de luta contra todas essas iniqüidades que são geradas no ventre o Poder, ao seu bel prazer, pois sabe que ao povo condenado resta apenas obediência insofismável da sua desconstrução diária:

"Ora... Ora... Vão pro MAM ou pro MASP que os carregue.

Vou surtar. Vou surfar.
Vou sentar. Vou mesmo é [a] fundar uma ONG no sofá.
Vou pedir um empréstimo à SUDAM e um "papagaio" junto do BNDES...".

Quem dera pudéssemos agir assim... Noutras palavras, palavras do tamanho do povo que fala: "Ò, aqui, banana pra vocês...".

Parabéns, poeta João Batista do Lago.

diz-se que as mulheres são mães
e costuram distâncias
sem máscaras

diz-se que usam da memória da luz
e dos tantos escombros
ao redor dos olhos

nos meus sonhos
ainda os lábios das mulheres incuráveis
onde vibram a desordem e a recusa

a mão de pedra
na mão
de verdade

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

acordo de noite como se as letras

fossem coágulos aborrecidos

pancadas estivais

maduras e primitivas

 

descobrirei o destino e faremos amor

manhã cedo

 

os gestos serão suficientes

um pouco a medo no fundo de si

onde as bocas se abrem

enquanto se tocam

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

existem sinais primitivos

onde escorre ainda o sangue

de quando me entregaste a cúpula do teu corpo

 

na boca ainda a luz virgem

onde a juventude

enlouquece de apressada surpresa

 

mostras canteiros ainda fechados

onde vais consumindo

o silêncio

 

ainda se ouvem os vales nocturnos

a escancarar

de gozo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

basta que sobreviva e vá abrindo e fechando portas

no estrondo dos dias

 

direi sempre este é o precipício necessário

a nudez da terra mais faminta

 

são assim as margens do abismo

desde sempre

 

por aqui se movem todas as coisas

todos os coices e todas as promessas

 

conhecerei então a noite e o interior da noite

os beijos e os dentes da noite

 

no seu grande prodígio a conhecerei

sem que o saiba

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

anseio amar-te entre o delírio

e a penumbra

do corpo

 

há uma metáfora de carne

que um dia desvendarei

 

uma voz e uma sombra de calor

que se abre a todos

os beijos

 

na liberdade do corpo

a fulgurante lentidão do orgasmo

 

por isso nos contraímos

pela chama

que a pulsar nos contempla

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

a noite já me conhece

e a sua porta abre-se à espera das coisas

dos corpos

 

inocente o silêncio da noite

 

faúlhas breves e loucas

esmagam as sementes do gozo

mais fundo

 

húmido e frio o silêncio da noite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

serei terra e a tua voz inteira

enquanto a vida nos arda no seu olhar

mais puro

 

aprenderei o tempo de tremor e alegria

onde seremos o pressentimento

da vindima

 

a boca e a língua em qualquer noite

como se fosse a primeira

e a última

 

dá-me a tua boca

nos segredos da tua nascente

do teu recanto de paz debaixo da tua cheia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

se a morte fosse assim

seria implacável no amor da carne

 

escrevo da loucura da pedra nos gritos mais ténues

na explosão do sémen

 

por isso escrevo da morte

e da invenção da culpa

 

e da saliva dos beijos quentes

que despertam os sentidos mais puros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de mim serás a fonte e veloz é o desejo

e a fome

 

leia-se a paixão

Para que robustas sejam as suas raízes

 

mexeste por dentro

do mesmo abismo onde a vertigem incendeia

e onde é escassa a fraqueza

 

enquanto mergulhamos na estranha ausência dos sentidos

de qualquer solidão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

preciso de uma palavra que defina o teu corpo

e a forma como levitas no meu

 

as sensações conheço-as mas não as desvendo

até que sejam o trigo e o marfim e os olhos do deus

 

no teu corpo explodem primaveras em espasmos

terríveis e belos como se a fome matasse e sorrisse

 

e a tua voz me beijasse e bebesse

no meio do fogo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quando me sobes e procuras

o quanto me assombras

nos corredores e nos gestos que inventamos

e o sussurro das palavras

que nunca dizemos

 

nasce um ramo de palavras

que te amam comigo

e respiram

libertas e ardentes do maior desejo

 

por dentro de ti os olhos são tímidos

no entanto uma aguarela

onde o vento avança acima de todas as noites

 

e são gulosos quando me abraças

lentamente na tua chama

onde me torno lança acima da rosa repentina

 

entreabres a luz no desatino dos corpos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

percorro devagar todas as sílabas

do teu corpo

e serei ferro e lume brando

até que os gritos se escutem e o dia

seja imediato

no pulsar mais dentro de ti

 

e serei chama

de tanto de ti serei deus e o diabo

o amado e o amante

o sabor a renda

apetecida e branca

desarmada nas praias do teu corpo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

naquilo que as madrugadas vivam

haverá sempre o nosso cheiro a barro religioso

que se embaraça e espreita

 

ainda acreditamos no enigma dos corpos

quando a excitação se anuncia

e nos esmaga o corpo

no corpo

 

até que eu seja a roca e o linho

o grito no grito

e se pressinta o silêncio repentino

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

continuamos virgens

neste desejo de invadir o teu mar

e na tua vontade plantar a vinha

 

os teus beijos

serão o regaço e o regadio

da minha força

 

existe uma luz profunda

dentro de ti

por dentro do teu poço

 

quando o mar se fecha e as vozes gritam

quando os corpos se agitam

quando o gozo nos desassossega

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

atrevo-me no teu corpo

como se um vento íntimo iluminasse

os mistérios da criação

 

sei que a vida cresce a cada espasmo

onde a carne e a boca

se tocam

 

nas tuas águas saberei a inocência e o atrevimento

no atónito poço que me abres

em molhado desassossego

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

namoramos ainda

devagar

e ninguém sabe dos montes

por onde cresce a vontade

 

mesmo que a água seja veloz

arderemos devagar

enquanto anoitece a virtude

da nossa paixão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

no teu campo deposito a seiva

onde o luar cega

e os beijos causam espanto

 

deixa que anoiteça lentamente

porque grande é o lume

e o mar que nos espera

 

e depois fecha-o

para que me prenda

até que a manhã nos entrelace

 

e o sabor dos frutos

escorregue

nos muros dos corpos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

um dia que eu morra

que seja uma coisa íntima

com o teu sorriso ainda nu

de bruços no meu peito

 

que o tempo escorra

no seu ritmo

sem que perturbe a paz

de tão grande alegria

 

poderei ainda sentir

o teu último calor

e o sabor

do beijo derradeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
se eu pudesse escrever uma fábula
não falaria das trevas
nem do frio
 
nem das cidades ou de outros lugares
que se percorrem entre os dedos
e flores matinais
 
a mensagem seria a tua casa
de corpo tépido
e cheiro a alfazema
 
e por dentro de ti
um deus que acreditássemos
entre o beijo e a partilha
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

que os naufrágios de todas as virgens

satisfaçam deuses e víboras

que sejam a faísca e o orvalho

a gruta e o assombro abertos no seu tempo

 

que a sua água seja fértil

e os beijos apeteçam

e se repitam

 

que no sexo das mulheres exista vida

e frutos maduros

onde amadureçam as vontades

fundas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

não sei como escrever do conforto do teu corpo

nem explicar o abismo de quando te inundo

e te respiro

 

diz-se o mesmo da vida

e da sua explosão

de gozo tão incógnito

 

mergulha a tua língua na minha

para que as nossas bocas sorriam

abertas de prazer

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

soubesse eu do tempo como sei do teu corpo

pudesse tocar-lhe

e trocar beijos na demora dos dias

 

acredito na memória dos dias mais jovens

 

tomara que o tempo me dê tudo de ti

o sabor a tâmaras dos teus seios

e o teu cheiro a folhagem viva

 

porque acredito nas marcas dos sonhos mais antigos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

despes a roupa até que a tua nudez

olhe o meu corpo nu

 

aprendi a amar todos os segredos

do teu corpo

onde estremeces arquejante e húmida

 

até que o sossego se abrace

na paixão dos nossos corpos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ainda seremos

a criança e o pão quente das madrugadas longas

e dos lugares só nossos

 

as virtudes do corpo

onde o desejo grita e a boca explora

 

a labareda que ama e palpita

e se fascina pela tua água

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

procuro a tua lagoa quando olho a luz

onde pulsa o desejo

e a entrega

 

quero-te mulher e que estejas nua

na invasão dos nossos lugares

tão secretos

 

rosa aberta

e negra

do nosso céu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

toca-me até que renasça

e deslumbre o teu chão

na minha queda

no deleite do teu ninho

 

em todos os nossos recantos

onde a alegria seja funda

num beijo de saliva

abraçada

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

devagar

antes que o corpo se espante

e o mar transborde

 

tão lento

que a inércia suplique

e o corpo goze

 

até que por dentro de nós

os suspiros se fundam

e abracem

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

não é difícil entender o silêncio

de quando me olhas

em quietude

 

somos puros no desassossego do desejo

e na recusa da pressa

 

quero a tua voz

o teu grito

o teu mar intenso

 

pergunto-me se deus compreenderá a inocência

e os espasmos da paixão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quero esta mulher

nos seus olhos vagarosos

no meu corpo

 

a boca entreaberta

enquanto me dispo

por dentro

 

quero o seu desatino

e a luz do seu poço

na sua nascente

 

quero-a inteira

Intensa

e vaga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

gosto do sabor dos teus beijos

e de como eles respiram

por mim adentro

 

do pulsar do teu corpo

quando lhe toco

e o transgrido

 

e de quando me afogas

e sorris

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nunca deixei que a memória

ficasse na distância

 

sinto no colo a tua oferta

quando apareces ainda jovem

 

sei das tuas mãos

e compreendo os sinais que acenam

e as noites maiores

 

excessivas as bocas

os silêncios

e o céu de orvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

haverá sempre um poema a guardar-te

enquanto recebo o silêncio inicial

do teu corpo nu

 

por dentro de ti irei crescer no pensamento dos lírios

e na tua porta irás sorrir às raízes

que se adivinham

 

seremos o prazer do outro

porque é bom amar

e sentir a sede dos corpos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

enquanto os nossos corpos se tocam

não haverá maior assombro

nem penumbra que nos trespasse

 

dentro de mim o teu silêncio ainda branco

amadurece os dons do gozo

na melhor lentidão

 

e hoje e amanhã

alegres são os campos

que sulcamos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

como explicar as palavras

nas sensações do corpo

e o seu ritmo

 

a sua lucidez

escavando os sentires da alma

e quando as línguas se tocam

 

falar como se morresse

 

o meu corpo conhece os teus lábios

e o teu sorriso

quando nos inundas

 

sou então o teu lume

enquanto és

a minha casa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nunca me perco por dentro de ti

enquanto me olhas profundamente

 

sorris como quem ama

a bem-aventurada força que nenhum deus

explica

 

marinhas são as nossas sombras

e a porta que me abres

desfolhando o desejo maior

 

até que me rasgue

por dentro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

um dia se fez carne

e prazer

no mais dentro de nós

 

e foi a noite primeira

 

do verbo fizemos gozo

e da carne a cama farta

 

cresceram gotas íntimas

entre relâmpagos

e gritos apaixonados

 

deus sorriu

porque era bom

 

e descansaram os dias

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

todas as sílabas acima do fogo

 

nos olhos

o corpo que irei beijar

até que desfaleça

e deus se descubra

 

por dentro da água

encontrarei a voz do teu sentir

quase inocente

e brando

 

por cima e por dentro do fogo

 

imóveis e profundas

como mulheres húmidas

na espera

e doces entre colinas

 

será delirante pensar em tão grande fogo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ainda te sobram sombras

e musgo por abrir

onde possa perfumar

o meu corpo

do teu desejo

 

nos teus olhos

o sorriso do orvalho

quando se abrem as noites

onde se escondem a seiva

e os gestos mais subtis

 

dirás que espere

o sinal do tempo certo

e serei quente

quente

na espera e no rastilho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

não sei se respiro a pedra

se os passos me levam a ti

enquanto te despes

 

é impossível a frieza

quando tocamos o sol

por cima das tábuas

 

apenas sentir cada cheiro

e cada sabor que me ofereces

e me inundas quase imóvel

quase deserta

 

a tua voz na minha boca

o teu corpo no meu

até que as maçãs se perdoem

de paixão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

toca-me

até que enlouqueçam as algas

e a nossa história seja luz

e prazer

 

continua a tocar-me

até se escutarem flautas

de tentação

grande

 

apetece-te

no templo da minha espera

sem que receies o tempo e as árvores

indiscretas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

acordamos abraçados nas manhãs

banhados na força de nos querermos

de tanto querer

os novos beijos que inventamos

 

existe um fogo de tempo inesperado

que sobrevoa vales e abismos

até que me banhes os lábios

de todo o sol do teu corpo

 

por vezes acredito que sejas um espelho

onde me arrisco a partir

de voz aberta e esgotada

por dentro de todas as nuvens

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nunca te esquivas

nem procuras o silêncio

das coisas vazias

porque te dás nua

de todas as tradições

 

conheço as chaves que despertam

a tua ventura

e todos os lugares do teu desejo

acima do silêncio

no teu corpo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

atravessei os teus desertos

e em cada oásis encontrei os teus cabelos

mais lentos

 

a escuridão mexe-nos por dentro

e transforma em criança

cada um dos nossos pecados

 

de pétalas repentinas

abraças tudo o que me queres

e beijas os aromas mais densos dos nossos espasmos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

serás o meu deus

na força do amor que te habita e no teu vazio de tortura

 

serás a seara e serás o fruto

onde deixarei beijos e todo o desejo de mais querer

 

irei descobrir todos os caminhos

até que sucumba

 

então serás chuva inquieta

no fundo da alegria

 

e serás tua

sendo minha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

entendo o que me oferece o teu maior silêncio

no tanto que me dás

 

um silêncio nu e cheio

um silêncio amante

 

direi da tua alegria nos olhos

em cada beijo mais lento

 

e da tua voz breve

pedindo mais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quero descer nos teus vales e banhar-me  

na ribeira que sustentas de tanto prazer

beijar-te nos lábios da alma

da vulva e demorar-me até que nos inundes

entre gritos e palavras ternas

na tua primavera me sustento dos melhores frutos

e o meu nome ficará gravado no teu sabor

 

não sei se é trigo ou tempestade

no teu corpo existe o verbo e a descoberta de novas paisagens

inteiramente és amante

e fortes são os ramos onde me agarro e sustento

agora sei como despertar o fogo e trazer comigo os teus olhos

para os beijar sempre que dormes

 

todos os dias serão quentes e cúmplices silenciosos

que dentro de ti irei demorar-me já submerso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

és a árvore silenciosa onde se escondem os melhores frutos

e onde a tua mesa de sombra nos refresca enquanto a vida dormita

são breves os momentos que sorriem enquanto nos beijamos vagamente

ainda inocentes de memória até que as velas recolhidas

nos ensinem os segredos de tanta sede de amar

 

guardarei as pétalas que me abriste quando a flor de sol

prometia relâmpagos no deleite de cada toque

nos espasmos do teu corpo conheço a carne

inteiramente a reconheço no sal e no brilho intenso

 

enquanto te beijo as pálpebras num sorriso lento

para que cada instante cresça em golpes de vertigem

e queime até que a calmaria nos ensine o tempo certo

da melhor vindima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

já não existem as rimas antigas nem o pai nosso se faz ouvir

nos corredores do céu mais próximo onde

nem sequer chove

onde nem sequer se escrevem canções bonitas

 

algo existe na disciplina dos dogmas que seja ruína

e nos sonetos que seja beleza

 

como falar sem metáforas quando os teus mamilos me acenam

e invadem sem que o desejo arda em desassossego

e sensações tão boas

ainda existem os lábios ligeiramente abertos e turvos que me perseguem

sem que me afaste e o teu segredo ainda me aguarda

ardente e húmido e árvores ardentes e fundas

para além da esperança

 

toca-me e seremos a raiz da vida renovada

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

descobrem-se os mistérios de todos os oceanos quando me debruço

sobre ti e nos abandonamos ao que houver em nós

descobrimos novos pomares que nos rasgam o silêncio

ignorando anjos e pedras e velhos traumas

o sangue dos navios antigos de quando se proibia o amor

e se acendiam as fogueiras

 

caímos no fogo impossível quando nos beijamos longamente

entre preces e terrores

então o teu corpo e o desejo terrível de o possuir

a fome e a sede do maior prazer

então o nosso corpo entregue ao outro

no consumar do pecado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

se eu fosse deus serias amante

serias maria e paixão

e repouso no gozo da alma que na carne se exalta e excita

então serei febre e tremenda será a minha loucura

a obra e o autor inocente e louco olhando-te por dentro

nua

 

abraça-me enquanto te descubro nas erupções do corpo

tão grande a chama e a seiva

aos poucos

para que demore até às cinzas de tanto fogo

da cama o desenho do corpo nos seus declives no crepitar dos gritos

na cama que ainda pressinto e nos anima a continuar

 

deixa que eu descubra o amanhecer do teu corpo

no sabor das melhores castas

as palavras que eu disser serão espasmos num tempo incerto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

adormeço na sombra do teu corpo enquanto sorris e o mar se acalma

o silêncio é uma rua íngreme por onde corres na exaltação dos pântanos

enquanto os girassóis vão abrindo o seu coração à luz

estás intacta no que sentes

enquanto durmo a tua voz percorre os meus véus

seja a carne fulminada ou o segredo mais ardente da minha força

 

deixa que beba de ti o vinho do melhor prazer da tua chispa

 

na minha boca ainda o eco das vozes extremas sem limites

nem vagares

das cinzas do teu vulcão que outros gritos se gritem

que outros silêncios se imponham que outras vezes se agitem

e outros ecos na tua boca se agigantem

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

na abstração dos conceitos mais correctos

vou tecendo o teu linho

e do nada se fará luz na sombra de qualquer dilúvio

o amor veste-se de todos os nus

na excitação soberba dos anjos anunciados e não haverá correria

que fuja desta paixão

 

no vinho do teu corpo me resguardo

onde explodem raios de respiração apressada

nascem flores de orvalho quando me humedeces do teu querer beijar-me

mais docemente

de branco pálido apaixonado

inundar-te-ei enquanto me agarras em novas palavras de mais querer

 

e quando se ouvir um brado não sossegues que o tempo

tempo ainda terá

porque nos damos inteiros até que o tempo se cumpra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

escrevo o que as palavras queiram sem que procure

qualquer desespero

os espasmos são um instante onde se procuram rasgões

de vozes aturdidas

e mãos dramáticas que se agarram na emoção do gozo

escrevo porque respeito a fome e a sede e o som dos violinos

é áspero à solidão e todas as diatribes apetecem ao desassossego

que se transforma em força e dedos que martelam em golfadas diurnas de qualquer agonia

escrevo no querer a posse da palavra e na procura do gesto e da sílaba certa onde os significados se alheiem de estilismos e sejam fartas as línguas que se tocam

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

enquanto a tua boca se abrir

para que me beijes

e segredes os sonhos

que ainda me reservas dentro de ti

 

enquanto fores caindo no meu corpo

os choupais nos esconderem

e as tardes estremecerem connosco

agitarei as tuas margens

para que me sintas ardente

e extremo

 

então serás cama e serás vento

entre a voragem e a escrita

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

que nos sobrem as palavras

enquanto a respiração chamar por ti

e queimar suave no meu peito

 

grande é o desejo e é grande

e grande

 

sulco estreito onde deixarei sementes de paixão

branco é o espelho de nos querermos

e a luz que nos abraça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

por dentro de ti

existem todos os poemas

por escrever

e neles existe o sangue

e o murmúrio materno

 

por dentro de ti

existe o fogo e o alimento

o golpe da água

que enlouquece a inocência

do corpo

 

existe o leite e o sorriso

mais puros

onde os dias sossegam

entre o grito e a memória

na vontade do abraço

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de bruços no cérebro e no sexo

entre a boca e a razão crescem-nos raízes conscientes

 

somos a paisagem da carne

a água e a terra de todos os jardins onde namoramos

 

todas as noites o calor e a música

dos corpos colados num sentimento arrebatado

 

o poema na fogueira

entre o grito e o beijo amantes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

não se aplaudem as flores por serem habitadas de cores

nem pelo cheiro que nos emprestam

não beijamos a música nem a palavra pelo rosto de deus

que nos mostram

 

também não te amo pelo sorriso do teu corpo nem pela voz

dos teus gemidos

mas os teus silêncios e um tipo de loucura que apetece

e guardo segredo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

abres a tua madrugada até que me embriague

de todos os brilhos

e são assim os dias todos

 

reconheço a túlipa sedenta

sempre que estremeces

e ávida é a boca onde germina

 

não sei se me olhas ou se me invades

se me rasgas ou abraças

entre o escuro e o branco iluminado

 

é tremenda a descoberta

e sereno o conforto e a posse

nos teus gritos de prazer desesperado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

conheço o teu corpo pelos dedos e pelo cheiro

no tronco das suas metáforas

acredito que sejas trigo virgem onde escuto os sons

da terra por semear

não sei falar da tua água por dentro

e do que me animas quando me olhas no teu branco repentino

 

conheço apenas as faíscas do teu peito quando me amas

e a tua caverna quando espera o meu abraço

mais rápido

e a beleza de cada raio que se desprende

dos teus olhos

e quando dizes que por dentro de ti

palpita tudo o que sou

 

agarra a minha voz para que escutes

a conquista das palavras

que escrevo

e as sintas dentro de mim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

no poema e na canção de embalar

tudo de mim será teu

para que sintas o desejo grande

de abrires o corpo

e a alma

 

em ti deposito o meu nome

e uma rosa negra será a chispa

do maior arrebatamento

onde todas as palavras serão puras

e livres

 

a semente e o fruto das nossas raízes

 

serei o teu campo de cultivo

e o teu cárcere

onde farás crescer o prazer e a força

para que tudo de ti

seja meu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

conheci a mulher no que ela tem de eterno

e no demolir das crenças

mais antigas

 

no que ela tem de primavera

e porque me dá a mão

a vida inteira

 

conheci a mulher porque me incendeia

e me descerra os olhos

no desejo que alimenta das suas janelas

 

conheci-a nesta alegria

de ser alimento

e cada palavra de ternura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quantas vezes te falei para dentro de mim

e disse coisas que já não sei repetir

por vezes os pensamentos são íntimos

como os nossos beijos mais saborosos

 

continuo a procurar a tua uva da nova vindima

e o teu reflexo nos meus olhos

nos meus lábios o barro mais puro e o brilho interior

da caverna

 

profunda memória da tua melhor chama

 

de lá dissipo a sede e arquiteto

a rebeldia dos corpos

sem que a loucura abrande para um breve

sossego

 

ninguém compreendeu o amor

quando passeávamos abraçados à chuva

nem o espírito dos tumultos

ainda jovens

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

viverei de ti a vida inteira

a força do desejo

e mais querer

onde conheça os teus olhos

e saiba cheirar o teu musgo mais recente

 

saberei das tuas janelas

por onde me espreitas e acolhes

para que me debruce

no mais íntimo do teu ser

por dentro do teu abraço mais forte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

onde o sol e a água se enlacem

e se beijem

na melhor colheita

não escondas a revolta

pelo que a vida dói

 

onde o suor dos corpos

seja a seiva da terra

onde nasçam frutos justos

não escondas a revolta

pelo que a vida dói

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de sol a sol é muito sol a bater no corpo

e enxada a gretar as mãos

muito pão mergulhado na sopa e vida aflita

 

como sonho ainda mergulhar em ti

companheira do maior sofrer

e da fome que habitua

 

saberei ainda amar no que resta do corpo

e terás o meu sorriso sempre que acordes as horas

e tudo o que nos dói

 

importa a luta

e recusar dízimos

nem que se descanse ao sétimo dia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nunca sei da sua voz

mas quero esta mulher que inebria

nos seus lábios existem espelhos de paixão

e as melhores vírgulas ao redor do sexo

 

gosto dos seus frutos

e da rosa enegrecida onde palpitam

pingos de renda jovem

 

as suas manhãs são lentas quando desagua

no meu corpo ainda sóbrio

na espera marinheira

da melhor maré

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

intrigas quem procura conhecer-te

apressadamente

 

sem compreenderem a simplicidade

a ternura assusta-as

 

acredito na luz

e na sombra que a persegue

porque nenhuma se rejeita

nem procura dízimos e bençãos

 

maior é a paixão que sinto

e sentes

a primavera dos nossos corpos

e o seu convite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

que os teus olhos se fixem no futuro

e nos seus dias todos

de trabalho e conquista pelo que seja

 

enquanto a lena me sorrir

acredito na vida e nas pessoas

acredito ser possível construir

a estrada e a justiça

e todos os dias

a paixão mais bonita

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

danças sem a certeza de ser dia

e sem que lamentes os sinos de ninguém escuta

 

em todos os momentos

as portas que abres

mostram o abismo e a queda

e tanto anseio

 

algumas vezes falamos na profundidade das crianças

e nos silêncios que sorriem e se escutam

 

danças sem a certeza de ser dia

no meu corpo

onde já palpitam os lugares

da minha mais ardente seiva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

em ti deposito os meus beijos e rápidas são as tempestades

por dentro de ti

 

quero saber da morte maior e se nos estremece entre o fogo e a cegueira

saber das portas devastadoras da terra e da erva corrupta

onde respiram palavras de inequívoco segredo

e do terror do escuro silêncio das coisas acabadas

quero saber do sexo e de como me beijas

das gotas de orvalho no teu poço quando lhe toco

 

nos teus seios o equilíbrio onde procuro que ardas inicialmente

 

porque eles concedem a iniciação dos lábios e tão breves se enternecem

e detêm

serão língua antes que sejam verbo e queda suave

alimento que arde no corpo e o que o desejo queira e a paixão deseje

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gostava tanto de escrever um poema bonito

Que falasse do primeiro orgasmo de todas as virgens

E do sabor dos beijos mais lentos

Um poema que cheirasse a sexo

De palavras húmidas e ensandecidas

Onde as tuas coxas fossem lápis e o teu poço o segredo

Das rimas dos maiores poetas

 

Ser a eternidade contigo sem imposições de sintaxe

Nem gatafunhos de vida

E ao mesmo tempo no limiar do êxtase

 

hei-de fazer de ti um poema excessivo

mais íntimo

desfalecidos os corpos brindarão cada recomeço de palavras amigas

hei-de escrever um poema degrau a degrau

de tanto e tanto querer

enquanto houver um caminho e um abismo de entrega

quando me olhas

enquanto houver um caminho e um abismo que ainda queime

enquanto a tua voz se escute em bocados de silêncio ofegante

 

o que procuram as tuas mãos quando me tocam suaves e quentes

o que fazer de nós neste desejo tamanho

e prazer desesperado

porque há sempre um tempo de espera

um tempo dramático e ansioso onde sejam tremendas  as marés

 

espera comigo por um novo sopro

onde juntos gritaremos novos louvores e ais

 

 

 

 

 

 

 

por vezes sou ilha

ou talvez uma fogueira de festa e areia

 

diz-se que as estrelas brilham

serei uma estrela quando navego no teu corpo contra a noite

ou serei a noite que te dou

 

dentro de mim passeia-se deus e o diabo e também tu

na santa trindade de todo o meu desejo

 

amo-te

talvez por isso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

onde te ergues mulher se não te satisfaz o silêncio mais extremo

enquanto te mostras abertamente na embriaguez já próxima do corpo

 

os teus apelos ecoam dilacerados na boca que me ofereces

e rápidas são as asas que me lanças

 

nos teus olhos a cegueira do sabor mais denso

enquanto esperas o prazer do leite e da rosa por florir

até que desfrute do teu favo e do perfume

por abrir

 

não sei se és manhã mas não serás renúncia

enquanto o teu coração sorrir e o teu corpo amadurecer

 

serás o melhor vinho e a cama desfeita

a âncora onde me prendo e abraço

na mulher inteira serás a amante desabrida

e eu serei teu e tanto

 

estás nua e eu sei que és doce

sei que és lugar onde irei deitar-me

 

estás nua e és rosa

e és poço e tempo ameaçado

 

estás nua e eu sou espanto

sou nervo mas nunca impaciente

estás nua sem que o saibas e és vontade

de receber-me

 

 

 

 

 

 

 

 

afirmo que deus nasceu

na tua barriga

sem ameaças de vingança

estéril

que o amor é puro

e dá-se

sem medos

nem exigências

 

zanguem-se as igrejas

e todos os cultos

porque a paixão é entrega

sem perdão

onde apenas os beijos

ressuscitam

a carne

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nunca me amarei sozinho

porque serás sempre a virgem  

daquele dia

que nem as pedras

nem a terra compreenderão

 

amo-te na pressa da vida

e frescas serão as margens do grande lago

 

farta é a luz e o delírio da carne

meu amor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de onde vem esta água

onde a fonte e o silêncio

são cúmplices

 

onde o fogo e o vento serão véus

de bocas ávidas

na sombra de cultivo

 

será o tempo do sagrado terreno

a rosa escurecida

sangrando vida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

acredito nas letras que desenhas no leito

e na fome que elas sustentam

nos gestos marinhos

quando  desaguas

 

que a tua voz seja o sétimo dia

estupenda e quase selvagem

estendida nos meus campos

porque és o brado

de todas as mulheres nuas

 

vem e regressa

enquanto me habites

profundamente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

reconheço nos teus lábios já húmidos

os mistérios que prometes

e atiçam a descoberta

 

há sempre palavras

de silêncio

e um golfar enlouquecido e branco

 

enquanto houver um caminho

e um abismo

que ainda queime

 

enquanto a tua voz se escute

em bocados de silêncio

ofegante

 

desfalecidos os corpos

brindarão cada recomeço

de palavras amigas

 

hei-de escrever um poema

breve

de querer-te tanto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

seremos pastores do tempo

e a primeira letra que nos sobrevive

para que a obra terminada

seja ouro intenso

 

e livres as noites no segredo

de corpos que se tocam

em sílabas húmidas de gritos abafados

 

ou numa enxurrada convulsa

levemente exausta

 

para que saibas a nuvens virgens

e as tuas bagas

sejam doces e brandas

 

onde haja lume

que escute e nos alimente

 

são os momentos em que me basta o teu cheiro

ou que apenas te imagine a meu lado

quando espero o vinho da melhor uva

 

e a espera seja rua deserta e fresca

até que a inundes

de bagas ardentes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

fascina-me a funda serenidade

dos vales

onde se guardam beijos

debaixo de folhas vivas e breves

 

é quando me invades

veloz e quente

na carne delicada

 

dentro de mim é o deus

e o pensamento infantil abraçado e grande

em íntimo espanto

 

os teus lábios

cheiram a terra

e são doces a luz e a mãe

de todas as vezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

procuro um poema que fale

da terra e do mar

que fale da lama

e do sémen

 

um poema inacabado

que sorria às mulheres

e as saiba abraçar

 

procuro um poema

que procure no sexo a cumplicidade

dos gestos

e dos sentires

 

um poema que venha lento

e que vindo lento

agrade à vida

e ao amor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

gosto da pele que cheira a terra e a trabalho duro

de sentir o seu cheiro a vácuo

que me recordam a vida e atingem

 

gostava de construir em mim

esse rosto queimado de sol onde os olhos se fixassem

para além do riso e do tempo

 

gostava de amar como essa gente

e sentir a sua beleza

nas margens do cansaço

 

e deitar-me contigo entre lágrimas

no desejo que deus nos sentisse

e fizesse tudo de novo e tão diferente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quando as nossas bocas se tocam
anunciam oferendas de fogo


os beijos são assim

até que a palavra e a terra

se abracem cúmplices

 

por vezes não sei que outras palavras diga
para falar-te da terra e do arado que te remexe
de como abraçamos os nossos sulcos

e a vida fica grande


de como nos construímos leves


um dia saberei dizer do cheiro dos olhos

quando sorris e me dás a mão
e do que nos dizemos em todos os silêncios
da fome mais crua

 

gosto de amar-te em ritmos distraídos

e olhos quase ausentes

enquanto te afogas no quanto te quero

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

palavras de sobressalto dilaceradas e esplêndidas

no seu brilho mais violento

ninguém sabe se é a voz dos homens

ou uma ameaça divina

 

benditos sejam os lábios na sua loucura

que se agitam

na história dos amantes

 

são palavras dramáticas quase estéreis

se não provam o sémen

na sua brancura divina

 

fartas são as penumbras e as pálpebras arrebatadas

no espanto da vergonha e do medo

onde são o gesto amável na entrega da carne

e onde o fruto seja pecado

 

por isso as palavras são dramáticas

no que sobressaltam os deuses

e estéreis nos dias mais apaixonados

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

fulgurante é a luz das coisas do corpo

quando me esperas e desejas

o espanto

 

não sei se és ribeira

se és âncora

ainda no sossego das águas

 

quando existem paisagens nos teus gritos

há um novo mistério por descobrir

que nos cena e inebria

 

a luz entra e sai dentro de nós

e longo é o tempo final

amado e amante

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

eu quero mexer na terra

ainda seca

sujar-me nela

devagar

como quem espera

pelo gozo da mulher

 

desfazer os seus grãos

ou beijar-lhe os seios

 

os sulcos

onde as sementes irão florir

os melhores frutos

 

eu quero mexer na terra

e encontrar nela o teu sabor

virgem

maduro

envelhecido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

o poema nasce por uma palavra

onde te instalas

ausente da pressa

do tempo

 

desconheço onde desaguas

se no íntimo do poema

ou ao seu redor

 

ou se desaguas

no seu leito

onde te alimentas

e acreditas

 

és diferente todas as manhãs

 

assim o poema

na palavra

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

espero o teu incêndio que transborde no meu corpo

e o inunde de forma arrebatada

e muito branca

enquanto te moves por dentro de nós

 

que a abertura seja lenta mas fulgurante

que transpire nas palavras dos poemas que se escrevam

e de cada vez os livros e os gestos de paixão

sejam livres e cheirem a espuma e a resina

 

nos campos

os charcos são a escultura

do nosso amor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sou

o que atento de mim

a forma justa de negar

e nego-me

no que acredito

renunciar

 

sou

o que seja sombra

e persiga a luz

ou seja perseguido

nunca perdoado

 

sou

quem vou sendo

não sujeito

não passivo

nem isto ou aquilo

e não entendo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

um dia estarei em casa

azul

sem dor e sem lama

de terrível alegria

no fundo dos olhos

 

uma casa cheia de vazios

dos teus vazios

de tradições e receios

e vazia

de escuridão

 

uma casa sem defesas

e sem tramas

onde andarás nua

enquanto esperas

que eu abra

a tua porta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

conheço todos os caminhos

todas as vielas

e os pátios antigos

do meu tempo de menino

e não te conhecia

ainda

 

conheço todas as tascas

todas as putas

e as guitarras de grito

do meu tempo de destino

e não te conhecia

ainda

 

conheço todos os charros

todos os grifos

e os sons da noite

do meu tempo sem regras

e não te conhecia

ainda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

é um atinar

que desatina

o amor

e tanto

 

é um incêndio

que mói

e espreita

que beija

e navega

 

és tu

e também sou

na boca

e na língua

e são elas

que mais navegam

por dentro de nós

 

é amor

e amor ainda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

se estando perto

te julgo tão longe

e quero mais

de tanto que tenho

 

se nos teus olhos

não vejo limites

e no teu corpo

eu sinto desejo

 

se a tua roupa

vai desistindo

e forte te mostras

no quanto me queres

 

será chama

serão gritos

seremos amantes

e tanto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

o sonho não morre nas marcas do corpo

nem o amor desiste de quem se dá

 

não me esperem nos cânticos sonolentos

porque o céu é castanho

e é terra

é beijo

e é agora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

dentro de ti

um poema

e a voz do mar

 

em ti

crescem raízes

e as crianças mais belas

 

por ti

edifico sonhos

e nuvens transparentes

 

serei papel e caneta

e um poema

enquanto me agarrares

nos teus olhos

e as nossas bocas

desvendarem mistérios

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

esse desassossego

do teu olhar

quando te deitas

e no meu corpo

procuras tesouros

escondidos

 

águia

que vai pairando

até que se despenha

do céu

no sítio

a descoberto

 

saciada

ainda olhas

e talvez sorrias

no fundo de ti mesma

até depois

um pouco mais tarde

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

a noite ainda dormia quando acordei nas palavras que também sentiam

essa vontade irresistível de olhar-te até que os olhos desistissem de

tamanha alegria

por dentro de mim existem vozes que anseiam um toque e um beijo

que te percorra secretamente e que invada o rosa e o negro

por dentro de mim já cresce o desejo de um poema inteiro e alto que perturbe o corpo

um poema que seja leve e saiba acordar a chama fulgurante

da rosa quente e negra e entreaberta e gota a gota

espere o teu grito e se transforme em espanto e desejo satisfeito

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

onde te deitas

quando te deitas

no meu corpo

 

no chão

na cama

no meu corpo

dentro de mim

 

onde te deitas

quando te deitas

no meu corpo

 

no vento

no vulcão

nas ondas

dentro de mim

 

onde te deitas

quando te deitas

no meu corpo

 

tão dentro de mim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

nem as nuvens

nem o fogo no céu

nem em nós

não fosses tu

não seria eu

 

nem o que nos molha

nem o que nos queima

nem o que nos une

não fosses tu

não seria eu

 

o que seria eu

senão fosses tu

 

de onde vem o vento

e a chuva

e o fogo

de onde vens

porque não seria eu

se não fosses tu

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

banho-me na tua sombra

no teu abismo

no teu mar

 

e por lá fico

até que a luz se cumpra

e venha sem pressa

 

deito-me no teu lago

na sua água

no que não me é secreto

 

e por lá fico

sem pressa

até que a luz se cumpra

e repita

lentamente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

deixa que escorregue

até ao fundo de ti

onde a paixão é tão grande

 

olhas

e eu sei para onde

e para onde

me chamas

 

e deito-me

na tua cama

no teu corpo

e toda a água

é estranha

leve

e saborosa

 

enquanto escorrego

beijo-te os gritos

e na tua fome

deposito a minha boca

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

depressa

antes que a noite

nos sufoque

dá-me

o que entenderes

dar-me

 

deixa um poema

e um abraço lento

uma palavra que seja divina

Inexplicavelmente

 

não existem mistérios

nem se contam os espasmos

 

o fogo apenas espera

o seu momento de liberdade

e gritos mudos
***
S E L E T A



D

I



V E R S O S









Antonio Cabral Filho





Letras Taquarenses Edições

2014

*

NOTÍCIAS DE MIM


Nasci em 13 de agosto de 1953, no município de Frei Inocêncio - MG. Em 1964, após o golpe militar, fui para a escola, por decreto do generalíssimo Castelo Branco, aos onze anos de idade. Em 1968 concluí a quarta série, com média 7. Nessa época eu fazia teatro, na escola e na igreja, e, com a ajuda da única pessoa que eu considero Professora neste mundo, a Dona Adir, como eu ainda a chamo, montamos a peça O FILHO PRÓDIGO, com a intenção de realçar a auto-destruição em que se encontrava a juventude naquele momento.

Durante as férias escolares de junho de 1968, dei uma chegada ao Rio de Janeiro para fazer uns biscates e comprar roupa nova, mas ao chegar no Catumbi, meu primo Sadi levou-me para conhecer a cidade. Era 26 de junho, dia da PASSEATA DOS CEM MIL. Passeei na passeata.

Em junho de 1969, meu Tio paterno Sebastião Cabral, mestre de obras no Rio de Janeiro, foi buscar peão para suas obras e eu me alistei. Falei com ele da necessidade de eu sair da roça, escapar das garras do meu pai, deixar de ser mão-de-obra gratuita. Tinha quinze anos e era escravo do meu próprio pai.

Ele compreendeu e arrancou-me da casa paterna, não sem antes anunciar-me as agruras da cidade. Ao chegar em seu barraco, na Favela da Mineira, meu romantismo com a cidade grande foi pelo valão abaixo. Vi cair aos meus pés um menino fuzilado pela polícia, que segundo foi dito, era traficante. Durante muito tempo eu tive pesadelos por causa disso.

Morei na casa do meu querido tio até ir para o quartel. Matriculei-me na Escola Geny Gomes, no Rio Comprido e cursei o ginásio. Era um tempo turbulento, com muitos professores fazendo "inquéritos" com os alunos. Logo a seguir, entrei no Colégio Martin Luther King, fiz a sétima e a oitava séries e fui para o profissionalizante, no Curso Santa Rosa, Largo de São Francisco, em frente ao IFCS-UFRJ. Era 1974, fui promovido a cabo do exército, mas de olho no curso de sargento. Fiz o curso e passei, fiquei até 77 aguardando a promoção que não veio e pedi baixa; passei no vestibular e fui cursar direito na UFF. Abandonei por desilusão com a filosofia do direito após o quarto período; fui para comunicação social, mas a psicologia da notícia acabou comigo. Caí na vida e estou pegando touro à mão.


1 -


1 - ECCE HOMO - POESIA, Edições Curupira, 1997;
2 - DUELO DE SOMBRAS, POESIA, Edições Curupira, 1999;
3 - VER...SO CURTO&GROSSO - POEMAS PIADAS, Edições Letras Taquarenses, 2006;
4 - CINZA DOS OSSOS, POESIA, Edições Letras Taquarenses, 2008;
5 - MEUS HAICAIS PREFERIDOS, COLETÂNEA DE 20 AUTORES, Org Antonio Cabral Filho, Edições Letras Taquarenses, 2010
6 - TROVAS DE TORCEDOR, TEMA FUTEBOL, E-BOOK, 2010;
7 - TROVADOR DE FÉ, RELIGIÃO, E-BOOK, 2011;
8 - TROVAS DE AMIGO, HOMENAGENS, CRÍTICAS, IRONIAS, E-BOOK,2011;
9 - AUTOBIOGRAFIA EM TROVAS & VERSOS FAMILIARES, E-BOOK, 2012;
10 - CADERNO DE HAICAIS, E-BOOK, 2013.
11 - SELETA DI VERSOS 2014


2 - PARTICIPAÇÕES


1 - POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, ANE -
Associação Niteroiense de Escritores, 1992;
2 - POETAS 10ENGAVETADOS, Coletânea
, Org. Antonio Cabral Filho, Edição dos Autores, 1995;
3 - ANTOLOGIA POÉTICA VOL2, UFF/EDUFF 1996;
4 - INTERVALO, Ano II Nº10,
Edição Francisco Filardi, 2006;
5 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2007,
Org Ivone Vebber, 2007;
6 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2007,
Org Padre MossenPere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2007;
7 - CD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
8 - DVD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
9 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2009,
Org Ivone Vebber 2009;
10 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2010,
Org Padre Mossen Pere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2010;
11 - FANTASIAS COLETÂNEA,
Org Rozelia Scheifler Rasia et all,
Edição Alpas21/Ed Alternativa 2011;
12 - ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE,
oRG Araci Barreto, Edição Postal Clube, 2011;
13 - POETAS EN / CENA 6 - BELÔ POÉTICO,
Org Rogério Salgado e Virgilene Araújo, BELÔ POÉTICO 2012;
14 - VERSOS DE OUTONO ANTOLOGIA
Org Delmo Fonseca, Edição Confraria de Autores 2013;
15 - ANTOLOGIA 15 POSTAL CLUBE,
Org Araci Barreto, Edição Postal Clube 2013;
16 - ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS
Org Elenilson Nascimento, Editora Pimenta Malagueta, 2013;
17 - DIÁRIO DO ESCRITOR - Livro Agenda, Litteris Editora, 2013.

18 - APANHADOR DE SONHOS ANTOLOGIA - Editor Marcio M. do N. Sena - Beco dos Poetas 2014.


*

DEDICATÓRIA


A TODOS,

TANTOS,

QUE SABEM

A SUA IMPORTÂNCIA

NA MINHA VIDA.


***

ÍNDICE ( Lista de Poemas )



1 - Florão da América

2 - Poeta de Periferia

3 - Brecht Sob o Céu de Berlim

4 - Ladeira Saint Romain

5 - Me Disserem

6 - Lições de Tempo

7 - Solilóquio

8 - Cogitação

9 - Instinto Primitivo

10 - Política Anti - Literária

11 - Do Pobre Arlequim

12 - Lira dos Quinze Anos

13 - Cinza Wim Wenders

14 - Canção do Preto Inácio

15 - Canto a Ilu-ayê

16 - Delírios de prometeu

17 - Canção dos Guetos

18 - Tempo Fértil

19 - Lotação Esgotada

20 - Faluja

21 - Canções do Filho

22 - Rimbaudices

23 - Dezoito Brumário de Artur Rimbaud

24 - Deslumbramentos

25 - Neoliberal Postudo

26 - Poema Para Moacy Cirne

27 - Viver Sem Receita

28 - Shakespearíaco

29 - deuses do Gueto

30 - Cantiga Para Cassiano Nunes

31 - Quintana

32 - Quintana

33 - Quintana

34 - Quintana

31 - Ode ao Verso Livre

...

Apresentação



Mário de Andrade é uma fonte de inspiração à qual eu gosto muito de recorrer. Ele diz num determinado trecho do Prefácio Interessantíssimo que apresentação, prefácio, notas introdutórias, enfim, essas coisas de dar satisfações a que veio, são inúteis para quem nos despreza e desnecessárias para quem nos ama, ou algo assim.

Meu objetivo aqui não vai nessas direções. Não dou satisfações a quem despreza as diferenças nem preciso fazer preleções a quem as quer bem. Digo isto porque sempre marchei sozinho, sempre sem medo de aonde vai dar e no quê.

Minhas experiências com a escrita vêm desde a adolescência, quando da realização das festas juninas de 1967 em que meu pai pegou meu "Livro de Versos", apenas um caderno do MEC doado nas campanhas de alfabetização daquele período, e, acendendo o isqueiro do Vovó fumar, transformou-o numa tocha para pôr fogo na fogueira, não me lembro se de São João ou São Pedro, aos berros de " poesia é coisa de marica! " Lembro-me que no dia seguinte eu fui revirar as cinzas acreditando encontrar algum fragmento de poema que me ajudasse a reescrever alguma coisa. Inútil! Desde então trago comigo a noção de " estar só " naquilo que faço. Isso poderia ser um ponto de fraqueza para quase todos, mas aprendi a fazer disso a minha força: Não sei contar com ninguém, na hora do " pega-pra-capar ". Por isso, esta seleta de poemas eu a faço sem buscar apoio de ombros amigos, seja na escolha, seja na ordem dos poemas. E tudo que desejo registrar é que constitui-se de poemas bem divulgados, bem aceitos na nossa imprensa literária, a imprensa alternativa, hoje fortalecida pela internet, com seu mundo fantástico de sites, páginas e blogs.

Espero que quem os leia veja um pouco do meu trabalho, aqui representado por versos livres, sem nenhum poema minimalista, nem poemas-piadas, nem haicais, Nem trovas, nenhum soneto, sequer um poetrix. Apenas versos livres na sua expressão mais prosaica, mais solta, distante das formas fixas, modalidade na qual eu creio me mexer bem. Afinal, ser incluído em livros pela UFF - Universidade Federal Fluminense, ser editado em sites como o Jornal de Poesia, criado e dirigido pelo distinto Soares Feitosa, ou no Momento Litero Cultural, hoje tornado site pelo ilustríssimo Selmo Vasconcellos ou ainda figurar na ESCRITABLOG, do caríssimo Wladir Nader, não creio ser algo pouco significativo. E, com o devido respeito a quem gosta de tapinha nos ombros, eu não bajulei ninguém, não troquei favores, até porque não possuo nada trocável. Já cheguei a quinto lugar em diversos concursos, mas não me ressinto em injustiças e dou-me por satisfeito com os resultados até aqui. Mas de agora em diante, tudo muda.



***


FLORÃO DA AMÉRICA



O menino era pivete

E se chamava Joãozinho

Vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem deus e sem diabo pra atentar



Foi estuprado por um maníaco

E encontrado morto na Lapa

Dentro de um latão de lixo



Não foi homenageado

Com honrarias militares

Nem imortalizado

Num samba de carnaval



Morreu e está morto

Morto, bem morto mesmo

Morto até na memória



O menino que era pivete

E se chamava Joãozinho

Que vivia como engraxate

Ganhando a vida por aí

Sem voz sem vez

E sem lugar na HISTÓRIA

*


POETA DE PERIFERIA



Nunca tirei um sarro

Nos bancos do Central Park

Nem aos pés da Estátua da Liberdade

Sequer algum dia

Imitei Hugh Grant

Trocando boquete

Com alguma Divine

Nos arredores de Los Angeles

Jamais mijei no Rio Hudson

Do vão central da Ponte do Brooklin

E nunca achei graça nenhuma

Em comer pipoca com bacon

No trem fantasma da Disney World

Tampouco nunca peguei um breack-fest

Em alguma lanchonete da Wall Street



Mas ninguém se assuste

Com o meu desdém debochado

Pelas coisas suntuosas

Desse mundo consumista

É que eu me sinto muito bem

Junto aos pés-de-cana

Dos butiquins pés sujos

Desses guetos suburbanos

Onde levo minha vida

De poeta proletário.

*


BRECHT SOB O CÉU DE BERLIM


Olhem para mim, vejam bem!

Eu estou aflito.

Não concebo ficar quieto

Diante da situação.

Se o tempo estiver bom,

Eu saio à rua a passear.

Se não estiver eu saio também.

Não dá pra ficar neutro.

Olhem para o tempo.

Como estão as nuvens?

Claras ou turvas?

Ou não há nuvens?

Chove e faz frio

Ou o calor é intenso?

Não importa!

Conforme a temperatura

Eu respondo à altura.

Não quero saber

Se são nuvens de tnt

Ou se neve suave de amanhecer.

Meus pés caminham...


*


LADEIRA SAINT ROMAIN



A Ladeira Saint Romain

Tem muita história a contar,

Mas a Ladeira Saint Romain

Não quer censura em sua história.



A Ladeira Saint Romain

Precisa de alguém que diga

Sua história com o Pasquim,

Mas que seja enquanto viva.



Pois a Ladeira Saint Romain

Não quer deixar sua história

Pra depois que ela morrer.



A Ladeira Saint Romain

Viu muita gente subir,

Mas não viu tanta gente descer.


*


ME DISSERAM



Eu menino me disseram

Que eu era HOMEM

Com todas as letras maiúsculas

Que eu teria uma mulher

Com a qual me casaria

E seríamos felizes para sempre



Porém eu descobri o AMOR e a LIBERDADE

E percebi que o amor é solteiro

E a liberdade não se casa com ninguém



Em seguida me disseram

Que todos tinham religião

E me venderam um deus

Que eu seguiria para sempre



Porém eu percebi

Que havia muitos templos

Tantas tendas onde comprar-se um deus

Que eu desisti

E fui tachado de ateu

Depois me disseram

Que todos tinham ideologia

E me venderam um partido

No qual eu ingressaria

E S P O N TA N E A M E N T E

E a ele serviria enquanto eu quisesse



Tornei-me então violento ativista

Mas constatei que todos tinham que ser iguais

E que o ser a si próprio era impossível



Até que um dia me avisaram

Que eu estava fora do partido

E que eu não era comunista



Desde então venho notando

Que todas as coisas têm um preço

E eu não posso comprar nada

Do que me querem vender

E ainda assim

o SHOW BUSSINESS

não quer deixar-me em paz

por onde quer que eu passo.



Como é possível

Numa mesma praça

De um lado um religioso

Fantasiado de cristo

Nos oferecendo a paz celestial

E do outro

Um comício eleitoral

Nos oferecendo um Strip-tease

Em troca de voto?

Agora restou-me a pecha:

Disseram que eu sou

ANARQUISTA.


*


LIÇÕES DE TEMPO



Houve um tempo

Não muito remoto

Em que me preocupei

Com a velhice

E até me programei

Pra fazê-la agradável,

Como lutei fiz planos

Formei vasta biblioteca

Pra passar o resto

Dos meus dias

Cercado de livros,

Planejei viagens

Pra conhecer a Ásia

A Europa a África

E da América

Visitar pelo menos

Machu Pichu.

Eu queria ser um

devorador de distâncias

guloso qual um marujo

pirata dos mares revoltos,

mas eu não sabia que o tempo passa

e que alguns copos de vinho

deixam a gente assim serelepe.

*


SOLILÓQUIO DE INVERNO



TUDO ANDA TURVO

Cigarras silentes

Arbustos estáticos

Há muito não noto

Formigas nervosas no seu ir e vir

Nem os grilos silvam mais


TUDO ANDA TURVO

Sapos aposentando pilões

Não sei mais dos agouros da côa

E o Bentivi não mais

Dedura ninguém

Os cães nem ladram mais

Nas noites frias

Não mais há bêbados

Cambaleando as calçadas

Rumo ao incerto caminho de casa


TUDO ANDA TURVO

Não mais se ouvem amigos

Falando alto na esquina

Contando histórias de amores furtivos

E mijando a saideira

Tomada agora há pouco


TUDO ANDA TURVO

E não basta dizer

Que tudo anda turvo

A manhã vem irrompendo

E Netuno acaba de soltar os ventos

E Vênus balança os cachos

Rindo-se de mim

Com seu sorriso de ninfa.


*


COGITAÇÃO


(Ao Poeta e Amigo Pedro Giusti)



Pense

Pense

&

Escreve

Se não puder sussurrar

Pense

Pense

&

Sussurre

Se não puder falar

Pense

Pense

&

Fale

Se não puder gritar.


*


INSTINTO PRIMITIVO



Foi assim

Sem mais

Nem menos

Me aproximei dela

E senti um odor diferente

Odor de terra molhada

Algo natural mesmo

Lhe cumprimentei

E senti todo meu corpo crispar-se

Ela notou e disse

Vem cá

E fomos de mãos dadas

Olhos nos olhos

Assim

Sem mais

nem menos

*

POLÍTICA ANTI - LITERÁRIA


O poeta ingênuo sai no pau com o crítico literário

Pra ver qual deles é capaz de regenerar

O poeta oportunista



Enquanto isso o poeta revolucionário

Panfleta nas favelas

O seu sonho visionário



E o poeta maior

O poeta menor

E o dito marginal

Fazem bolotinhas

Com meleca do nariz...


*


DO POBRRE ARLEQUIM





Nasci no sopé das montanhas

Lá onde terminam os bosques

E as florestas se adensam.

Bem cedo aprendi a brincar

Com os habitantes desse mundo

Onde reinam Sacis e Iaras.



Ainda menino fui pras cidades

Sem seio de mãe nem ombro de pai

Órfão de noite e de dia.



Segui sempre o sem-fim dos caminhos

E a poeira das estradas

Tingiu de vermelho os meus sonhos.

E o ronco do motor dos caminhões

É que ninou a soneca do menino

À sombra dos arbustos solidários.



Meu prato requentado e rápido

Eu soube sempre o seu sabor de sal

Temperado de relento e sol.



Na cidade sou um peixe fora d'água

E vez por outra ponho-me frente aos bares

Perscrutando por que essa gente bebe tanto.



O meu amor não sabe o pranto

Tão fartas comigo foram as mulheres francas

Em darem-se inteiras e detalhes tantos.



Não prometo ser algum dia um gentleman

Mas eu não mijo calçada a fora

Após uns chopes com steinhägen.


*


LIRA DOS QUIZE ANOS



Oh que alívio que eu tenho

Daqueles colegas de infância

Com seus mundos cor-de-rosa,

Heróis de história em quadrinho,

Coca-cola, chiclete, carmanguia,

Lencinhos perfumados, documentos,

Sem sombra de movimentos

Que os anos não trazem mais.



Como eram frios os versos

Profundamente românticos!

Mas contra os versos

Profundamente românticos

A alma dos versos meus

É francamente livre

E cospe na cara do eu-lírico

Que caça borboletas azuis.



Oh que alegrias que eu trago

Das minhas gazetas da infância,

Daquelas tardes jongueiras

À sombra dos oitiseiros

Entre o Largo da Carioca

E o tabuleiro da Baiana

Com tudo quanto é quitute,

Cuscuz, cocada, quindins

E os chamegos da mulata.



Oh que saudades que eu tenho

Da minha Avenida Central,

Avenida dos meus sonhos

Colhidos na Cinelândia

E comidos nos Arcos da Lapa

Por alguma linda Brigite

Com beijo gosto de menta

E seios de Marilyn Monroe.


Pobre do espírito pudico

Que nunca esbarrou com Cupido!

Jamais se esbaldou

Nas tabernas da Praça Mauá

Degustando cuba-libre

Com as nossas Bardots,

Nem trocou beijos calientes

Entre senha e contrassenha

Com alguma companheira

Aos cicios " pela revolução!"

Nas esquinas da Rio Branco.



Livre filho suburbano

Desfilava desafeto

Por meu boulevard sem Paris

Da minha Avenida Central,

Que só virou Rio Branco

Para agradar ditos-cujos,

E ria com meus olhos leigos

Da anarquia arquitetônica

Daquele casario sem eiras,

Que o Pereira "passo" extinguiu

Com um só "bota-baixo".


Naqueles tempos ruidosos

De ardente adolescência,

Papai montava a cavalo

E saía pra campear,

Mamãe brandia o chicote

E o leite fervia

No fogão a lenha,

Eu era pingente de trem

E ofice-boy da Light

E Che Guevara era bandeira

Nas barricadas de Paris.



Ai que saudades que eu tenho

Da Avenida Rio Branco

Como um palco a céu aberto

P'rum côro de cem mil vozes

Cantando Geraldo Vandré:

"Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


Mas "saudades" que eu sinto,

"Saudades" que me doem fundo mesmo

São da Avenida Rio Branco

Na Passeata dos Cem Mil

No auge dos meus quinze anos,

Daquela gente bronzeada

Mostrando tanto valor

Só pra mudar o Brasil,



Dos " bailes" que eu dei nos "ome"

Na Biblioteca Nacional

Com o saco de bola-de-gude,

Do Wladimir trepado no poste

Gritando "Abaixo a Ditadura!"

Alheio ao gás lacrimogênio,

Das balas com endereço certo

E o sangue correndo solto.....

................................................

São "saudades" que a palavra

Lhes recusa a assinatura,

Coisas muito duras para esquecer

Como diz o Rei Roberto,

Mas me fazem muito bem

Que os anos não tragam mais.



Por isso eu sigo cantando

"Caminhando" com Vandré:

" Vem, vamos embora,

Que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora,

Não espera acontecer."


*


CINZA WIM WENDERS


O céu turvo de Berlim

Lembra lona de circo velho,

Onde nossos avós nos levavam

Para vermos aquele palhaço

De há muito nosso conhecido.



Seus prédios cinzas,

De um cinza há muito conhecido,

Soltam o reboco feito animais

Que de tempos em tempos

Mudam de pele.



Suas árvores, em eterno outono,

Sem folhas pelo chão...

Suas cores, não sei como, jazem

Sob esse cinza perene

À espera da plena primavera...


*


CANÇÃO DO PRETO INÁCIO



Nasci nos caminhos de dentro,

Que ligam Minas Gerais à Bahia,

Ali pelas imediações do Suassuí,

Lugar de muita casa grande

E senzala mais ainda.



De início éramos todos lavradores,

Gente de lida que os senhores arrebanham

Com ajuda dos bate-paus,

Ora pegos em quilombos

Ora arrematados em leilões

Feitos pelos negreiros à beira dos cais.



Mas de tempos em tempos

Alguém saía de trouxa nas costas

Pendurada no pau de dois bicos,

Como fez o Preto Inácio

Que nunca mais deu sinal.


Quando fugia, dizia-se

Que fez poeira;

Quando saía por conta própria

Dizia-se que foi pra vida;

E, quando era posto pra fora,

Buchichava-se à boca miúda:

Foi vender puáia,

Que era como tratavam

esses pretos velhos

vendedores de raízes

nas feiras da cidade.



Entre uma e outra leva

Dessa gente que partia

Fui aprendendo com a vida

Lição por lição de partida

E assim que peguei tope

Aprontei meu pau de dois bicos

E fiz poeira,

Fui pra vida

Vender puaia.

*


CANTO A ILU-AYÊ



Negro é raiz da liberdade

Mais forte que qualquer outra

E faz nosso povo se unir

Hoje muito mais que outrora.

Porém, os chacais que o rondam

Ainda encontram lacaios

Contra o nosso porvir,

Pois quem nasceu para Judas

Não se cansa de trair.



Ilu-ayê tem o sorriso negro

Pra fortalecer meus irmãos

E regar a flor da resistência

Desde a grimpa dos morros

Até à vereda mais úmida

Em prontidão na tocaia

Para emboscar bate-estradas

E avisar aos capatazes

Que quem brinca com corda

acaba dependurado.


Ilu-ayê tem o abraço negro

Pra fortificar os quilombos

E multidões de Zumbis

Com suas bandeiras erguidas

Pra celebrar nosso Rei,

Que deu seu sangue por nós

E merece glória eterna.



Ao cismar sozinho relembro

Que todo instante da vida

É sempre vinte de novembro

Com a dignidade iluminada

E o espírito pleno de axé.



Pois nossa pele tem mais sol,

Nosso céu tem mais luar,

Nosso povo tem mais força

Quanto mais doar amor.



Não permita Deus que eu morra

Sem que ainda faça um poema

Digno da beleza negra,

Com maior engenho e arte,

Que exalte Rainha Dandara,

Zumbi e Solano Trindade

Com uma imensa quizomba

Para alegrar nossa raça

E cantar pra Ilu-ayê!

*


DELÍRIOS DE PROMETEU


Acossado por despautérios,

As Tróias do presente

E as Cartagos do futuro

Obrigam-me a transpor muros

Da epopéia de quimeras

E prever que qualquer dia

Serei mito de ficção.



Algo ímpar na literatura universal,

Maior que Sherazad,

Maior que Dom Quixote,

Mais forte que os Três Mosqueteiros,

Mais valente que Robin Hood,

Mais sortudo que Robinson Cruzoé

Com Segunda Feira e tudo.



Desses que viram objeto de estudo,

Mais que Joyce e Ezra Pound

E dão pesadelo em curiosos,

São temas de teses acadêmicas

E motivo de congressos mundiais

Com reunião de exegetas renomados,

Cada qual com seu aporte

Sobre o pobrezinho aqui.


E o maior frisson

É o momento culminante

Em que todos vão à práxis

Acomodados em mesa redonda

Para provarem seus enfoques,

Quando enfim sou dissecado

Letrinha por letrinha

Até à exaustão,



Inclusive com preleção

De Leonardo da Vinci

E sua aula de anatomia.



Depois, todos partem felizes,

Com ares de dever cumprido,

Enquanto eu pairo sobre tudo

Alheio ao suor derramado,

À adrenalina gasta

E ao fosfato queimado,

Todo senhor de mim,

Dono do meu ser ficcional

Infinitamente inexaurível,

Como bem apraz à obra prima!


*


CANÇÃO DOS GUETOS





YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos de Roma

Hanói, Formosa

Pequi, ou de la Habana Vieja

Y sus "desintegrados"



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.



Guetos londrinos

Bem à margem do Buckingham

Guetos germânicos

De Bonn ou Berlim

Divididos em "Òssis e Véssis"

Cada um velando

em seu umbigo

o ovo da serpente

MADE IN GERMANY



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.


Guetos da Bolívia

E seus índios "cocaleros"

Da tribo Quéchua,

Guetos do Peru

E seus guerrilheiros

Sem sendeiros luminosos

Para TUPAC AMARU,

Guetos da Venezuela

E seus caracazos bolivarianos



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos dos guetos amarelos

Brasilverdesifilíticos

Gonorrêicos que não lhes quero

Assim do Oiapoque ao Chuí

Das palafitas ribeirinhas de Manaus

Cheias de prostitutazinhas meninas

Vendida por seus próprios pais

A caftens made in europe

Às margens das trans...amaz

Ônicas de meninos e meninas ao relento

Nas praças da república

De suas megacapitais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD


Guetos de São Paulo

Dos casarios miseráveis

De tábua e zinco

Das zonas norte

Desnorteadas pro

Sul leste oeste

Que apesar dos pontos cardeais

Que os atritam

Nenhum cardeal

Nos deixam em paz

Nos seus sermões dominicais



YO LOS HABLO HERMANOS

ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD



Guetos do Rio de Janeiro

De tontas maravilhas

De janeiro a janeiro

E cariocas brejeiras

De cartão postal

De Chapéu Mangueira

E Pavão Pavãozinho

Vidigais e Vigários Gerais

Onde a palavra FAVELA

Fala a língua do "bigode grosso"

Pela graça da mordaça

De tantos COMANDOS



Há que buscar uma linha

Mesmo que seja vermelha

Mesmo que seja amarela

Ainda que seja anêmica

Para juntar tantas

Rocinhas Morros das Viúvas

Ladeiras dos Adeuses

Baixadas e Jardins Catarinas

Contra tantos opressores.





Pero hermanos

Hablar no me basta

Como no me basta

Llorar los hermanos caídos

Pois para poner fin

A tanto apartheyd







HAY QUE ENSUCIARSE LAS MANOS!


*


TEMPO FÉRTIL


Não sei se Homero foi à guerra,

Mas exaltou seus heróis

Que foram fazer fortuna.



Camões eu sei que foi

E cantou em verso e pólvora

Os crimes que cometeu.



Tem bardos compondo hinos

Por honra de seus irmãos

Mortos em alheio chão.



Não sei o que sentiriam

Se tivessem os seus lares

Invadidos por estranhos,



Mas eu digo a todos eles:

Não hastearei minha bandeira

Sobre os restos de ninguém,

Como apraz aos cães de guerra;



Não entoarei cantos de gesta

Pelas desgraças alheias,

Tão caras aos pais da usura;

Não gastarei tinta e papel

Só para matar o tempo

Ou agradar ociosos

Com coisas tão caras.



Nunca joguei porrinha

Valendo escalpe de índio

Nem minas de Vila Rica.



LOTAÇÃO ESGOTADA



Brasil cheio

De raças

De classes

De castas



Brasil rico

De prosas

De histórias

De causos



Brasil farto

De seitas

De facções

De máfias



Até o dia em que

Veremos ruir

Isso tudo

E o caos

Entorne a taça

E eu possa rir

O riso largado

Da sangria desatada

Com o potro solto no pasto

E o nosso povo altivo

Com a bandeira na mão.



FALUJA



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não sou feliz,

E vou sem Manoel Bandeira,

Pois na hora da partida

Virou porquinho da Índia.



Vou-me embora pra Faluja

E já disse porque vou.

Faluja é uma terra livre

Onde o povo não tem rei.



Vou-me embora pra Faluja,

Aqui eu não volto mais.

Faluja é terra de luz

Onde o povo faz a lei.



Vou-me embora pra Faluja,

Viver lá é uma aventura

De tal modo comovente

Que churrasco de yankee

É servido ainda quente.


Vou-me embora pra Faluja,

Vou juntar-me àquela gente

E fazer que um mundo surja

Sem choro e ranger de dente.


Vou-me embora pra Faluja,

E encerrar a ladainha

Senão eu não chego lá

Nem saio desta terrinha...



Vou-me embora pra Faluja,

Lá sou inimigo do rei

E minha maior diversão

É combater a opressão.


*


CANÇÕES DO FILHO

Parte I

Na minha genealogia

Tem um Pataxó destribalizado

E uma negra Haussa evadida,

Restolhos das "Entradas

E Bandeiras," por parte de mãe.



Ambos foram caçados

Por um bandeirante

E seus bate-paus,

Por parte de pai.



Nesta terra de Caminha

Que em se plantando tudo dá,

A escravidão sexual

Vira miscigenação

E ganha status em canção

De muito filho bastardo.



Muitos se ufanam

De serem mestiços

E até receitam isso

Com certidões de mulatos.



Mas eu não tenho dúvida,

Não cometo suicídio de raça

Nem viro escravo de sangue.



Parte II



Chamam-te AMÉRICA

E após tomarem teu corpo

E devassá-lo milhões de loucos,

Esquartejaram-no com mil cavalos

E aonde acharam manchas do teu sangue

Batizaram com nomes eurobestiais,



Mas pra conferirem ares santos

Providenciaram as bênçãos

De certa santa madre igreja

E em cada parte violada

Cravaram aí uma espada

Simbolizando a nova fé,

À qual chamaram cruz de cristo.



Santa Mãe Terra,

Tão divina, tão ultrajada,

Teu nome são teus filhos

E tu vives em todos nós

Desde a mais antiga Era

Ao mais distante Futuro.

Como eu vivo em meus avós

E o rio na montanha,

Somos todos um só,

Santa Mãe Terra.


*


Menos teus inimigos,

Que perecerão ao relento

Sem chão sob seus pés

Nem céu sobre seus rostos,

Como os ratos, sem berço

De Mãe nem Pátria.


Parte III


Este é um país de poetas

Em sua maioria crioulos,

Que derramam no papel

Transatlânticas nostalgias

Pelas pátrias de seus pais.



Desde Bento Teixeira e Manoel Botelho

Que lançam seus tentáculos

Aos confins de suas itálias,

Ricas em leonardos dantes;

Às suas lisboas fartas

De lusidíacas iguarias das índias

E bacalhau norueguês;

Às suas Londres opacas

Túmidas de piratas da rainha;

D'espanhas e franças e holandas

De germânicas reminiscências.



Felizmente não vivo aqui

Com o umbigo além-mar,

Não sofro a mácula

Do pecado original,

Não trago em meus ombros

Pesadas montanhas

De negros e índios

Dizimados por meus pais,

Para que eu vivesse em paz.



Não canto, não toco nem faço coro

Com o coral da escravidão,

Pois eu estou em minha terra,

Terra natal eterna

Dos meus antepassados longínquos,

Dela broto e a ela volto

E me deito sem colchão

E me desfaço em seu corpo de mãe.



Parte IV



Minha terra não é "minha"

Nem é de quem diz ser dono,

Mas tem impostor assim, oh,

Que a chamam de minha terra.

Muitos dizem minha terra,

Mas com os pés em chão alheio;

Só que esses "terratenientes"

Passam o dia no formol

Pra vampirá-la de noite

Com seus versinhos biáfricos

Por uma caneca de vinho.



Mas o fazem ser saber

Que só vinho não dá verve

Pra suas poéticas esquálidas

Tirá-los de cena à francesa,

Como se fossem nababos.

E tornam careta o Brasil,

Chinfrinizam os seus milagres

E deixam os marajás tupiniquins

Morrerem comendo acarajé

Na aba do sabiá.

*


RIMBAUDICES





Não confie em ninguém

Que xingue deus e o diabo,

E, como um litle bad boy,

Queira estuprar os anjos,

Mesmo que perca a perna esquerda

E a direita perca também

E ainda morra em Marselha,

Bem à porta do oriente

Carcomido pelo câncer.





Não acredite em ninguém

Com mais de trinta dinheiros,

Com mais de trinta invernos,

Que acredite em demônios,

Que fuja para a Abissínia

E contrabandeie armas

E ainda trafique escravos

E em sua hora final

Chame por seu Djami.*¹

Não confie em ninguém

Que levou tiro de Verlaine

E o colocou atrás das grades

E ainda fugiu para Roche

E, após uma Une Saisson em Enfern,

Mandou a Paul Demany

A Lettre Du Voyant,

Escreveu Iluminations

Sem dúvida bem além

Dos Paradises artificiales

De Monsieur Baudelaire,

Regado a muito haschisch.



Não confie em ninguém

Que nasceu gênio precoce,

Seja filho de gendarme,

Freqüente o CABARET VERT

E zombe de pátria e família

E vague noite a dentro no váquo

Como o Spleen de Paris.

Não confie em ninguém

Que sofra de rimbaudite

E viva pagando mico

Em algum coufeé maudit.



- *1 : Djami é o nome do mordomo de Rimbaud.

*


DEZOITO BRUMÁRIO DE ARHUR RIMBAUD



Tenho apenas vinte anos

A mais que Artur Rimbaud

E nem um segundo no inferno.



Nunca provei a taça da amargura

Nem quebrei a cara na Abissínia

Ou cheguei em casa perneta.



Jamais reneguei meus pais

Nem minha querida Jampruca

Por suas vidas pacatas.



E o fato de mochilar por aí

Não tornou-me um andarilho

Nem me fará urbanóide.



Sair da casa paterna, pra mim,

É o mesmo que ir ao trabalho

Ou à horta colher alfaces.



Não quero fazer do mundo

Um monte das minhas cinzas,

Porque me odeio e não tenho causa.

Não sofro de " cazuzismo ",

Acusando a burguesia

Por falta de ideologia.

*

DESLUMBRAMENTO



Meu primeiro amor

Foi como beijo roubado:

Sem liberdade de escolha.

Meu primeiro amor

Começou com a chupeta

Quando Ritinha ameaçou-me

"Só te namolo se laigá pepeta!"

Meu primeiro amor

Trocou bala boca-a boca

Na Igreja de Frei Inocêncio

Bem no meio da missa

E o Padre Daniel

Mandou-me rezar três Pai-Nossos

E eu rezei até mais

Para ficar bem perdoado

O pecadinho tão doce.

Meu primeiro amor

Bateu muita gazeta

Na pracinha da igreja

Só pra comer cocada

E dar beijinhos na boca

Das filhinhas-de-papai...

Meu primeiro amor

Passou nas provas

De educação sexual

Com notas de louvor,

Mas se o Grupo Escolar falasse...

Meu primeiro amor

Chupou muito ingá

Na galhada dos ingaseiros

Sobre as margens do Suassuí

Com a Dasdô do Mané Cachorro.



Meu primeiro amor

Tinha gosto de pé-de-moleque

Devorado com a gula

Do menino assustado

Com o presente da namorada

Que levantou a saia de chita

E lhe disse " mete aqui!"



Meu primeiro amor

Ficou de coração na mão

Com o bicho cabeludo

Da Maria Serafina

Nuinha na minha cama

Pra comer minha inocência,

Apesar dos avisos da mamãe

De que ela era rapariga.


*


Meu primeiro amor

Era como filme de Speelberg:

O tempo todo de suspense

E no fim sobra surpresa.

Meu primeiro amor

Nunca encontrou seu fim

Porque a poeira vermelha

Das estradas mineiras

Nos cobriu na encruzilhada

Entre o passado e o futuro

E o destino nos levou

Para distintos presentes.

*


NEOLIBERAL POSTUDO



Após a abertura

Lenta e gradual

Do General Geisel

Nos idos de 74,

Aceitei a receita

Do General Figueiredo

E empanturrei-me de democracia

Com eleição após eleição

E overdose de votos hoje

Pra curar o porre de ontem,

Nem sempre de votos.



Desde então aposentei

Meus apetrechos de guerrilha

Contra a ditadura militar,

Entre eles meu quixute

Mais veloz que bala de INA

E os arapongas do SNI

Com seus óculos Ray Ban

E cabelos James Dean,

Meus comprimidos de Redoxon

Contra gás lacrimogênio,

Minha lista de jornais

E ONGs de DH,


Minha coleção de calças jeans,

Meu Livro Vermelho de Mao Tsetung

E o trezoitão solidário

Que nunca "moscou" na hora

Quando fez-se necessário

Falar o idioma inimigo,

Além da inexorável certeza

De poder mudar o mundo

Nem que fosse a bala,



Mas a três décadas disso tudo

Não sou mais assim não,

Já não sei quem são meus inimigos,

Já não vislumbro as classes

Em que se antagonizam as pessoas

No seio da sociedade,



Não identifico mais ninguém

Como direita ou esquerda

E qualquer discurso ideologizado

Soa-me como algo anacrônico...



Enfim, tornei-me um reles

Neoliberal pós-tudo,

Sem os mínimos valores humanos

De respeito aos oprimidos

E à luta contra a opressão,

De solidariedade militante

Às minorias sociais

E aos despossuídos em geral.

Hoje, se o Tio Sam me pedisse,

Eu venderia minha própria mãe

E entregaria a alma ao diabo

Sem nenhum motivo aparente,

Porque tornei-me um neoliberal pós-tudo.


*


POEMA PARA MOACY CIRNE



Faz tanto tempo

Que não encontro alguém

Que há muito

Eu não encontrava

Alguém que me deixe assim

Alvissareiro

Como as flores e o sol

Às nove da manhã

Com o peito cheio de alegria

Pronto a dar vida às novas emoções,

Como aconteceu com o Cirne

E sua fada amante

Certo dia em Ceridó,

Que se sentiram crianças no parque

Com as façanhas que viveram

Tamanha a felicidade da dupla

Algo assim tão radiante

Que faz mister compartilhar

Fazer com que irradie

Em todo ambiente

Onde haja corações

Que buscam alguém

Digno de ser encontrado

Pelo puro prazer um do outro,

Como o vinho e os lábios

Da mulher amada.


*


VIVER SEM RECEITA


E assim foram-se vinte anos,

Vinte anos de namoro,

Após longas operações secretas

Nos hotéis da Frei Caneca

E seus corredores sinistros,

De arrepiar Hichtcock,

Com tantas fugas fantásticas

Pela Avenida Mem de Sá,

De congelar Mon Sieur Poirot

Depois de longas estadas

Nos cortiços da Gomes Freire

Durante tantos carnavais

Regados a frango assado

E muito vinho de buteco,

Muita lasanha com Black Prince

Nos bares da Cinelândia,

Filmes pornôs no Cine Íris

Só pra criar o clima,


*


Depois de muitos natais

Curtidos a dois nos quartinhos de favela

Regados a risoto de frango e Malzebeer,

Depois de muita briga besta,

Muita salada completa,

Muita "volta" recíproca,

Muita paz de beijo e abraço

Nos bancos da Cruz Vermelha,

Depois de Ana e de Edson,

Passaram-se vinte anos

Além dos cinco pregressos,

Almejo ainda mais vinte

Mas isto não é receita

Para mal sem cura...

*

SHAKESPEARÍACO



Ao tocar a sirene da fábrica

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezessete e trinta.



Às dezoito horas

João não viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

Às dezoito e trinta

João soube pelo vigia

Que Maria fazia serão.



Às dezenove horas

João viu Maria sair

E bater o cartão de ponto

E despedir-se do amante

Com um longo beijo na boca.

João perdeu a linha,

Bebeu a noite inteira,

Chegou em casa de manhã

E matou Maria

Com um tiro na cabeça,

Depois saiu dançando rua afora

Tocando Carinhoso

Em sua flauta de bambu

E nunca mais foi visto.


*


DEUSES DO GUETO


Na topografia do caos

Veias são avenidas

E ninguém viu

Cruzar esta via

Um calango de pedreira

Mais veloz que um tisio

Ou um guri de patins

Nas vielas da favela,

Que ostenta o status

De "aviãozinho da boca"

Mais querido no pedaço

E finda abatido em pleno vôo

Nos becos do mundaréu...

O "patrão" paga o enterro,

O jornal gera emprego,

A família sabe o troco.


*


CANTIGA PARA CASSIANO NUNES



Recebi poemas durante anos

Do Mestre Cassiano Nunes

E saía com eles pra rua,

Levava para os eventos

E lia para os amigos,

Nas rodas e recitais

E quando soube da sua morte

Fiquei desconsolado, e agora (?),

Pensei, mas certo de não ter resposta,

Segui de boca seca.

Senti por não fazer acervo

De tantos poemas que recebi,

Mas me desfiz deles após

Lê-los para o meu público

E publicá-los em meus fanzines.

E a falta que sinto agora

Seja dos poemas ou do poeta

É a satisfação que vai comigo

Pelos destinos que lhes dei

Enquanto eles se foram

Para outras vidas e outras formas.

Mas quando alguém perguntava

Após a leitura de um poema

Quem é Cassiano Nunes,

Eu respondia todo enrolado:

É um paulista de São Vicente,

foi a Brasília fazer carreira

E nunca mais saiu de lá.


*


QUATO POEMAS A MÁRIO QUINTANA


1 - PARAISO QUINTANA


Dizem os abduzidos

Que ao chegar no Paraíso,

Tão bestunta quanto sempre,

Mário Quintana estacou,

Pregou na nuvenzinha

Que lhe servia de tapete

E ficou abestalhado

Com tanta beleza,

Tanta alegria, tanta paz,

Que até esqueceu de sair do lugar,

Sem dar um Passo sequer

E que um anjo louro,

Louro louro muito louro,

Aterrissou a seu lado

Pegando-o pela mão,

E saíram voando, voando,

De início a meia altura

Para logo em seguida,

Seguros de vôos mais altos,

Estenderem as asas

E ganharem outros ventos...


*


Coisas de abduzidos...

E dizem que Mário Quintana

Pensou em perguntar ao anjo

Que parque era aquele,

Lá embaixo, bem ao centro

De todo aquele Paraíso,

Mas como fosse um anjo

Leitor de pensamentos,

Foi logo explicando

Que era o Parque Mário Quintana,

Onde crianças e poetas

Se exercitam nos versos

Bem aos olhos das musas,

Que as suas lhe aguardavam ansiosas

Para ouvirem os versos seus.


*


E ao notar insegurança

Nos olhos tímidos do poeta

Pensando em Bruna Lombardi,

O anjo se adiantou dizendo

Que ela enviara todas suas semelhantes

Enquanto se desvencilhava

De seus encantos terrenos.

Segundo os abduzidos,

Quintana vive cercado

De musas e discípulos,

Exercitando seus encantos

Lá nos palcos do Paraíso,

Bem alheios à realidade.

Mas

Quem

Diz

São os

Abduzidos!

*


2 - QUINTAN'ESSÊNCIAS


Não consigo imaginar

Quintana chorando,

Cortando soluços sentidos

A não ser lágrimas

De extrema alegria

Para lavarem as faces

Queimadas pelo arco-íris,

Pois a palavra Quintana

Sugere criança brincando,

Alheia a tudo,

Imune a qualquer risco

Longe desta vida,



De direitos e deveres,

De ordens e obediências,

Reduzidas a números e papéis,

Aliás, como Quintana sempre quis.


*


3 - GRAVATA DE QUINTANA


Quintana empaca meu verso,

Mas eu puxo-lhe a gravata

E ele ri seu risinho besta

Cheio de desdém

Pelas coisas deste mundo,

E sem largar a desgraça do cigarro.



Intimo-o a não rir de mim,

Mas sem dar-me nenhuma atenção

Mantem-se concentrado em seu vinho

Sem descuidar com o olhar

Atento para surpresas

Que eu possa aprontar-lhe,

Até que desata a rir mais ainda

E desfaz-se o nosso entrevero,

Como se defraudasse

A bandeira colorida

Dos seus sonhos infantis.


*


Mas novamente puxo-lhe a gravata

E não mais encontro Quintana,

Só o vaquo da mesa vazia,

O salão da adega em silencia

E o jornal à minha frente

Com a notícia repentina...



Quintana decola

Do aeroporto moinho de ventos

Rumo ao seu mundo de estrelas,

Onde pretende esquecer de tudo

E passar o resto da eternidade

Puxando perna de grilo

E beijando brunas lombardes.





*

4 - QUINTANA







Mário Quintana

Partiu

De Porto Alegre

Para Porto Feliz

E foi-se

Sem dizer adeus

Rumo ao Reino de Deus

Esquecido de nós

De vez

Sem mandar notícias

Jamais

Ou seria um deus-nos-acuda

Com tantas Babis, Babys

E Brunas Lombardes

Em êxtase.



*

ODE AO VERSO LIVRE







No princípio a poesia era uma canção regada a vinho

Ao som de harpas tocadas com carinhos e beijos de mulher amada

À sombra de uma palmeira frondosa

Onde o poeta-filósofo se deleitava com a vida sem fronteiras

E ela brincava solta pelos bosques entre duendes

Indiferente ao tempo acariciando a sua nudez

Coberta de inocência,



Depois, veio a escrita e de palavra em palavra

Foi vergando-a sob o rigor do verso

Moldando-a à disciplina da métrica

E aprisionando-a à liberdade

Que lhe permite esta margem de papel,



E agora ela atravessa as grades das gramáticas

Sobrevoa o muro das linguagens

E vem sondar-me

No ondular dos cabelos desta mulher que passa...

*
L



A
B
C
D
E
F
G
H
I
J
K
LMNOPQRSTUVWXYZ


L
Letra
tear
reta
arte


Letra é arte.
Letra alerta.
Letra arreta.
Letra é aleta.
Ela é tear: ata, reata e atrela.
A letra está para o átomo,
como o poema, para a matéria.
Poema é amor entre letras.


Pode ser minúscula em Bashō.
Pode ser maiúscula em Camões.
Letra não é nada sem o leitor
ou é um muro de incompreensões.

Mas só alcançará a completude
uma vez que unida a suas irmãs,
tal como a aranha tece sua rede
e capta no orvalho a luz da manhã.

Três letrinhas já podem ser poema,
como, em sânscrito, a palavra Om.
O poeta escritor, sem a alma gêmea

do leitor, o poeta seu irmão,
morre doente, na pobreza extrema,
como Camões morreu na solidão.


Mesmo Camões, sem ter lido Bashō,
não foi reconhecido ainda em vida,
não faz sentido uma letra só,
mas apenas quando está unida

a uma outra e depois outra e assim
sucessivamente ad infinitum...



Dedico estas menores e piores redondilhas ao Paulo Leminski

Lê mim se quiser
Me lê sem querer
Entre eu e você
O que der e vier



Um soneto à mãe

O perfume e a beleza das cores
das flores que ela tanto amava,
para sempre, serão nosso deleite,
refletem, pois, o que dela emanava.

E, mesmo não tendo sua presença
densa, em corpo físico, entre nós,
ainda a teremos sempre presente
na mente e no coração. Somos sós,

quando isolados nas paredes do ego.
Mas somos todos um só, irmanados
em fronteiras além do infinito,

sem barreiras, que separam, do tempo.
Assim a sentimos, extasiados
pelo que pode ainda ser sentido.



Um soneto ao pai

Quisera eu ter o dom de expressar,
de forma tão verdadeira e bela
e simples como, à noite, o luar,
a sua luz atravessa a janela,

para, quem sabe, tentar transmitir,
com palavras, a justa homenagem,
mais valiosa que possa existir,
ao amigo, ao exemplo, ao homem!

Ao pai, que muito amo e que me ama,
hoje só agradeço; nada peço.
Dedico este soneto em que trabalho

àquele cuja vida é um poema,
àquele cujo nome é um verso:
Erasto Villa-Verde de Carvalho.



"Amar se aprende amando"

Dormir se nasce sabendo
Chorar também é instinto
Andar se aprende caindo
Viver, desafio estupendo

Sorrir se aprende sorrindo
Fazer se aprende errando
Cantar, em aulas de canto
"Amar se aprende amando"

Dançar, só rodopiando
Ler se apreende lendo
Escrever, no pensamento

Expressar-me experimento
Proseando e versejando
Drummondeandradeando



Outros sonetos ao amor

I

Sei que o amor está em toda parte
e aparece quando menos se espera,
quando se chega e quando se parte:
o amor é fícus, o amor é hera.

Árvore frondosa de grandes copas.
Erva que se espalha pela parede.
Ora nos enleva alto, ora brota
como praga, musgo ou limo verde.

Hoje amo amor de árvores belas,
antes sementes, agora florescem:
todos que as veem se admiram delas.

Mas também sei do amor que dá em pedras,
que se espraia, nos agarra e endoidece.
Prefiro o amor fruto ao amor quimera.

II

Quero me embriagar de poesia.
Beber palavras até saciar
a sede que me resseca a alma.
Degustar o néctar da ambrosia

de versos em caldas. Eu tomaria
litros e mais litros de letras tintas,
tonéis de carvalho, harmonizadas
com as melhores especiarias.

E depois, dançaria com a musa,
ao som das estrelas. Sobre o tapete
verde, então, tiraria a sua blusa

e sorveria o doce deleite
que escorreria por fora de sua
taça de amor, tal como sorvete.



Corpo de dor / Corpo de luz

A meu irmão espiritual Namadev (in memorian), que, além de tantas outras preciosidades, me apresentou a obra do mestre espiritualista Ekchart Tolle.

I

Enquanto perco a minha consciência,
uma intensa dor de mim se apodera,
como se eu fosse uma outra pessoa
não tão boa como a que antes eu era.

Deixo-me dominar pela emoção
que de tão forte a mim me controla,
pensamentos tolos que vêm e vão,
sem a noção do Ser, do aqui e do agora.

Depois me vem o arrependimento,
a dor do remorso que me devora.
E desse modo retroalimento

o corpo de dor que dentro em mim mora.
Como me livrar dele? Não sei. Tento
forçá-lo daqui de dentro pra fora.

II

Dor que volta mais forte do que antes.
Meu semblante até a mim apavora.
Já com a face toda retorcida,
como suicida que só aguarda a hora

de terminar com sua própria existência,
nem mesmo eu a mim me reconheço.
Quero começar novo recomeço,
estar consciente da Consciência

e mais presente em minha presença.
Não há solução à base da força.
A mente que descontrolada pensa,

observada de maneira atenta,
naturalmente uma hora se cansa
e na quietude então se assenta.

III

Assim surge silenciosamente
quem sempre esteve, mas despercebido,
aqui mesmo, contudo escondido
pelo ego que me dominava a mente.

Sem nome ou forma, refoge aos sentidos.
Em relação ao mundo é transcendente.
O Eterno só é aqui, no presente.
O Infinito nunca é definido.

O corpo de dor, desaparecendo
aos poucos, perde a sua densidade,
pois só existia em meu pensamento.

Quieta a mente com naturalidade,
alívio sinto enfim bem aqui dentro:
só o Corpo de Luz É, na realidade.



Ahimsa

Política não é religião,
assim como partido não é seita.
Sem a liberdade de expressão,
a Democracia não se sustenta.

O discurso de ódio interessa
só a quem toma o poder à força.
Para que o povo o retome depressa,
criatividade e inteligência

são necessárias na resistência,
desobediência civil pacífica,
como ensinou Mahatma Gandhi.

Sua doutrina da Não Violência
é uma grande verdade histórica
que o brasileiro agora apreende.



Vermelho (des)encarnado

I

Do pau-brasil se extrai o pigmento
para tingir tecidos de vermelho:
a cor que provoca tanto espanto
em quem se ufana de ser brasileiro.

A cor menos visível do espectro
está na pele dos índios Tupi.
Quando aportaram os estrangeiros,
eles já se encontravam aqui.

A que mais se aproxima do negro,
como o sangue derramado em vão,
é pois a cor que causa tanto medo,

a cor que se ausenta sem a luz,
qual a fogueira que vira carvão
à medida que o fogo se reduz.

II

Do pau-brasil se extrai o pigmento
para tingir tecidos de vermelho.
Mas o desconhecimento é tanto
que ignoram até o que é ser brasileiro!

Se o vermelho não está na bandeira -
como o verde das matas devastadas,
o azul do céu de nuvens poluídas,
o amarelo do ouro que orna igrejas

na Europa -, está na pele dos índios
que habitavam esta terra quando
os brancos a tomaram (tempos idos?),

no sangue que derramaram enquanto
saqueavam e ficavam mais ricos
à custa de almas desencarnando...

III

Revogaram o vermelho das rosas.
Proscreveram o vermelho do sangue.
Confinaram o vermelho das roupas
aos limites de um sonho estanque.

Censuraram palavras de ordem.
Proibiram as frases de efeito.
Determinaram os livros que podem
ser, nas mais nobres estantes, enfeites,

e queimaram em fogueiras medíocres:
os outros; rosas e roupas vermelhas.
E chamaram sonhadores de míopes,

ignorando sua própria cegueira.
Pois o sonho arrebenta os diques,
como o sangue escorre das veias.



Vossa Excelência tem a palavra

A linguagem do advogado verdadeiro,
dita de forma tão dura quanto polida,
que a Justiça nela brilhe por inteiro
e trespasse a falácia em aço construída,

há de ser. Pois, como o diamante, milenar,
forte nos textos dos clássicos, que cultiva,
o advogado deve assim se expressar,
bravo, com voz serena, todavia altiva.

E que esse mesmo brilho, de tão reluzente,
pleno de simples e honesta sabedoria,
possa enfim ofuscar a fala do sofista.

Que sirva não a si, mas sim a seu cliente.
Nem o gesto ou a beca, nada em demasia.
Assim seja, claro, na voz e na escrita.



Ser ou estar?

Tantas vezes de novo reinvento
outro eu que eu sei que sempre sou:
político, poeta, músico ou
advogado mesmo, virulento

assim como estou neste momento,
que já não sei se sou persona grata!
Mas para mim isso pouco importa,
contanto que eu continue sendo

eu. Mas quem sou eu? Nem quero saber!
Cabeça doida, teorias tortas.
Ser ou estar? É de estarrecer!

Clamo pela paz, ao amanhecer,
ideias certas, vida bem disposta!
Diferente de mim, não posso ser.



Haicais. 20.6.2016

Está amanhecendo
O canto de um passarinho
Frio... Frio... Frio

Cinzas no ar
Revoada de quero-queros
Poeira nos sapatos

Seca no cerrado
Queria tomar chuva
até encharcar a alma

O dia se esvai
O sol que entra na sala
não me aquece dentro

São grilos da noite
zumbindo no meu ouvido
ou grilos da mente?



Haicais. 21.6.2016

Alta madrugada.
Canta o carro-de-boi?
Não! O carro de lata.

"Inverno austral"
Dias curtos, noites longas
Sul do e-quæ-dor!

Dia do Yoga:
atividade no templo;
paz no coração.



Haicai. 22.6.2016.

Porto Alegre? Sim.
Mas trago nesta viagem
frio no coração.


Outro paiz (23.6.2016)

Bah sal
Bah céu
Brazil

Bah sol
Bah sul
Bah frio

Balbucio

Bah chá
Bah tchê
Bah xi

Bashō
Babaçu
Baiacu

Baba, Rio!



Haicais da Bahia (jul.2016)

O sol é a estrela
do dia, mas a tristeza,
o astro de dentro.

Eu robotizado
Estrelas no Universo
O mar me lambeu



Carta à Segunda Pessoa

Digníssima Senhōra,
Onde estás que não respondes?
Só nos versos de Pessoa,
de Cabral de Melo Neto?

Ah, eu chamo-te à toa...
É aqui que tu te escondes?
Nestes versos que destoam,
pois versejo, não poeto?

Farias a mediação
entre mim e a Terceira,
mas sem ti, na solidão
desta língua brasileira,

José, Chico e João,
Severino e Donana,
o Mané, a Conceição,
Seu Tião e Bastiana,

até mesmo os de cima
ficam sós, na Casa Grande,
que ninguém consegue rima
se te fazes de importante.

Preto não fala com branco,
só com a excelência dele,
e, se o olha no olho,
chicote lhe queima a pele.

Na tribo, criança, cacique,
homem, mulher são auá.
Mas carioca é muito chique,
lugar de branco falar.

Inclusive padre Antônio,
irreverente com Deus,
era cerimonioso
quando pregava aos seus.

E o plebeu não se dirige
diretamente ao Rei.
Por isso que sumiste
ou causa de que? Não sei.

Ei! Fugiste para onde?
Diz-me, ora pois! Que é de ti?
Coronel ou lobisomem,
estás com medo de quê?

Não podes abandonar
tantos filhos de João,
de Maria e de José!
És cristã ou és pagão?

Foste para além-mar
com a família real?
Não temos com quem parlar
de igual para igual!

Voltasse pra Portugal,
sem coragem de lutar,
e levasse, além de terra,
que dizias tanto amar...

(Vossa Mercê me perdoe
se já lhe não dou ao respeito!
Vosmecê não se chateie,
não falo mais com você!

Suncê levasse daqui,
além de terra - já disse!),
ouro, prata... mineral,
toda riqueza que existe,

e largasse uma língua
nesse mundo, sem igual!
Pois italiano, espanhol,
português de Portugal

prosam contigo de boa,
em Roma, Madri, Lisboa.
Aqui te tratam tão mal
quanto foram maltratados.

Nesta terra desigual,
pobre e rico tão distantes,
não estranha no Brasil
idioma nunca dantes...

Onde mal falam ocê,
agora, em tempo real,
duas letrinhas, mais nada,
é tudo que lhe restou.

Nem me refiro a bandeira
branca, pedindo a paz,
levanto sim a vermelha:
que não tornes nunca mais!

Desde que, neste país,
Pombal, pedante Marquês,
proibiu a língua Tupi
e impôs o Português,

gerações degeneraram-te,
na fala e na escrita,
cansadas de palmatória,
de chibata. Que desdita!

Como disse o malfalado,
Severino Cavalcanti,
chefete dos Deputados
(tão insignificante,

mas nos anais registrado):
- Recolha-se à insignificância
de Vossa Excelência!
Vc já está bloqueado!
Esta é a história de Harry, vulgo, Harry Podre. Um homem de trinta e dois anos, medindo um metro e setenta e quatro centímetros de altura e pesando cento e vinte e cinco quilos, redondo. A visão de Harry sobre a vida o cansou, pois, o que hoje é repulsa, se não é isso, o que será? Este homem se cansou e estamos cansados dele. Seu perfil é traçado pela ausência de amor, ou seja, de planos e objetivos. Sua vida não tem sonhos. A sua pobreza existencial rebaixa o seu caráter. Um beberrão de cachaça e dependente químico, um bruxo. Há um ceticismo um tanto exagerado disfarçado de alegria nestes dias úteis de Harry Podre. Sua mãe, a sua labuta, o seu dinheiro, a sua vida. Na cama já são quase duas horas da tarde e não tem ninguém em casa. O impulso interior animal executa em si a mais pesada necessidade por alimentos. A geladeira um alvo fácil e precioso, grande fonte de propriedades calóricas. Com um precipício no lugar da substância da alma, retira da geladeira os ingredientes do lanche, põe no pão a maionese, o parmesão, o tomate e muitas fatias de salame. Talvez encontre estrutura no seiscentos mililitros de Coca Cola que o acompanha? Intensificou a sua admirável destruição acelerando sua decadência com o baseado para abrir o apetite. Saciada a fome. Um marlbolro para selar. Tanto faz ser positivo, o mundo é bem triste para se viver sóbrio.

Nem todos são como Harry Podre, talvez conheçam alguém assim, ou imaginam como seja. Nem todos possam ser como ele, há de ter coragem. Acredito que apenas um por cento da população seja igual a ele. Concluímos que nele há toda uma falência moral, religiosa e política.

Continuou lutando para que depois daquele café da manhã não voltasse para cama, pois nunca imaginou que os seus excessos de erros o trouxesse; confusão, melancolia, cólera, fastio e gula.

Harry, para a sua felicidade inventaram o computador, a internet e a televisão. A felicidade é um caminho torto. Se a sua cabeça ainda estiver confusa e agitada, a televisão irá te ajudar. Engano de quem disse que bens materiais não nos trazem felicidade e felicidade significa sossego na cuca.

No computador navegou até o site de torrents, olhou para o que mais lhe desejaria ser na vida, ali tem uma série cabeça com temática policial. E querer não é poder para Harry, quem pôde fez o caminho para alcançar, ele uma vítima das vítimas perdido no próprio desejo.

É comum perder-se. Harry Podre sentiu a fome apertar seu estômago depois que queimou outro baseado, pré-almoço. Dizem, alguns sábios que a gula é um sinal de que o nosso espírito não está legal e, algo está nos comendo por dentro. Massas, frituras, refrigerantes e mais frituras. Outro Marlbolro para selar.

Para Harry Podre, nada renasce antes que se acabe. A noite linda surgia e junto sua angústia intensificava. Um canibal devora outro canibal. Esta dor de angústia cura com outra dor. Na cozinha sua mãe lhe oferece a janta. Ele espera a cozinha ficar vazia e sorrateiramente faz seu prato, razoavelmente cheio. Volta para o quarto. Sua mãe pergunta do lado de lá da sala;”Você vai amanhã procurar emprego? “. Ele responde com um grunhido. Sua mãe não identifica. Que ninguém o engane, só conseguiria na simplicidade, um paliativo para seus problemas, sendo através de muito trabalho. Não quis.

Harry sabe que na vida há um equilíbrio, porque a vida já é uma droga, então, tanto faz usar outras drogas. Simplesmente usar drogas para ser feliz. Quis ficar alucinado. Conduzir sua vida inocentemente para a morte. Da gaveta de meias tira do fundo falso uma caixinha. O bunker das drogas, pois, sua mãe sempre que encontra as joga fora. Tirou um papel laminado, desembrulhou e com o pó fez uma carreira esticadinha, linda. Ketamina deixa a gente sair fora do corpo. No mínimo faz esquecer que eu existo. Tira a depressão em segundos. Harry partiu para uma viagem longa.

Em sua cama na jornada causada pelo entorpecimento; “Nosso querido bruxo está de volta à escola de Nóiawarts, estávamos te esperando. Por onde andou? Estava no mundo dos avivados mais uma vez? Vista já seu uniforme”. Ronald Éter e Hermione Ganja sorriram para Harry. As reuniões não serve de nada quando não tem o que planejar. O diretor Alvo Numbledore em sua sala traga e sopra um ar intoxicante de mescalina. Gritando;”Lord Voldemortpico está de volta, mais maligno que antes “.

Harry Podre um bruxo com muito potencial, ele aspira poder. Toda essa magia lhe transpôs um coração envenenado. Lord Voldemortpico assassinara seus pais com uma super dosagem de heroína. A marca que Harry Podre tinha na boca foi um super mesclado que fumou que estava estragado vendido pelo Lord.

Eram oito horas da manhã e Harry voltava da jornada, abriu os olhos e coçou. Levantou caminhando direto para cozinha pôs no copão meio litro de suco de laranja e no prato um Beirute. Pensou consig;”Eu tenho o maior medo dessas coisas de ser normal “. Voltou para o quarto e ligou o PC.

O que não faz morrer o enfraquece. Na deep web encontrou um site de necrofilía aonde passou sua mão no pau e começou a descascar. Para ter algo de sucesso alguém teve que ter iniciativa.

Sente-se absurdamente vazio. Há pouco esteve querendo morrer. Sem saber exatamente o por quê. Sabia em partes. Não queria culpar apenas a parte fisiológica de seu cérebro, gostaria de entender as coisas externas. Não tinha amigos, conhecia pessoas que ajudavam a manter-se, aquele estilo de vida era seu maior bem.

Antecipou seu desejo morbígero, pegou a chave e trancou-se no quarto. Retirou do bunker das drogas uma boa quantidade de crack e atrás do armário uma garrafa de um litro de cachaça. Olhe, quem nunca comeu em abundância leite condensado, nunca irá entender o porquê do viciado. Mas, lembre-se, drogas fazem você perder a memória.

Nada é mais importante do que Deus, mas os excessos te afasta deste caminho. Em qualquer dúvida, corra dos excessos. Harry Podre depois de muitas tragadas e goles se estica na cama e apaga.

O céu de Nóiawarts ressurge de novo e Harry atrasado corre para a sala de aula. Minerva Mcgocarreira quer ensinar seus alunos como usar o canudo mágico. Dizem que a literatura é igual a cocaína porque ela aguça o espírito.

Fim de aula, juntos decidem ir ao quarto de Hermione, queriam fumar. Havia muita maconha e demandava diminuir o estoque para não dar muito na cara. Qual jovem bruxo não gosta de aliviar seu estresse e tensão de maneira fácil?

Harry traga e prende o ar fazendo pressão dando a impressão que sua cabeça fosse explodir. Em transe a imagem translúcida, quase holográfica, Lord Voldemortpico com o coração de Harry na mão direita, levando à boca, arrancando um belo e saboroso pedaço.

Hermione e Ronald olham Harry preocupados. Ele está longe, longe, tão distante. Os espasmos eram evidentes. Continuou distante. Hermione aflitiva correu, pegou o ventilador, ligou em frente ao rosto de Harry. Ronald prestativo foi rápido à geladeira, pegou a garrafa com água, molhou a nuca de Harry e o fez beber. “Harry você está aí? Fala com a gente.” Harry, devagar começa a recuperar-se, voltava de longe “Eu sinto Lord Voldemortpico bem próximo de mim amigos. ” Ronald extasiado “Harry por que você tem sempre as melhores viagens? ”

Harry amanhece vomitando e tossindo. De todas as enfermidades que acometem o espírito, a ressaca é aquela a qual tudo serve de alimento e nada serve de remédio.
Parabéns  a você, criança
Que brinca, que ri,
Que sonha
Que se aventura no passo da vida
Que cai e se levanta

Que quebra o brinquedo dos conceitos
Para descobrir o outro lado,
Vorazmente se empenhando na busca dos por quês!

Que chora
E na fragilidade quer colo
Que faz manha quando não lhe aceitam as reivindicações,
Que erra e leva as palmadas da vida,
Mas que acima de tudo só deseja amor,
Dormir no embalo da felicidade,
Ouvindo a predileta canção de ninar
E a história com final feliz para o sono tranquilo e restaurador.

Parabéns, criança!
Que esta outra face do mundo adulto
Seja o impulso para que na brincadeira da existência,
No jogo desafiador da vida,
Você encontre o prazer do realizar,
De juntar as peças do quebra-cabeça que completem a sua história
Lançando-se sem medo em direção à concretização do sonho
E na simplicidade apenas viver.

Edna Queiroz

     * * *
12 DE OUTUBRO - DIA DA CRIANÇA!

As crianças trazem  encantamento à vida, nos deixam extasiados com suas descobertas, com cada tentativa de se tornarem um de nós, nos gestos, no olhar, na fala e aventuras nos desafios ao redor... - uma dádiva que nos revela o que fomos um dia! Que possamos, cada um de nós, acolher com amor aos pequenos que têm uma vida inteira pela frente e que merecem ser felizes, merecem um mundo melhor!
E a nós, adultos, que não percamos de vista a criança que existe em nós, apesar de todas as adversidades, formalidades e protocolos sociais.  Que possamos conduzir a vida com leveza, manter o nosso senso de humor, brincar com a realidade, sonhar, sorrir... aprender com elas a não desistir, ainda que após a queda venha o choro, logo logo o sorriso contagia.

“Se ele não tivesse escrito o “Pela estrada fora”, os The Doors nunca teriam existido” – Ray Manzarek

Ray Manzarek podia ainda ter acrescentado que se Jack Kerouac não tivesse escrito o “Pela estrada fora”, o final dos anos 60 não podia ter acontecido da forma como ocorreu, com jovens a ir para a estrada na procura do seu eu, como JACK KEROUAC havia descrito nos seus romances.

“Pela estrada fora”, foi lançado em 1957, altura do boom da geração beat, em que os membros desta estavam na sua fase de adolescência. Os escritos de JACK KEROUAC eram irresistíveis, as descrições românticas de Dean Moriarty e as viagens pelo país de Sal Paradise. As aventuras que fervilhavam nas suas cabeças, conhecer novas pessoas enquanto viajavam pela estrada fora em busca de iluminação, que eles não sabiam bem o que era, mas reconheceriam quando a encontrassem.

As descrições viscerais de JACK KEROUAC sobre música coincidiram com o aparecimento de Elvis Presley e o nascimento do Rock’n’Roll. Apesar das descrições de JACK KEROUAC incidirem sobre músicos de jazz, ele viu a relação entre as suas descrições da cena jazzística e do Rock’n’Roll. JACK KEROUAC chegou mesmo a pedir à sua editora para que o “Pela estrada fora” fosse editado antes que a cena do Rock’n’Roll pudesse de alguma forma terminar.

“Pela estrada fora” abriu as portas para o mundo a uma geração cujos pais procuravam segurança e conforto nos subúrbios pré-fabricados e que antes de atingirem a maturidade, procuravam os destinos e a iluminação que JACK KEROUAC havia descrito.

Para Jim Morrison, o “Pela estrada fora” pode-lhe ter aberto um mundo de pensamentos. Os personagens de JACK KEROUAC falam de Baudelaire, Kafka, Nietzsche, Rimbaud e William Blake, todos eles declarados como favoritos por JIM MORRISON.

É discutível que JIM MORRISON tivesse adoptado Dean Moriarty como modelo. Em todas as suas biografias reconhece que começou a pedir boleia aquando da altura em que frequentava o ST. Petersburg Junior College, aos fins-de-semana, para ir visitar Mary Werebelow, sua namorada da altura, ou para ir visitar a família por altura da acção de graças. JIM MORRISON fazia-se à estrada para se aventurar com o seu primo num churrasco de família ou uma vez com um amigo em que pediram boleia a uma mulher, que parecia estar disposta a ter relações sexuais com um, ou mesmo com os dois, como ele próprio contou.

Pedir boleia e andar pela estrada fora foi apenas um meio de transporte para se deslocar, foi sobretudo uma maneira de procurar aventura e vivenciar experiências.

As descrições de Dean Moriarty feitas por JACK KEROUAC podiam muito bem ser aplicadas a JIM MORRISON: “A primeira impressão que tenho de Dean é de um jovem magro, olhos azuis, com um verdadeiro sotaque de Oklaoma”. É exactamente assim que JIM MORRISON aparece nas suas primeiras fotos publicitárias.

JACK KEROUAC é muitas vezes citado: “As únicas pessoas para mim são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, desejosos de tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam ou dizem uma coisa banal, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas romanas amarelas explodindo como aranhas através das estrelas e no meio você vê o azul pop luminoso e todo o mundo vai “awww!””.

JIM MORRISON parafraseou estas palavras para se descrever a si próprio: “Eu vejo-me como um enorme cometa de fogo, uma estrela cadente. Todo o mundo pára, aponta para cima e engasga-se – oh, olha isso! -. Então vou-me embora… e eles nunca irão ver nada parecido nunca mais… e eles não serão capazes de me esquecer.”

Todos nós já participámos do jogo do salão ou numa tempestade de ideias e perguntámo-nos o que faríamos se encontrássemos os nossos heróis e o que aconteceria? Entramos neste tipo de jogo mental a toda a hora, e se Jesus e Gandhi se reunissem para falarem? ou Karl Marx e Thomas Jefferson? ou Da Vinci e Van Gogh? ou Einstein e Marilyn Monroe? ou mesmo nós os dois!

Será que alguma vez JIM MORRISON e JACK KEROUAC se encontraram?

Há no meio de tudo isto uma evidência quase anedótica de que este encontro pode ter acontecido. A primeira evidência pode ter sido puro acaso, o facto de JIM MORRISON e JACK KEROUAC terem vivido em Clearwater, Flórida, ao mesmo tempo em 1961/62.

JIM MORRISON disse ter frequentado alguns dos mesmos cafés que JACK KEROUAC, como o “The House of Seven Sorrows” e o “Beaux Arts“. Ambos são conhecidos por terem frequentado esses dois cafés, o facto de aí terem estado ao mesmo tempo não é inconcebível.

Sabe-se que JACK KEROUAC é também conhecido por diversas vezes ter tido fans adolescentes a sair com ele. Por essa altura JACK KEROUAC tinha então 40 anos e JIM MORRISON estava na juventude dos seus 19 anos.

Acaba por ser tentador imaginar um adolescente como JIM MORRISON a partilhar uma cerveja com JACK KEROUAC, e ouvindo este falar de literatura.

No livro “Kerouac Subterranean” de Ellis Amburn, existe um parágrafo em que este fala de uma tentativa de JIM MORRISON visitar JACK KEROUAC na sua casa de Lowell MA, em 1968.

Se alguma vez JIM MORRISON e JACK KEROUAC se encontraram acidentalmente em Clearwater, tal facto nunca foi registado. Nunca poderemos saber se JIM MORRISON procurou JACK KEROUAC, mas podemos reflectir sobre o que aconteceria se os dois se tivessem encontrado algum dia ao longo deste nosso fosso existencial. Talvez nunca venhamos a saber se eles se encontraram, mas podemos sempre perguntarmo-nos: e se?

Foi representada na abertura da I Semana de Letras de São José do Rio Pardo, Brasil.


(No sítio do Pica Pau Amarelo...)
Visconde de Sabugosa: Boa noite, senhoras e senhores, estou aqui para...para...para...Ih, esqueci o que ia falar...Que                                        horror! 

(Visconde fica parado e pensativo. Entra Emília)

Emília: Olá, Visconde, como vai? Como está a família?
Visconde: Oh, bem, obrigado!...Eu tenho família?

(Emília faz cara de surpresa e olha de uma forma confusa para o público)

Visconde: Quem é você, afinal de contas?
Emília: Sou eu, a Emília! Visconde, o que está acontecendo? 
Visconde (a beira do desespero): Eu não sei...eu não sei nada! Eu não sei mais nada!!! (berra)

(Emília dirige-se à platéia indignada)

Emília: Gente, e agora? O Visconde não sabe mais nada! Ele esqueceu tudo! Bem, acho que tenho a solução. Vamos procuraro Tatu Sabe Tudo. Foi ele quem descobriu a pílula falante. Ele tem o livro mágico que fará o Visconde lembrar de de tudo.

(Emília começa a procurar pelo cenário)

Emília: Seu Tatu? Seu Tatu?

(entra o Tatu com um livro na mão e Visconde continua caminhando pelo palco, desorientado)

Tatu: Oi Emília, trouxe o livro que me pediu!
Emília: Como eu uso?
Tatu: É fácil! Basta ler...Ah, mas tem parte mais difícil. É meio fácil e meio difícil
Emília: Qual é a parte difícil?
Tatu: Você vai ter que encontrar no mínimo 20 pessoas, humanas, para ajudá-la a entrar no livro.
Emília: 20 humanos!? E o que faço depois?
Tatu: Você tem que fazer todos repetirem a frase milenar mágica.
Emília: E qual é?
Tatu? "No fundo, do fundo prpfundo, está a lembrança de todo esse mundo". 
Emília (repetindo em voz baixa): " No fundo, do fundo, profundo, está a lembrança de todo esse mundo". É fácil! Agora só falta encontrar os humanos.
Tatu: Mas não é só isso, não! Esses humanos terão que vê-la como líder. Eles terão que ficar em pé, dar 3 reboladas, 3 pulos e 3 balançadas de cabeça. Faça comigo!

(Os dois ficam no meio do palco e fazerm todos os movimentos)

Emília: Ah, ótimo! Acho que aprendi! Obrigada, Seu Tatu Sabe Tudo. Agora vou procurar esses humanos.

(Seu Tatu sai lentamente)
(Emília procura pelas pessoas)
(Emília para e, com cara de surpresa, aponta para alguém na platéia)

Emília: Ei, senhor! (aponta alguém na platéia) O senhor de blusa (fala a cor). O senhor é humano?

(Emília conversa e improvisa com a pessoa escolhida)
(Emília percebe que está cercada por humanos)
(Emília dirige-se à platéia)

Emília: Nossa, quanta gente! Pessoal, preciso da ajuda de vocês! O Visconde (aponta para o Visconde que continua andando desorientado pelo palco) perdeu todas as suas lembranças. O Tatu Sabe Tudo me deu esse livro para poder resgatá-las. Para isso, entretanto, preciso da ajuda de vocês. Preciso que todos repitam comigo bem alto a frase: "No fundo do fundo profundo está a lembrança do mundo". Depois vocês deve dar 3 reboladas, 3 pulinhos e 3 balançadas de cabeça. Pode ser? Então vamos lá. Vamos ensaiar primeiro.

(Emília ensaia com os presentes, improvisando diálogos).

Emília: Vamos lá, agora é para valer: "No fundo do fundo profundo está a lembrança do mundo"

(Todos fazem os gestos e quando o silêncio volta ao normal, ela abraça o Visconde, abre o livro e começa a ler)

Emília (lendo o livro): Houve um tempo em que o tempo se perdeu. Há muitos e muitos anos, conta um livro que os homens falavam a mesma língua. Todos se entendiam e a comunicação era perfeita. Os homens iam para qualquer lugar sem se preocuparem em ser entendidos. Dizem, porém, que alguma coisa aconteceu...

Visconde (interrompendo a leitura): ...ah, me lembrei! É a história de uma torre. Como é o nome? Pastel? Rapunzel? Papel?

Emília: Babel! É a torre de Babel!
Visconde: Os homens começaram a construir uma enorme torre com o objetivo de chegarem no céu. Mas, algo deu errado e cada um começou a falar seu próprio idioma. Interessante, desde sempre a Linguística fez-se necessária...
Emília: Foi aí que começamos a falar Português?
Visconde: Não, Emília, ainda não. Leia mais um pouco. Não consigo me lembrar.

Emília:"...com o orgulho do homem, dividiu a população em línguas: o Latim e o Grego..." Visconde, antes não existia escrita?
Visconde: Exato! As línguas não eram escritas como são hoje. Algumas até tinham alguns símbolos, mas não um alfabeto. Interessante, estou me lembrando. Continue...
Emília: "O Latim apareceu na Península Ibérica. Foi uma língua muito importante para a civilização contemporânea porque, por meio dela, outros idiomas foram originados."
Visconde: E o nosso Português está enraizado nessa língua!
Emília: Mas por que em Portugal se fala diferente, Visconde?

Visconde: Porqueno Brasil, apesar de ter sido colonizado pelos portugueses, houve uma mistura de idiomas. Tínhamos, aqui, várias tribos indígenas que falavam sua própria língua. Tivemos, também, os holandeses na Bahia, alemães no sul, os italianos no centro-oeste, enfim, somos uma mistura de idiomas. É, mais ou menos, o que ocorre na Inglaterra e Estados Unidos.

Emília: Ué, por que? Não falam inglês nesses dois países?

Visconde: Mais ou menos. Na Inglaterra o inglês é britânico, visto que esse país compõe a Grã Bretanha. Os ingleses tiveram influência dos povos nórdicos. Aquelas histórias de vickings que você estudava na escola aconteceram lá. Já os americanos tiveram influência dos ingleses, que por sua vez também tiveram suas sinfluências, das línguas indígenas que lá existiam, dos mexicanos, dos europeus em geral e, com isso, depois de toda essa salada, o resultado foi o sotaque que as pessoas têm hoje.

Emília: Ah, entendi!

Visconde: Leia mais um pouco.

Emília: "O importante não é o número de línguas que são faladas, mas sim o fato de que somos seres à procura de comunicação para a compreensão de nós mesmos.

(Emília fecha o livro)

Visconde: Interessante, agora me lembro de tudo. Me lembro até de Monteiro Lobato!
Emília: Mas Visconde, existe uma língua certa?
Visconde: Não, Emília. Cada idioma tem a sua própria história, sua cultura, suas marcas. Ninguém é melhor que ninguém. Julgar alguém por causa de sua língua seria o mesmo que julgar você inferior à Narizinho porque ela não é boneca. Como já dizia um poeta: "Olhe de novo: não existe branco, amarelo, negro. Somos todos arco-íris".

Emília: Que lindo! Vamos comer bolo na casa da Dona Benta?
Visconde: Vamos

(Os dois saem. Emília retorna sozinha, dá uma piscada e agradece)

Emília: Pessoal, obrigada pela ajuda. Agora que o Visconde já se lembrou de tudo, vou brincar com o Rabicó.

(Fecham as cortinas)


ANO: 2005



Meu nome é João, um jovem brasileiro, que foi pesquisar a cultura do norte da África, um amante de civilizações antigas. Entre uma civilização e outra, apaixone-me por Isis. Uma linda colega de curso de história na Universidade que frequentava.

Ela, sem que eu soubesse, era filha do líder religioso local. Certo dia, voltando do curso, o pai da garota encontrou-nos, juntos, abraçados.

Não falando a língua portuguesa, começou  discutir em espanhol, língua que dominava devido à ligação com a península Ibérica, através de Gibraltar no Mediterrâneo, e, transtornado, repetia sem parar: “Mira con los ojos no con las manos” ou “Olha com os seus olhos, não com as suas mãos”.

Sem a intensão de ser irônico, mas correndo algum risco, respondi: “En la verdad no. El contemplar completo involucra todos los sentidos. Visión, sentido de escucha, olfato, tacto y el sentido del gusto.” 
Ou seja, “Na verdade, não. A contemplação plena envolve todos os sentidos. Visão, audição, olfato, tato e paladar”.

Só, mais tarde, percebi o quanto minha petulância e insensatez o incomodou. O pai de Isis, não se conformando com a situação, retirou-a da Universidade e proibiu-a de ter qualquer relação comigo.

Confirmando a minha opinião, sobre aqueles cuja profissão de fé é castrar o sentimento dos outros e em nome de uma santa moralidade impõem burcas sobre a humanidade, crendo preservar a castidade.

Apesar de toda a pressão, nos encontramos na casa de um amigo, que aceitou ser nosso álibi. Cada momento compartilhado era intenso e nada mais importava. 

“Bastava a candura do seu olhar
para expor o contato já denunciado
no aroma de tão doce menina,
a impactar e envolver meu olfato
com seu cheiro de tangerina.”

Os encontros clandestinos continuaram até o meu retorno ao Brasil, com o fim dos estudos. Continuamos em contato, por algum tempo, mas a distância e a vida foram esvanecendo desejos “muy calientes” e os nossos caminhos seguiram seus rumos.

Hoje, já não tão jovem, quando recordo esse tempo, lembro-me com saudade do “aroma de tão doce menina, com seu cheiro de tangerina”.

Precisamos viver os dilemas existenciais, para entendermos a fórmula da evolução.

O existir é uma interrogativa constante. Os diversos ir e vir do dia a dia nos faz procurar respostas nas nossas atitudes e nas ações do outro.

Procure falar com a alma. Que os sussurros da tua alma, desperte os sussurros das inúmeras almas que o circunda, promovendo de forma coletiva a paz.

Vamos nos unir, esquecer dos dogmas, das linhas teóricas, difundindo a arte do bem viver e a prática de cultivar o nosso planeta. O trabalho é árduo, mas é possível! É hora de pensar, refletir, lembrar. Lembrar das crianças que são violentadas, das nossas florestas quase extintas, dos jovens que não chegam à fase adulta por causa das drogas, da corrupção que devora as inúmeras nações do planeta, do abuso de poder e tantas outras problemáticas encontradas no mundo contemporâneo.

A complexidade da vida moderna, e os conflitos da sociedade capitalista transformaram a existência em um breve resumo. Anos se tornaram meses, meses agora são semanas, semanas se converteram em dias e dias se abreviaram em horas. Reflita o contexto que nos circunda não deixe a vida passa.

Em versos, narro à esperança de uma humanidade que clama por paz. Reflita sobre o legado que recebemos do uso que dele fazemos e o que faremos no futuro. Pensamos hoje: um mundo justo para todos. Um lugar de paz, igualdade, fraternidade e liberdade.

Escreverei sempre em nome da nação humana, pois os dias passaram, a vida passará e nós todos morreremos, mas não podemos permite que a nossa existência passe em branco, assim utilizarei a literatura para trabalhar a cidadania, a moral social, representando o “povo”, os “bestializados” dentro do sistema.

Espero que um dia, os governantes possam nos ver e nos reconhecer enquanto cidadãos. É real que o cidadão não procura apoio aos governantes? Ou, os governantes não ouvem os cidadãos?

Utilizar palavras corretas é uma ferramenta para alcançarmos os corações dos nossos irmãos.

Precisamos ser ponderados ao falar, buscando não violar a compreensão dos ouvintes.

Falar com coerência é a fórmula para difundir a mensagem.

Não coloquemos o dinheiro como o centro de todas as coisas.

Ao longo da existência em muitos momentos pensamos em desistir; mergulhando em um vale de lamentações, murmúrios.Por consequência das nossas ações, perdemos a paz de espírito, o equilíbrio do ser, da alma; neste instante descobrimos a importância e o valor das nossas atitudes perante o mundo.

Deus perdoa-nos pelas palavras erroneamente pronunciadas, pelas lamentações incabíveis. Somos aprendiz da vida, somos nada diante da vossa sabedoria. Deus de infinita bondade lance o teu olhar sobre nós.

Todos que nascem, morrem; processo evolutivo do existir.

Quanta dor. Medo de perder você. A vida é efêmera. Ame sem perguntar até quanto, viva a vida de forma plena.

A morte é uma certeza para todos; somos conscientes desta afirmação, mas não compreendemos, ou tentamos não entender os processos evolutivos do existir.

Pai daí de cima há me ouvir
Vendo o mundo de hoje a passar
De joelhos ao chão
Não sei aonde vamos parar 

No mundo de hoje 
Aonde não posso mais ousar
Sentimentos que são essenciais
São mais raros de encontrar

O amor que Deus nos ensinou
Fica cada vez mais só no falar
Olhando para o céu 
Não sei no que vai restar

A inveja que nos atormenta
Cada vez mais temos que orar
Pessoas até às vezes próximas
Não nos que ver superar

Na corrida da vida
O tempo e essêncial
Somos seres de bem 
Correndo contra a obra do mal

O sentimento união
Já parece ser sem valor
Conhecendo ao nosso lado
Não saberemos opositor

Em meu quarto deitado
Faço uma simples oração
Deus nos ajude e não deixe acabar
Com os sentimentos da criação.
Que privilégio é acordar como o dueto do vento com as folhas dos coqueiros logo ali, de frente à minha janela. O mar, mais adiante, também contribui para o meu despertar com o vai e vem das ondas. Shuááááá...
Aqui, acordar com o sol é uma rotina. Cinco e meia da manhã ele me desperta com um belo raio de bom dia que entra pela fresta da cortina.
Esse cantinho do Planeta se tornou um lugar especial. Onde estou? Numa praia, bem onde o mar é poeta.
Num desses belos dias vividos aqui, pulei da cama às seis da matina e fui fazer minha corrida. A maré estava baixa e as piscinas naturais cintilavam no horizonte com diversos tons de verde. Descalça, dispus-me a caminhar pelas leves ondas que quebravam aos meus pés. De repente, com uma voz suave e firme, ele falou:
- Bom dia, senhora Ana. Sempre por aqui a essa hora. Vai caminhar ou correr hoje?
Eu olhei para os lados para ver quem falava comigo. Não encontrando ninguém, parei e tirei os fones de ouvido para ter certeza de que ouvi algo. Fiquei assim por uns segundos, parada, olhando à minha volta. Confesso que fiquei assustada. Retomei minha passada já pronta para iniciar minha corrida quando ele me falou de novo.
- Senhora Ana, sou eu quem lhe falo, o Mar.
Mais que depressa tirei novamente os fones de ouvido, parei e com um passo para trás gritei:
- Quem está aí?
- Como quem?  Eu, o Mar, seu companheiro de todas as manhãs de corridas. Não se assuste, mas há dias que quero lhe falar.
- Mar? Como o Mar? – Olhando para todos os lados para ter certeza de que estava realmente sozinha, me preparei para sair dali o mais rápido possível.
- Não se vá. Não tenhas medo. – Ele disse.
Olhei para as ondas que beijavam meus pés suavemente e arrisquei um diálogo.
- Estás falando comigo, senhor Mar? O que me faz merecedora de tamanha honra?
- Sua gentileza comigo te faz merecedora.
- Minha gentiliza, poderias ser mais específico? - Indaguei.
- Claro. – Respondeu-me o Mar. - Sempre que caminhas por mim vejo que a senhora recolhe o lixo que eu coloco para fora, isso me agrada. Não aguento mais tanto lixo! Estão me sufocando.
- Ah, o lixo. – Respondi pausadamente, tentando encontrar as palavras certas. - Realmente, o lixo é algo terrível, o plástico principalmente. Não sei onde vamos parar com tanta irresponsabilidade do ser humano. Peço desculpas por nós.
Já mais tranquila e realmente acreditando que estava falando com o todo poderoso Oceano Atlântico, me sentei nas suas areias brancas e finas e continuei com nossa prosa.
- O senhor fala com todos que por aqui passam e catam o lixo?
- Não, falo só com os escolhidos e antes que me perguntes por que a escolhi para essa palra, já te respondo, pois além de seres cuidadosa comigo, és bela.
- Bela eu? Então se eu fosse feia não falarias comigo? Belo galanteador estás me saindo.
- Provavelmente não. - Respondeu o Oceano, que descobri um sedutor também com as palavras. - Como disse o poeta, “que me desculpem as feias, mas beleza é fundamental”.
- E o senhor conhece Vinícius como?
- Eu inspiro muitos poetas, escritores, cientistas, compositores, e com Vinícius de Moraes eu fui além. Conheces esses versos? - E o Mar começou a citar o poeta Vinícius. - “Dá ao meu verso, mar, a ligeireza, a graça de teu ritmo renovado.”, “Eu sou, mar, tu bens sabe, teu discípulo. Que nunca digas, mar, que não foste meu mestre.”, “Sento-me, mar, a ouvir-te. Te sentarias tu, mar, para escutar-me?”.
Fiquei ali, em silencio, com o acompanhamento melodioso do vento, a ouvir os “Versos soltos no Mar”, declamados nada mais nada menos do que pelo grande senhor Mar.
- “Aqui jaz o mar. Nem ele mesmo soube jamais o número de ondas que desfez o seu sonho”. - Eu o interrompi com um trecho do verso. Essa é minha estrofe favorita. - Eu disse.
Absorvendo cada palavra que o Mar me dizia, fiquei ali com ele. Não sei exatamente quanto tempo se passou, mas foi surpreendente. Falamos sobre o céu, a lua, o sol, sobre mim e sobre ele.
- Já engoli muitos barcos, navios, até transatlânticos. Não sinto prazer nisso, mas me parece que sua espécie sente prazer em testar bombas em minhas águas. - Disse o Mar desgostoso com o rumo que tomava nossa conversa. Falávamos sobre a fúria das marés que vez por outra assolava embarcações e até mesmo terras firmes.
- É, o homem não tem limites mesmo, principalmente em se tratando de material bélico.
Nossa prosa foi da poesia para a destruição dos mares por armas nucleares em teste, tsunamis provocados por terremotos, aquecimento global, o que o senhor Mar achou uma grande lorota, e lixo, muito lixo jogado nos mares.
Me chamou a atenção o fato dele achar uma “grande lorota” o assunto sobre aquecimento global, e perguntei:
- O senhor não concorda com tudo o que falam sobre o aquecimento do globo, dos mares?
- Aquecimento ou resfriamento, um ou outro são efeitos climáticos e não tem nada a ver com o lixo, com a poluição em geral. A temperatura da Terra sempre passou por ciclos de resfriamento e aquecimento não causados pelo CO2, nem pela ação de vocês, humanos. É tudo um conchavo entre os grandes e poderosos para vender produtos, manter patentes que interferirão no consumo e no modo de produção. Lembre-se, essa promoção toda da mídia, sobre o fim do mundo é, no mínimo, questionável. Investigue! - Palavras do Mar.
- Mas toda essa poluição, esse lixo que o senhor tanto se queixa nas suas águas, não está destruindo, influenciando o andar da carruagem do nosso Planeta? - Perguntei.
-Não. Com relação ao aquecimento é falácia, mas a poluição, essa sim, tem que ser controlada.
O senhor Mar começou a ficar irritadiço com o assunto, as lembranças ruins e pediu-me que mudássemos o rumo da conversa.
Foi aí que resolvi contar-lhe sobre minha veia poética e frases, muitas frases que nós, humanos, usávamos para exaltá-lo, um pouco como os “Versos” de Vinícius. E comecei...
- “Um A no início e o mar fica infinito”
- “Felicidade é um fim de tarde olhando o mar.”
- “O fato de o mar estar calmo na superfície não significa que algo não esteja acontecendo nas profundezas...”
- “Minha essência é mudar; não me basta ser rio, se eu posso ser mar.”
E para terminar, concluí com “A cura para tudo é sempre água salgada: o suor, as lágrimas ou o mar.”
O senhor Mar, em júbilo com todo o meu amor por ele expresso em frases soltas, me beijou o corpo com uma onda forte que me molhou toda. Protestei, mas já toda molhada, resolvi entrar em suas águas e beijar-lhe a face branca das ondas.
Um longo tempo se passou enquanto tagarelávamos. Era hora de eu voltar para casa sem minha corrida matinal, mas mais apaixonada do que nunca por ele, o senhor Mar.
Despedi-me com um aceno e perguntei-lhe:
- Falarás comigo amanhã quando por aqui eu passar?
- Obviamente que sim. Lembre-se que você foi escolhida. Falarei com você sempre.  Até breve.
- Até breve, meu poeta.
E saí a caminhar de volta para casa, pronta para acordar de um lindo sonho com o mar.
 
Quero falar de amor
Mas como é difícil descrever o amor
Mesmo que este amor seja belo e sedutor
É assim o teu amor...
Um amor companheiro, faceiro, sensual
Melhor que falar de amor é viver este amor
O amor que é meu e teu
um amor ardente... envolvente
Um amor sem igual
Na tua morenice faceira percorro o meu olhar
desejo ardentemente a cada beijo que tu me da
nosso amor é como o namoro da lua com o mar
cheio de poesia e do desejo de encantar
Que vontade de te encontrar nesta noite de luar
encontrar para passear
e também namorar
como é bom a gente conversar
você sorrir e começa a me contar
contas estórias,
declamas poesias,
eu te falo de sonhos e de nostalgia,
dançamos ao som de Tom Jobim
Eu me encanto com o teu olhar,
você só pensa em me ganhar
eu desejo te amar
nesta noite de luar como é bom me encantar com a beleza do teu olhar...
~~EDEMILSON RIBAS~~
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O Chiado Malvado
por: Deborah Gomides Ramos Malta

Era uma vez, um menino chamado Augusto, e sua irmã. A menina Ágata e seu
irmão gostavam muito de assistir televisão. Gostavam tanto, mas tanto, que quando a
energia acabava, a brincadeira deles era fazer uma televisão de caixa de papelão.
Revezadamente, uma das crianças fazia a programação, enquanto a outra assistia.
Brincavam de novelinha, brincavam de telejornal, brincavam de programa de auditório, de
filme, de entrevista, de programa educativo e até de desenho animado.
Certa vez, eles foram passar um fim de semana na casa de seu avô Zaqueu. O avô
dessas duas crianças curiosas, era muito, mais muito inteligente. Ele possuía uma
enorme biblioteca em sua casa, e seu desejo era que seus netinhos começassem a se
interessar por ler e por estudar. E que eles estudassem bastante e pudessem aprender
muitas coisas novas, e que aprendendo essas muitas coisas novas, eles fossem mais
preparados para lidar com as diferentes situações da vida.
Acontece que esses dois irmãozinhos não gostavam muito de estudar, deixando as
expectativas de seu vovô um tanto frustradas. Mas ainda assim, o vovô Zaqueu insistia e
insistia para que seus amados netos adquirissem o gosto pelo estudo.
Nesse fim de semana, em que Augusto e Ágata foram para casa do vovô Zaqueu,
o vovô veio logo com um livro de matemática em direção a eles, dizendo que estava muito
triste porque soube que a professora deles estava triste, reclamando para os seus pais
que os dois irmãos não estavam conseguindo aprender nada do que ela tentava ensinar
sobre matemática.
E embora o livro fosse cheio de figuras coloridas, embora tivesse um monte de
jogos divertidos para treinar e embora eles até soubessem que aquele livro poderia fazêlos
bem, Ágata e Augusto se recusavam terminantemente a se quer olhar para aquele
livro tão proveitoso.
Desta vez, as crianças conseguiram deixar seu vovô mesmo irado. Ele ficou tão
bravo, mas tão bravo que deu-lhes um castigo:
_ Porque vocês não querem estudar e porque não podem nem pelo menos tentar
pelo seu avô, não vou deixar que vocês assistam televisão, e nem vou ligar para seus
pais buscarem vocês. Vocês terão que arrumar outra coisa para se distraírem. Eu vou
para a minha oficina consertar meu velho carro. Estou precisando muito dele.
_ Ah, vovô! Mas isso não é justo! - reivindicaram Augusto e Ágata.
Sem mais nenhuma palavra, vovô Zaqueu se virou e seguiu para sua oficina.
Ágata e Augusto já ficaram entediados só de pensar como seria ficar sem poder
assistir televisão. Estavam tão aborrecidos, que dessa vez nem quiseram brincar de sua
brincadeira favorita, pois parece que havia acabado toda a graça naquele momento.
E no sofá, jogados, o irmão e a irmã, um reclamava daqui, outro bufava dali, um
resmungava, e o outro dizia: "_ Blá!". Suspiravam fundo e gemiam com desânimo:
"_ Aaah!".
Como era difícil para eles ficar sem aquele aparelhinho cheio de novidades
instantâneas e fascinantes!
Até que de repente, começaram a ouvir um barulho esquisito. Que começou com
um pequeno:
"_Chhh..." Augusto e Ágata olharam para um lado, olharam para o outro, e não
conseguiam entender o que estava acontecendo.
"_ Chhhhh..." - aumentava mais um pouco o barulho. E Ágata e Augusto
começaram a ficar arrepiados, com medo...
"_ Chhhhhhh..." - e cada vez mais aumentava aquele barulho estranho, e os olhos
deles ficavam arregalados, e arregalavam-se mais, cada vez que aquele som se
prolongava ainda mais, até que seus olhos já estavam esbugalhados, e no meio daquele
imenso chiado aparecia uma voz que dizia:
"_ Alguém? _ Ei, tem alguém aí? Ágata abraçou seu irmão mais velho e perguntou:
_ Você ouviu o mesmo que eu?
_ Ouvi sim, - respondeu Augusto.
_ Será que devemos responder? - retrucou Ágata.
_ Eu não sei... - hesitou Augusto.
_ Crianças! Venham aqui! Eu sei que vocês estão aí! Não se preocupem! Não farei
mal a vocês!
Augusto e Ágata respiraram fundo. E decidiram que precisavam saber o que estava
acontecendo. Bem devegar, começaram a andar com passos bem levinhos, bem
cuidadosinhos, em direção à voz, com o cuidado de não fazer nenhum barulho. Eles
andavam em câmera lenta, como se estivessem pisando em ovos. Cada vez que
avançavam no caminho, colocavam a mão em formato de concha sobre a orelha, a fim de
apurarem os seus ouvidos, para seguirem a voz na direção certa.
A voz que continuava insistindo:
_ Venham aqui! Quero conversar com vocês! Eles foram seguindo, seguindo,
seguindo aquela voz, quando se deram conta de que estavam na porta do porão. Augusto
abria a porta bem devagar quando Ágata, que estava morrendo de medo, terminou de
abrir a porta bruscamente e acendeu a luz correndo. E a pobrezinha, que ofegava já sem
ar de tanto desespero, ainda achou forças para gritar:
_ Tem alguém aí? Nosso vô é um coronel aposentado e vai vir aqui prender você!
Realmente, o vovô Zaqueu teria servido ao exército e foi um excelente coronel. E
Ágata quis deixar bem claro que eles tinham alguém para os defender.
_ Eu já estou preso!
_ Ahn? Como assim? - perguntaram as crianças sem entender nadica de nada.
_ Estou preso na televisão!
_ Não acredito! - disse Augusto com as duas mãos na cabeça, quando avistou de
longe, de cima da escada, no chão lá em baixo, uma televisão antiga, jogada, no meio do
porão. E o mais intrigante! A tomada não estava ligada! Desceram devagar, e foram
descendo as escadas, até que chegaram na TV antiga que não emitia sinal nenhum além
de uns pequeninos grânulos coloridos de todas as cores, que se misturavam dentro da
tela insistentemente, juntamente ao barulho infinito que fazia:
"_ Chhhhhhhhh" - sem parar um minuto se quer.
_ Quem está escondido aí? - perguntou Ágata.
_ Não estou escondido. Vocês não estão me vendo?
_ Não... - disse Augusto com muito receio. _ Afinal, quem é você? - interrogou o
menino à voz, a fim de que talvez, a resposta daquela preocupante voz os fizessem
perceber algo diferente do que eles estavam vendo.
_ Ah, perdão, desculpe. Vou me apresentar a vocês. Prazer, o meu nome é Chiado.
_ Não acredito! É mesmo esse chiado da TV que está falando com a gente?! -
indagou Ágata de forma exclamativa. _ E chiados falam?
_ Falam sim. - respondeu o Chiado. É que só falamos quando queremos. E eu
percebi que vocês estavam tristes, por isso resolvi lhes contar um surpreendente segredo!
_ Puxa, que legal! O que você tem para nos contar? - perguntou Augusto
alegremente.
_ Esta antiga televisão de seu avô que ele jogou aqui como se faz com qualquer
velharia, é uma televisão mágica!
_ Uma televisão mágica? - surpreendeu-se Ágata. - _ Mágica como naquele filme
em que os personagens entram dentro da televisão e descobrem o mundo da TV?
_ Não. - respondeu o Chiado com sua voz de telefone. - _ É uma mágica nunca
antes imaginada. É muito legal e tenho certeza de que vocês vão gostar muito. Ainda
mais hoje, passando por esse terrível castigo de não poder assistir televisão.
Augusto e Ágata olharam um para o outro com os olhos baixos. No fundo, eles
sentiram que o Chiado não era tão legal assim, pois queria fazer com que as duas
crianças desobedecessem seu avô. Mas eles olhavam para o chiado, tornavam a olhar
um para o outro. E logo suas carinhas iam se animando até que Augusto disse:
_ Pois então, seu Chiado, nos conte logo o que você é capaz de fazer!
_ Coloquem um livro na minha frente e vocês verão!
Rapidamente, e animadamente, Ágata e Augusto pegaram o livro da história "O
Patinho Feio" do escritor dinamarquês "Hans Christian Andersen", na sessão de livros
infantis, na biblioteca de seu vovô.
Eles colocaram o livro com sua capa virada para a televisão, quando de repente,
no lugar de Chiado, aparecia a imagem da capa do livro, e uma voz doce de mulher, que
parecia até com a voz da mãe daquelas crianças, lia o título do livro, e o nome do autor.
Incrivelmente, o cisne do desenho da capa levantava e chacoalhava suas asas, enquanto
o balançar do rio fazia os pontos de brilho na água. E o melhor de tudo! Uma linda música
de fundo tocada por um piano embalava aquela linda figura animada.
_ Ooooohhh! - espantaram-se as crianças deslumbradas com o que viam.
A imagem da capa do livro sumiu e Chiado voltou dizendo que se eles quisessem
poderiam assistir a história inteira do livro. Ágata não pensou duas vezes. Puxou o livro
das mãos de seu irmão e o abriu na primeira página, ainda com as figuras em direção à
TV mágica.
_ "A mamãe pata tinha escolhido um lugar ideal para fazer seu ninho...." - contava
a narradora enquanto tudo o que ela dizia ia acontecendo dentro daquela maravilhosa
televisãozinha antiga.
E continuava a contar:
_“..., um cantinho bem protegido no meio da folhagem, perto do rio que contornava
o antigo castelo. Mais adiante, estendiam-se o bosque, e um lindo jardim florido. Naquele
lugar sossegado, a pata agora, aquecia pacientemente seus ovos."
As crianças assistiam aquele lindo filminho atônitas, e iam passando e passando as
páginas para que a história continuasse. Depois quiseram assistir mais, e mais, e fizeram
o mesmo com o livro da "Chapéuzinho Vermelho", fizeram novamente o mesmo com o
livro dos "Três Porquinhos", o mesmo com o livro da "Caixinhos Dourados", com o livro do
"Pequeno Polegar", o livro do "Pequeno Príncipe", de "Joãozinho e Maria", "O Gato de
Botas" e tantos outros que eles encontraram na imensa biblioteca do vovô Zaqueu.
Estavam tão impressionados com aquilo tudo, que só quando não havia mais livro
para ler, foi que eles se deram conta de que todas as imagens dos livros haviam sumido.
_ Ai! Não acredito! - disse Augusto espantado.
_ O vovô vai acabar com a gente! - se queixou Ágata desesperada.
_ Chiado! Chiado! O que você fez? Devolva-nos os desenhos do livro! - corriam em
direção à estranha TV acreditando que o malvado Chiado resolveria para eles aquela
terrível situação.
_ Hahaha! - Chiado ria assustadoramente. - _ Como vocês são bobinhos! Não
sabiam que se vocês não gravassem a programação da televisão em um vídeo cassete,
não teria como assistir novamente os filmes nela passados?
_ Não nos enrole! - advertiu Augusto. - Não estamos falando disso! Acontece que
você apagou todas as figuras nos livros!
_ Pois é, e vocês só se deram conta no final, de tanto que vocês gostam de livros!
_ Acontece, seu Chiado Malvado, que esses livros são a paixão do vovô! E
estamos muito encrencados. A culpa de tudo isso é sua, e você tem que nos tirar dessa!
_ Tudo bem! Só que tem um probleminha. Isso é impossível! Hahahaha! -
continuava rindo apavorantemente.
_ Não é justo! - reivindicou Augusto. - Diga-nos! O que faremos agora?
E ironizando com a situação Chiado sugeriu:
_ Pintem todas as figuras nos livros novamente! Se vocês forem capazes!
Hahahaha! - continuava debochando deles o malvado Chiado.
_ Ei! Faça alguma coisa por nós! Faça alguma coisa! - gritava Ágata segurando a
televisãozinha e a chacolhando, até que o Chiado simplesmente sumiu, e a televisão se
apagou.
Os irmaõs começaram a chorar, e a chorar, e choraram tão alto que o vovô Zaqueu
ouviu lá de sua oficina e saiu correndo para ver o que havia acontecido.
_ Ei! Crianças! Crianças! Por que vocês estão chorando desse jeito?
Augusto e Ágata engoliram seco quando perceberam que seu avô havia chegado e
tremeram de medo. Eles se deram as mãos e caminhavam para trás, de costas, olhando
para o avô, que percebeu que algo estava muito errado ali.
_ Eu sei que vocês aprontaram pelas suas caras e tratem logo de ir dizendo o que
aconteceu, porque não vou tolerar ter que descobrir sozinho!
_ Vô, vô! - Dizia Ágata chorando, com voz de como quem emplora o perdão. - Nos
perdoe! mas sem querer fizemos algo horrível para seus livros!
_ Meus livros! - gritou o avô furioso, sem conseguir imaginar o que poderia ter
acontecido, já inclusive pensando que todos haviam sido rasgados.
Augusto pegou rapidamente um dos livros e levou para o vô que não entendia o
que havia acontecido.
_ Mas o que é isso? Suas crianças atrevidas! O que vocês fizeram?
_ Na verdade não fomos nós, vovô! - tentava explicar, Ágata. - Foi um tal de Chiado
que apareceu nessa televisãozinha antiga, que nos chamou quando ainda estávamos lá
na sala e disse que sabia fazer uma mágica.
O avô ouviu toda história, pois, mesmo não conseguindo acreditar, percebeu que
as crianças não conseguiriam fazer tudo aquilo sozinhas, e que aquele chiado parecia
mais ter sido impresso ali, do que pintado.
Quando Augusto e Ágata terminaram de relatar o que havia ocorrido, vovô Zaqueu
se apressou em ligar a pequena TV, mas nada aconteceu porque a mesma nem se quer
ligava, mesmo na tomada.
_ Eu ainda não entendo como vocês podem ter visto um chiado aqui, se esta TV
está quebrada a anos! - argumentou o vovô.
_ Acontece vovô, que esse tal de Chiado, apareceu mesmo com a TV desligada da
tomada, e como dissemos para o senhor, ele disse que a tv era mágica. E no final de tudo
ainda se riu de nós, e disse pro Augusto que poderíamos pintar todos os livros
novamente. - denunciou, Ágata, a façanha de Chiado.
_ Vovô! Consiga para nós as tintas, e prometemos que iremos pintar todos os livros
para você novamente! - implorou Augusto.
_ Sim, vovô! E também que vamos estudar, e ler mais livros do que assistir
televisão! - completou Ágata.
_ Tá certo, vou deixar vocês se retratarem. Vou comprar as tintas. Consertei meu
carro.
_ Podemos ir com você, vovô? - Perguntaram seus netos.
_ Não, não senhores! - respondeu o vovô ainda chateado. Vocês vão ficar aí
pensando no que fizeram. A vovó está chegando, e vou deixá-los com ela. Assim vocês
não precisarão temer esse tal de Chiado. - dizia o vovô ainda intrigado com aqueles
relatos.
A vovó Esmeralda chegou e preparou um bolo delicioso e quentinho para seus
netinhos, e serviu com um chá bem quentinho. Ela soube de tudo que aconteceu e deu
vários conselhos para Ágata e Augusto. Eles ficaram esperando nas cadeiras da varanda,
assistindo o pôr-do-sol, enquanto a vovó Esmeralda contava sobre um molusco chamado
"Mantis Shrimp", que enxerga treze cores a mais, que os nossos olhos humanos não são
capazes de ver. E ainda contava também, que os cachorros não são capazes de ver
tantas cores como nós.
Os netinhos refletiam, e suspiravam enquanto ouviam os saberes da vovó. Quando
o vovô chegou, os três saltaram de alegria e correram até ele. Abrindo a sacola de tintas,
ainda na mão do vovô, Augusto se desmotivou um tanto, quando viu que vovô Zaqueu
trazia consigo apenas cinco cores de tinta: o vermelho, o amarelo, o azul, o branco e o
preto.
Ele o questionava sobre as outras cores. Sentia falta do laranja e perguntava como
ele pintaria os bicos dos patinhos da história do "Patinho Feio". Perguntava como pintaria
de roxo, as uvas de "A Raposa e as Uvas", como pintaria, sem o verde, tantas florestas
existentes em tantos daqueles livros, como pintaria os catelos sem ter marrom, e até
mesmo questionou como pintaria de cinza os ratos das fábulas de Esopo, como "O Rato e
a Ratoeira", ou ainda "O Leão e o Rato".
_ Bem, estes cinco frascos de tinta, é o que concedo a vocês. E tratem de dar a
cada figura, a cor que elas merecem! - concluiu o avô.
Imediatamente, toda aquela alegria escapou dos olhos de Ágata e Augusto. A vovó
por trás deles, segurava um sorrisinho que quase deixava escapar, e que ela prendeu
rapidamente quando eles se viraram e olharam para ela.
_ Vovó! - exclamou Ágata. - A senhora que é tão sábia, tão inteligente e tão
amorosa, será que poderia nos ajudar de alguma forma?
_ Ora, ora, ora... - dizia a vovó, vocês têm cinco cores de tinta na mão. Aconselho
vocês a começarem o trabalho logo. Pintem somente o que possui a cor certa e depois
pensaremos em algo. Isso não animou muito as crianças, porém elas trataram de
começar rapidinho, mesmo com medo de que os desenhos ficassem pela metade no final.
_ Vovô? O que você está fazendo aqui? - perguntou Augusto ao chegar na oficina.
_ Estou lixando levemente e com muito cuidado essas partes com chiado dos
livros, para que chegue na parte branca do papel, para que a pintura de vocês seja
possível.
Ágata e Augusto ficaram um pouco mais aliviados em saber que o vovô estava
ajudando, mas ainda estavam um pouco preocupados. Vovô Zaqueu já tinha lixado alguns
livros e seus netinhos começaram os desenhos por estes livros que já estavam
preparados para receber as tintas.
Eles logo estavam pintando e até mesmo se distraindo com aquela tarefa. Até que
de repente, sem querer, Augusto mergulhou a ponta de seu pincel, que estava ainda com
tinta vermelha, antes de lavá-lo, na vasilhinha com um pouco de tinta azul, e quando
percebeu tirou o pincel dali, assustado, pois mesmo não sabendo por quê, ele queria
obedecer a vovó que disse que eles deveriam retirar toda a tinda do pincel num copinho
com água antes de trocar de cor.
Porém, quando ele olhou para a ponta do pincel, percebeu que a tinta estava se
transformando na cor roxa! E ele começou a mostrar para todos, feliz com o que ele
acabava de descobrir! Então a vovó que já sabia que era possível tal façanha, disse para
as crianças:
_ Parabéns pelo empenho de vocês! E a vovó sabia que encontrariam a solução
para os problemas! O que vocês têm que fazer agora, é misturar todas as cores
possíveis. - disse a vovó, já indo providenciar mais vasilhinhas para que eles pudessem
fazer todas as experiências possíveis com aquelas tintas.
Misturando o azul com o branco, conseguiram o azul do céu para pintar todos os
livros do vovô, de histórias que mostravam o imenso azul por entre as nuvens
branquinhas. E assim foram eles, misturando, salvando novas cores, e cumprindo a tarefa
para deixar o vovô novamente feliz.
E, como recompensa, o vovô Zaqueu fez uma linda televisão de madeira com
abertura em baixo, para que seus netinhos pudessem brincar de sua brincadeira favorita
sempre. Com aquela nova e linda televisão, eles sempre se lembrariam daquele dia e a
televisãozinha sempre estaria pronta para a diversão. E vovô Zaqueu e vovó Esmeralda,
só lhes impuseram uma condição:
_ Quem começa somos nós!
E assim, os quatro puderam brincar juntos e as crianças se divertiram muito com o
vovô e a vovó encenando aqueles filmes antigos de que os avós gostavam. Mais tarde, o
pai e a mãe das crianças, chegaram para buscá-los e também tiveram que participar da
brincadeira. E a partir desse dia, Ágata e Augusto estudaram mais, e só assistiam
televisão depois que obedeciam seus pais e seus avós, em tudo.