Procurar quem escreveu memórias de um beijo
35 resultadosI
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofêgo,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paraliticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm elas:
papéis ?crimes ?moedas ?Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos
[arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão
[da costureira, luto no braço, pombas,
[cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes.. .
E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro,
sobre êle a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem côr e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados/ numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação,
[leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.
Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos porões da família,
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
êle embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
Papel
respiro-te na noite de meu quarto,
no sabão passas a meu corpo, na água te bebo.
Até quando, sim, até quando
te provarei por única ambrosia?
Eu te amo e tu me destróis,
abraço-te e me rasgas,
beijo-te, amo-te, detesto-te, preciso de ti, papel, papel, papel!
ingrato, lês em mim sem me decifrares.
O corpo de meu filho estava amortalhado em
papel,
em papel dormiam as roupas e brinquedos, em papel os doces
do casamento. Em grandes pastas os rios, os caminhos
se deixam viajar, e a diligência roda
num chão fofo, azul e branco, de papel escrito.
Basta!
Quero carne, frutas, vida acesa,
quero rolar em fêmeas, ir ao mercado, ao Araguaia, ao amor.
Quero pegar em mão de gente, ver corpo de gente,
falar língua de gente, obliviar os códigos,
quero matar o DASP, quero incinerar os arquivos de amianto.
Sou vim homem, ou pelo menos quero ser um deles!
O papel:
Tu te queixas...
Distrais-te na queixa e a mágoa que exalas
é perfume que te unge, flor que te acarinha.
Dissolves-te na queixa, e tornado incenso, halo, paz
te sentes bem feliz enquanto eu sem consolo
espero tua brutalidade
sem a qual não vivo nem sou.
Teu escravo, isto sim, tua coisa calada,
teu servo branco, tapete onde passeias e compões.
Tu me fazes sofrer, bicho implacável mais que a onça
o é para o galho que pisa.
Por que não sou sem ti? Por que não existo, como as
[árvores, por conta própria?
Sou apenas papel, e teu misterioso poder
me oprime e suja.
E te revoltas...
Quisera dizer-te nomes feios independente de tua mão.
Que as palavras brotassem em mim, formigas no tronco,
moscas no ar; viessem para fora em caracteres ásperos,
crescessem, casas e exércitos, e te esmagassem.
Homenzinho porco, vilão amarelo e cardíaco!
(Avança para o burocrata, que se protege atrás da porta.)
A porta:
De tanto abrir e fechar perdi a vergonha.
Estou exausta, cética, arruinada.
Discussões não adiantam, porta é porta.
Perdi também a fé, e por economia
irão, quem sabe, me transformar em janela
de onde a virgem
enfrenta a noite
e suspira.
Seu ai de dentifrício americano cortará o céu
e me salvará.
Talvez me tornem ainda gaveta de segredos,
bolsa, calça de mulher, carteira de identidade,
simples alecrim, alga ou pedra.
Sim: é melhor pedra.
Dói nos outros, em si não.
Uma pedra no coração.
A aranha:
Chega!
Espero que não me queiras nascer um simples, vaga-lume.
Fica quieta, me deixa subir
e fazer no teto um lustre, uma rosa.
Sou aranha-tatanha, preciso viver,
A vida é dura, os corvos não esperam,
ouço os sinos da noite, vejo os funerais,
me sinto viúva, regresso à Inglaterra,
a aranha é o mais triste dos seres vivos.
O oficial administrativo:
Depois de mim, é óbvio.
Sou o número um — o triste dos tristíssimos.
A outros o privilégio
de embriagar-se. Non possumus.
A garrafa de uísque:
Não pode?
O garrafão de cachaça:
Não pode por quê?
O coquetel:
Experimenta. Sou doce. Sou seco
Todos os álcoois:
— Me prova! me prova!
É a festa do rei!
É de graça! de graça!
Me bebe! me bebe!
O oficial administrativo:
Mas se eu não sei beber. Nunca aprendi.
O papel:
Êle não sabe que o artigo 14
faculta pileques de gim c conhaque;
mal sabe êle que o artigo 18
autoriza porres até de absinto;
como ignora que o artigo 40
manda beber fogo, querosene, fel;
que por motivo de força maior
cobre derretido se pode sorver
se pode chegar ébrio na repartição,
se pode insultar o ícone da parede,
encher de vermute o tinteiro pálido,
ensopar em genebra velhos decretos
nos casos tais e em certas condições. ..
Êle não sabe.
A traça:
Que burro.
Os álcoois:
Sua alma sua palma
seu tédio seu epicédio
sua fraqueza sua condenação.
Somos o cristal, o mito, a estrela
em nós o mundo recomeça,
as contradições beijam-se a boca.
o espesso conduz ao sutil.
Somos a essência, o logos, o poema.
Brandy anisette kümmel nuvens-azuis
cascata de palavras.. .
A aranha:
Não me interessa.
O oficial administrativo:
Para beber é preciso amar.
Sinto que é tarde para aprender.
O papel:
Êle não sabe que a paixão amor
segundo reza o artigo 90...
A traça:
É uma zebra.
O telefone:
Amor?
Através de mim os corpos se amam,
alguns se falam em silêncio,
outros chamam e não agüentam
o peso e o amargor da voz.
Inventaram-me para negócios,
casos de doença e talvez de guerra.
Mas fui derivando para o amor.
Como sofro! Todas as dores
escorrem pelo bocal,
deixam apenas saliva...
Cuspo de amor fingindo lágrimas.
A traça:
Namorar na hora do expediente!
O oficial administrativo:
Não resolve. Nada resolve.
O mesmo revólver resolverá?
Amor e morte são certidões,
fichas.. .
A traça:
Despachos interlocutórios.
A aranha:
Lavrados na minha teia.
A vassoura elétrica:
Senhores deputados, desculpem. Sinto que é hora de varrer.
(Põe-se a varrer furiosamente, a porta cai com um gemido, as garrafas partem-se, escorrem líquidos de oitenta cores. O oficial administrativo tira os processos da mesa da direita, jogando fora o processo de cima e colocando os demais na mesa da esquerda. Em seguida, retira-os desta última e volta a depositá-los na mesa da direita, sempre atirando fora o volume que estiver por cima. E assim indefinidamente. Do garrafão de cachaça desprende-se uma pomba, e pairai no meio da sala, banhada em luz macia.)
A pomba:
Papel, homem, bichos, coisas, calai-vos.
Trago uma palavra quase de amor, palavra de perdão..
Quero que vos junteis e compreendais a vida.
Por que sofrerás sempre, homem, pelo papel que adoras?
A carta, o ofício, o telegrama têm suas secretas consolações.
Confissões difíceis pedem folha branca.
Não grites, não suspires, não te mates: escreve.
Escreve romances, relatórios, cartas de suicídio, exposições de motivos,.
mas escreve. Não te rendas ao inimigo. Escreve memórias, faturas..
E por que desprezas o homem, papel, se êle te fecunda.
[com dedos sujos mas dolorosos?
Pensa na doçura das palavras. Pensa na dureza das palavras.
Pensa no mundo das palavras. Que febre te comunicam. Que riqueza.
Mancha de tinta ou gordura, em todo caso mancha de vida.
Passar os dedos no rosto branco. . não, na superfície branca.
Certos papéis são sensíveis, certos livros nos possuem.
Mas só o homem te compreende. Acostuma-te. beija-o.
Porta decaída, ergue-te, serve aos que passam.
Teu destino é o arco, são as bênção? e as consolações para todos.
Pequena aranha pessimista, sei que também tens direito ao idílio.
Vassoura, traça, regressai ao vosso comportamento essencial.
Telefone, já és poesia.
Preto e patético, fica entre as coisas.
Que cada coisa seja uma coisa bela.
O papel, a vassoura, os processos, a porta, os cacos de garrafa, surpresos:
Uma coisa bela?. . .
A pomba, no auge do entusiasmo, tornando-se, de branca, rosada:
UMA COISA BELA! UMA COISA JUSTA!
A traça:
Precisarei adaptar-me. . .
Só roerei belas caligrafias.
Coro em torno do oficial administrativo:
Uma coisa bela. Uma coisa justa
O oficial administrativo soergue o busto, suas vestes cinzentas tombam, aparece de branco, luminoso, ganha subitamente a condição humana:
Uma coisa bela ?!
Aqui vem a árvore, a árvore
da tormenta, a árvore do povo.
Da terra sobem os heróis
como as folhas pela seiva
e o vento despedaça as folhagens
de multidão rumorosa,
até que cai a semente
do pão outra vez na terra.
Aqui vem a árvore, a árvore
nutrida por mortos desnudos,
mortos açoitados e feridos,
mortos de rostos impossíveis,
empalados sobre uma lança,
esfarelados na fogueira,
decapitados pela acha,
esquartejados a cavalo,
crucificador na igreja.
Aqui vem a árvore, a árvore
cujas raízes estão vivas,
tirou salitre do martírio,
suas raízes comeram sangue,
extraiu lágrimas do céu:
elevou-as por suas ramagens,
repartiu-as em sua arquitetura.
Foram flores invisíveis,
às vezes flores enterradas,
outras vezes iluminaram
suas pétalas, como planetas.
E o homem recolheu nos ramos
as corolas endurecidas,
entregando-as de mão em mão
como magnólias ou romãs
e logo abriram a terra,
cresceram até as estrelas.
Esta é a árvore dos livres.
A árvore terra, a árvore nuvem.
A árvore pão, a árvore flecha,
a árvore punho, a árvore fogo.
Afoga-a a água tempestuosa
de nossa época noturna,
mas seu mastro faz balançar
o círculo de seu poder.
Outras vezes de novo tombam
os ramos partidos pela cólera,
e uma cinza ameaçadora
cobre a sua antiga majestade:
foi assim desde outros tempos,
assim saiu da agonia,
até que uma secreta razão,
uns braços inumeráveis,
o povo, guardou os fragmentos,
escondeu troncos invariáveis,
e seus lábios eram as folhas
de imensa árvore repartida,
disseminada em todas as partes,
caminhando com suas raízes.
Esta é a árvore, a árvore
do povo, de todos os povos
da liberdade, da luta.
Assoma-te a sua cabeleira:
toca seus raios renovados:
mergulha a não nas usinas
de onde seu fruto palpitante
propaga a sua luz de cada dia.
Levanta esta terra em tuas mãos,
participa deste esplendor,
toma o teu pão e a tua maçã,
teu coração e teu cavalo
e monta guarda na fronteira,
no limite de suas folhas.
Defende o fim de suas coroas,
comparte as noite hostis,
vigia o ciclo da aurora,
respira a altura estrelada,
amparando a árvore, a árvore
que cresce no meio da terra.
I
Cuahtémoc (1520)
Jovem irmão há tempos e tempos
nunca dormido, nunca consolado,
jovem estremecido nas trevas
metálicas do México, em tua mão
recebo o dom de tua pátria nua.
Nela nasce e cresce o teu sorriso,
uma linha entre a luz e o ouro.
São os teus lábios unidos pela morte
o mais puro silêncio sepultado.
O manancial submerso
sob todas as bocas da terra.
Ouviste, ouviste, acaso,
no Anáhuac longínquo,
um rumo de água, um vento
de primavera destroçada?
Era talvez a palavra do cedro.
Era uma onda branca de Acapulco.
Porém na noite fugia
teu coração como um cervo
até as fronteiras, confuso,
entre os monumentos sanguinários,
sob a lua soçobrante.
Toda a sombra preparava sombra.
Era a terra uma escura cozinha,
pedra e caldeira, vapor negro,
muro sem nome, injúria
que te chamava dos noturnos
metais de tua pátria.
Mas não há sombra em teu estandarte.
Chegou a hora assinalada
e ao meio de teu povo
és pão e raiz, lança e estrela.
O invasor sustou o passo.
Não é Moctezuma extinto
como taça morta,
é o relâmpago e sua armadura,
a pluma de Quetzal, a flor do povo,
o elmo aceso entre as naus.
Mas a mão dura como séculos de pedra
apertou a tua garganta.
Não fecharam
o teu sorriso, não fizeram
tombar os grãos do milho
secreto, e te arrastaram,
vencedor cativo,
pelas distâncias de teu reino,
entre cascatas e cadeias,
sobre areais e aguilhões,
como uma coluna incessante,
como testemunha dolorosa,
até que uma corda enredou
a coluna da pureza
e dependurou o corpo suspenso
sobre a terra desgraçada.
II
Frei Bartolomé de las Casas
A gente pensa, ao chegar a casa, à noite, cansado,
entre a névoa fria de maio, à saída
do sindicato (na esmiuçada
luta de cada dia, a estação
chuvosa que goteja do beiral, o surdo
latejar do constante sofrimento),
esta ressurreição mascarada,
astuta, envilecida,
do encadeador, da cadeia,
e quando sobe a angústia
até a fechadura para entrar contigo,
surge uma luz antiga, suave e dura
como um metal, como um astro enterrado.
Padre Bartolomé, obrigado por esta
dádiva da crua meia-noite,
graças porque teu fio foi invencível:
pôde morrer massacrado, comido
pelo cão de fauces iracundas,
pôde ficar na cinza
da casa incendiada,
pôde cortá-lo a lâmina fria
do assassino inumerável
ou o ódio administrado com sorrisos
(a traição do próximo cruzado),
a mentira arremessada na janela.
Pôde morrer o fio cristalino,
a irredutível transparência
convertida em ação, em combatente
e despenhado aço de cascata.
Poucas vidas dá o homem como a tua, poucas
sombras há na árvore como a tua sombra, nela
todas as brasas vivas do continente acodem,
todas as arrasadas condições, a ferida
do mutilado, as aldeias
exterminadas, tudo sob a tua sombra
renasce, do limite
da agonia fundas a esperança.
Padre, foi sorte para o homem e sua espécie
que tivesses chegado à plantação,
que mordesses os negros cereais
do crime, que bebesses cada dia a taça da cólera.
Quem te pôs, mortal despido,
entre os dentes da fúria?
Como assomaram outros olhos,
de outro metal, quando nascias?
Como se cruzam os fermentos
na oculta farinha humana
para que o teu grão imutável
se amassasse no pão do mundo?
Eras a realidade entre fantasmas
encarniçados, eras
a eternidade da ternura
sobre a rajada do castigo.
De combate em combate a tua esperança
converteu-se em precisas ferramentas:
a solitária luta fez-se um ramo,
o pranto inútil agrupou-se em partido.
Não valeu a piedade.
Quando mostravas
tuas colunas, tua nave amparadora,
tua mão para abençoar, teu manto,
o inimigo pisoteou as lágrimas,
e violou a cor da açucena.
Não valeu a piedade alta e vazia
como uma catedral abandonada.
Foi a tua invencível decisão, a ativa
resistência, o coração armado.
Foi a razão o teu material titânico.
Foi flor organizada a tua estrutura.
De cima quiseram contemplar-te
(de sua altura) os conquistadores,
apoiando-se como sombras de pedra
sobre seus espadões, esmagando
com os seus sarcásticos escarros
as terras de tua iniciativa,
dizendo: “Ali vai o agitador”,
mentindo: “Foi pago
pelos estrangeiros”,
“Não tem pátria”, “Traidor”,
mas a tua prédica não era
frágil minuto, peregrina
pauta, relógio do passageiro.
Tua madeira era bosque combatido,
ferro em sua cepa natural, oculto
a toda luz pela terra florida,
e ainda mais, era mais fundo:
na unidade do tempo, no transcurso
da vida, era a tua mão antecipada
estrela zodiacal, signo do povo.
Hoje, padre, entra nesta casa comigo.
Vou mostrar-te as cartas, o tormento
de meu povo, do homem perseguido.
Vou mostrar-te as dores antigas.
E para não tombar, para firmar-me
sobre a terra, continuar lutando,
deixa em meu coração o vinho errante
e o pão implacável de tua doçura.
III
Avançando nas trevas do Chile
Espanha entrou até o sul do mundo.
Opressos
exploraram a neve os altos espanhóis.
O Bío-Bío, grave rio,
disse à Espanha: “Pára”,
o bosque de maitenes cujos fios
verdes pendem como um tremor de chuva
disse à Espanha: “Não prossigas”.
O lariço,
titã das fronteiras silenciosas,
disse em um trovão a sua palavra.
Mas até o fundo da pátria minha,
punho e punhal, o invasor chegava.
Pelo rio Imperial, em cuja margem
meu coração amanheceu no trevo,
entrava o furacão pela manhã.
O largo leito das garças seguia
das ilhas para o mar furioso,
cheio como taça interminável,
entre as margens do cristal sombrio.
Em suas barrancas eriçava o pólen
uma alfombra de estames turbulentos
e desde o mar a brisa comovia
todas as sílabas da primavera.
A aveleira da Araucania
embandeirava fogueiras e racimos
lá onde a chuva deslizava
sobre o agrupamento da pureza.
Tudo estava enredado de fragrâncias,
empapado de luz verde e chuvosa,
e cada matagal de odor amargo
era um ramo profundo do inverno
ou uma extraviada formação marinha
ainda cheia do orvalho oceânico.
Dos barrancos se erguiam
torres de pássaros e plumas
e um ventarrão de solidão sonora,
enquanto na molhada intimidade
entre as cabeleiras encrespadas
do feto gigante, era a topa-topa florescida
um rosário de beijos amarelos.
IV
Surgem os homens
Ali germinavam os toquis.
Daquelas negras umidades,
daquela chuva fermentada
na taça dos vulcões
saíram os peitos augustos,
as claras flechas vegetais,
os dentes de pedra selvagem,
os pés de estaca inapelável,
a glacial unidade da água.
O Arauco foi um útero frio,
feito de feridas, massacrado
pelo ultraje, concebido
entre os ásperos espinhos,
arranhado nos montões de neve,
protegido pelas serpentes.
Assim a terra extraiu o homem.
Cresceu como fortaleza.
Nasceu do sangue agredido, eriçou a cabeleira
como um pequeno puma rubro
e os olhos de pedra dura
brilhavam na matéria
como fulgores implacáveis
saídos da caçada.
V
Toqui Caupolicán
Na cepa secreta do raulí
cresceu Caupolicán, torso e tormenta,
e quando contra as armas invasoras
seu povo dirigiu,
andou a árvore,
andou a árvore dura da pátria.
Os invasores viram a folhagem
mover-se ao meio da bruma verde,
os grossos ramos e as vestimentas
de inumeráveis folhas e ameaças,
o tronco terrenal fazer-se povo,
as raízes saírem do território.
Souberam que a hora havia soado
para o relógio da vida e da morte.
Outras árvores vieram com ele.
Toda a raça de ramagens rubras,
todas as tranças da dor silvestre,
todo o nó do ódio da madeira.
Caupolicán, sua máscara de lianas
defronta o invasor perdido:
não é a pintada pluma imperadora,
não é o trono das plantas olorosas,
não é o reluzente colar do sacerdote,
não é a luva nem o príncipe dourado:
um é o rosto da mata,
uma carranca de acácias arrasadas,
uma figura ferida pela chuva,
uma cabeça com trepadeiras.
De Caupolicán, o toqui, é o olhar
fundido, de universo montanhoso,
os olhos implacáveis da terra,
e as faces do titã são muros
escalados por raios e raízes.
VI
A Guerra Pátria
A Araucania estrangulou o cantar
da rosa no cântaro, cortou
os fios
no tear da noiva de prata.
Desceu a ilustre Machi de sua escada,
e nos rios dispersos, na argila,
sob a copa hirsuta
das araucárias guerreiras,
foi nascendo o clamor dos sinos
enterrados.
A mãe da guerra
saltou as pedras doces do arroio,
deu asilo à família pescadora,
e o noivo lavrador beijou as pedras
antes que voassem à ferida.
Atrás do rosto florestal do toqui
Arauco amontoava a sua defesa:
eram olhos e lanças, multidões
espessas de silêncio e ameaça,
cinturas indeléveis, altaneiras
mãos escuras, punhos congregados.
Atrás do alto toqui, a montanha,
e na montanha, o inumerável Arauco.
Arauco era o rumor da água errante.
Arauco era o silêncio tenebroso.
O mensageiro em sua mão cortada
ia juntando as gotas de Arauco.
Arauco foi a onda da guerra.
Arauco os incêdios da noite.
Tudo fervia atrás do toqui augusto,
e quando ele avançou, foram trevas,
areias, bosques, terras,
unânimes fogueiras, furacões,
aparição fosfórica de pumas.
VII
O empalado
Caupolicán porém chegou ao tormento.
Ensartado na lança do suplício,
entrou na morte lenta das árvores.
Arauco redobrou o seu ataque verde,
sentiu nas sombras o calafrio,
cravou na terra a cabeça,
ocultou-se com as suas dores.
O toqui dormia na morte.
Um ruído de ferro chegava
do acampamento, uma coroa
de gargalhadas estrangeiras,
e junto aos bosques enlutados
somente a noite palpitava.
Não era a dor, a dentada
do vulcão aberto nas vísceras,
era só um sonho da mata,
a árvore que sangrava.
Nas entranhas de minha pátria
entrava a ponta assassina
ferindo as terras sagradas.
O sangue queimante tombava
de silêncio em silêncio, abaixo,
até onde a semente está
à espera da primavera.
Mais fundo tombava este sangue.
Caía sobre as raízes.
Caía sobre os mortos.
Sobre os que iam nascer.
VIII
Lautaro (1550)
O sangue toca um corredor de quartzo.
A pedra cresce onde a gota tomba.
Assim nasce Lautaro da pedra.
IX
Educação do cacique
Lautaro era uma flecha delgada.
Elástico e azul foi o nosso pai.
Foi sua primeira idade só silêncio.
Sua adolescência foi domínio.
Sua juventude foi um vento dirigido.
Preparou-se como uma longa lança.
Acostumou os pés nas cachoeiras.
Educou a cabeça nos espinhos.
Executou as provas do guanaco.
Viveu pelos covis da neve.
Espreitou as águias comendo.
Arranhou os segredos do penhasco.
Entreteve as pétalas do fogo.
Amamentou-se de primavera fria.
Queimou-se nas gargantas infernais.
Foi caçador entre as aves cruéis.
Tingiram-se de vitórias as suas mãos.
Leu as agressões da noite.
Amparou o desmoronamento do enxofre.
Se fez velocidade, luz repentina.
Tomou as vagarezas do outono.
Trabalhou nas guaridas invisíveis.
Dormiu sobre os lençóis da nevasca.
Igualou-se à conduta das flechas.
Bebeu o sangue agreste dos caminhos.
Arrebatou o tesouro das ondas.
Se fez ameaça como um deus sombrio.
Comeu em cada cozinha de seu povo.
Aprendeu o alfabeto do relâmpago.
Farejou as cinzas espalhadas.
Envolveu o coração de peles negras.
Decifrou o fio espiral do fumo.
Construiu-se de fibras taciturnas.
Azeitou-se como a alma da azeitona.
Fez-se cristal de transparência dura.
Estudou para vento furacão.
Combateu-se até apagar o sangue.
E só então foi digno de seu povo.
X
Lautaro entre invasores
Entrou na casa de Valdivia.
Acompanhou-o como a luz.
Dormiu coberto de punhais.
Viu seu próprio sangue derramado,
seus próprios olhos esmagados,
e dormindo nos pesebres
acumulou o seu poderio.
Não se mexiam os seus cabelos
examinando os tormentos:
olhava para além do ar
para a sua raça debulhada.
Velou aos pés de Valdivia.
Ouviu o seu sonho carniceiro
crescer na noite sombria
como uma coluna implacável.
Adivinhou esses sonhos.
Pôde levantar a dourada
barba do capitão adormecido,
cortar o sonho na garganta,
mas aprendeu - velando sombras -
a lei noturna do horário.
Marchou de dia acariciando
os cavalos de pele molhada
que se iam afundando em sua pátria.
Adivinhou esses cavalos.
Marchou com os deuses fechados.
Adivinhou as armaduras.
Foi testemunha das batalhas,
enquanto entrava passo a passo
no fogo da Araucania.
XI
Lautaro contra o Centauro (1554)
Atacou então Lautaro de onda em onda.
Disciplinou as sombras araucanas:
antes entrou o punhal castelhano
em pleno peito da massa vermelha.
Hoje foi semeada a guerrilha
sob todas as alas florestais,
de pedra em pedra e de vau em vau,
olhando dos copihues,
espreitando sob as rochas.
Valdivia quis voltar.
Era tarde.
Chegou Lautaro com traje de relâmpago.
Seguiu o conquistador aflito.
Abriu caminho nas úmidas brenhas
do crepúsculo austral.
Chegou Lautaro
num galope negro de cavalos.
A fadiga e a morte conduziam
a tropa de Valdivia na folhagem.
Aproximavam-se as lanças de Lautaro.
Entre os mortos e as folhas ia
como em um túnel Pedro de Valdivia.
Nas trevas chegava Lautaro.
Pensou na Extremadura pedregosa,
o dourado azeite, a cozinha,
o jasmim deixados em ultramar.
Reconheceu o uivo de Lautaro.
As ovelhas, as duras granjas,
os muros brancos, a tarde extremenha.
Sobreveio a noite de Lautaro.
Seus capitães cambaleavam ébrios
de sangue, noite e chuva para o regresso.
Palpitavam as flechas de Lautaro.
De queda em queda a capitania
ia retrocedendo dessangrada.
Já se tocava o peito de Lautaro.
Valdivia viu chegar a luz, a aurora,
talvez a vida, o mar.
Era Lautaro.
XII
O coração de Pedro de Valdivia
Levamos Valdivia para debaixo da árvore.
Era um azul de chuva, a manhã com frios
filamentos de sol desfiado.
Toda a glória, o trovão,
turbulentos jaziam
num montão de aço ferido.
A caneleira erguia a sua linguagem
num fulgor de vaga-lume molhado
em toda a sua pomposa monarquia.
Trouxemos pano e cântaro, tecidos
grossos como as tranças conjugais,
jóias como amêndoas da lua,
e os tambores que encheram
a Araucania com sua luz de couro.
Enchemos as vasilhas de doçura
e dançamos calcando os torrões
feitos da nossa própria estirpe escura.
Depois calcamos o rosto inimigo.
Depois cortamos o valente pescoço.
Que bonito foi o sangue do verdugo
repartido entre nós como romã
enquanto ainda vivo ardia.
Depois, no peito enfiamos uma lança
e o coração alado como os pássaros
entregamos à árvore araucana.
Subiu um rumor de sangue até a copa.
Então, da terra
feita de nossos corpos, nasceu o canto
da guerra, do sol, das colheitas.
Então repartimos o coração sangrento.
Eu meti os dentes naquela corola
cumprindo o rito da terra:
“Dá-me o teu frio, estrangeiro malvado.
Dá-me o teu valor de grande tigre.
Dá-me em teu sangue a tua cólera.
Dá-me a tua morte para que me siga
e leve o espanto até os teus.
Dá-me a guerra que trouxeste.
Dá-me o teu cavalo e os teus olhos.
Dá-me a treva retorcida.
Dá-me a mãe do milho.
Dá-me a pátria sem espinhos.
Dá-me a paz vencedora.
Dá-me o ar onde respira
a caneleira, senhora florida”.
XIII
A dilatada guerra
Depois, terra e oceanos, cidades,
naves e livros, conheceis a história
que desde o território rude
como uma pedra lançada
encheu de pétalas azuis
as profundezas do tempo.
Três séculos esteve lutando
a raça guerreira do carvalho,
trezentos anos a centelha
de Arauco povoou de cinzas
as cavidades imperiais.
Três séculos tombaram feridas
as camisas do capitão,
trezentos anos despovoaram
os arados e as colméias,
trezentos anos açoitaram
cada nome de invasor,
três séculos rasgaram a pele
das águias agressoras,
trezentos anos enterraram
como a boca do oceano
tetos e ossos, armaduras,
torres e títulos dourados.
Às esporas iracundas
das guitarras adornadas
chegou um galope de cavalos
e uma tormenta de cinza.
As naus voltaram ao duro
território, nasceram espigas,
cresceram olhos espanhóis
no reinado da chuva,
mas Arauco desceu as telhas,
moeu as pedras, abateu
os paredões e as vides,
as vontades e as roupas.
Vede como tombam na terra
os filhos ásperos do ódio,
Villagras, Mendozas, Reinosos,
Reyes, Morales, Alderetes,
rolaram para o fundo branco
das Américas glaciais.
E na noite do tempo augusto
caiu Imperial, caiu Santiago,
caiu Villarrica na neve,
rolou Valdivia pelo rio,
até que o reinado fluvial
do Bío-Bío se deteve
sobre os séculos do sangue
e estabeleceu a liberdade
nas areias dessangradas.
XIV
(Intermédio)
A Colônia cobre nossas terras (1)
Quando a espada descansou e os filhos
da Espanha dura, como espectros,
dos reinos e das selvas, até o trono,
montanhas de papel com uivos
enviaram ao monarca ensimesmado:
depois que na viela de Toledo
nu do Guadalquivir na esquina,
toda a história passou de mão em mão,
e pela boca dos portos andou
a mecha esfarrapada
dos conquistadores espectrais,
e os últimos mortos foram postos
dentro do ataúde, com procissões,
nas igrejas construídas com sangue,
a lei chegou ao mundo dos rios
e vejo o mercador com a sua bolsinha.
Ficou escura a extensão matutina,
roupas e teias de aranha propagaram
a escuridão, a tentação, o fogo
do diabo nas habitações.
Uma vela iluminou a vasta América
cheia de nevadas e favos de mel,
e por séculos falou ao homem em voz baixa,
tossiu trotando pelas ruazinhas,
persignou-se perseguindo centavos.
Chegou o nativo às ruas do mundo,
extenuado, levando as valas,
suspirando de amor entre as cruzes,
buscando o escondido
caminho da vida
sob a mesa da sacristia.
A cidade no esperma do cerol
fermentou, sob os panos negros,
e das raspaduras da cera
elaborou maçãs infernais.
América, a copa de acaju,
foi então um crepúsculo de chagas,
um lazareto alagado de sombras,
e no antigo espaço do frescor
cresceu a reverência do verme.
O ouro ergueu sobre as pústulas
maciças flores, heras silenciosas,
edifícios de sombra submersa.
Uma mulher coletava pus,
e o copo de substância
bebeu em honra do céu cada dia,
enquanto a fome dançava nas minas
do México dourado,
e o coração andino do Peru
chorava docemente
de frio entre os molambos.
Nas sombras do dia tenebroso
o mercador fez o seu reino
apenas iluminado pela fogueira
em que o herege, retorcido,
feito fagulhas, recebia
sua colheradazinha de Cristo.
No dia seguinte as senhoras,
ajeitando as entretelas,
relembravam o corpo enlouquecido,
atacado e devorado pelo jogo,
enquanto o aguazil examinava
a minúscula mancha do queimado,
graxa, cinza, sangue,
que os cachorros lambiam.
XV
As fazendas (2)
A terra andava entre os morgadios
de dobrão em dobrão, desconhecida,
massa de aparições e conventos,
até que toda a azul geografia
dividiu-se em fazendas e encomiendas.
Pela espaço morto andava a chaga
do mestiço e o chicote
do reinol e do negreiro.
O nativo era um espectro dessangrado
que recolhia as migalhas,
até que estas reunidas
dessem para comprar um título
pintado de letras douradas.
E no carnaval tenebroso
saía vestido de conde,
orgulhoso entre outros mendigos,
com um bastãozinho de prata.
XVI
Os novos proprietários (3)
Estancou-se assim o tempo na cisterna.
O homem dominado nas vazias
encruzilhadas, pedra do castelo,
tinta do tribunal, povoou de bocas
a cerrada cidade americana.
Quando já era a paz e a concórdia,
hospital e vice-rei, quando Arellano,
Rojas, Tapia, Castillo, Núnez, Pérez,
Rosales, López, Jorquera, Bermúdez,
os últimos soldados de Castela,
envelheceram atrás da Audiência,
tombaram.
mortos debaixo do cartapácio,
foram com os seus piolhos para a tumba
onde fiaram sonho
das adegas imperiais, quando
era a ratazana o único perigo
das terras encarniçadas,
assomou-se o biscainho com um saco,
o Errázuriz com suas alpargatas,
o Fernández Larraín a vender vedas,
o Aldunate da baeta,
o Eyzaguirre, rei das meias.
Entraram todos como povo faminto,
fugindo das pancadas, do policia.
Logo, de camiseta em camiseta,
expulsaram o conquistador
e estabeleceram a conquista
do armazém de importados.
Aí adquiriram o orgulho
comprado no mercado negro.
Apropriaram-se
das fazendas, chicotes, escravos,
catecismos, camisarias,
cepos, cortiços, bordéis,
e a tudo isto denominaram
santa cultura ocidental.
XVII
Comuneiros do Socorro (1781)
Foi Manuela Beltrán (quando rasgou os bandos
do opressor e gritou: “Morram os déspotas”)
quem derramou os novos cereais
por nossa terra.
Foi em Nova Granada, na Vila
do Socorro.
Os comuneiros
balançaram o vice-reinado
num eclipse precursor.
Uniram-se contra os estancos,
contra o sujo privilégio,
e levantaram a cartilha
das petições foreiras.
Uniram-se com armas e pedras,
milícia e mulheres, o povo, ordem e fúria, encaminhados
para Bogotá e sua linhagem.
Aí desceu o arcebispo.
“Tereis todos os vossos direitos,
em nome de Deus vos, prometo.
”
O povo juntou-se na praça.
O arcebispo celebrou
uma missa e um juramento.
Ele era a paz justiceira.
“Guardai as armas.
Cada um
em sua casa”, sentenciou.
Os comuneiros entregaram
as armas.
Em Bogotá
festejaram o arcebispo,
celebraram a sua traição,
seu perjúrio, na missa pérfida,
e negaram pão e direito.
Fuzilaram os caudilhos,
repartiram entre os povoados
suas cabeças recém-cortadas,
com as bênçãos do prelado
e os bailes do vice-reinado.
Primeiras, pesadas sementes
lançadas às regiões,
permaneceis, cegas estátuas,
chocando na noite hostil
a insurreição das espigas.
XVIII Tupac-Amaru (1781)
Condorcanqui Tupac-Amaru,
sábio senhor, pai justo,
viste subir a Tungasuca
a primavera desolada
dos patamares andinos
e, com ela, sal e desdita,
iniqüidades e tormentos.
Senhor Inca, pai cacique,
tudo em teus olhos se guardava
como num cofre calcinado
pelo amor e pela tristeza.
O índio te mostrou o ombro
no qual as novas mordidas
brilhavam nas cicatrizes
de outros castigos apagados,
e era um ombro e outro ombro,
todas as alturas sacudidas
pelas cascatas do soluço.
Era um soluço e outro soluço.
Até que armaste a jornada
dos povos cor de terra,
recolheste o pranto em tua taça
e endureceste as veredas.
Chegou o pai das montanhas,
a pólvora levantou caminhos,
e às aldeias humilhadas
chegou o pai da batalha.
Jogaram a manta na poeira,
uniram-se os velhos punhais,
e o búzio matinho
chamou os vínculos dispersos.
Contra a pedra sanguinária,
contra a inércia desgraçada,
contra o metal das correntes.
Porém dividiram o teu povo,
e irmão contra o irmão
mandaram, até que tombaram
as pedras da tua fortaleza.
Ataram os teus membros cansados
a quatro cavalos raivosos
e esquartejaram a luz
do amanhecer implacável.
Tupac-Amaru, sol vencido,
de tua glória desgarrada
sobe como o sol do mar
uma luz desaparecida.
As fundas aldeias de argila,
os teares sacrificados,
as úmidas casas de areia
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac é uma semente,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac se guarda no sulco,
dizem em silêncio: “Tupac”,
e Tupac germina na terra.
XIX
América insurrecta (1800)
Nossa terra, vasta terra, soledades,
povoou-se de rumores, braços, bocas.
Uma calada sílaba ia ardendo,
congregando a rosa clandestina,
até as campinas trepidarem
recobertas de metais e galopes.
Foi dura a verdade como um arado.
Rompeu a terra, estabeleceu o desejo,
mergulhou suas propagandas germinais
e nasceu na secreta primavera.
Foi silenciada a sua flor, foi rechaçada
sua reunião de luz, foi combatido
o fermento coletivo, o beijo
das bandeiras escondidas,
porém surgiu derrubando as paredes,
apartando os cárceres do chão.
O povo escuro foi a sua taça,
recebeu a substância rechaçada,
propagando-a aos limites marítimos,
repisando-a em almofarizes indomáveis.
E saiu com as páginas feridas
e com a primavera do caminho.
Hora de ontem, hora do meio-dia,
hora de hoje outra vez, hora esperada
entre o minuto morto e o que nasce
na eriçada idade da mentira.
Pátria, nasceste dos lenhadores,
de filhos sem batizar, de carpinteiros,
dos que deram qual uma ave estranha
uma gota de sangue voador
e hoje duramente nascerás de novo,
lá onde o traidor e o carcereiro
te acreditam submersa para sempre.
Hoje do povo nascerás como outrora.
Hoje sairás do carvão e do orvalho.
Hoje chegarás a sacudir as portas
com mãos maltratadas, com pedaços
de alma sobrevivente, com racimos
de olhares que a morte não extinguiu,
com ferramentas agrestes
armadas entre farrapos.
XX
Bernardo O'Higgins Riquelme (1810)
O'Higgins, para celebrar-te
à meia-luz há que iluminar a sala.
À meia-luz do sul no outono
com tremor infinito de álamos.
És o Chile, entre patriarca e cavaleiro,
és um poncho de província, um menino
que ainda não sabe o seu nome,
um menino férreo e tímido na escola,
um rapazinho triste de província.
Em Santiago te sentes mal, te espiam
a roupa negra que te sobra,
e ao cruzar-te a fita, a bandeira
da pátria que nos fizeste,
tinha um cheiro de joio matutino
para o teu peito de estátua campestre.
Jovem, teu professor Inverno te acostumou à chuva
e na universidade das ruas de Londres
a névoa e a pobreza te outorgaram seus títulos
e um elegante pobre, errante incêndio
da nossa liberdade,
te deu conselhos de águia prudente
e te embarcou na história.
“Como se chama o senhor?”, riam
os “cavalheiros” de Santiago:
filho de amor, de uma noite de inverno,
a tua condição de abandonado
te construiu com argamassa agreste,
com seriedade de casa ou de madeira
trabalhada no sul, definitiva,
Tudo o tempo muda, menos o teu rosto.
És, O'Higgins, relógio invariável
com uma só hora em tua cândida esfera:
a hora do Chile, o único minuto
que permanece no horário vermelho
da dignidade combatente.
Assim o mesmo estarás entre os móveis
de goiabeira e as filhas de Santiago
ou em Rancagua rodeado de morte e pólvora.
És o mesmo sólido retrato
de quem não tem pai, só tem a pátria
de quem não tem noiva, só tem aquela
terra de flor de laranjeira
que te conquistará a artilharia.
Te vejo no Peru escrevendo cartas.
Não há desterrado igual, maior exílio.
É toda a província desterrada.
O Chile iluminou-se como um salão
quando não estavas.
Em dissipação
um rigodão de ricos substitui
a tua disciplina de soldado ascético,
e a pátria ganhada pelo teu sangue
sem ti foi governada como um baile
que o povo faminto espia de fora.
Já não podias entrar na festa
com suor, sangue e pó de Rancagua.
Não teria sido de bom-tom
para os cavalheiros capitais.
Teria contigo entrado o caminho,
um cheiro de suor de cavalos,
o cheiro da pátria na primavera.
Não podias estar neste baile.
A tua festa foi um castelo de explosões.
O teu baile desgrenhado é a contenda.
Teu fim de festa foi a sacudidela
da derrota, o porvir aziago
para Mendoza, com a pátria nos braços.
Olha agora no mapa para baixo,
para o delgado cinturão do Chile
e coloca na neve soldadinhos,
jovens pensativos na areia,
sapadores que brilham e se apagam.
Fecha os olhos, dorme, sonha um pouco,
o único sonho, o único que volta
a teu coração: uma bandeira
de três cores no sul, a chuva
caindo, o sol rural sobre a tua terra,
os disparos do povo em rebeldia
e duas ou três palavras tuas quando
fossem estritamente necessárias.
Se sonhas, o teu sonho hoje está cumprido.
Sonha-o, pelo menos, em teu túmulo.
Nada mais saibas porque, como antes,
depois das batalhas vitoriosas,
dançam os señoritos no palácio
e o mesmo rosto faminto
espia da sombra das ruas.
Porém herdamos a tua firmeza,
o teu inalterável coração calado,
a tua indestrutível posição paterna,
e tu, entre a avalancha cegadora
de hussardos do passado, entre os ágeis
uniformes azuis e dourados,
estás hoje conosco, és nosso,
pai do povo, imutável soldado.
XXI
San Martín (1810)
Andei, San Martín, tanto e de lugar em lugar,
que descartei o teu traje, tuas esporas, sabia
que algum dia, andando pelos caminhos
feitos para voltar, nos finais
de cordilheira, na pureza
da intempérie que de ti herdamos,
acabaríamos nos vendo de um dia para outro.
Custa distinguir entre os nós
de ceibo, entre raízes,
entre veredas assinalar o teu rosto,
entre as aves distinguir o teu olhar,
encontrar no ar a tua existência.
És a terra que nos deste, um ramo
de cedrón que fere com o seu aroma,
que não sabemos onde está, de onde
chega o seu odor de pátria às pradarias.
Te galopamos, San Martín, saímos
amanhecendo a percorrer o teu corpo,
respiramos hectares de tua sombra,
fazemos fogo sobre a tua estatura.
És extenso entre todos os heróis.
Outros foram de planície em planície,
de encruzilhada em torvelinho,
tu foste construído de confins
e começamos a ver a tua geografia,
tua planície final, teu território.
Enquanto amadurecido o tempo dissemina
como água eterna os torrões
do rancor, os afiados
abraços da fogueira,
mais terreno compreendes, mais sementes
de tua tranqüilidade povoam os montes,
mais extensão dás à primavera.
O homem que constrói é logo o fumo
do que construiu, ninguém renasce
de seu próprio braseiro consumido:
de sua diminuição fez estoque, caiu quando somente teve o pó.
Tu abarcaste na morte mais espaço.
Tua morte foi um silêncio de celeiro.
Passou a vida tua, e outras vidas,
portas se abriram, muros se ergueram,
e a espiga saiu para ser derramada.
San Martín, outros capitães
fulguram mais do que tu, levam bordados
seus pâmpanos de sol fosforescente,
outros ainda falam como cachoeiras,
mas não há nenhum como tu, vestido
de terra e solidão, de neve e trevo.
Te encontramos no retorno do rio,
te saudamos na forma agrária
da Tucumania florida,
e nos caminhos, a cavalo,
te cruzamos correndo e levantando
a tua vestimenta, pai poeirento.
Hoje o sol e a lua, o vento grande
maduram a tua estirpe, a tua singela
composição: a tua verdade era
verdade de terra, arenoso amassilho,
estável como o pão, lâmina fresca
de argila e cereais, pampa puro.
E assim és até hoje, lua e galope,
estação de soldados, intempérie,
por onde vamos mais uma vez guerreando,
caminhando entre vilas e planuras,
instituindo a tua verdade terrestre,
esparzindo o teu germe espaçoso,
abanando as páginas do trigo.
Assim seja, e que não nos acompanhe
a paz até que entremos
depois dos combates em teu corpo
e durma a medida que tivemos
em tua extensão de paz germinadora.
XXII
Mina (1817)
Mina, das vertentes montanhosas
chegaste como um fio de água dura.
Espanha clara, Espanha transparente
te pariu entre dores, indomável,
e tens a dureza luminosa
da água torrencial da montanha.
Longamente, nos séculos e nas terras,
sombra e fulgor em teu berço lutaram,
unhas rampantes degolavam
a claridade do povo,
e os antigos falcoeiros,
em suas ameias eclesiásticas,
espreitavam o pão, negavam
entrada ao rio dos pobres.
Mas sempre na torre impiedosa,
Espanha, existe um espaço
para o diamante rebelde e sua estirpe
de luz agonizante e renascente.
Não em vão o estandarte de Castela
tem a cor do vento comuneiro,
não em vão por teus vales de granito
corre a luz azul de Garcilaso,
não em vão em Córdoba, entre aranhas
sacerdotais, deixa Góngora
as suas bandejas de pedrarias
aljofaradas pelo gelo.
Espanha, entre as tuas garras
de cruel antigüidade, o teu povo puro
sacudiu as raízes do tormento,
sufragou as azêmolas feudais
com invencível sangue derramado,
e em ti a luz, como a sombra, é velha,
gastada em devorantes cicatrizes.
Junto à paz do pedreiro cruzada
pela respiração dos carvalhos,
junto aos mananciais estrelados
nos quais fitas e sílabas reluzem,
sobre a tua idade, como um tremor sombrio,
vive em sua escalinata um gerifalte.
Fome e dor foram a sílica
de tuas areias ancestrais
e um tumulto surdo, enredado
às raízes de teus povos,
deu à liberdade do mundo
uma eternidade de relâmpagos,
de cantos e de guerrilheiros.
As ribanceiras de Navarra
guardaram o raio recente.
Mina arrancou do precipício
o colar de seus guerrilheiros:
das aldeias invadidas,
das povoações noturnas
extraiu o fogo, alimentou
a abrasadora resistência,
atravessou fontes nevadas,
atacou em rápidas voltas,
surgiu dos desfiladeiros,
brotou das pradarias.
Foi sepultado em prisões,
e ao alto vento da serra
retornou, revolto e sonoro,
seu manancial intransigente.
À América o leva o vento
da liberdade espanhola,
e de novo atravessa bosques
e fertiliza as campinas
seu coração inesgotável.
Em nossa luta, em nossa terra
se sangraram seus cristais,
lutando pela liberdade
indivisível e desterrada.
No México ataram a água
das vertentes espanholas.
E ficou imóvel e calada
a sua transparência caudalosa.
XXIII
Miranda morre na névoa (1816)
Se entrais na Europa tarde com cartola
no jardim condecorado
por mais de um outono junto ao mármore
da fonte enquanto caem folhas
de ouro andrajoso no Império
se a porta recorta uma figura
sobre a noite de São Petersburgo
tremem os cascavéis do trenó
e alguém na soledade branca alguém
o mesmo tempo a mesma pergunta
se sais pela florida porta
da Europa um cavalheiro sombra traje
inteligência signo cordão de ouro
Liberdade Igualdade olha seu rosto
entre a artilharia que troveja
se nas ilhas a alfombra o conhece
a que recebe oceanos Passe o Senhor Já o creio
Quantas embarcações E a névoa
seguindo passo a passo a sua jornada
se nas cavidades de lojas livrarias
há alguém luva espada com um mapa
com a pasta petulante cheia
de povoações de navios de ar
se em Trinidad pela costa o fumo
de um combate e de outro o mar de novo
e outra vez a escada de Bay Street a atmosfera
que o recebe impenetrável
como um compacto interior de maçã
e outra vez esta mão patrícia este azulado
guante guerreiro na ante-sala
longos caminhos guerras e jardins
a derrota em seus lábios outro sal
outro sal outro vinagre ardente
se em Cádiz amarrado ao muro
pela grossa corrente seu pensamento o frio
horror de espada o tempo o cativeiro
se baixas a subterrâneos entre ratazanas
e a alvenaria leprosa outro ferrolho
num caixão de enforcado o velho rosto
onde morreu afogada uma palavra
uma palavra nosso nome a terra
aonde queriam ir seus passos
a liberdade para seu fogo errante
o descem com cordéis à molhada
terra inimiga ninguém saúda faz frio
faz frio de tumba na Europa.
XXIV
José Miguel Carrera (1810)
EPISÓDIO Disseste Liberdade antes de ninguém,
quando o sussurro ia de pedra em pedra,
escondido nos pátios, humilhado.
Disseste Liberdade antes de ninguém.
Libertaste o filho do escravo.
Iam como as sombras mercadores
vendendo o sangue de mares estranhos.
Libertaste o filho do escravo.
Fundaste a primeira imprensa.
Chegou a letra ao povo obscurecido,
a notícia secreta abriu os lábios.
Fundaste a primeira imprensa.
Implantaste a escola no convento.
Retrocedeu a gorda teia de aranha
e o rincão dos dízimos sufocantes.
Implantaste a escola no convento.
CORO
Conheça-se a tua condição altiva,
senhor cintilante e aguerrido.
Conheça-se o que tombou brilhando
de tua velocidade sobre a pátria.
Vôo bravio, coração de púrpura.
Conheçam-se as tuas chaves desbeiçadas
abrindo os ferrolhos da noite.
Ginete verde, raio tempestuoso.
Conheça-se o teu amor de mãos cheias,
a tua lâmpada de luz vertiginosa.
Racimo de uma cepa transbordante.
Conheça-se o teu esplendor instantâneo,
o teu errante coração, o teu fogo diurno.
Ferro iracundo, pétala patrícia.
Conheça-se o teu raio de ameaça
destroçando as cúpulas covardes.
Torre de tempestade, ramo de acácia.
Conheça-se a tua espada vigilante,
a tua fundação de força e meteoro.
Conheça-se a tua rápida grandeza.
Conheça-se a tua indomável compostura.
EPISÓDIO Vai pelos mares, entre idiomas,
vestidos, aves estrangeiras,
traz naves libertadoras,
escreve fogo, ordena nuvens,
desentranha sol e soldados,
cruza a névoa em Baltimore
consumindo-se de porta em porta,
créditos e homens o desbordam,
todas as ondas o acompanham.
Junto ao mar de Montevidéu,
em sua casa desterrada,
abre uma oficina, imprime balas.
Rumo ao Chile vive a flecha
de sua direção insurgente,
arde a fúria cristalina
que o conduz, e endereça
a cavalgada do resgate
montado nas crinas ciclônicas
de sua despenhada agonia.
Seus irmãos aniquilados
gritam para ele do paredão
da vingança.
Sangue seu
tinge como labareda
nos adobes de Mendoza
seu trágico trono vazio.
Sacode a paz planetária
do pampa como um circuito
de vaga-lumes infernais.
Açoita as cidadelas
com o uivo das tribos.
Enfeixa as cabeças cativas
no furacão das lanças.
Seu poncho desatado
relampeja na fumarada
e na morte dos cavalos.
Jovem Pueyrredón, não relates
o desolado calafrio
de seu final, não me atormentes
com a noite do abandono,
quando o levam a Mendoza
mostrando o marfim de sua máscara
a solidão de sua agonia.
CORO Pátria, preserva-o em teu manto,
acolhe este amor peregrino:
não o deixes rolar para o fundo
de sua tenebrosa desgraça:
ergue a teu rosto este fulgor,
esta lâmpada inolvidável,
prega de novo esta renda frenética,
chama esta pálpebra estrelada,
guarda o novelo deste sangue
para as tuas teias orgulhosas.
Pátria, recolhe esta carreira,
a luz, a gota malferida,
este cristal agonizante,
este vulcânico anel.
Pátria, galopa para defendê-lo,
galopa, corre, corre, corre.
ÊXODO Levam-no até os muros de Mendoza,
à árvore cruel, à vertente
de sangue inaugurado, ao solitário
tormento, ao final frio da estrela.
Vai pelos caminhos inconclusos,
sarça e taipais desdentados,
álamos que lhe atiram ouro morto,
rodeado por seu orgulho inútil
como por uma túnica andrajosa
a que o pó da morte chega.
Pensa em sua dessangrada dinastia,
na luta inicial sobre os carvalhos
desgarradores da infância,
a escola castelhana e o escudo
rubro e viril da milícia hispânica,
sua tribo assassinada, a doçura
do matrimônio, entre as flores de laranjeira,
o desterro, as lutas pelo mundo,
O'Higgins enigma embandeirado,
Javiera sem saber nos remotos
jardins de Santiago.
Mendoza insulta sua linhagem negra,
ataca a sua vencida investidura,
e entre as pedras lançadas sobe
para a morte.
Nunca um homem teve
um final mais exato.
Das ásperas
investidas, entre vento e animais,
até a azinhaga onde sangraram
todos os de seu sangue.
Cada degrau
do cadafalso o ajusta ao seu destino.
Já ninguém pode continuar a cólera.
A vingança, o amor fecham as portas.
Os caminhos amarraram o errante.
E quando disparam, e através
de seu pano de príncipe do povo
assoma sangue, é sangue que conhece
a tetra infame, sangue que chegou
aonde tinha de chegar, ao chão
de lagares sedentos que esperavam
as uvas derrotadas de sua morte.
Indagou pela neve da pátria.
Tudo era névoa nos eriçados altos.
Viu os fuzis cujo ferro
fez nascer o seu amor desmoronado,
sentiu-se sem raízes, passageiro
do fumo, na batalha solitária,
e caiu envolto em pó e sangue
como em dois braços de bandeira.
CORO Hussardo infortunado, jóia ardente,
sarça acesa na pátria nevada.
Chorai por ele, chorai até que molhem,
mulheres, as vossas lágrimas a terra,
a terra que ele amou, a sua idolatria.
Chorai, guerreiros ásperos do Chile,
acostumados à montanha e à onda,
este vazio é qual uma nevada,
esta morte é o mar que nos atinge.
Não pergunteis por quê, ninguém diria
a verdade destroçada pela pólvora.
Não pergunteis quem foi, ninguém arrebata
o crescimento da primavera,
ninguém matou a rosa do irmão.
Guardemos cólera, dor e lágrimas,
enchamos o vazio desolado
e que recorde a fogueira na noite
a luz das estrelas falecidas.
Irmã, guarda o teu rancor sagrado.
A vitória do povo necessita
a voz de tua ternura triturada.
Estendei mantos em sua ausência
para que possa - frio e enterrado -
com o seu silêncio sustentar a pátria.
Mais de uma vida foi a sua vida.
Buscou a integridade como uma chama.
A morte foi com ele até deixá-lo
para sempre completo e consumido.
ANTÍSTROFE Guarde o loureiro doloroso a sua extrema substância de inverno.
A sua coroa de espinhos levemos areia radiante,
fios de estirpe araucana resguardem a lua mortuária,
folhas de boldo fragrante resolvam a paz de sua tumba,
neve nutrida nas águas imensas e escuras do Chile,
plantas que amou, melissas em xícaras de argila silvestre,
ásperas plantas amadas pelo amarelo centauro,
negros racimos transbordantes de elétrico outono na terra,
olhos sombrios que arderam sob os seus beijos terrestres.
Levante a pátria as suas aves, suas asas injustas, suas pálpebras rubras,
voe até o hussardo ferido a voz do queltehue na água,
sangre a loica a sua mancha de aroma escarlate rendendo tributo
àquele cujo vôo estendera a noite nupcial da pátria
e o condor suspenso na altura imutável coroe com plumas sangrentas
o peito adormecido, a fogueira que jaz nos degraus da cordilheira,
parta o soldado a rosa iracunda esmagada no muro esmagado,
pule o camponês ao cavalo de negra montaria e focinho de espuma,
volte ao escravo do campo a sua paz de raízes, o seu escudo enlutado,
levante o mecânico a sua pálida torre tecida de estanho noturno:
o povo que nasce no berço torcido de vimes e mãos de herói,
o povo que sobe de negros adobes de minas e bocas sulfúricas,
o povo levante o martírio e a urna e envolva a lembrança
com a sua ferroviária grandeza e a sua eterna balança de pedras e feridas
até que a terra fragrante decrete copihues molhados e livros abertos,
ao menino invencível, à lufada insigne, ao terno temível e acerbo soldado.
E guarde seu nome o duro domínio do povo em sua luta,
como o nome da nave resiste ao combate marinho:
a pátria em sua proa o inscreva e o beije o relâmpago
porque assim foi a sua livre e delgada e ardente matéria.
XXV
Manuel Rodríguez
CUECA Senhora, dizem que onde,
minha mãe dizem, disseram,
a água e o vento dizem
que viram o guerrilheiro.
Vida
Pode ser um bispo,
pode e não pode,
pode ser só o vento
sobre a neve:
sobre a neve, sim,
mãe, não olhes,
que chega a galope
Manuel Rodríguez.
Já vem o guerrilheiro
pelo ribeiro.
CUECA Saindo de Melipilla,
correndo por Talagante,
cruzando por San Fernando,
amanhecendo em Pomaire.
Paixão
Passando por Rancagua,
por San Rosendo,
por Cauquenes, por Chena,
por Nacimiento:
por Nacimiento, sim,
desde Chiñigüe,
por toda parte vem
Manuel Rodríguez.
Este cravo lhe damos,
com ele vamos.
CUECA Que se apague a guitarra,
que a pátria está de luto.
Nossa terra fica escura.
Mataram o guerrilheiro.
E Morte
Em Til-Til foi morto
por assassinos,
suas costas sangram
pelo caminho:
pelo caminho, sim.
Quem o diria,
ele que era o nosso sangue,
nossa alegria.
A terra está chorando.
Vamos nos calando.
XXVI
Artigas
(I)
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuosa
a sua passagem porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do ermo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaiano rocio.
(II)
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves tagarelas, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavalheiros amargos
que pela fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota,
estende-se o uníssono nome de pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.
(III)
Ó Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
o teu poncho estrelado de constelações que conhecias,
até que o sangue corrompesse e redimisse a aurora, e acordassem teus homens
marchando vergados pelos poeirentos entrançados do dia.
Ó pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!
(IV)
Passaram os dias de um século e seguiram as horas atrás de teu exílio:
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro:
atrás do silêncio no qual só tombavam os frutos apodrecidos sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desatada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do chicote, os cepos, os corpos roídos de escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com os seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.
(V)
“Amargo trabalha o exílio”, escreveu esse irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
opresso no imóvel olhar de vidro de um déspota num reino vazio.
(VI)
A América tua tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus, corriam até o [sacrifício:
morriam, nasciam, caíam: os olhos do cego matavam: a voz dos mudos
falava.
Os mortos, por fim, encontraram partido,
por fim conheceram o seu bando patrício na morte.
E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fileira: a terra não tem adversários.
(VII)
Uruguai é palavra de pássaro, o idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques na máscara azul do Atlântico.
Uruguai é a roupa estendida no ouro dum dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.
(VIII)
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas, te devia,
[Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta,
[recolhi os herbários do rio,
afundei a minha cabeça em tua areia e na prata dos peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desarrumados mercados
me purifiquei, até sentir-me devedor de teu olor e teu amor.
E talvez esteja escrito o rumor que teu amor e teu olor me conferiram
nestas palavras obscuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.
XXVII
Guayaquil (1822)
Quando entrou San Martín, algo noturno
de caminho impalpável, sombra, couro,
entrou na sala.
Bolívar esperava.
Bolívar farejou o que chegava.
Era aéreo, rápido, metálico,
todo antecipação, ciência do vôo,
seu contido ser tremulava
ali, no quarto imobilizado
na escuridão da história.
Vinha das alturas indizíveis
da atmosfera constelada,
ia seu exército em frente
quebrando noite e distância,
capitão de um corpo invisível,
da neve que o seguia.
A lâmpada tremeu, a porta
atrás de San Martin manteve
a noite, seus ladridos, seu tumor
tíbio de desembocadura.
As palavras abriram uma trilha
que neles mesmos ia e vinha.
Aqueles dois corpos se falavam,
se rechaçavam, se escondiam,
se incomunicavam, se fugiam.
San Martín trazia do sul
um saco de números cinzentos,
a solidão das montarias
infatigáveis, os cavalos
batendo terras, agregando-se
a sua fortaleza arenária.
Entraram com ele os ásperos
arrieiros do Chile, um lento
exército ferruginoso,
o espaço preparatório,
as bandeiras com apelidos
envelhecidos no pampa.
O quanto falaram caiu de corpo a corpo
no silêncio, no fundo interstício.
Não eram palavras, era a profunda
emanação das terras adversas,
da pedra humana que toca
outro metal inacessível.
As palavras voltaram a seus lugares.
Cada um, diante de seus olhos
via as suas bandeiras.
Um, o tempo com flores deslumbrantes,
outro, o roído passado,
os farrapos da tropa.
Junto a Bolívar uma mão branca
o esperava, o despedia,
acumulava o seu acicate ardente,
estendia o linho no tálamo.
San Martín era fiel a seus prados.
Seu sonho era um galope,
uma rede de correias e perigos.
Sua liberdade era um pampa unânime.
Uma ordem cereal foi a sua vitória.
Bolívar construía um sonho,
uma ignorada dimensão, um fogo
de velocidade duradoura,
tão incomunicável que o fazia
prisioneiro, entregue à sua substância.
Caíram as palavras e o silêncio.
Abriu-se outra vez a porta, outra vez toda
a noite americana, o largo rio
de muitos lábios palpitou um segundo.
San Martín regressou daquela noite
às soledades e ao trigo.
Bolívar continuou só.
XXVIII
Sucre
Sucre nas altas terras desbordando
o amarelo perfil dos montes,
Hidalgo tomba, Morelos recolhe
o ruído, o tremor de um sino
propagado na terra e no sangue.
Páez percorre os caminhos repartindo o ar conquistado,
cai o orvalho em Cundinamarca
sobre a fraternidade das feridas,
o povo insurge inquieto
desde a latitude à secreta
célula, emerge um mundo
de despedidas e galopes,
nasce a cada minuto uma bandeira
qual uma flor antecipada:
bandeiras feitas de lenços
sangrentos e de livros livres,
bandeiras arrastadas pelo pó
dos caminhos, destroçadas
pela cavalaria, abertas
por estampidos e relâmpagos.
As bandeiras
Nossas bandeiras daquele tempo
fragrante, bordadas apenas,
nascidas apenas, secretas
como um profundo amor, de súbito
encarniçadas ao vento
azul da pólvora amada.
América, extenso berço, espaço
de estrela, romã madura,
de súbito encheu-se de abelhas
a tua geografia, de sussurros
conduzidos pelos adobes
e pelas pedras, de mão em mão,
encheram-se de roupas as ruas
como colméia atordoada.
Na noite dos disparos
v baile brilhava nos olhos,
subia como uma laranja a flor de laranjeira pelas muralhas,
beijos de adeus, beijos de farinha,
o amor amarrava beijos,
e a guerra cantava com
a sua guitarra pelos caminhos.
XXIX
Castro Alves do Brasil
Castro Alves do Brasil, para quem cantaste?
Para a flor cantaste? Para a água
cuja formosura diz palavras às pedras?
Cantaste para os olhos, para o perfil recortado
da que então amaste? Para a primavera?
Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho,
aquelas águas negras não tinham palavras,
aqueles olhos eram os que viram a morte,
ardiam ainda os martírios por detrás do amor,
a primavera estava salpicada de sangue.
- Cantei para os escravos, eles sobre os navios,
como um cacho escuro da árvore da ira
viajaram, e no porto se dessangrou o navio
deixando-nos o peso de um sangue roubado.
- Cantei naqueles dias contra o inferno,
contra as afiadas línguas da cobiça,
contra o ouro empapado de tormento,
contra a mão que empunhava o chicote,
contra os dirigentes de trevas.
- Cada rosa tinha um morto nas raízes.
A luz a noite, o céu, cobriam-se de pranto,
os olhos apartavam-se das mãos feridas
e era a minha voz a única que enchia o silêncio.
- Eu quis que do homem nos salvássemos,
eu cria que a rota passasse pelo homem,
e que daí tinha de sair o destino.
Cantei para aqueles que não tinham voz.
Minha voz bateu em portas até então fechadas
para que, combatendo, a liberdade entrasse.
Castro Alves do Brasil, hoje que o teu livro puro
torna a nascer para a terra livre,
deixa-me a mim, poeta da nossa América,
coroar a tua cabeça com os louros do povo.
Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens.
Cantaste bem.
Cantaste como se deve cantar.
XXX
Toussaint L'Ouverture
Haiti, de sua doçura emaranhada,
extrai pétalas patéticas,
retitude de jardins, edifícios
de grandeza, arrulha
o mar como um avô escuro
sua velha dignidade de pele e espaço.
Toussaint L'Ouverture ata
a vegetal soberania,
a majestade acorrentada,
a surda voz dos tambores,
e ataca, cerra o passo, sobe,
ordena, expulsa, desafia
como um monarca natural,
até que cai na rede tenebrosa
e o levam pelos mares
arrastado e atropelado
como o regresso de sua raça,
atirando à morte secreta
das sentinas e dos sótãos.
Mas na ilha ardem as penhas,
falam os ramos escondidos,
se transmitem as esperanças,
surgem os muros do baluarte.
A liberdade é o bosque teu,
escuro irmão, preserva
a tua memória de sofrimentos
e que os heróis passados
custodiem a tua mágica espuma.
XXXI
Morazán (1842)
Alta noite e Morazán vela.
É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.
Fita central, América angustura que os golpes azuis de dois mares
foram fazendo, levantando no ar
cordilheiras e plumas de esmeralda:
território, unidade, delgada deusa
nascida no combate da espuma.
Desmoronam-se filhos e vermes,
estendem-se sobre ti as alimárias
e uma tenaz te arrebata o sonho
e um punhal com teu sangue te salpica
enquanto se despedaça o teu estandarte.
Alta é a noite e Morazán vela,
Já vem o tigre brandindo um machado.
Vêm para devorar-te as entranhas.
Vêm para dividir as estrelas.
Vêm,
pequena América olorosa,
para cravar-te na cruz, para desolar-te,
para derrubar o metal de tua bandeira.
Alta é a noite e Morazán vela.
Invasores encheram a tua casa.
E te partiram como fruta morta,
e outros carimbaram em tuas costas
os dentes de uma estirpe sanguinária,
e outros te saquearam nos portos
carregando sangue sobre as tuas dores.
É hoje, ontem, amanhã? Tu o sabes.
Irmãos, amanhece.
(E Morazán vela.
)
XXXII
Viagem pela noite de Juárez
Juárez, se recolhêssemos
o íntimo estrato, a matéria
da profundidade, se cavando tocássemos
o profundo metal das repúblicas,
esta unidade seria a tua estrutura,
a tua impassível bondade, a tua mão teimosa.
Quem olha a tua sobrecasaca,
a tua parca cerimônia, o teu silêncio,
o teu rosto feito de tetra americana,
se não é daqui, se não nasceu nestas
planícies, na argila montanhosa
de nossas soledades, não entende.
Te falarão divisando uma pedreira.
Te passarão como se passa um rio.
Darão a mão a uma árvore, a um sarmento,
a um sombrio caminho da terra.
Para nós és pão e pedra,
forno e produto da estirpe escura.
Teu rosto foi nascido em nosso barro.
Tua majestade é a minha região nevada,
teus olhos a enterrada olaria.
Outros terão o átomo e a gota
do elétrico fulgor, de brasa inquieta:
tu és muro feito de nosso sangue,
tua retidão impenetrável
sai de nossa dura geologia.
Nada tens para dizer ao ar,
ao vento de ouro que vem de longe,
que o diga a terra ensimesmada,
a cal, o mineral, a levedura.
Visitei eu os muros de Querétaro,
toquei cada penhasco na colina,
a distância, a cicatriz e a cratera,
o cacto de ramagens espinhosas:
ninguém persiste ali, foi o fantasma,
ninguém ficou dormido na dureza:
só existem a luz e os aguilhões
do matagal, e uma presença pura:
Juárez, a tua paz de noite justiceira,
definitiva, férrea e estrelada.
XXXIII
O vento sobre Lincoln
À s vezes o vento do sul resvala
sobre a sepultura de Lincoln trazendo
vozes e brisas de cidades e árvores
nada se passa em sua tumba as letras não se mexem
o mármore se suaviza com a lentidão de séculos
o velho cavaleiro já não vive
não existe o buraco de sua antiga camisa
se mesclaram as fibras do tempo e o pó humano
que a vida tão realizada diz uma tremelicante
senhora da Virgínia uma escola que canta
mais de uma escola canta pensando em outras coisas
mas o vento do sul a emanação de terras
de caminhos às vezes se detém na tumba
sua transparência é um periódico moderno
chegam surdos rancores lamentos como aqueles
o sonho imóvel vencedor jazia
sob os pés cheios de barro que passaram
cantando e arrastando fadiga e sangue
pois bem nesta manhã volta ao mármore o ódio
0 ódio do sul branco pelo velho adormecido
nas igrejas os negros estão sozinhos com Deus
com Deus conforme acreditam nas praças
nos trens o mundo tem certos letreiros
que dividem o céu a água o ar
que vida mais perfeita diz a delicada
senhorita e na Geórgia matam a pau
todas as semanas um jovem negro
enquanto Paul Robeson canta como a terra
como o começo do mar e da vida
canta sobre a crueldade e os anúncios
de coca-cola canta para os irmãos
de mundo a mundo entre os castigos
canta para os novos filhos para
que o homem ouça e suste o seu chicote
a mão cruel a mão que Lincoln abatera
a mão que ressurge como branca víbora
o vento passa o vento sobre a tumba traz
conversações restos de juramentos algo
que chora sobre o mármore como chuva fina
de antigas e esquecidas dores insepultas
o Klan matou um bárbaro perseguindo-o
enforcando o pobre negro a uivar queimando-o
vivo e esburacado pelos tiros
debaixo dos capuzes os prósperos rotarianos
não sabem assim crêem que são só verdugos
covardes carniceiros detritos do dinheiro
com a cruz de Caim regressam
para lavar as mãos e rezar no domingo
telefonam ao Senado contando suas façanhas
disto nada fica sabendo o morto de Illinois
porque o vento de hoje fala uma linguagem
de escravidão de fúrias de cadeias
e através das lousas o homem já não existe
é um esmiuçado polvilho de vitória
de vitória arrasada depois do triunfo morto
não só a camisa do homem se gastou
não só o buraco da morte nos mata
mas também a primavera repetida o transcurso
que rói o vencedor com o seu canto covarde
morre o valor de ontem derramam-se de novo
as furiosas bandeiras do malvado
alguém canta junto ao monumento é um coro
de meninas de escola vozes ácidas
que sobem sem tocar o pó externo
que passam sem descer ao lenhador adormecido
à vitória morta sob as reverências
enquanto burlão e viajeiro sorri o vento sul.
XXXIV
Martí (1890)
Cuba, flor espumosa, efervescente
açucena escarlate, jasmineiro,
custa-se a encontrar sob a rede florida
o teu sombrio carvão martirizado,
a antiga ruga deixada pela morte,
a cicatriz coberta de espuma.
Porém dentro de ti como clara
geometria de neve germinada,
onde se abrem tuas últimas cortiças,
jaz Martí como pura amêndoa.
Está no fundo circular da aragem,
está no centro azul do território,
e reluz como uma gota d'água
sua adormecida pureza de semente.
É de cristal a noite que o cobre.
Pranto e dor, de súbito, cruéis gotas
atravessam a terra até o recinto
da infinita claridade adormecida.
O povo às vezes baixa suas raízes
através da noite até tocar
a água quieta em seu pranto oculto.
À vezes cruza o rancor iracundo
pisoteando semeadas superfícies
e um morto cai na taça do povo.
Às vezes volta o açoite enterrado
a silvar na brisa da cúpula
e uma gota de sangue qual uma pétala
cai no chão e mergulha no silêncio.
Tudo chega ao fulgor imaculado.
Os tremores minúsculos batem
às portas do cristal oculto.
Toda lágrima toca a sua corrente.
Todo fogo estremece a sua estrutura.
E assim da jacente fortaleza,
do oculto germe caudaloso
saem os combatentes da ilha.
Chegam de um manancial determinado.
Nascem de uma vertente cristalina.
XXXV
Balmaceda de Chile (1891)
Mr.
North chegou de Londres.
É um magnata no nitrato.
Antes trabalhou no pampa,
de jornaleiro, algum tempo,
mas despediu-se e se foi.
Volta agora, envolto em libras.
Traz dois cavalinhos árabes
e uma pequena locomotiva
toda de ouro.
São presentes
para o presidente, um tal
de José Manuel Balmaceda.
“You are very clever, Mr.
North.
”
Rubén Darío entra por esta casa,
por esta presidência como quer.
Uma garrafa de conhaque o espeta.
O jovem Minotauro envolto em névoa
de rios, transpassado de sons,
sobe a grande escada que será
tão difícil de subir para Mr.
North.
O presidente regressou há pouco
do desolado norte salitroso,
ali dizendo: “Esta terra, esta riqueza
será do Chile, esta matéria branca
converterei em escolas, em estradas,
em pão para o meu povo”.
Agora entre papéis, no seu palácio,
sua fina forma, seu intenso olhar,
olha para os desertos do salitre.
Seu nobre rosto não sorri.
A cabeça, de pálida postura,
tem a antiga qualidade de um morto,
de um velho antepassado da pátria.
Todo o seu ser é um exame solene.
Algo desassossega, como rajada fria,
a sua paz, o seu movimento pensativo.
Rechaçou os cavalos, a maquininha de ouro
de Mr.
North.
Remeteu-os sem vê-los
para o dono, o poderoso gringo.
Apenas acenou com a mão desdenhosa.
“Agora, Mr.
North, não posso
entregar-lhe estas concessões,
não posso amarrar a minha pátria
aos mistérios da City.
”
Mr.
North instala-se no Club.
Cem uísques vão para a sua mesa,
cem jantares para advogados,
para o Parlamento, champanha
para os tradicionalistas.
Correm agentes para o norte,
os fios vão e vêm e voltam.
As suaves libras esterlinas
tecem como aranhas douradas
uma teia inglesa, legítima
para o meu povo, uma roupa, sob medida
de sangue, pólvora e miséria.
“You are very clever, Mr.
North.
”
A sombra sitia Balmaceda.
Ao chegar o dia, o insultam
e o escarnecem os aristocratas,
ladram-lhe no Parlamento,
o fustigam e caluniam.
Produzem a batalha, e ganharam.
Mas não basta: é preciso torcer
a história.
As boas vinhas
se “sacrificam” e o álcool
enche a noite miserável.
Os elegantes mocinhos
marcam as portas e uma horda
assalta as casas, arremessa
os pianos dos balcões.
Aristocrático piquenique
com cadáveres no canal
e champanha francês no Club.
“You are very clever, Mr.
North.
”
A embaixada argentina abriu
as suas portas ao presidente.
Nessa tarde escreve com a mesma
segurança de mão fina,
a sombra penetra seus grandes olhos
como escura mariposa,
de profundidade fatigada.
E a magnitude de seu rosto
sai do mundo solitário,
da pequena moradia,
ilumina a noite escura.
Escreve seu nítido nome,
as letras de longo perfil
de sua doutrina traída.
Tem o revólver na mão.
Olha através da janela
um derradeiro trecho da pátria,
pensando em todo o longo corpo
do Chile, sombreado
como uma página noturna.
Viaja e sem ver cruzam seus olhos,
como nas vidraças de um trem,
rápidos campos, casarios,
torres, ribeiras inundadas,
pobreza, dores, farrapos.
Ele sonhou um sonho preciso,
quis trocar a desgarrada
paisagem, o corpo consumido
do povo, quis defendê-lo.
Já é tarde, escuta disparos
isolados, os gritos vitoriosos,
o selvagem ataque, os uivos
da “aristocracia”, escuta
o último rumor, o grã silêncio,
e, com ele, recostado, entra na morte.
XXXVI
A Emiliano Zapata com música de Tatanacho
Quando cresceram as dores
na terra, e os espinheiros desolados
foram a herança dos camponeses,
e, como outrora, rapaces
barbas cerimoniais, e os açoites,
então, flor e fogo galopado.
.
.
Borrachita me voy
hacia la capital
empinou-se na alba transitória
a terra sacudida de facas,
o peão de suas amargas tocas
caiu qual uma espiga debulhada
sobre a solidão vertiginosa.
a pedirle al patrón
que me mandó llamar
Zapata então foi terra e aurora.
Em todo horizonte aparecia
a multidão de sua semente armada.
Num ataque de águas e fronteiras
o férreo manancial de Coahuila,
as estelares pedras de Sonora:
tudo veio ao seu passo adiantado,
à sua agrária tormenta de ferraduras.
que si va del rancho
muy pronto volverá
Reparte o pão, a terra:
te acompanho.
Renuncio a minhas pálpebras celestes.
Eu, Zapata, me vou com o rocio
das cavalarias matutinas,
num disparo desde as figueiras-do-inferno
até as casas de paredes róseas.
.
.
.
cintitas pa tu pelo
no llores por tu Pancho .
.
.
A lua dorme sobre as montarias.
A morte amontoada e repartida
jaz com os soldados de Zapata.
O sonho esconde sob os baluartes
da pesada noite o seu destino,
o seu incubador lençol sombrio.
A fogueira agrupa o sopro desvelado:
graxa, suor e pólvora noturna.
.
.
.
Borrachita rne voy
para olvidarte .
.
.
Pedimos pátria para o humilhado.
Tua faca divide o patrimônio
e tiros e corcéis amedrontam
os castigos, a barba do verdugo.
A terra se reparte como um rifle.
Não esperes, camponês, empoeirado,
depoís de teu suor a luz completa
e o céu parcelado em teus joelhos.
Levanta-te e galopa com Zapata.
.
.
.
Yo la quise traer
dijo yue no.
.
.
México, hostil agricultura, amada
terra entre os obscuros repartida:
das espadas do milho saíram
ao sol os teus centuriões suarentos.
Da neve do sul venho contar-te.
Deixa-me galopar em teu destino
e encher-me de pólvoras e arados.
.
.
.
Que si habrá de llorar
pa qué volver.
.
.
XXXVII
Sandino (1926)
Foi quando em terra nossa
Enterraram-se
as cruzes, gastaram-se
inválidas, profissionais.
Chegou o dólar de dentes agressivos
mordendo território,
na garganta pastoril da América.
Agarrou o Panamá com fauces duras,
enfiou na terra fresca os seus caninos,
chapinhou na lama, uísque, sangue,
e jurou um presidente de sobrecasaca:
“Seja conosco o suborno
de cada dia”.
Logo, chegou o aço,
e o canal dividiu as residências,
aqui os amos, ali a servidão.
Correram para a Nicarágua.
Desceram vestidos de branco,
disparando dólares e tiros.
Surgiu no entanto um capitão
que disse: “Não, aqui não pões
as tuas concessões, tua garrafa”.
Prometeram-lhe um retrato
de presidente, de luvas,
faixa atravessada e sapatinhos
de verniz recém-comprados.
Sandino dcscalçou as botas,
afundou-se nos trêmulos pântanos,
pôs a faixa molhada
da liberdade na selva,
e, tiro a tiro, respondeu
aos “civilizadores”.
A fúria norte-americana
foi indizível: documentados
embaixadores convenceram
o mundo de que seu amor era
a Nicarágua, que algum dia
a ordem haveria de chegar
a suas entranhas sonolentas.
Sandino enforcou os intrusos.
Os heróis de Wall Street
foram comidos pelo lamaçal,
um relâmpago os matava,
mais de um sabre os seguia,
uma corda os despertava
como serpente na noite,
e pendurados de uma árvore eram
carreados lentamente
por coleópteros azuis
e trepadeiras devoradoras.
Sandino, com os seus guerrilheiros,
na Praça do Povo, em todas
as partes estava Sandino,
matando norte-americanos.
justiçando invasores.
E quando veio a aviação,
a ofensiva dos exércitos
blindados, a incisão
de massacrantes poderios,
Sandino estava no silêncio,
como um espectro da selva,
era uma árvore que se enroscava
ou uma tartaruga que dormia
ou um rio deslizando.
E árvore, tartaruga, torrente,
foram a morte vingadora,
foram sistemas da selva,
mortais sintomas de aranha.
(Em 1948
um guerrilheiro
da Grécia, coluna de Esparta,
foi a urna da luz atacada
pelos mercenários do dólar.
Dos montes lançou fogo
sobre os polvos de Chicago,
e como Sandino, o valente
da Nicarágua, foi chamado
“bandoleiro das montanhas”.
)
Mas, quando fogo, sangue
e dólar não destruíram
a torre altiva de Sandino,
os guerreiros de Wall Street
fizeram a paz, convidaram
para celebrá-la o guerrilheiro,
e um traidor recém-alugado
disparou-lhe a carabina.
Seu nome é Somoza.
Até hoje
está reinando na Nicarágua:
os trinta dólares cresceram
e aumentaram em sua barriga.
Esta é a história de Sandino,
capitão da Nicarágua,
encarnação desgarradora
de nossa arena traída, dividida e acometida,
martirizada e saqueada.
XXXVIII
(1)
Até Recabarren
A terra, o metal da terra, a compacta
formosura, a paz ferruginosa
que será lança, lâmpada ou anel,
matéria pura, ação
do tempo, saúde
da terra desnuda.
O mineral foi como estrela
afundada e enterrada.
A golpes de planeta, grama por grama,
foi escondida a luz.
Áspera capa, argila, areia
cobriram o teu hemisfério.
Mas amei o teu sal, a tua superfície.
Tua goteira, tua pálpebra, tua estátua.
No quilate de pureza dura
cantou minha mão: na écloga
nupcial da esmeralda fui citado,
e no côncavo do ferro pus o meu rosto um dia
até emanar abismo, resistência e aumento.
Mas eu não sabia nada.
O ferro, o cobre, os sais o sabiam.
Cada pétala de ouro foi arrancada com sangue.
Cada metal tem um soldado.
(2)
O cobre
Eu cheguei ao cobre, a Chuquicamata.
Era tarde nas cordilheiras.
Era o ar como taça
fria, de seca transparência.
Antes vivi em muitos navios,
porém na noite do deserto
a imensa mina resplandecia
como um navio cegador
com o orvalho deslumbrante
daquelas alturas noturnas.
Fechei os olhos: sonbo e sombra
estendiam as suas grossas plumas
sobre mim como aves gigantes.
Apenas de queda em queda
enquanto dançava o automóvel,
a oblíqua estrela, o penetrante
planeta, qual uma lança,
me arrojavam um raio gelado
de fogo frio, de ameaça.
(3)
A noite em Chuquicamata
Era já alta noite, noite profunda,
como o interior vazio de um sino.
Ante meus olhos vi os muros implacáveis,
o cobre derruído na pirâmide.
Era verde o sangue destas terras.
Alta até os planetas empapados
era a magnitude noturna e verde.
Gota a gota um leite de turquesa,
uma aurora de pedra,
foi construído pelo homem
e ardia na imensidade,
na estrelada terra aberta
de toda a noite arenosa.
Passo a passo, então a sombra
me levou
pela mão ao sindicato.
Era o mês de julho
no Chile, na estação fria.
Junto a meus passos, muitos dias
(ou séculos) (ou simplesmente meses
de cobre, pedra e pedra e pedra,
quer dizer, de inferno no tempo:
do infinito mantido
por mão sulfurosa),
iam outros passos e pés
que só o cobre conhecia.
Era uma multidão gordurosa,
fome e farrapo, soledades,
a que cavava o socavão.
Naquela noite não vi
desfilar sua ferida sem número
na costa cruel da mina.
Mas eu fui desses tormentos.
As vértebras do cobre estavam úmidas,
descobertas a golpes de suor
na infinita luz do ar andino.
Para escavar os ossos minerais
da estátua enterrada pelos séculos,
o homem construiu as galerias
de um teatro vazio.
Porém a essência dura,
a pedra em sua estatura, a vitória
do cobre fugiu deixando uma cratera
de ordenado vulcão, como se aquela
estátua, estrela verde,
fora arrancada ao peito de um deus ferruginoso
deixando um oco pálido socavado nas alturas.
(4)
Os chilenos
Tudo isso foi a tua mão.
Tua mão foi a unha
do compatriota mineral, do “roto”
combatido, do pisoteado
material humano, do homenzinho em farrapos.
Tua mão foi como a geografia:
cavou esta cratera de treva verde,
fundou um planeta de pedra oceânica.
Andou pelas mestranças
manejando as pás quebradas
e botando pólvora por
todos os lados, como ovos
de galinha ensurdecedora.
Trata-se de uma cratera remota:
até da lua cheia
se veria a sua profundidade
feita lado a lado por
um tal de Rodríguez, um tal de Carrasco,
um tal de Díaz Iturrieta,
um tal de Abarca, um tal de Gumersindo,
um tal de chileno chamado Mil.
Esta imensidão, unha por unha,
o desgarrado chileno, um dia
e outro dia, outro inverno, a pulso,
em velocidade, na lenta
atmosfera das alturas,
recolheu-a da argamassa,
estabeleceu-a entre as regiões.
(5)
O herói
Não foi a firmeza tumultuosa
de muitos dedos, não só a pá,
não só o braço, as ancas, o peso
do homem todo e a sua energia:
foram dor, incerteza e fúria
os que cavaram o centímetro
de altura calcária, buscando
as veias verdes da estrela,
os finais fosforescentes
dos cometas enterrados.
Do homem gasto em seu abismo
nasceram os sais sangrentos.
Porque o Reinaldo é agressivo,
cata pedras, o infinito
Sepúlveda, teu filho, sobrinho de
tua tia Eduviges Rojas,
o herói ardendo, o que desvencilha
a cordilheira mineral.
Assim foi conhecendo,
entrando como na uterina
originalidade da entranha,
em terra e vida, fui me vencendo:
até sumir-me em homem, em água
de lágrimas como estalactites,
de pobre sangue despenhado
de suor caído no pó.
(6)
Ofícios
Outras vezes com Lafertte, mais longe,
entramos em Tarapacá,
desde Iquique azul e ascético,
pelos limites da areia.
Me mostrou Elías as pás
dos limpadores, enfiado
nas madeiras cada dedo
do homem: estavam gastadas
pelo roçar de cada ponta de dedo.
As pressões daquelas mãos derreteram
os pedernais da pá,
e abriram assim os corredores
de terra e pedra, metal e ácido,
estas unhas amargas, estes
enegrecidos cinturões
de mãos que rompem planetas,
e elevam os sais aos céus,
dizendo como no conto,
na história celeste: “Este
é o primeiro dia da terra”.
Assim aquele que ninguém antes viu
(antes daquele dia de origem),
o protótipo da pá,
levantou-se sobre as cascas
do inferno: dominou-as
com as suas rudes mãos ardentes,
abriu as folhas da terra,
e apareceu de camisa azul
o capitão de dentes brancos,
o conquistador do salitre.
(7)
O deserto
O duro meio-dia das grandes areias
chegou:
o mundo está nu,
largo, estéril e limpo até as últimas
fronteiras arenais:
escutai o som quebradiço
do sal vivo, só nas salinas:
o sol quebra seus vidros na extensão vazia
e agoniza a terra como um seco
e afogado ruído do sal que geme.
(8)
(Noturno)
Chega ao circuito do dserto,
À alta noite aérea do pampa,
Ao círculo noturno, espaço e astro,
Onde a zona do Tamarugal recolhe
Todo o silêncio perdido no tempo.
Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.
Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.
Eu te amo, irmã pura do oceano.
Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.
Estava só.
Era planura e solidão a vida.
Era este o peito varonil do mundo.
E amei o sistema de tua forma reta,
a extensa precisão de teu vazio.
(9)
O páramo
No páramo o homem vivia
mordendo terra, aniquilado.
Fui direto ao covil,
meti a mão entre os piolhos,
caminhei entre os trilhos até
o amanhecer desolado,
dormi sobre as duras tábuas,
desci da faina na tarde,
me queimaram vapor e iodo,
apertei a mão do homem,
conversei com a mulherzinha,
portas adentro entre galinhas,
entre trapos, no cheiro
da pobreza abrasadora.
E quando tantas dores
reuni, quando tanto sangue
recolhi no cavo da alma,
vi chegar do espaço puro
dos pampas inabarcáveis
um homem feito de sua própria areia,
um rosto imóvel e estendido,
uma roupa com um corpo largo,
uns olhos entrecerrados
como lâmpadas indomáveis.
Recabarren era o seu nome.
XXXIX
Recabarren (1921)
Seu nome era Recabarren.
Bonachão, corpulento, espaçoso,
claro olhar, cara firme,
sua vasta compostura cobria,
como a areia numerosa,
as jazidas da força.
Olhai no pampa da América
(rios ramais, clara neve,
cortes ferruginosos)
o Chile com a sua destroçada
biologia, como um ramo
arrancado, como um braço
cujas falanges dispersou
o tráfico das tormentas.
Sobre as áreas musculares
dos metais e o nitrato,
sobre a atlética grandeza
do cobre recém-escavado,
o pequeno habitante vive,
acumulado na desordem,
como um contrato apressado,
cheio de meninos maltrapilhos
estendidos pelos desertos
da superfície salgada.
É o chileno interrompido
pela demissão ou a morte.
É o duríssimo chileno
sobrevivente das obras
ou amortalhado pelo sal.
Ali chegou com seus panfletos
este capitão do povo.
Pegou o solitário ofendido
que, enrolando suas mantas rotas
em seus filhos famintos,
aceitava as injustiças
encarniçadas, e lhe disse:
“Junta tua voz a outra voz”,
“Junta tua mão a outra mão”.
Foi pelos rincões aziagos
do salitre, encheu o pampa
com sua investidura paterna
e no esconderijo invisível
toda a miséria o viu.
Chegou cada “galo” ferido,
chegou cada um dos lamentos:
entraram como fantasmas
de pálida voz triturada
e saíram de suas mãos
com uma nova dignidade.
Em todo o pampa se soube.
E foi pela pátria inteira
fundando povo, levantando
os corações quebrantados.
Seus jornais recém-impressos
entraram nas galerias
do carvão, subiram ao cobre,
e o povo beijou as colunas
que levavam pela vez primeira
a voz dos atropelados.
Organizou as soledades.
Levou os livros e os cantos
até os muros do terror,
juntou uma queixa a outra queixa,
e o escravo sem voz nem boca,
o extenso sofrimento,
se fez nome, se chamou Povo
Proletariado, Sindicato,
ganhou pessoa e postura.
E este habitante transformado
que se construiu no combate,
este organismo valoroso,
essa implacável tentativa,
ate metal inalterável,
esta unidade das dores,
esta fortaleza do homem,
este caminho para amanhã,
esta cordilheira infinita.
esta germinal primavera,
este armamento dos pobres,
saiu daqueles sofrimentos,
do mais fundo da pátria,
do mais duro e mais ferido,
do mais alto e mais eterno
e se chamou Partido.
Partido
Comunista
Esse foi o seu nome.
Grande foi a luta.
Caíram
como abutre os donos do ouro.
Combateram com a calúnia.
“Esse Partido Comunista
é pago pelo Peru,
pela Bolívia, pelos estrangeiros.
”
Caíram sobre as impressoras,
adquiridas gota por gota
com o suor dos combatentes,
e ao atacaram, quebrando-as,
queimando-as, esparramando
a tipografia do povo.
Perseguiram Recabarren.
Negaram-lhe entrada e trânsito.
Ele, porém, congregou sua semente
nos socavões desertos
e o baluarte foi defendido.
Então, os empresários
norte-americanos e ingleses,
seus advogados, senadores,
seus deputados, presidentes,
verterem o sangue na areia.
Acurralaram, amarraram,
Assassinaram nossa estirpe,
A força profunda do Chile,
Deixaram junto às veredas
Do imenso pampa amarelo
Cruzes de operários fuzilados
Nas franjas da areia.
Uma vez em Iquique, na costa,
Mandaram buscar os homens
Que pediam escola e pão.
Ali, confundidos, cercados
Num pátio, foram dispostos
Para a morte.
Dispararam
Cm sibilante metralhadora,
Com fuzis taticamente
Dispostos, sobre a pilha
Amontoada de operários adormecidos.
O sangue encheu como um rio
A areia pálida de Iquique,
E lá está o sangue tombado,
Ardendo ainda sobre os anos
Como uma corola implacável.
Sobreviveu porém a resistência.
A luz organizada pelas mãos
de Recabarren, as bandeiras rubras
foram das minas aos povoados,
foram às cidades e aos sulcos,
rodaram com as rodas ferroviárias,
assumiram as bases do cimento,
ganharam ruas, praças, granjas,
fábricas afligidas pelo pó,
chagas cobertas pela primavera:
tudo cantou e lutou para vencer
na unidade do tempo que amanhece.
Quanta coisa se passou desde então.
Quanto sangue sobre sangue,
quantas lutas sobre a terra.
Horas de esplêndida conquista,
triunfos conquistados gota a gota,
ruas amargas, derrotadas,
zonas escuras como túneis
traições que pareciam
cortar a vida com seu fio,
repressões armadas de ódio,
coroadas militarmente
A terra parecia afundar.
Mas a luta permanece.
Oferta (1949)
Recabarren, nesses dias
De perseguição, na angústia
de meus irmãos relegados.
combatidos por um traidor,
e com a pátria envolta em ódio,
ferida pela tirania,
recordo a luta terrível
de tuas prisões, de teus passos
primeiros, tua solidão
de torreão irredutível,
e quando, saindo do páramo,
um e outro homem a ti vieram
para congregar a massa
do pão humilde defendido
pela unidade do povo augusto.
Pai do Chile
Recabarren, filho do Chile,
pai do Chile, pai nosso,
em tua construção, cm tua linha
urdida em terras e tormentos
nasce a força dos dias
vindouros e vencedores.
És a pátria, pampa e povo,
areia, argila, escola, casa,
ressurreição, punho, ofensiva,
ordem, desfile, ataque, trigo,
luta, grandeza, resistência.
Recabarren, sob o teu olhar
juramos limpar as feridas
mutilações da pátria.
Juramos que a liberdade
levantará sua flor nua
sobre a areia desonrada.
Juramos continuar teu caminho
Até a vitória
XL
Prestes do Brasil (1949)
Brasil augusto, quanto amor quisera
para estender-me em teu regaço,
para envolver-me em suas folhas gigantes,
em desenvolvimento vegetal, em vivo
detrito de esmeraldas: espia-te,
Brasil, dos rios
sacerdotais que te nutrem,
dançar nos terraços à luz
da lua fluvial, e repartir-me
por teus desabitados territórios
vendo sair do barro o nascimento
de grossos bichos rodeados
de metálicas aves brancas.
Quanta lembrança me darias.
Entrar de novo na alfândega,
sair pelos bairros, cheirar
teu estranho rito, baixar
a teus centros circulatórios,
a teu coração generoso.
Mas não posso.
Uma vez, na Bahia, as mulheres
do bairro dolorido,
do antigo mercado de escravos
(onde hoje a nova escravidão, a fome,
o trapo, a condição dolente,
vivem como antes na mesma terra),
me deram umas flores e uma carta,
umas palavras ternas e umas flores.
Não posso apartar a voz de quanto sofre.
Sei quanto me dariam
de invisível verdade as tuas espaçosas
ribeiras naturais.
Sei que a flor secreta, a agitada
multidão de mariposas,
todos os férteis fermentos
das vidas e dos bosques
me esperam com a sua teoria
de inesgotáveis umidades,
mas não posso, não posso
senão arrancar do teu silêncio
uma vez mais a voz do povo,
elevá-la como a pluma
mais fulgurante da selva,
deixá-la a meu lado e amá-la
até que cante por meus lábios.
Por isso vejo Prestes caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, Brasil, fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.
Vejo Prestes, sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.
Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.
(Poeta, buscas em teu livro
as antigas dores gregas,
os orbes acorrentados
pelas antigas maldições,
correm as tuas pálpebras torturadas
pelos tormentos inventados,
e não vês em tua própria porta
os oceanos que batem
no sombrio peito do povo.
)
No martírio nasce a sua filha.
E ela desaparece
a golpe de machado, no gás, tragada
pelos lamaçais assassinos
da Gestapo.
Oh, tormento
do prisioneiro! Oh, indizíveis
padecimentos separados
de nosso ferido capitão!
(Poeta, apaga de teu livro
a Prometeu e sua corrente.
A velha fábula não tem
tanta grandeza calcinada,
tanta tragédia aterradora.
)
Onze anos eles guardam Prestes
detrás das barras de ferro,
no silêncio da morte,
sem que se atrevam assassiná-lo.
Não há notícias para seu povo.
A tirania apaga o nome
de Prestes em seu mundo negro.
E onze anos seu nome foi mudo.
Viveu sem nome como uma árvore
em meio a todo o seu povo,
reverenciado e esperado.
Até que a liberdade
foi buscá-lo em seu presídio,
e saiu de novo à luz,
amado, vencedor e bondoso,
despojado de todo 0 ódio
que lançaram sobre a sua cabeça.
Lembro que em 1945
estive com ele em São Paulo.
(Frágil e firme sua estrutura,
pálido como o marfim
desenterrado na cisterna,
fino como a pureza
do ar nas solidões,
puro como a grandeza
custodiada pela dor.
)
Pela vez primeira a seu povo
falava, no Pacaembu.
O grande estádio pululava
de cem mil corações vermelhos
que espetavam vê-lo e tocá-lo.
Chegou em uma indizível
onda de canto e ternura,
cem mil lenços saudavam
como um bosque a sua boa-vinda.
Ele olhou com olhos profundos
a meu lado, enquanto falei.
XLI
Dito no Pacaembu (Brasil, 1945)
Quantas coisas quisera hoje dizer, brasileiros,
quantas histórias, lutas, desenganos, vitórias,
que levei anos e anos no coração para dizer-vos, pensamentos
e saudações.
Saudações das neves andinas,
saudações do oceano Pacífico, palavras que me disseram
ao passar os operários, os mineiros, os pedreiros, todos
os povoadores de minha pátria longínqua.
Que me disse a neve, a nuvem, a bandeira?
Que segredo me disse o marinheiro?
Que me disse a menina pequenina dando-me espigas?
Uma mensagem tinham: Era: Cumprimenta Prestes.
Procura-o, me diziam, na selva ou no rio.
Aparta suas prisões, procura sua cela, chama.
E se não te deixam falar-lhe, olha-o até cansar-te
e nos conta amanhã o que viste.
Hoje estou orgulhoso de vê-lo rodeado
por um mar de corações vitoriosos.
Vou dizer ao Chile: Eu o saudei na viração
das bandeiras livres de seu povo.
Me lembro em Paris, há alguns anos, uma noite
falei à multidão, fui pedir auxílio
para a Espanha Republicana, para o povo em sua luta.
A Espanha estava cheia de ruínas e de glória.
Os franceses ouviam o meu apelo em silêncio.
Pedi-lhes ajuda em nome de tudo o que existe
e lhes disse: Os novos heróis, os que na Espanha lutam, morrem,
Modesto, Líster, Pasionaria, Lorca,
são filhos dos heróis da América, são irmãos
de Bolívar, de O'Higgins, de San Martín, de Prestes.
E quando disse o nome de Prestes foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.
Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.
Vou contar-vos outra pequena história.
Junto às grandes minas de carvão, que avançam sob o mar,
no Chile, no frio porto de Talcahuano,
chegou uma vez, faz tempo, um cargueiro soviético.
(O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.
)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.
Aquela noite escura teve estrelas:
as estrelas humanas, as lâmpadas do povo.
Também hoje, de todos os rincões
da nossa América, do México livre, do Peru sedento,
de Cuba, da Argentina populosa,
do Uruguai, refúgio de irmãos asilados,
o povo te saúda, Prestes, com suas pequenas lâmpadas
em que brilham as altas esperanças do homem.
Por isso me mandaram, pelo vento da América,
para que te olhasse e logo lhes contasse
como eras, que dizia o seu capitão calado
por tantos anos duros de solidão e sombra.
Vou dizer-lhes que não guardas ódio.
Que só desejas que a tua pátria viva,
E que a liberdade cresça no fundo
do Brasil como árvore eterna.
Eu quisera contar-te, Brasil, muitas coisas caladas,
carregadas por estes anos entre a pele e a alma,
sangue, dores, triunfos, o que devem se dizer
o poeta e o povo: fica para outra vez, um dia.
Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.
Um grande silêncio peço de terras e varões.
Peço silêncio à América da neve ao pampa.
Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.
Silêncio: Que o Brasil falará por sua boca.
XLII
De novo os tiranos
Hoje de novo a caçada
se estende por todo o Brasil,
procura-o a fria cobiça
dos mercadores de escravos:
em Wall Street decretaram
a seus satélites porcinos
que enterrassem os seus caninos
nas feridas do povo,
e começou a caçada
no Chile, no Brasil, em todas
as nossas Américas arrasadas
por mercadores e verdugos.
Meu povo escondeu meu caminho,
cobriu meus versos com as mãos,
da morte me preservou,
e no Brasil a porta infinita
do povo fecha os caminhos
onde Prestes outra vez
rechaça de novo o malvado.
Brasil, que te seja salvo
o teu capitão doloroso,
Brasil, que não tenhas amanhã
de recolher de sua lembrança
fibra por fibra a sua efígie
para erguê-la em pedra austera,
sem tê-lo deixado no meio
de teu coração desfrutar
a liberdade que ainda, ainda
pode conquistar-te, Brasil.
XLIII
Chegará o dia
Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.
Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece,
soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?
Transpassastes a sua tenebrosa vida?
O coração disperso
do povo abandonado e submerso!
Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.
Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga nos chama novamente.
Descei às raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
tocai a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.
Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram.
Cada espiga
nasce de um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.
um poema capaz de autenticidade e odor?
Fico onde estou, mascarando o sofrimento, sozinho,
sem necessitar da simplicidade da saudação triste;
corro o olhar, à vista de um olho vermelho, todo
segredo binário transforma-se em conto...
Será que lhe roubei o sossego? Meu corpo vertido em fumaça,
movimentando-se como bailarina, roçando teu ventre:
apresentas-te sofreguidão e descaso, re-flexo opaco;
como vou olhar-te sem desejar-te o contato caro,
o sussurro perto da nuca, teu cheiro que me corta.
Penso antes que roubaste-me a paz e nada de bom
restou desta história morta.
Em pleno meio-dia, parado aqui, nesta rua, aguardando um
beijo indeciso, estás querendo derreter-me; verás
como se comporta um triste ice cub orvalhado,
umedecendo o vale entre teus seios belos e pequenos,
descendo por tua barriga como uma língua ardente.
Custa-me pensar que do teu lado sou uma criança tola...
Quando penso em ti, minha cabeça dói; como fosses
sair de lá, por acreditar-me afim a Zeus: mas
que vão apelo à Natureza. Revelo-me miserável!
A vontade necessária para tanto não é consistente!
Antes, zelo por estares aconchegada e quente, então,
nos pequenos fios condutores de minha parca luz.
Ah! como quero poder descrever e dissertar, e assim
escrever-te um romance para as horas fúteis, mas
tenho pouca memória (pouca vitamina, talvez) e
sintetizo a vida analisando o dia por vez.
Teria que ser um conto, ainda que aprecies o canto.
Teria que ser uma curta história, que deixa saudade;
Miss me? Eu sinto tanta falta, me falta força para
seguir-me fartando a vida, na falta e na tortura;
fazer-te nova escultura, servir-me-ás como modelo.
Mas estou longe e tua imagem é vaga e sombria.
Quero lançar-me às pedras, ou antes, fazer delas
talismãs, teus voodoos secretos, uma fruta saborosa.
Quero me lambuzar de cores variadas e pintar-te
o corpo, quem sabe deixar de ser tão cínico.
O amor de Prometeu, o amor de Dioniso, o amor de Zeus,
que mais posso desejar-te como signo fatal?
"Demos as mão e ao correr juntos, esbarramos em fórmulas
mal-ditas e satíricas, de refrões seculares".
Já vimos juntos o arrebol? É um risco a mais;
metáforas espessas, o que podem expressar?
Pergunta-se do que "sub-jaz" ou do que "aparece"?
Tento acreditar em "Lethes", deixar-te na memória,
escorregarem-se os dias nestes rios fluentes;
estamos navegando à deriva de uma intersecção de setas.
E ainda a alma rebelde que me cospe o rosto:
constrange-me o suicídio, por ser uma utilidade inútil.
O sonho está diminuindo; a estrada, eu sempre
retorno àquele mesmo ponto, encruzilhada de
escolhas, no mais das vezes, interpeladas pela barbaridade.
Tenho medo do exílio de teus olhos, no assalto ao céu...
Assim quer o Deus? Desenhos de fumaça, crianças brincam,
a vida correndo mais um setembro, construindo o caráter
da prima-vera, sob auspícios diversos e be careful!.
Acredito realmente na guerra e na morte, mas não
na dor. Como se estivesse perdido no caminho,
mesmo sabendo exatamente onde me encontro.
Mesmo pre-sentindo que tudo correrá como antes e
poderei beijar-te cálida ou calorosamente, assim
exijo uma seta para o arco que curva sóbrio:
teu suor em minha boca, teus sais para salvar-me
da solidão, teu sexo para energizar minhas glândulas.
Ou somente o teu cheiro, teu olhar, e go away alone.
Veja, os animais, todos se soltaram: veja o coelho
Bob Dylan e a galinha Janis, o porco Rotten;
corra, ou vamos perdê-los! Agora, pastor!
Traga-me o vinho do odre mais antigo, comemore
comigo o brotar da estação, dilacera-me com
teu punhal, pareço anestesiado? Serei símbolo-diverso?
Deita do meu lado esquerdo, cobre-me com teu corpo,
para sentir-lhe o peso; diga-me apenas querido e
já a música inquietante absorve-nos em cristais.
Lamento não poder gritar! Lamento a guerra e o
rosto no espelho. O que estou fazendo? Nada.
"Não é nada orgânico, obrigado". Ecos primaveris.
Passa o passo rápido no
auge do contraste que
sobe ou desce e que
seca e umedece agora...
Alçou vôo e desapareceu,
roçou o enjôo e vomitou,
olvidou voar como pássaro...
Um vento que rodeia minha amada, um vento quente
do norte, aliás, tórrido e puro éter, e mudança
de modo-contínuo, mesmo sendo um e o mesmo,
movimento ávido do mesmo calor, estátua na chuva!
Preciso preencher uma ânsia de vacuidade e dispersão,
para arrebatar a lâmina de tua mão, naquele dia,
quando os medos e paixões subsistiram num gesto;
quando mudas o fim do poema e descubro que foi
antigamente projetado e me vejo nele feliz e
absorto por ser divinamente dirigido a ti,
em todas as súplicas surdas e canções, em
novas re-edições de línguas mortas, que não se tocam
mais, que feneceram por falta de uso devido
ou mesmo impróprio. Não houve o fato. Ridículo?
corporis mysterium:
Bernardo de Clairvaux atravessou os Alpes vinha de
Roma e trazia uma relíquia — o dente de São Cesário
pela Ibiapaba pela Mantiqueira os Pirineus e os Kárpatos
por Lisboa e Padova onde a língua de Antônio — trago
por nova York Buenos Aires e São Paulo
uma relíquia e calem-se
os pregões da Bolsa
trago a língua de Apolo a língua viva e pange a língua
do corpo glorioso o oráculo celeste.
Desce a tarde sobre os ananazes
e as mangabas verdes e os cajus vermelhos
em Feira de Santana:
consulto a bússola
onde o Norte da Musa — ali
é o pomar onde colher a viagem madura
e à sombra das mangueiras
entre as folhas morena
Antonieta Mello fundava a dor sagrada e a flor
do puro coração
e canto agora
aos céus de Mecejana
seu sorriso triste sua lágrima
seu lírio imarcessível enquanto
desçam as tardes sobre os ananazes:
abre, menina, o coração
na serena madrugada,
se o coração não me abrires
eu não sou eu nem sou nada:
pois junto
das de coração alanceado eu sou eu
sou eu
e amor
e dor,
Apolo,
e as amorosas e as dolorosas
sabem meu nome e a porta
de minha casa:
pois canto agora Antonieta Mello e um dia
desta partitura para flauta doce
em tua língua, Apolo, hão de dizer
que entre Alecrim e as Quintas
Antonieta Mello teve um cantor
Pange língua — pois canto no caminho
as coisas e as pessoas do caminho
do país dos Mourões a teu país, Apolo,
e teu país é meu caminho — e meu caminho
é minha residência
— pois
sobre meus pés caminho
e ao longo
de minha sombra —
e minha sombra
responde ao sol e à lua
seu mapa essencial:
não viajo de mim —
nesta fronteira
Ich bin der Markgraf
e o margrave marca
sua fronteira
e sua
fronteira é sua sombra
e habito minha sombra e sou
cartógrafo de seu mapa sob a planta
dos pés limito minha nação
pois natural
de praça e rua de monte e val
a pura sombra
dá deferência — deferimento
ao mero corpo:
ali sou eu onde o luar
defira à noite minha memória
pela raiz de minha sombra onde
o resíduo de meus dias
As viagens viajam a viagem
e além não vou
de minha sombra
sou nela imóvel
— eppur si muove —
e às vezes
passa-mo Apoio as rédeas de seu carro de fogo
E pelo lago
do céu pisando estrelas
até
a lapa do mundo galopavam
os cascos faiscantes:
um dia sobre as areias de Paranaguá
caminhava uma estrela:
para tua cabeça
aluguei uma estrela
para tua cabeça noite dia o diadema
de um beijo
em teus cabelos fulgurei — e o cometa
coruscante na omoplata banhou
o espinhaço moreno
no céu curvo e profundo
fundiu-se e resta
a glória moribunda
de sua coma
desde
até
e um dia me disseste:
"faz um milagre"
escrevia com o dedo sobre a página
"faz um milagre" — pedias
escrevia com o dedo sobre a areia
a rima de seu nome —
"faz um milagre"
e o dedo incandescente ejaculava cometas
à rima de seu nome
In firmamento coeli rorabam coeli desuper
e enquanto
os perfumes perguntam por teu seio
nubes pluant rosam e o trevo
de teu nome responde
no orvalho da madrugada:
poeta, ego
íncola dos trevos — íncola
de um trevo
desde
até
pois alí oh laudes regis — calida latet
el trébol — el trébol
ó oriunda de Calíope
a rosa veste a túnica e um perfume
de talictres silvestres veste o trevo
amante amore amavi amatam
desde as celestes fugitivas
e Carmen (carminum)
até
Amor,
porque te consigo imaginar
o gosto da boca,
a força dos braços,
o calor do corpo,
porque te consigo imaginar
a luz do olhar
o pulsar do peito
o faminto desejo
me dou,
em tremor profundo,
ainda que me desmanche
inteira
em seiva, gemidos, sussurros,
me tornando dessa maneira
em alguns versos do nosso
livro ...
Poema II
Em minhas mãos,
entregaste o corpo alvo
e nu ,
de incenso e mirra esquecido,
permitindo tatuar o vale
com a lava do vulcão
amanhecido
juntos, derramados os pudores em
branda taça,
um torpor de vinhos nos cimos
duros, debruçado o grito em tua âncora,
meu espanto findo
Iniciando escrever o livro
transfiro em ti a minha força, vinda
do vermelho das ameixas
roxas,
quando teu corpo sobre o meu
derramado, calar a sede da serpente
hirta.
Na página primeira escrita
à memória do milenar gozo
no alvo corpo a escorrida lava
desmente a aridez da futura estrada.
Poema III
Porque te amo
me divido, e em mim se multiplica
o que antes sem saber
subtraído me havia.
Do cântaro no peito ressecado
renasceu a flor que não morrera,
pois que estava em nós, e não
sabíamos
pois que nos lambera, e não
sentíamos.
O teu rosto desconhecido perpetua a
chama , que no peito ainda ardia.
Porque te amo
louco me derramo, corajoso e vasto
entre as lavas do teu vulcão em
chamas,
e nos teus olhos me revejo
cálice, âmbula, patena e sacrário
inteira catedral de êxtase erguida
Nos teus braços
do cansaço me exilo,
ao longe numa curva do caminho,
vejo
o meu retrato de ontens pendurado,
do riso frouxo que da boca se me
expande,
o silêncio pleno de vidraças que se
abrem.
Em tua boca, gestamos nosso
vinho
no seio túmido, a flor que
embriaga,
em nosso gozo,
um poema de Hilda Hilst.
Poema IV
À sombra do pessegueiro,
aconchegada no meu peito
em silêncio, a solidão
urdia o caminho dos nossos passos
nos mails tímidos, travados
na virtual estrada descoberta
Tomei para mim o teu ardor
de fome de ontens tecida,
tomei toda a febre das tuas dores,
tomei-a em júbilo até o apagar
das tuas cinzas, de nomes esquecidas
Passo a passo ensaiei, cingir
em grilhões a desesperança
e nos dividimos para sermos únicos
Poema V - O Recado
Estarei ausente da tua ceia, mas deixo o pão em beijo transformado,
e mesmo que as minhas bússolas,
navegassem rotas,
encontrariam a sombra do
pessegueiro azul em teu corpo
refletido.
Dos astrolábios tantos
que nos guiaram os passos
de quilhas, conveses e tombadilhos
que nos encheram os sonhos,
estarei na milenar memória das tuas
mãos
na hora de cortares o pão,
e no cálice ausente, de vinhos e
ontens sorvido
Espera-me amor!
abre a janela e me deixa ver refletida
a tua luz.
A estrela que me guia os passos
enlouquecida de sombras,
haverá de reconhecer o teu sinal
e o advento estará em nossas mãos,
... lúdicas mãos,
de amanhãs tecida.
Poema VI
Chove lá fora,
na minha janela
a chuva insiste em dizer
que por um momento,
me exilei de você
Caiu a linha,
lá fora é noite fria
e sem estrelas onde vê-la
Nesse instante
carrego a solidão do mundo
lembro do teu riso
ao dizer-me manco
e lembro do teu pranto
ao incomentar a renda preta
Ainda chove lá fora
pe é estranho... não somos os
dois a sentir o frio.
Poema VII
Tens no seio nu
o segredo das minhas algemas
e do incansável galopar do meu
corcel
na busca embriagada do teu mel,
porque não me basta
a memória escrita do teu rosto,
nem me alcança
as janelas abertas
onde derramamos nossa solidão, e
ainda que por mil anos
galope a crina azul do meu cavalo,
o meu segredo
inatingível em tuas mãos,
escutará somente o arpejo
de correntes,
desandadas em tua busca.
Poema VIII
Porque me sabe a boca
o teu gosto, por dentro e fora
revelado,
em nuvens meus sentidos
se desfaz, enquanto sacralizo o vinho
amanhecido na tua concha pérola
Porque te descobri me deixei ficar
nas tuas ilhas, conquistado,
e me fiz pescador , dos teus silêncios,
dos frêmitos esquecidos
no tremor da carne nua, e
porque me sabe a boca o teu gosto,
te faço um poema com o sabor da lava
escorrida no meu peito.
Sinto o grito do vulcão
em minha língua enternecido,
e o rio desaflito em plena noite derramado
nas correntezas do prazer e da poesia
Me toma, conquistado por querer,
me leva, e me perde no teu canto,
deixe que sepulte o meu inferno
e esqueça a ira dos mares navegados,
renasça em mim o brilho do anjo e do demônio
igualmente opostos na carne da mesma carne,
me faça em carneiro e lã, ou musgo em cama macia,
me deite, me nine, ordene,
me ame, me ame, me ame.
Artigas crescia entre os matagais e foi tempestuoso seu passo
porque nas pradarias crescendo o galope de pedra ou sino
chegou a sacudir a inclemência do páramo como repetida centelha,
chegou a acumular a cor celestial estendendo os cascos sonoros
até que nasceu uma bandeira empapada no uruguaio orvalho.
II.
Uruguai, Uruguai, uruguaiam os cantos do rio uruguaio,
as aves turpiales17, a rola de voz malferida, a torre do trovão uruguaio
proclamam o grito celeste que diz Uruguai no vento
e se a cascata redobra e repete o galope dos cavaleiros amargos
que para a fronteira recolhem os últimos grãos de sua vitoriosa derrota
se estende o uníssono nome do pássaro puro,
a luz de violino que batiza a pátria violenta.
III.
Oh, Artigas, soldado do campo crescente, quando para toda a tropa bastava
teu poncho estrelado por constelações que tu conhecias,
até que o sangue corrompe e redime a aurora, e acordam teus homens
marchando atormentados pelas poeirentas ramagens do dia.
Oh pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada!
IV.
Passaram-se os dias de um século e se seguiram as horas atrás de teu exílio,
atrás da selva enredada por mil teias de aranha de ferro,
atrás do silêncio em que só caíam os frutos podres sobre os pântanos,
as folhas, a chuva desencadeada, a música do urutau,
os passos descalços dos paraguaios entrando e saindo no sol da sombra,
a trança do látego, os cepos, os corpos roídos por
escaravelhos:
um grave ferrolho se impôs apartando a cor da selva
e o arroxeado crepúsculo fechava com seus cinturões
os olhos de Artigas que buscam em sua desventura a luz uruguaia.
V.
“Amargo trabalho o exílio” escreveu aquele irmão de minha alma
e assim o entretanto da América caiu como pálpebra escura
sobre o olhar de Artigas, ginete do calafrio,
oprimido no imóvel olhar de vidro de um déspota, em um reino vazio.
VI.
Tua América tremia com penitenciais dores:
Oribes, Alveares, Carreras, nus corriam para o sacrifício;
morriam, nasciam, caíam; os olhos do cego matavam; a voz dos mudos
falava. Os mortos, por fim encontraram partido,
por fim conheceram seu bando patrício na morte.
E todos aqueles sangrentos souberam que pertenciam
à mesma fila: a terra não tem adversários.
VII.
Uruguai é palavra de pássaro, ou idioma da água,
é sílaba de uma cascata, é tormento de cristalaria,
Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante,
é um beijo fluvial dos bosques e a máscara azul do Atlântico.
Uruguai é a roupa estendida no ouro de um dia de vento,
é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.
VIII.
E se Pablo Neruda, o cronista de todas as coisas te devia, Uruguai, este canto,
este canto, este conto, esta migalha de espiga, este Artigas,
não faltei a meus deveres nem aceitei os escrúpulos do intransigente:
esperei uma hora quieta, espreitei uma hora inquieta, recolhi os herbários do rio,
submergi minha cabeça em tua areia e na prata dos
peixes-reis,
na clara amizade de teus filhos, em teus desmantelados mercados
acender-me-ei até sentir-me devedor de teu olor e de teu amor.
E talvez está escrito o rumor que teu amor e teu olor me outorgaram
nestas palavras escuras, que deixo em memória de teu capitão luminoso.
de uma memória exacta. Somos tu e eu, elevados da terra
a um círculo de luz, espessa música. Descansa em minha
sombra para lá da superfície do tempo, escreve-se a noite
a toda a largura do mundo que prossegue sem nos ver.
Nada pode fixar-se ou ganhar forma, pois forma já não
temos quando tuas asas curvas desenham o movimento
do fogo. Aperto-te contra mim; nada do que se possa dizer
convém à dor de carne suada, morre-se de um beijo com
um grito dentro e a paisagem, límpida, pode quebrar-se
em nossas mãos. Sobrevive-nos a cor incendiada, porém,
porque só o irrepetível se eterniza e só o humano é divino.
Ergue-me, assim, de uma vida cheia de sangue.
Deixa-me ir, primeiro os pés, a luminescência, depois
o tronco, húmido, levitando nas entranhas de água, a cabeça
já sem rosto pregada a uma estrela cadente na cicatriz
de um chão sacro. Vê como a alucinação traz meu coração
de sal ao desastre da boca, áspero lugar, crepúsculo primeiro,
falha. Desejo-te quando caminhas por entre a seiva, fechado
à distância do lápis. Empurra-me agora, vagarosamente,
sem despedidas trágicas ou poemas flutuantes, sob a linha
recta da voz. O riso de Deus é trémulo e cintilante. E o anjo,
criança sábia, nada diz. As palavras morrem se forem ditas.
Boa-noite.
E as pessoas que assistem são estátuas com cabelo, um sorriso talvez — com esse ar ambíguo das estátuas: branco, fatal, atónito.
As estátuas não têm amor nem adivinhação.
Estão cravadas nas poltronas e nada fazem por esse Autor repentinamente aparecido no meio de sombras e luzes.
Contudo, esperemos ao menos que não sejam os «juízes».
São majores, advogados, comerciantes, professores.
Estátuas sentadas.
Estava ali a pensar, há pouco, para que serve aparecer.
(Ele refere-se, evidentemente, a um momento teatral anterior, que pode desenhar-se desta maneira:
O pano sobe.
A cena encontra-se na obscuridade.
Três panejamentos negros cobrem o fundo e os lados do palco.
A um canto, ao fundo, de preferência à esquerda, está um homem sentado numa poltrona de couro.
Fuma.
Tem ao lado um cinzeiro de pé alto.
Nada mais existe no palco.
O homem expele o fumo com força, uma última vez, e atira o cigarro para o cinzeiro.
Ergue-se devagar.
As luzes aumentam de intensidade sem, no entanto, iluminarem francamente a cena.)
Não serve para nada, continua, a menos.
Levanta um dedo, e todo o corpo como que se precipita para o alto desse jacto de energia.
A menos que se execute um milagre.
E toda a sala permaneceria muda e à margem da (miraculosa) solidão, se o Demónio, que passava pelos corredores, não tivesse encontrado a porta entreaberta e, espreitando, não dissesse: um milagre?
Sim, responde o Autor, um pequeno milagre.
Aqui é o lugar da malícia do Demónio.
Pequeno?, pergunta.
Então o Autor diz que tentará explicar.
Massas de sombra e de luz esperam atrás dele.
O espaço onde se encontra hesita entre vários, inconcluídos pensamentos.
Nem a temperatura, a pressão, a humidade se fixaram.
Eu apareço como exemplificador — mostro o estilo, o exemplo.
Um operário em fato-macaco levanta um dos panos laterais e introduz em cena meio corpo.
Pergunta: começa-se?
Ainda não, responde o Autor, estou a explicar umas coisas.
Quando acabar, chame, diz o operário, e desaparece.
Senhores militares, estudantes, médicos — minhas senhoras — meus senhores — ides assistir a um acto simbólico.
É esse o milagre, o pequeno?, pergunta o Demónio no fundo da sala.
Sim, é esse — e é pequeno.
Bate palmas, e entram alguns operários.
Agora?, perguntam.
Os operários saem e voltam com uma carpete, cadeiras, pequenas mesas e o mais que possa interessar para que surja uma sala-de-estar segundo a convenção.
Um momento, interrompe o Autor.
E os operários conservam-se a um canto, pacientemente à espera de poderem arrumar os móveis e objectos.
Eu ia pedir-vos, senhoras, senhores, para aceitardes o direito de poder imaginar a acção um pouco como quisésseis.
O que aqui se passar poderia passar-se noutro sítio qualquer, com pessoas diferentes e de maneira diversa.
Mete pessoas?, pergunta o Demónio.
Não haverá sempre pessoas?, não estaremos por acaso — tu, eu — bloqueados, sufocados, esmagados por pessoas? — há sempre pessoas.
E as pessoas estão em baixo, sorrindo, olhando — talvez, talvez.
Enfim, procuro defender o meu símbolo, apesar de tudo.
Podeis começar, senhores operários.
E para vós, senhoras, senhores, que simplesmente assistis, vou fazer, enquanto eles dão a este espaço o aspecto concreto da realidade, um pequeno truque de prestidigitação.
Uma coisa poética, pela qual procurarei dar a impressão de que repito o acto iluminante do Génesis.
É o milagre?, perguntam impertinentemente do fundo da sala.
Um milagre que não é precisamente uma arbitrariedade.
Os poetas arrogam-se o direito de recomeçar o mundo.
Aqui principia o mundo, se é verdade que pode principiar em qualquer parte e tempo.
E então arregaça as mangas do casaco como um prestidigitador de circo.
Mostra as mãos, de um lado e de outro.
Nada na manga, diz o Demónio.
Com efeito, nada na manga.
Dirige-se para os panejamentos negros que puxa, e caem, deixando à vista as paredes com estantes de livros, quadros, retratos de família, etc.
Bonito, não é?
Fiat lux!
E a luz fez-se.
Olha subtilmente para as estátuas, enquanto ao fundo rebenta uma gargalhada.
Depressa, diz para os operários, esta gente espera a acção.
A acção, não é?
Pois claro.
Onde estão as portas?
Uma para comunicar com o resto da casa.
Isto é a sala-de-estar de uma família.
Ora é preciso que as pessoas entrem e saiam.
Que vivam por toda a parte, por causa da verosimilhança.
Gosto muito da verosimilhança.
E outra, outra porta para fora.
Porque podem chamar de fora, da noite, do vento, e a pessoa por quem chamam poderá querer sair.
Estavam mal as pessoas, se o Criador.
Com a licença de todos, o Criador aqui sou eu.
Se o Criador, dizia, lhes não desse uma porta.
É tudo?, pergunta o Demónio.
Tudo, sim.
E o milagre?
Bem, o milagre.
Nada há a acrescentar, senão talvez que as pessoas que simplesmente assistem nunca se movem, porventura jamais se moverão.
Talvez nem mesmo sorriam, ou olhem.
Estão sentadas, vamo-lo supor.
Sentadas e hirtas, e se calhar não chegam a compreender que é para elas tudo o que se faça.
A paixão forma-se, cresce, desloca-se à sua frente.
Alguém se esgota à sua frente — o caloroso prestidigitador, sob a ironia de um demónio devoluto, emprestado pelas fábulas.
Escreve-se.
Há as nuvens, as árvores, as cores, as temperaturas.
Há o espaço.
É preciso encontrar a nossa relação com o espaço.
Fazer escultura.
Escultura: objecto.
Objectos para a criação de espaço, espelhos para a criação de imagens, pessoas para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.
Objectos para a criação de silêncio.
Temos enfim o silêncio: é uma autobiografia.
É algo que se conquista à força de palavras.
Pode-se morrer, depois, quero dizer.
Um amigo: quando já sabemos como viver estamos prontos para a morte.
Estou descontente.
Há primavera, verão, outono e inverno — no espaço.
Começa assim o Ricardo III:
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lourd’d upon our house
In the deep bosom of the Ocean buried.
Now are our brows with victorious wreaths;
Our bruised arms hung up for monuments;
Our stern alarums changed to merry meetings;
Our dreadful marches to delightful measures.
Gloucester não é feito para estes tempos de paz, os jogos voluptuosos, os delicados labirintos da beleza.
É monstruoso.
Why, I, in this weak piping time of peace,
Have no delight to pass away the time,
Unless to see my shadow in the sun
And descant on mine own deformity.
E ele realizará uma autobiografia activa, uma sufocante acumulação de crimes.
Uma soma de cadáveres.
Um cadáver ele mesmo, acto V, cena V.
É o silêncio dele.
Estou descontente.
Eis o inverno do meu descontentamento.
Autobiografia.
Denominação: dominação das coisas.
O amor e a palavra são belos crimes — e imperdoáveis.
E quem pode amar o crime senão o criminoso e, por vezes, devido a um ainda mais raro talento, a sua vítima?
O autobiógrafo é a vítima do seu crime.
Melhor verdade, porém, é que a única graça concedida ao criminoso é o seu próprio crime.
Estou só: escrevo.
A alegria de escrever.
A temperatura, a velocidade, a cor das palavras — a maneira.
Latejam e respiram.
Dormem e despertam — andam.
Olham para a nossa ciência e para a nossa inocência.
Amam-nos.
Descobrir o seu sistema de cristalização, ver como a luz se refracta através delas.
As montanhas deslocam-se, pela energia das palavras, aparecem pessoas, animais, girassóis, plantas negras, lugares negros — e o sol, pela energia das palavras, cria-se o silêncio, pela energia das palavras.
année par année sont des années sans années
pas par pas sont des pas sans pas
Uma notícia de jornal: uma estátua em granito, com mais de 2 metros de altura e pesando meia tonelada, desequilibrou-se e tombou sobre o escultor que a tinha feito, esmagando-o.
Porque não é assim: o homem pesa 60 toneladas, mede 22 metros de altura e 24 de largura, e ocupa uma superfície de 70 metros quadrados — é em aço inoxidável.
Escrever é perigoso.
(…)
Sim — no entanto, já me disseram isso: que eu devia ser paciente.
E os que mo disseram foram tão pacientes, pelo seu lado, que apodreceram.
Quanto a mim, tenho pressa.
Porque eu penso que vou morrer, e então como posso ser paciente?
Gostaria de escrever o livro de que tenho medo, mas os meus dias, afinal longos, são ameaçados pela esterilidade.
Nada disto é fácil.
Suporto mal a carga das experiências e inexperiências: um homem, bela fábula também para apodrecer, e (desta vez) depressa.
A minha convicção era esta: eu esgotara a cidade.
Então fiz a mala e dirigi-me para o norte.
O norte era um espaço organizado segundo outras regras, de certo modo opostas às da cidade esgotada.
A experiência que possa ou julgue ter apresenta-me o norte como um estilo ao mesmo tempo rigoroso e livre, onde as primeiras qualidades são talvez a verdade, a pureza e o esforço.
A minha vida na cidade orientava-se pelo princípio da dissipação.
O facto que eu fugia de admitir, isto é: que o livro me perseguia, o livro aterrador que eu aspirava escrever, para que fosse a minha purificação — seria colocado, o livro, o facto, seria colocado, no norte, numa nova perspectiva.
Sim.
Já me não equilibrava nas linhas do antigo estilo.
Havia peste na cidade.
Suponho que um perfeito desamor se estabelecera entre mim e os dias.
Repugnavam-me as casas brancas, a cal martelada pelo sol, e o rio — as grandes águas pesadamente luminosas.
Era a peste.
Mas a peste não é só esta face quente e branca que confunde o poder e a delicadeza dos pensamentos.
O sul comporta as noites aparentemente plácidas, de que os dias vazios são uma ambígua anunciação, onde um furor sensual empurra à embriaguez, à alegria dramática — exigência de atingir depressa os limites.
Eu vacilava então entre diversas pistas, convencido de que o ardor me guiaria ao melhor lugar, quero dizer: à exaltação mais alta.
Onde me conduzia o livro, o tema, aquela perseguição?
Que espécie de morte me vigiava — terrível e salvadora?
Em pequenos escritos de uma crueldade minuciosa mas lateral, eu fazia perguntas, e do outro lado aparecia o norte, com a fascinação da sua luz imóvel.
Era a sua fábula o que eu deveria aprender: descobrir o seu prestígio inocente.
E nessa fixa claridade desabrochariam os meus obscuros bestiários — o livro.
(…)
O livro, o livro.
Nos dias nevoentos fecho as janelas, acendo a luz forte, e deito-me no tapete.
Leio ou penso.
Ou então fumo, enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem, e as mais pesadas descem e as mais leves se tornam pesadas, até ser impossível destruir o silêncio.
É fascinante, debaixo de uma luz que brilha tanto.
Lá fora, a terra — a terra das criaturas que se aproximam umas das outras, se tocam e falam.
O silêncio é sólido, iluminado por cima, aquecido pelos lados.
Durante seis meses fumo e leio, estendido no tapete.
Depois chega o verão, e subo à montanha, e vou para o mar.
Rebento de sol e água, do odor a terra quente e agulhas de pinheiro.
Estou tremendamente forte.
Bebo vinho.
Uma noite começo a escrever.
Tenho uma memória: nada foi esquecido.
Vem adequado agora a um vivo sentido de expressão.
Feliz, eu caminho para o esgotamento, nesses terríveis dias da fecundidade.
As pessoas perdem o nome, os acontecimentos libertam-se do seu movimento centrífugo: fica um núcleo cerrado de significações.
Inspiro-me na minha alegria, na morte acumulada.
Vivo sobre um doloroso e minucioso sentimento de masculinidade — como se isso fosse uma doença.
Poderei dizê-lo: inspiro-me no que é uma força e uma terrífica fragilidade, diante da lembrança e do esquecimento.
Depois: um ritmo, uma libertação.
Há dentro da gaveta uma rima de folhas escritas de ambos os lados.
Escrevi-as para os sombrios tempos do esgotamento.
Eu sou — e ali está a minha prova.
Dias, dias, noites inteiras — sobre o tapete, enquanto a chuva, o sol, o vento, o mundo.
Tempo consumido por uma tranquilidade imóvel.
Mas o bolbo fermenta.
Começo a andar em volta do quarto e a sair do quarto.
Sim, sim, digo eu, sim.
Ando de um quarto para outro, fechando portas, voltando atrás para abrir portas.
Depois paro e fumo diante das janelas.
Eu, diante da noite, com as mãos cobertas de sangue.
Eu, cheio de medo.
Irrisória medida pessoal: comida, urina, fezes, esperma, suor.
As unhas e os cabelos que crescem.
E a noite adiante, atrás, por cima.
Uma distância avassaladora e inóspita.
Desamor, crueldade, sensibilidade na criatura, na estranha criatura coroada com a sua comida e as suas fezes.
E sangue nas mãos, não há lágrimas — masculinidade, podridão fria.
Os papéis são um motor, trabalhando ininterruptamente; os papéis trabalham pelos dias dentro e no meio da noite.
Um tremendo motor.
Acordo de madrugada para ouvir a trepidação do motor.
Comunica-se à mesa, e da mesa ao soalho, às paredes, e a toda a casa.
É uma força espantosa.
Divago pela casa, bêbado de hesitação, dissipo-me em passos, mergulho em sonos brutais.
Uma manhã, caminho debaixo de árvores frias.
A terra trabalha à minha volta, interior e silenciosa, o mar vibra sob um céu extenuantemente liso.
Enfrento este calmo sonho do mundo, eu — o homem exaltado.
O meu poder é profundo e obscuro.
E então canto.
É uma canção essencial, ingénua — desalojada dos labirintos da ciência.
Empunho essa arma inocente, atravesso com ela meu ser dúbio, o vocabulário das contradições.
Sim, sim, penso eu, sim.
Talvez a alegria comece nesta terrível purificação.
Vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e disseram: porque fizeste isso?
Pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Pensei: quem sou eu para que me ataquem as vozes?
E o sangue vacilou na minha carne, as mãos tremeram, e a minha boca estava gelada.
Porque eu sabia quem era — conhecia-me.
Que fiz eu?, perguntei, e eles olhavam-me com a sua terrível melancolia.
Vieram ter comigo numa rua de não sei que cidade, e quem sabe se eu era puro?
Tinham caras ferozes e dolorosas, e queriam conhecer a razão por que eu fizera aquilo.
Olhei em volta — e apenas uma noite sufocada pelo nevoeiro, o rumor apenas do vento arrastando papéis velhos pelas ruas.
Era uma vez um lugar — pensei — onde os pássaros apanhavam insectos e os cravavam nos espinhos dos cardos selvagens.
Era uma vez uns pássaros que cantavam, enquanto os insectos agonizavam enterrados em espinhos brancos e duros.
O seu canto era belo.
E então, voltando-me para aqueles rostos amargos e cruéis, perguntei: quereis cantar?
E eles sorriram, como quem sabe, e disseram: porque fizeste isso?
Serei um inocente? — isto, só isto o que me acudiu.
E pus-me a andar, enquanto eles me seguiam quase sem ruído pelo meio do nevoeiro.
De súbito, percebi que eu nada sabia, nada, que a minha ciência era inane, e me limpava de toda a culpa.
Estremeci de alegria e parei voltando-me para eles, e perguntei, radiante: que fiz eu?
Um deles avançou para mim e passou a mão direita pelo meu rosto, numa carícia leve e, ao mesmo tempo, investigadora.
Recordei todo o tempo inútil que vivera, e aquilo que opusera ao mundo, e pensei: como hei-de morrer, com que espécie de amor, de louvor, hei-de eu morrer?
Já sabia então toda a profundeza do meu crime, e como o meu espírito era frágil e cruel.
Terei cantado alguma vez? — perguntei, e aquele que avançara até mim recuou para o grupo, e todos me olhavam.
Ignoro em que cidade pode o nevoeiro correr assim pelas ruas, e deixar à volta dos rostos um espaço branco onde uma luz difusa trema longamente, como se não houvesse tempo e o peso incalculável das presenças fosse irremovível.
Vieram ter comigo nessa inexplicável cidade e, enquanto o nevoeiro passava, olhavam-me implacavelmente, conhecendo o meu medo, o ponto instável onde inocência e crime se equilibravam no meu coração, e disseram: porque fizeste isso?
Eu sorri.
Decerto, comecei a dizer.
E de novo reparei que os rostos escapavam ao nevoeiro, quase brilhando na massa escura e gelada da noite.
E o meu rosto, brilharia ele também, estaria como que suspenso na noite, seria um rosto implacável?
Como recusar que eu sempre me preparara para a morte do mesmo modo que se prepara uma vingança?
Decerto, disse sorrindo, decerto houve um erro qualquer, porque eu não posso ser procurado.
E recomecei imediatamente a andar.
Sim, isto é um lugar, isto é uma noite, mas há outros lugares e outros tempos.
Há uma libertação, algures, num tempo que não sei, mas que existe.
E eles seguiam-me, e tanto fazia que eu caminhasse depressa como devagar, porque se mantinham à mesma distância.
Ando à procura da minha velocidade, mas o que é isto, que é procurar a sua própria velocidade, se aparecem vozes com uma pergunta fora do tempo e dos lugares?
Há um erro, gritei, e enfrentei-os, há um erro, um erro.
E então um deles avançou para mim e passou a ponta dos dedos pela minha boca.
E não sei se eram os dedos que tremiam ou se era a minha boca, e não sei porque tremeriam os dedos ou tremeria a boca.
Ele afastou-se devagar, e eu perguntei: que fiz eu?
As ondas de nevoeiro abraçavam as figuras imóveis e o vento arrastava jornais velhos.
Os rostos continuavam a palpitar no ar frio.
Um dia chegará a luz.
Um dia correrão as águas, e as plantas sairão das trevas com a chama branca das suas flores, e alguém louvará o renascimento da vida.
Um dia o homem estará nu e inocente.
Então reconheci os seus rostos atrozes de ressuscitados, e aquela voz que irrompia do tempo e violava a sua qualidade mortal, para dizer: porque fizeste isso?
Quem sou eu para que as vozes me ataquem?
Porque fizeste isso? porque fizeste isso? porque fizeste isso?
Ah, um pouco de paz, um dia de paz, apenas um dia, para que saiba ao menos a qualidade da minha culpa.
E um deles avançou e deu-me um beijo no rosto, e depois recuou, e depois recomecei a minha caminhada sem propósito, e depois senti que a face me queimava no sítio do beijo, como uma chaga.
Era uma rua enorme, estreita e varrida pelo nevoeiro húmido.
Eles andavam atrás de mim, quase sem ruído.
Talvez a inocência seja mesmo a minha verdadeira vocação.
Que espécie de ciência terão eles, para fazerem tal pergunta?
Era uma vez um lugar onde pássaros terríveis cantavam inspirados pela agonia dos insectos.
O seu canto era de uma beleza inocente e parecia louvar a própria vida.
Há um erro, disse eu, e parei para olhar as caras brancas e amargas.
Quereis cantar?, perguntei, quereis alimentar-vos da minha inocência?
Então um deles destacou-se do grupo e veio para mim, cambaleando como um ferido, e depois tomou-me as duas mãos nas suas e levou-as lenta e apaixonadamente aos lábios, e comecei a chorar em silêncio, enquanto as minhas mãos ficavam entregues àquele beijo de um amor terrível.
Porque fizeste isso?, perguntaram os outros, dirigindo-se a mim.
E os seus rostos eram implacáveis.
O que estava junto de mim abandonou-me docemente as mãos e voltou para o grupo.
Disse: porque fizeste isso?
Um dia chegará a primavera, num lugar longe daqui, haverá homens e mulheres para louvar a vida, pensei eu.
E, virando-me para eles, perguntei: que fiz eu?
Ah, vieram ter comigo à noite, numa rua deserta, e pareceu-me reconhecê-los, reconhecer-lhes os rostos implacáveis de ressuscitados, e a voz, aquela voz triste e violenta de quem irrompeu do tempo e violou a sua qualidade mortal.
Porque fizeste isso?, perguntavam.
Mas nem eu avaliava bem a verdade da minha culpa ou da minha inocência, nem conhecia que espécie de sabedoria era a deles.
E caminhava pela cidade cheia de nevoeiro, e eles seguiam-me e às vezes beijavam-me apaixonadamente as mãos, e eu dizia: que fiz eu?
Se acaso eu pudesse pensar na morte, isso era como uma vingança, e parecia que eles sabiam tudo.
De nada servia que eu protestasse existir um erro.
Mostravam-me o seu amor demoníaco, e acusavam-me até eu sentir que tudo vacilava dentro de mim.
Talvez agonizássemos todos e todos nós esperássemos cantar, movidos pela agonia alheia, talvez estivéssemos ligados por insondáveis tramas de inocência e culpa, e as vozes fossem um obscuro esforço de libertação.
Eu parava e dizia: mas que fiz eu?
E um deles avançava para mim e encostava o seu rosto ao meu e afastava-se.
E depois eles perguntavam: porque fizeste isso?
Quem sabe?, talvez fosse muito rudimentar toda a nossa sabedoria de crime e inocência, e o amor e o medo enchessem o nosso coração, e assim caminhássemos pelas trevas com os rostos brilhando ao alto — dolorosos, implacáveis e doces, doces.
Quero recordar passo a passo
a viagem que não fiz
quero recordar aquele abraço
que não dei
perguntar ao tempo
se marcou a linha
que não risquei
e se o traço que ficou
é a matéria
e com a antimatéria deu vida
ao planeta que habito.
Quero saber
do beijo que não dei
e perguntar ao tempo se voltou a marcar
a vida que não planeei
a conta que não fiz
a corrida que não acabei
e se o homem feliz
necessita de viajar em torno de outra galáxia
para construir a dignidade humana.
Agora que sou máquina
viajo com motor
falo por computador.
As calorias são poucas
e nenhumas a transmitir
modificadas as sociedades
todos de memórias apagadas.
Passados todos os tempos
porque o sol existe
o Homem há-de continuar
a construir a sua felicidade!
E tu que me lês serás o Homem Novo
o sol está mais contente e as luzes
as luzes divinas são o próprio HOMEM.
Março de 2001, 3ºmês do século xx1 e do 111 milénio
José da Cruz Boavida
Ganhou o 3º Prémio do concurso "Arte de Escrever e Fazer "Palavras e Letras, promovido pela Câmara Municipal de Sintra em 2004.
Corra para fora de Si.
Tente pensar por si próprio, sem ouvir a voz do alheio,
cuidado para não entrar num estranho devaneio
Idéias solidas podem de confundir,
ai então é hora de parar e agir.
Parar de pensar e agir é cair no modismo,
é olhar para baixo e enxergar um profundo abismo.
Idéias aqui e ali não param de se fundir,
corra para algum lugar talvez irá conseguir....
Conseguir o que , não adianta fugir,
fugir com artifícios que a lei não cansa de proibir.
Felicidade aparente
se estas linhas fixou em sua mente
Tu fazes parte desta gente.
rogerioalcolea@gmail.com
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Morri
Aqui gostaria de estar,
Neste globo terrestre já não posso mais pisar
Estou só,
minh'alma sofre como as provações de Jó.
Somente minh'alma é que pode se pronunciar,
o meu corpo num lindo jardim f lorido
eternamente a descansar.
Neste mundo já não faço parte,
o meu nome está gravado na sepultura
como se fosse arte.
Sentimentos ainda posso sentir,
lembranças da minha via terrestre,
se fosse pintar um quadro não conseguiria colorir.
O meu cadáver duro e frio,
fechado numa caixa que alguém um dia esculpiu.
Um conselho eu dou para os que possuem um tabernáculo carnal
Procure praticar o bem
evite certamente o mal.
rogerioalcolea@gmail.com
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Autopia de ser um Servidor Linux
Bytes e bytes de vivências,
Gravadas num enorme hard disk.
Às vezes buscando na memória cachê
Pequenas idéias, pequenas lembranças.
Talvez com bad block devido ao stress,
corriqueiro do dia a dia.
De tempos em tempos um descanso na fazenda,
Ouvir os sons dos pássaros, estágios de uma desfragmentação,
E estar pronto novamente para produzir e produzir.
Os anos se passaram é a hora de upgrade,
Apagam-se memórias permanentes e pequenas recordações,
restam apenas um gabinete , um flopy
e um cd-rom que raramente consegue ler algo.
Ou melhor, não resta, lá no fundo de uma prateleira
A fim de ser reutilizada partes de seu conteúdo.
Quem sabe uma nova existência na louca utopia de ser
Over clockizado com um software revolucionário,
Rodar linux e virar um servidor.
Rogério Thiago Alcoléa- Aprendiz de Poeta
rogerioalcolea@gmail.com
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Desempregado.
Estamos ai, a escolha é sua
bem vindo a vida, bem-vindo a rua.
Para expressar o que sinto de parábola usarei.
Minha carreira, uma viagem
para que lugar não sei.
Vi muito da janela deste trem,
belas paisagens, belas ruínas.
Pessoas gritando,
outras falando amem.
Desta viagem apesar dos pesares,
As paisagens pretendo levar,
As ruínas, muito obrigado aqui irei deixar.
A bagagem me desculpe por direito levarei,
Dentro dela todo conhecimento e amor que cultivei.
Me perdoe.. se magoa um dia deixei,
é para você essa linha com carinho dediquei.
O trem continua, minha parada é aqui,
como tudo na vida, hoje tenho que parti.
A uma nova viagem, buscando seguir,
com ética e dignidade usando o que aprendi.
rogerioalcolea@gmail.com
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Oh! Elipse que me inspira.
Traz-me enfastia não poder observá-la de perto
Es tão linda Oh! Elipse incandescente
Deretes o calor desta escuridão.
Não temo o breu que te circunda.
Olha a orbe e não te encalistra
Antes só do que cheia de indivíduos,
pavoneando suas pequenas conquistas.
Solidão não, aqui no planeta azul,
um panegírico incessante a tua perfeição.
Ingênua quem sabe, olho límpido,
não conheces a maldade dos seres,
que a louvam.
Talvez seus dias contados,
Como formigas que descobrem o doce,
hão de descobrir algo para sugar sua alma,
e ofuscar seu brilho.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sistema
Reprodutores de um sistema falido,
Que não nos leva alugar nenhum.
O ideal é a revolução ,
Para chegarmos num bem comum.
O que fazer para mudar?
Se a massa acomodada com suas idéias
nos deixa a desejar.
Capitalismo a elite sustentando o egoísmo,
miseráveis procurando no lixo dos ricos
algo para saciar a fome.
Pessoas matam para adquirir
o dinheiro fabricado pelo homem.
A elite esbanjando seus bens
que foram adquiridos sem sacrifícios.
Seres lutando para ganhar um salário
só para sustentar seus vícios.
Ingratidão
pessoas vendendo o corpo para ganhar o pão.
rogerioalcolea@gmail.com
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Mundo medíocre.
A lucidez me padroniza a mediocridade deste mundo.
A embriaguez me abre uma única janela que me faz sair deste mundo medíocre.
A confusão de sentimentos em sintonia com o sorriso de um alcoólatra transmite para os seres que os observam uma certa felicidade disfarçada de angustias reprimidas.
Tudo para sair do mundo real, ou apenas para esquecer as punhaladas provinda da ganancia que nos rodeia
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PENSAMENTOS NA ESTRADA
Sozinho nesta longa estrada,
tento mas não consigo pensar em nada
Turbilhões de pensamentos nesta caminhada,
cumprirei esta jornada
Sorri sozinho com meus próprios pensamentos,
são estes blocos de idéias
que vão e voltam com o vento.
Parece que penso ainda como criança,
com mais experiência
mas sem muita confiança.
A brisa levemente fria
paira sobre meu corpo e me arrepia.
O cheiro da natureza
me faz entrar em sintonia
com esta magnifica leveza
A beleza da natureza
entra em extremo contraste
com idéias e incertezas
Questões não respondidas
mesmo assim não deixo de apreciar
esta linda vida.
rogerioalcolea@gmail.com
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Capas Negras
Não sei porque insisto em viver,
o mundo não e mais aquele
quando buscava crescer
Poeiras sobre pessoas desmerecem
a raça humana
Capas negras envaidecem
camuflando o bacana
Desaparece entre muitos
a igualdade desigual
Faz com que leve a vida
magoando atrás do mal
Objetivos traçados
doa a quem doer
Capas negras vai sangrando
até a alma morrer
Gostaria de voltar, a infância sem igual
Onde sorria puramente
onde não enxergava o mal.
Fecharei este baú,
lançarei a chave ao abismo,
deixarei dentro dele todo ódio e egoísmo.
Mas também não sorrirei
não tenho razão para tanto
Talvez um dia rindo,
embaixo de um manto,
deixarei me levar pelo ultimo canto.
O azul do arco íris serei.
Quando olhares para cima
meu sinal deixarei.
Serei o símbolo da Alegria, Paz e Amor
Não haverás capas negras , não haverás dor
rogerioalcolea@gmail.com
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Numa praça em Piracicaba.
Problemas sentimentais
visão a escurecer
de pé não estava mais
sem muito saber.
Sentado ali estava
vários seres ao seu redor,
e querem saber...
- Família?
- Alguém morreu?
- Fez por merecer?
Com a visão ainda
escura
Sua pronuncia calada
seres desconfiam que se foi
sua verdadeira amada.
Enquanto um evangélico
grita em seu sermão
ao olhar aquele ser
vou-lhe fazer uma oração.
Sobre a cabeça sua mão
palavras fortes e de consolação
Perguntas ainda são feitas
respostas ainda não
O guarda que ali estava disse:
- Cumpri minha missão.
Ao levantar o indivíduo que tinha
caido no chão.
O pregador despediu-se
até logo meu irmão.
E eu que ali observava
Voltei para o serviço
Sei lá porque escrevo
Não tinha nada a haver com isto.
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Reflexão do viver.( a pintura é a mesma de sempre )
Um ano se finda nada se muda,
pessoas eufóricas, outras pedindo ajuda.
O que terá de tão especial
na entrada do novo milênio ?
Evolução, nada estagnado ,
Para compreender esta transformação
não precisa ser intelecto nem um gênio .
O que diz respeito ao ser humano,
muitos regridem e muitos evoluem na arte da vida.
Enquanto uma família feliz enriquece,
milhares de pessoas se sacrificam em sua vida sofrida.
A vida é um quadro cravado na parede
que algum dia alguém quis pintar.
A pintura é a mesma de sempre
só muda a forma de pensar.
Pessoas sacrificam outras,
até fazem pôr merecer ...
Se buscas a felicidade, cultive o amor
E verás que a alegria está dentro de cada ser ...
rogerioalcolea@gmail.com
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A felicidade nas pequenas coisas.
A massa cinzenta entra em erupção,
a alma vaga sobre as nuvens.;
Saltará lá de cima, melhor não .
Reflito na minha vida terrestre,
valores, tabus, bloqueios metais,
recordo nos conselhos do mestre.
Como é bom o agora,
momentos que não voltam jamais.
A brisa passa e leva-o embora.
No meu ser habita uma extrema felicidade,
gostaria de fazer feliz toda a humanidade.
Recordações passam sobre minha mente,
Coisas , cores, lugares, sons e gentes.
Um flash do meu passado ,
uma infância bonita e alegre,
fraternidade e amor sempre ao meu lado.
O tempo apaga a minha vida.
Infância , adolescência não serão mais vivida.
Temos que viver sempre com emoções ,
são gestos simples que marcam nossos corações.
Um sorriso, um olhar, se tu deres valor ,
significará mais que uma noite de amor.
rogerioalcolea@gmail.com
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A Tristeza em teus olhos.
Tio me dá um trocado,
seus olhos descrevem a tristeza
de um garoto mal tratado.
"Deus" lhe pague , muito obrigado
as vezes para comer o pão
as vezes para sustentar viciados.
Sua mão é estendida , tristeza em seu semblante
irmãos passando fome, drogas , misérias
mesmo com tudo isto a vida leva avante. .
Imagine o coração deste ser machucar,
ao ver você o vidro de seu carro fechar.
Se tu não pode ajudar ,
de apenas amor.
Fale uma palavra amiga
com certeza darás valor
Não quer apenas seu dinheiro
que tu gastas em abundância
Quer Ter uma vida digna
E aos seus irmãozinhos
dar uma boa infância.
Seus olhinhos encheram de lágrimas
ao escutar uma engratidão. . .
Ao pedir ajuda no semáforo :
- Vai trabalhar vagabundo
- Para mim você é ladrão.
Do mesmo jeitinho que estes garotos pedem
Peço para ti agora :
Faça o bem enquanto é tempo pois um dia
Desta vida irás embora.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sonhos.
Sonhos se confundem com a realidade,
Sonhos bons , sonhos ruins,
sonhos que expressam desejos que estão dentro de mim.
Sonhos sem pré conceitos, sonhos que
expressam nossas verdadeiras essências.
Sonhos que representam nossos íntimos
que nos mostra nossas carências
As vezes me pego sonhando acordado,
sonhando sobre meu futuro ,
tentando enxergar por detrás de um enorme muro.
Quem somos nós para sonhar ?
almas fracas, praticamos injustiças
e temos intenções ingratas.
Mas não podemos deixar de sonhar ,
pois sonhar nos trás bem perto
desejos e conquistas difíceis de se concretizar.
rogerioalcolea@gmail.com
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Tua alma Transparente
A transparência de tua alma
em teus olhos não cessam de cintilar
Meu ser procura em teus lábios
saciar a minha sede de amar.
Tua pele aveludada
com sinceros toques, por mim é acariciada
Se pudesse congelar,
congelaria os teus beijos e abraços,
nestes momentos magníficos atariam
em nós eternos laços.
Não consigo deslizar em tais linhas
A magestosidade do que estou sentindo
Sinto o meu coração pulsar,
entoando um lindo hino
e a cada sorriso teu sobre o horizonte
este hino vai fluindo.
Em teus braços me acalmo do mundo moderno
Minh'alma a levitar gostaria de ser eterno.
rogerioalcolea@gmail.com
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O ritmo do amor..
As pálpebras se fecharam
O ritmo do coração se eleva
Como naquele instante mágico
Retratado por Adão e Eva.
O sangue se flui , de uma forma jamais fluida
Sobre o corpo deitado que ali estava
Arrebatados para a dimensão do amor
Ali nada nos faltava.
Sobre uma sinueta uma escultura divina e macia.
Com os olhos abertos desacreditava
Na magnificência do que via.
Meus lábios sobre teu corpo
Deslizavam em demonstração
das grandezas de sentimentos
que detenho em meu coração.
rogerioalcolea@gmail.com
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Sinto Saudades
O antes sempre será
Melhor do que o agora.
Momentos atrás maravilhosos
Outrora , foram embora.
Loucuras insanas
Êxtases de sensações
Talvez ilusões
O que já foram emoções
Lições,
Escorregões,
Regressaria?
Com certeza,
Impares gozaria
O meu ser invade,
Saudade
rogerioalcolea@gmail.com
##############################################################
Verdade?
A verdade não existe.
Existem mentes doutrinadas a pensar
Da mesma forma causando sensações
Disfarçadas de uma veracidade coletiva
Vida , Grande Mentira
A cada verdade , duas mentiras se cultivam
O que colhera?
Regresse no hoje
Começaste a mentir para ti mesmo
Ao levantar , reproduzindo mentiras alheias
Maltratando seu próprio ser
Colherás o que plantaste
Talvez sem merecer.
Sofrerás muito
Quem sabe
Estágios do aprender.
rogerioalcolea@gmail.com
##############################################################
Euforia Musical
Angustia no ser
Talvez merecer
crescer, status
aparecer.
Vocação presente
Pulsar ,
ritmo ausente.
Querendo sair , sons,
claves, musicas, tons.
Vozes gritantes, fãs
Criticas e jogos, clãs.
Alegria fantasiosa
Dar o que está guardado
Sair da alma.
Sem ser crucificado.
Mostrar todo talento
Cantar, pular ao relento
Lual , flauta , violão
Guitarra ,Baixo, Bateria
Euforia, Euforia , Euforia
rogerioalcolea@gmail.com
##############################################################
Sede de Paz.
Acordei de um sono profundo,
deparei com o mundo real
era bom quando eu sonhava,
ter acordado foi o meu mal.
Agora sofro pôr almas alheias,
No meu corpo circula um sangue
Frio que pulsa sobre minhas veias.
Sensível com tanta destruição,
Posso lutar contra " isto " mas lutarei em vão.
Fico olhando para o relógio
vendo os segundos se movimentar,
a cada movimento do ponteiro
um corpo estendido no chão
que não para de sangrar.
rogerioalcolea@gmail.com
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Dê graças ao divino.
Olho para cima e observo o caminhar das nuvens,
lindo magnifico todos temos o direito de apreciar
Seres, montes e montanhas, brisa pássaros a cantar.
Pare um instante e valoriza a visão que tu tens ....
A felicidade se valoriza na simplicidade,
se tu quiseres muito enfeitar,
pelos vão de teus dedos a mesma irá escapar.
Tolos são aqueles que buscam alegria nos bens materiais ..
Um dia todos partiram, restará nada mais do que uma vaga lembrança, e nossos corpos serão consumidos pelos animais.
Escrevo em vão, coisas minha,
feche os olhos e graças a luz divina,
de estar podendo ler e decifrar tais linhas.
Nos momentos difíceis da vida temos que manter a calma
Isto fará que preservemos a saúde da alma.
O melhor remédio para canseira é o descanso
para a raiva um coração manso.
Para o ciúmes a confiança
Para o ódio a tolerância.
rogerioalcolea@gmail.com
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Eis que levitava..
Eis que levitava
com os olhos fechados enxergava
algo que a principio desacreditava
No mundo não mais estava
Minha vida terrestre ali se findava
Maravilhoso o que contemplava
o mundo em forma de miniatura eu observava.
Assim pude entender a essência de quem liderava.
Pude compreender a divindade do criador
que tanto nos amava
Muitos seres pude ver
Alguns praticando o bem
outros não fazendo por merecer.
Alguns preocupados com o porquê da existência......
Outros imitando o alheio sem querer saber de suas essências.
Outros pensando apenas em trabalhar ,em dinheiro ganhar
Esquecendo as maravilhas que estão ai para contemplar.
Triste fiquei .....
Os seres humanos não valorizam o Redentor
Fanatismo ,rituais sem valor.
Em busca da ganância, almas sacrificadas
Não foi em vão que seus pés e suas mãos na cruz foram cravadas
Agora pare e viva!
A vida é uma só , não seja digno de dó.
Valorize cada ser,
cada pôr do sol e cada nascer,
Valorize uma flor.
Dê para receber amor..........
rogerioalcolea@gmail.com
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Dispersão Mental.
A vista enubada
Vozes, múrmuros, tons
Frases pronunciadas que entram e saem
Sem nenhuma edificação
Sem artifícios , sobriedade total,
apenas cansaço e stress do mundo atual
Apenas o corpo
a alma está muito longe daqui.
Aonde será que ela estará?
Tentando fugir?
Assunto interessante ,
atenção nula,
viagem ao além do inexistente.
Mente vazia
A emissão de um eco no horizonte
Que se perde na minha insignificãncia.
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Amor turbulento
Promessas impossíveis prometi
Era sincero não fingi
Me entreguei
meu coração e meu corpo te dei
Não pensava
que este amor se minguaria e se acabava
Eu agora sofro
neste barco já não embarco mais, e nem em outro
Talvez momentâneo seja
E com o passar do tempo o meu coração te deseje
Nunca mais amarei
no meu coração, devido a desi lusão
espaço jamais abrirei
Me martirizo por momentos lindos não aproveitar
jamais pensava que este amor ia se acabar.
Não posso pensar em tua ausência
sentimentos ruins tocam o meu coração
deixa transmitir a minha carência.
Uma incógnita no ar
Para não sofrer com esta desilusão
procuro nisto não pensar.
O amor é mais forte que isto,
se tu insistir
terei que desistir
e meu rumo prosseguir.
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Absurdo Môr.
Absurdo o que sinto pôr t i
Não esperava sentir o que sinto
a primeira vez que te vi
Algo não palpável
,¨sentimentos¨, a vida é inexplicável .
Se tivesse poderes guardaria
meus sentimentos e os teus
numa caixinha fecharia.
O que sinto pôr ti é muito bom
Jamais negaria.
É mais do que amor
não tinha mais esperança
que isto aconteceria.
Agora paro e reflito
nosso amor tem que ser infinito.
Se nós agirmos sempre corretamente
outros seres não terão nosso corpo nossa mente.
"Deus" valoriza a sinceridade e o respeito ,
se tu continuar a me amar e a me respeitar
te amarei sempre ficarás no meu peito.
A prudência e a base da inteligência ,
Somos e seremos felizes , basta ter paciência .
Imagine nós dois flutuando
altura as poucos alcançando.
Observaremos o mundo lá de cima,
veremos muito mais do que é visto,
Verás que o mundo é mal que não fazemos
parte disto.
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Acorde para a Natureza.
Temos que refletir no futuro de nossa nação
O que será de nós com tanta poluição
A hora é esta
Vamos salvar nossas florestas
Conhecemos a mãe natureza
Sabemos de suas maravilhas
e de tuas belezas
Preserve o que resta desta riqueza.
Para ver o que está acontecendo
com a nossa natureza, não precisa ter vivência .
Pessoas desmatam, poluem ,
acabam com nossa fauna com tanta imprudência .
Temos que fazer um minuto de silencio pôr dia
é nossa vida que está morrendo.
Haja paciência......
Com tanta destruição
não há como haver compreensão
Tem que haver conscientização.
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Degustação da liberdade.
No teu coração ,na tua mente não posso entrar
Se pudesse voltarei a te apaixonar
Nada é mais forte que o amor
por isto que sinto tanta dor
Que motivo tão forte
Te levaria a pensar na morte?
O meu coração morreu
O brilho dos teus olhos tu não devolveu.
Se tu pensas em amar outro ser
ódio fará o meu coração ter
Sentimentos ruins me domina
Na minha mente teu sorriso ainda me fascina.
Talvez aprenda a degustar a liberdade
sem amor apenas com amizade.
Sorrisos para manter as aparências
com as dificuldades é que adquirimos vivências.
Não sei mais sobre o amor
para mim estou fazendo um favor.
Para sair desta depressão lutarei com vigor,
é lutando que nos damos valor.
A muitos anos não me expressei
os sentimentos falaram mais alto e chorei
Se fosse nascer de novo muitas coisas não faria
curtiria bastante a vida e jamais me apaixonaria.
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Foi um Pesadelo.
Durmi ,
O relógio tocou e eu não acordava.
A paixão falou mais alto e por anos,
achava que te amava
Sonolento eu estava
Não sabia ao certo se meus atos te agradava
Deitado num colchão macio e aconchegante,
a rotina passou a ser um fato relevante.
Se não fugia se entregava ,
ai então o mundo para ti acabava.
Visões do mundo diferentes,
corações opostos, duas mentes.
Ninguém foi o dono da razão,
me feriu , partiu meu coração.
Já era tarde , então acordei
muito tempo perdi.
Refleti e conclui
Não foi bom
Apenas me iludi,
sofri.
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Reconquista
Queria também parar e pensar,
se tento refletir começo a viajar.
Não consigo finjo que não amo
e nem ligo.
A aparência pode enganar
Mas não cessarei de te amar.
Não me acanho de expressar o que sinto,
escrevo linhas sinceras e não minto.
Acho que assim simplesmente
Não irá acabar
Moverei montes e montanhas para te reconquistar.
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Frases fictícias .
A relação espaço e tempo,
nos obriga regras cumprir
Deixamos a essência
Alheios servir
Nunca chegamos ?
Aonde estaremos?
Nunca chegaremos..
O homem contra si mesmo.
Olhos medíocres
Cameras que perseguem
Em busca da verdade
Mentira de alguém.
Privacidade
nem nas profundezas do oceano.
Tua mente estará lá
acusando teu engano.
Não se deixe levar
Encare
Frases fictícias
Algo para se pensar.
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El espectáculo de la vida. |
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No meio da peça, aplausos e reconhecimento do publico |
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|
Acorde para a Natureza |
|
Temos que refletir no futuro de nossa nação |
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|
Verdade? |
|
A verdade não existe. |
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|
|
O antes sempre será |
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|
Cidade Maravilhosa |
|
Oh! Titulo absoleto. |
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|
Lagrimas de sangue |
|
Lagrimas de sangue |
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|
Cidade Maravilhosa |
|
Oh! Titulo absoleto. |
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|
Asas a um pássaro cego. |
|
Do que adianta voar, |
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|
"Deus Escreve" |
|
" Deus Escreveu". |
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Semeando a Poesia |
|
Escrevem pouco e dizem muito. |
rogerioalcolea@gmail.com
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Vertentes Musicais
A arte da combinação do som,
Suavidade, e ternura harmônica.
sucessões de sons agradáveis a audição.
Musicas das esferas,
capazes de vibrar constelações,
esferas celestes, estrelas e planetas.
Musicas, patrimônio de um povo, ritos e sons
remetem a focloridade.
Musicas sem destinos religiosos,
Profaníssimo.
Musica celestial, musica sacra dos Deuses,
Voltada a alcança-los.
Grandes peças sinfônicas,
centenas de instrumentos em sincronia,
em cima do que foi escrito.
A que sai da alma,
musica vocálica.
A quem se destina a tal,
musicante.
Quem musicocrafou, sons da natureza ?
Musicocrafar sons de um sentimento,
a tristeza de uma opera,
a alegria de um Axé.
Musicista todos nós,
Musicofilia a maioria,
Musicofobia, como pode existir!!!!!
Sem musica, sem essência,
Buscamos a perfeição,
Hiper-sensibilidade da audição,
Sermos sensíveis a diferença de um bemol,
a um sustenido.
Ao tempo de uma oitava de nota.
Musicalizar sentimentos?
Musica é arte, quadros abstratos que transmitem
Em cima de uma bagagem individual de cada ouvinte.
O que me deixa feliz talvez lhe trará tristeza.
Rogério Thiago Alcoléa)
rogerioalcolea@gmail.com
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Semeando a Poesia
Escrevem pouco e dizem muito.
Poetas são como o semeador que
plantam árvores sem saber que vai
descansar em suas sombras.
Sombras que aliviam o calor, sombras
que trazem sombras.
Poetas não possuem almas, são a própria
alma, são os próprios sentimentos,
buscam o porque daquela brisa,
o porque de tal sorriso,
o porque de tanta desarmonia.
Poetam não vivem!
Apenas descrevem vidas alheias, sentem
o imperceptível.
Poetas não choram, engolem seco, cristalizam
suas lágrimas, e as transformam em linhas.
Missão árdua, descrever o indescritível,
buscar a essência de sentimento de outrem,
talvez nunca sentido, talvez nunca vivido.
Poetas não envelhecem, petrificam,
imortalizam seus nomes e vivem para sempre,
deixam o que foi sentido,
e em cada leitura, um novo sentimento,
que fortalecem sua imortalidade.
rogerioalcolea@gmail.com
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Que venha a dor e anestesie tal sofrimento !!!!!
Íncola desta cápsula incolora,
Degustando o amargo de gariroba,
Furente pôr Ter que Ter, para ser
Minguando neste invólucro,
Encalistrado pôr estar ali.
Face para baixo, como quem observa
vermes embraseado,
horizonte solidão,
sem visão,
anelídeos na terra batida.
Difícil libertar-se,
embalsamado em plantas
leguminosas papilionáceas.
Contas de A até x,(dzeta)
para virar fagulha de um explosão,
Oferecer o corpo ao leu íntomo,
para que suguem seu sangue.
Quem sabe com tal moléstias a dor seja,
o anestésico para mingúes enraizada.
e costuram distâncias
sem máscaras
diz-se que usam da memória da luz
e dos tantos escombros
ao redor dos olhos
nos meus sonhos
ainda os lábios das mulheres incuráveis
onde vibram a desordem e a recusa
a mão de pedra
na mão
de verdade
acordo de noite como se as letras
fossem coágulos aborrecidos
pancadas estivais
maduras e primitivas
descobrirei o destino e faremos amor
manhã cedo
os gestos serão suficientes
um pouco a medo no fundo de si
onde as bocas se abrem
enquanto se tocam
existem sinais primitivos
onde escorre ainda o sangue
de quando me entregaste a cúpula do teu corpo
na boca ainda a luz virgem
onde a juventude
enlouquece de apressada surpresa
mostras canteiros ainda fechados
onde vais consumindo
o silêncio
ainda se ouvem os vales nocturnos
a escancarar
de gozo
basta que sobreviva e vá abrindo e fechando portas
no estrondo dos dias
direi sempre este é o precipício necessário
a nudez da terra mais faminta
são assim as margens do abismo
desde sempre
por aqui se movem todas as coisas
todos os coices e todas as promessas
conhecerei então a noite e o interior da noite
os beijos e os dentes da noite
no seu grande prodígio a conhecerei
sem que o saiba
anseio amar-te entre o delírio
e a penumbra
do corpo
há uma metáfora de carne
que um dia desvendarei
uma voz e uma sombra de calor
que se abre a todos
os beijos
na liberdade do corpo
a fulgurante lentidão do orgasmo
por isso nos contraímos
pela chama
que a pulsar nos contempla
a noite já me conhece
e a sua porta abre-se à espera das coisas
dos corpos
inocente o silêncio da noite
faúlhas breves e loucas
esmagam as sementes do gozo
mais fundo
húmido e frio o silêncio da noite
serei terra e a tua voz inteira
enquanto a vida nos arda no seu olhar
mais puro
aprenderei o tempo de tremor e alegria
onde seremos o pressentimento
da vindima
a boca e a língua em qualquer noite
como se fosse a primeira
e a última
dá-me a tua boca
nos segredos da tua nascente
do teu recanto de paz debaixo da tua cheia
se a morte fosse assim
seria implacável no amor da carne
escrevo da loucura da pedra nos gritos mais ténues
na explosão do sémen
por isso escrevo da morte
e da invenção da culpa
e da saliva dos beijos quentes
que despertam os sentidos mais puros
de mim serás a fonte e veloz é o desejo
e a fome
leia-se a paixão
Para que robustas sejam as suas raízes
mexeste por dentro
do mesmo abismo onde a vertigem incendeia
e onde é escassa a fraqueza
enquanto mergulhamos na estranha ausência dos sentidos
de qualquer solidão
preciso de uma palavra que defina o teu corpo
e a forma como levitas no meu
as sensações conheço-as mas não as desvendo
até que sejam o trigo e o marfim e os olhos do deus
no teu corpo explodem primaveras em espasmos
terríveis e belos como se a fome matasse e sorrisse
e a tua voz me beijasse e bebesse
no meio do fogo
quando me sobes e procuras
o quanto me assombras
nos corredores e nos gestos que inventamos
e o sussurro das palavras
que nunca dizemos
nasce um ramo de palavras
que te amam comigo
e respiram
libertas e ardentes do maior desejo
por dentro de ti os olhos são tímidos
no entanto uma aguarela
onde o vento avança acima de todas as noites
e são gulosos quando me abraças
lentamente na tua chama
onde me torno lança acima da rosa repentina
entreabres a luz no desatino dos corpos
percorro devagar todas as sílabas
do teu corpo
e serei ferro e lume brando
até que os gritos se escutem e o dia
seja imediato
no pulsar mais dentro de ti
e serei chama
de tanto de ti serei deus e o diabo
o amado e o amante
o sabor a renda
apetecida e branca
desarmada nas praias do teu corpo
naquilo que as madrugadas vivam
haverá sempre o nosso cheiro a barro religioso
que se embaraça e espreita
ainda acreditamos no enigma dos corpos
quando a excitação se anuncia
e nos esmaga o corpo
no corpo
até que eu seja a roca e o linho
o grito no grito
e se pressinta o silêncio repentino
continuamos virgens
neste desejo de invadir o teu mar
e na tua vontade plantar a vinha
os teus beijos
serão o regaço e o regadio
da minha força
existe uma luz profunda
dentro de ti
por dentro do teu poço
quando o mar se fecha e as vozes gritam
quando os corpos se agitam
quando o gozo nos desassossega
atrevo-me no teu corpo
como se um vento íntimo iluminasse
os mistérios da criação
sei que a vida cresce a cada espasmo
onde a carne e a boca
se tocam
nas tuas águas saberei a inocência e o atrevimento
no atónito poço que me abres
em molhado desassossego
namoramos ainda
devagar
e ninguém sabe dos montes
por onde cresce a vontade
mesmo que a água seja veloz
arderemos devagar
enquanto anoitece a virtude
da nossa paixão
no teu campo deposito a seiva
onde o luar cega
e os beijos causam espanto
deixa que anoiteça lentamente
porque grande é o lume
e o mar que nos espera
e depois fecha-o
para que me prenda
até que a manhã nos entrelace
e o sabor dos frutos
escorregue
nos muros dos corpos
um dia que eu morra
que seja uma coisa íntima
com o teu sorriso ainda nu
de bruços no meu peito
que o tempo escorra
no seu ritmo
sem que perturbe a paz
de tão grande alegria
poderei ainda sentir
o teu último calor
e o sabor
do beijo derradeiro
se eu pudesse escrever uma fábula
não falaria das trevas
nem do frio
nem das cidades ou de outros lugares
que se percorrem entre os dedos
e flores matinais
a mensagem seria a tua casa
de corpo tépido
e cheiro a alfazema
e por dentro de ti
um deus que acreditássemos
entre o beijo e a partilha
que os naufrágios de todas as virgens
satisfaçam deuses e víboras
que sejam a faísca e o orvalho
a gruta e o assombro abertos no seu tempo
que a sua água seja fértil
e os beijos apeteçam
e se repitam
que no sexo das mulheres exista vida
e frutos maduros
onde amadureçam as vontades
fundas
não sei como escrever do conforto do teu corpo
nem explicar o abismo de quando te inundo
e te respiro
diz-se o mesmo da vida
e da sua explosão
de gozo tão incógnito
mergulha a tua língua na minha
para que as nossas bocas sorriam
abertas de prazer
soubesse eu do tempo como sei do teu corpo
pudesse tocar-lhe
e trocar beijos na demora dos dias
acredito na memória dos dias mais jovens
tomara que o tempo me dê tudo de ti
o sabor a tâmaras dos teus seios
e o teu cheiro a folhagem viva
porque acredito nas marcas dos sonhos mais antigos
despes a roupa até que a tua nudez
olhe o meu corpo nu
aprendi a amar todos os segredos
do teu corpo
onde estremeces arquejante e húmida
até que o sossego se abrace
na paixão dos nossos corpos
ainda seremos
a criança e o pão quente das madrugadas longas
e dos lugares só nossos
as virtudes do corpo
onde o desejo grita e a boca explora
a labareda que ama e palpita
e se fascina pela tua água
procuro a tua lagoa quando olho a luz
onde pulsa o desejo
e a entrega
quero-te mulher e que estejas nua
na invasão dos nossos lugares
tão secretos
rosa aberta
e negra
do nosso céu
toca-me até que renasça
e deslumbre o teu chão
na minha queda
no deleite do teu ninho
em todos os nossos recantos
onde a alegria seja funda
num beijo de saliva
abraçada
devagar
antes que o corpo se espante
e o mar transborde
tão lento
que a inércia suplique
e o corpo goze
até que por dentro de nós
os suspiros se fundam
e abracem
não é difícil entender o silêncio
de quando me olhas
em quietude
somos puros no desassossego do desejo
e na recusa da pressa
quero a tua voz
o teu grito
o teu mar intenso
pergunto-me se deus compreenderá a inocência
e os espasmos da paixão
quero esta mulher
nos seus olhos vagarosos
no meu corpo
a boca entreaberta
enquanto me dispo
por dentro
quero o seu desatino
e a luz do seu poço
na sua nascente
quero-a inteira
Intensa
e vaga
gosto do sabor dos teus beijos
e de como eles respiram
por mim adentro
do pulsar do teu corpo
quando lhe toco
e o transgrido
e de quando me afogas
e sorris
nunca deixei que a memória
ficasse na distância
sinto no colo a tua oferta
quando apareces ainda jovem
sei das tuas mãos
e compreendo os sinais que acenam
e as noites maiores
excessivas as bocas
os silêncios
e o céu de orvalho
haverá sempre um poema a guardar-te
enquanto recebo o silêncio inicial
do teu corpo nu
por dentro de ti irei crescer no pensamento dos lírios
e na tua porta irás sorrir às raízes
que se adivinham
seremos o prazer do outro
porque é bom amar
e sentir a sede dos corpos
enquanto os nossos corpos se tocam
não haverá maior assombro
nem penumbra que nos trespasse
dentro de mim o teu silêncio ainda branco
amadurece os dons do gozo
na melhor lentidão
e hoje e amanhã
alegres são os campos
que sulcamos
como explicar as palavras
nas sensações do corpo
e o seu ritmo
a sua lucidez
escavando os sentires da alma
e quando as línguas se tocam
falar como se morresse
o meu corpo conhece os teus lábios
e o teu sorriso
quando nos inundas
sou então o teu lume
enquanto és
a minha casa
nunca me perco por dentro de ti
enquanto me olhas profundamente
sorris como quem ama
a bem-aventurada força que nenhum deus
explica
marinhas são as nossas sombras
e a porta que me abres
desfolhando o desejo maior
até que me rasgue
por dentro
um dia se fez carne
e prazer
no mais dentro de nós
e foi a noite primeira
do verbo fizemos gozo
e da carne a cama farta
cresceram gotas íntimas
entre relâmpagos
e gritos apaixonados
deus sorriu
porque era bom
e descansaram os dias
todas as sílabas acima do fogo
nos olhos
o corpo que irei beijar
até que desfaleça
e deus se descubra
por dentro da água
encontrarei a voz do teu sentir
quase inocente
e brando
por cima e por dentro do fogo
imóveis e profundas
como mulheres húmidas
na espera
e doces entre colinas
será delirante pensar em tão grande fogo
ainda te sobram sombras
e musgo por abrir
onde possa perfumar
o meu corpo
do teu desejo
nos teus olhos
o sorriso do orvalho
quando se abrem as noites
onde se escondem a seiva
e os gestos mais subtis
dirás que espere
o sinal do tempo certo
e serei quente
quente
na espera e no rastilho
não sei se respiro a pedra
se os passos me levam a ti
enquanto te despes
é impossível a frieza
quando tocamos o sol
por cima das tábuas
apenas sentir cada cheiro
e cada sabor que me ofereces
e me inundas quase imóvel
quase deserta
a tua voz na minha boca
o teu corpo no meu
até que as maçãs se perdoem
de paixão
toca-me
até que enlouqueçam as algas
e a nossa história seja luz
e prazer
continua a tocar-me
até se escutarem flautas
de tentação
grande
apetece-te
no templo da minha espera
sem que receies o tempo e as árvores
indiscretas
acordamos abraçados nas manhãs
banhados na força de nos querermos
de tanto querer
os novos beijos que inventamos
existe um fogo de tempo inesperado
que sobrevoa vales e abismos
até que me banhes os lábios
de todo o sol do teu corpo
por vezes acredito que sejas um espelho
onde me arrisco a partir
de voz aberta e esgotada
por dentro de todas as nuvens
nunca te esquivas
nem procuras o silêncio
das coisas vazias
porque te dás nua
de todas as tradições
conheço as chaves que despertam
a tua ventura
e todos os lugares do teu desejo
acima do silêncio
no teu corpo
atravessei os teus desertos
e em cada oásis encontrei os teus cabelos
mais lentos
a escuridão mexe-nos por dentro
e transforma em criança
cada um dos nossos pecados
de pétalas repentinas
abraças tudo o que me queres
e beijas os aromas mais densos dos nossos espasmos
serás o meu deus
na força do amor que te habita e no teu vazio de tortura
serás a seara e serás o fruto
onde deixarei beijos e todo o desejo de mais querer
irei descobrir todos os caminhos
até que sucumba
então serás chuva inquieta
no fundo da alegria
e serás tua
sendo minha
entendo o que me oferece o teu maior silêncio
no tanto que me dás
um silêncio nu e cheio
um silêncio amante
direi da tua alegria nos olhos
em cada beijo mais lento
e da tua voz breve
pedindo mais
quero descer nos teus vales e banhar-me
na ribeira que sustentas de tanto prazer
beijar-te nos lábios da alma
da vulva e demorar-me até que nos inundes
entre gritos e palavras ternas
na tua primavera me sustento dos melhores frutos
e o meu nome ficará gravado no teu sabor
não sei se é trigo ou tempestade
no teu corpo existe o verbo e a descoberta de novas paisagens
inteiramente és amante
e fortes são os ramos onde me agarro e sustento
agora sei como despertar o fogo e trazer comigo os teus olhos
para os beijar sempre que dormes
todos os dias serão quentes e cúmplices silenciosos
que dentro de ti irei demorar-me já submerso
és a árvore silenciosa onde se escondem os melhores frutos
e onde a tua mesa de sombra nos refresca enquanto a vida dormita
são breves os momentos que sorriem enquanto nos beijamos vagamente
ainda inocentes de memória até que as velas recolhidas
nos ensinem os segredos de tanta sede de amar
guardarei as pétalas que me abriste quando a flor de sol
prometia relâmpagos no deleite de cada toque
nos espasmos do teu corpo conheço a carne
inteiramente a reconheço no sal e no brilho intenso
enquanto te beijo as pálpebras num sorriso lento
para que cada instante cresça em golpes de vertigem
e queime até que a calmaria nos ensine o tempo certo
da melhor vindima
já não existem as rimas antigas nem o pai nosso se faz ouvir
nos corredores do céu mais próximo onde
nem sequer chove
onde nem sequer se escrevem canções bonitas
algo existe na disciplina dos dogmas que seja ruína
e nos sonetos que seja beleza
como falar sem metáforas quando os teus mamilos me acenam
e invadem sem que o desejo arda em desassossego
e sensações tão boas
ainda existem os lábios ligeiramente abertos e turvos que me perseguem
sem que me afaste e o teu segredo ainda me aguarda
ardente e húmido e árvores ardentes e fundas
para além da esperança
toca-me e seremos a raiz da vida renovada
descobrem-se os mistérios de todos os oceanos quando me debruço
sobre ti e nos abandonamos ao que houver em nós
descobrimos novos pomares que nos rasgam o silêncio
ignorando anjos e pedras e velhos traumas
o sangue dos navios antigos de quando se proibia o amor
e se acendiam as fogueiras
caímos no fogo impossível quando nos beijamos longamente
entre preces e terrores
então o teu corpo e o desejo terrível de o possuir
a fome e a sede do maior prazer
então o nosso corpo entregue ao outro
no consumar do pecado
se eu fosse deus serias amante
serias maria e paixão
e repouso no gozo da alma que na carne se exalta e excita
então serei febre e tremenda será a minha loucura
a obra e o autor inocente e louco olhando-te por dentro
nua
abraça-me enquanto te descubro nas erupções do corpo
tão grande a chama e a seiva
aos poucos
para que demore até às cinzas de tanto fogo
da cama o desenho do corpo nos seus declives no crepitar dos gritos
na cama que ainda pressinto e nos anima a continuar
deixa que eu descubra o amanhecer do teu corpo
no sabor das melhores castas
as palavras que eu disser serão espasmos num tempo incerto
adormeço na sombra do teu corpo enquanto sorris e o mar se acalma
o silêncio é uma rua íngreme por onde corres na exaltação dos pântanos
enquanto os girassóis vão abrindo o seu coração à luz
estás intacta no que sentes
enquanto durmo a tua voz percorre os meus véus
seja a carne fulminada ou o segredo mais ardente da minha força
deixa que beba de ti o vinho do melhor prazer da tua chispa
na minha boca ainda o eco das vozes extremas sem limites
nem vagares
das cinzas do teu vulcão que outros gritos se gritem
que outros silêncios se imponham que outras vezes se agitem
e outros ecos na tua boca se agigantem
na abstração dos conceitos mais correctos
vou tecendo o teu linho
e do nada se fará luz na sombra de qualquer dilúvio
o amor veste-se de todos os nus
na excitação soberba dos anjos anunciados e não haverá correria
que fuja desta paixão
no vinho do teu corpo me resguardo
onde explodem raios de respiração apressada
nascem flores de orvalho quando me humedeces do teu querer beijar-me
mais docemente
de branco pálido apaixonado
inundar-te-ei enquanto me agarras em novas palavras de mais querer
e quando se ouvir um brado não sossegues que o tempo
tempo ainda terá
porque nos damos inteiros até que o tempo se cumpra
escrevo o que as palavras queiram sem que procure
qualquer desespero
os espasmos são um instante onde se procuram rasgões
de vozes aturdidas
e mãos dramáticas que se agarram na emoção do gozo
escrevo porque respeito a fome e a sede e o som dos violinos
é áspero à solidão e todas as diatribes apetecem ao desassossego
que se transforma em força e dedos que martelam em golfadas diurnas de qualquer agonia
escrevo no querer a posse da palavra e na procura do gesto e da sílaba certa onde os significados se alheiem de estilismos e sejam fartas as línguas que se tocam
enquanto a tua boca se abrir
para que me beijes
e segredes os sonhos
que ainda me reservas dentro de ti
enquanto fores caindo no meu corpo
os choupais nos esconderem
e as tardes estremecerem connosco
agitarei as tuas margens
para que me sintas ardente
e extremo
então serás cama e serás vento
entre a voragem e a escrita
que nos sobrem as palavras
enquanto a respiração chamar por ti
e queimar suave no meu peito
grande é o desejo e é grande
e grande
sulco estreito onde deixarei sementes de paixão
branco é o espelho de nos querermos
e a luz que nos abraça
por dentro de ti
existem todos os poemas
por escrever
e neles existe o sangue
e o murmúrio materno
por dentro de ti
existe o fogo e o alimento
o golpe da água
que enlouquece a inocência
do corpo
existe o leite e o sorriso
mais puros
onde os dias sossegam
entre o grito e a memória
na vontade do abraço
de bruços no cérebro e no sexo
entre a boca e a razão crescem-nos raízes conscientes
somos a paisagem da carne
a água e a terra de todos os jardins onde namoramos
todas as noites o calor e a música
dos corpos colados num sentimento arrebatado
o poema na fogueira
entre o grito e o beijo amantes
não se aplaudem as flores por serem habitadas de cores
nem pelo cheiro que nos emprestam
não beijamos a música nem a palavra pelo rosto de deus
que nos mostram
também não te amo pelo sorriso do teu corpo nem pela voz
dos teus gemidos
mas os teus silêncios e um tipo de loucura que apetece
e guardo segredo
abres a tua madrugada até que me embriague
de todos os brilhos
e são assim os dias todos
reconheço a túlipa sedenta
sempre que estremeces
e ávida é a boca onde germina
não sei se me olhas ou se me invades
se me rasgas ou abraças
entre o escuro e o branco iluminado
é tremenda a descoberta
e sereno o conforto e a posse
nos teus gritos de prazer desesperado
conheço o teu corpo pelos dedos e pelo cheiro
no tronco das suas metáforas
acredito que sejas trigo virgem onde escuto os sons
da terra por semear
não sei falar da tua água por dentro
e do que me animas quando me olhas no teu branco repentino
conheço apenas as faíscas do teu peito quando me amas
e a tua caverna quando espera o meu abraço
mais rápido
e a beleza de cada raio que se desprende
dos teus olhos
e quando dizes que por dentro de ti
palpita tudo o que sou
agarra a minha voz para que escutes
a conquista das palavras
que escrevo
e as sintas dentro de mim
no poema e na canção de embalar
tudo de mim será teu
para que sintas o desejo grande
de abrires o corpo
e a alma
em ti deposito o meu nome
e uma rosa negra será a chispa
do maior arrebatamento
onde todas as palavras serão puras
e livres
a semente e o fruto das nossas raízes
serei o teu campo de cultivo
e o teu cárcere
onde farás crescer o prazer e a força
para que tudo de ti
seja meu
conheci a mulher no que ela tem de eterno
e no demolir das crenças
mais antigas
no que ela tem de primavera
e porque me dá a mão
a vida inteira
conheci a mulher porque me incendeia
e me descerra os olhos
no desejo que alimenta das suas janelas
conheci-a nesta alegria
de ser alimento
e cada palavra de ternura
quantas vezes te falei para dentro de mim
e disse coisas que já não sei repetir
por vezes os pensamentos são íntimos
como os nossos beijos mais saborosos
continuo a procurar a tua uva da nova vindima
e o teu reflexo nos meus olhos
nos meus lábios o barro mais puro e o brilho interior
da caverna
profunda memória da tua melhor chama
de lá dissipo a sede e arquiteto
a rebeldia dos corpos
sem que a loucura abrande para um breve
sossego
ninguém compreendeu o amor
quando passeávamos abraçados à chuva
nem o espírito dos tumultos
ainda jovens
viverei de ti a vida inteira
a força do desejo
e mais querer
onde conheça os teus olhos
e saiba cheirar o teu musgo mais recente
saberei das tuas janelas
por onde me espreitas e acolhes
para que me debruce
no mais íntimo do teu ser
por dentro do teu abraço mais forte
onde o sol e a água se enlacem
e se beijem
na melhor colheita
não escondas a revolta
pelo que a vida dói
onde o suor dos corpos
seja a seiva da terra
onde nasçam frutos justos
não escondas a revolta
pelo que a vida dói
de sol a sol é muito sol a bater no corpo
e enxada a gretar as mãos
muito pão mergulhado na sopa e vida aflita
como sonho ainda mergulhar em ti
companheira do maior sofrer
e da fome que habitua
saberei ainda amar no que resta do corpo
e terás o meu sorriso sempre que acordes as horas
e tudo o que nos dói
importa a luta
e recusar dízimos
nem que se descanse ao sétimo dia
nunca sei da sua voz
mas quero esta mulher que inebria
nos seus lábios existem espelhos de paixão
e as melhores vírgulas ao redor do sexo
gosto dos seus frutos
e da rosa enegrecida onde palpitam
pingos de renda jovem
as suas manhãs são lentas quando desagua
no meu corpo ainda sóbrio
na espera marinheira
da melhor maré
intrigas quem procura conhecer-te
apressadamente
sem compreenderem a simplicidade
a ternura assusta-as
acredito na luz
e na sombra que a persegue
porque nenhuma se rejeita
nem procura dízimos e bençãos
maior é a paixão que sinto
e sentes
a primavera dos nossos corpos
e o seu convite
que os teus olhos se fixem no futuro
e nos seus dias todos
de trabalho e conquista pelo que seja
enquanto a lena me sorrir
acredito na vida e nas pessoas
acredito ser possível construir
a estrada e a justiça
e todos os dias
a paixão mais bonita
danças sem a certeza de ser dia
e sem que lamentes os sinos de ninguém escuta
em todos os momentos
as portas que abres
mostram o abismo e a queda
e tanto anseio
algumas vezes falamos na profundidade das crianças
e nos silêncios que sorriem e se escutam
danças sem a certeza de ser dia
no meu corpo
onde já palpitam os lugares
da minha mais ardente seiva
em ti deposito os meus beijos e rápidas são as tempestades
por dentro de ti
quero saber da morte maior e se nos estremece entre o fogo e a cegueira
saber das portas devastadoras da terra e da erva corrupta
onde respiram palavras de inequívoco segredo
e do terror do escuro silêncio das coisas acabadas
quero saber do sexo e de como me beijas
das gotas de orvalho no teu poço quando lhe toco
nos teus seios o equilíbrio onde procuro que ardas inicialmente
porque eles concedem a iniciação dos lábios e tão breves se enternecem
e detêm
serão língua antes que sejam verbo e queda suave
alimento que arde no corpo e o que o desejo queira e a paixão deseje
Gostava tanto de escrever um poema bonito
Que falasse do primeiro orgasmo de todas as virgens
E do sabor dos beijos mais lentos
Um poema que cheirasse a sexo
De palavras húmidas e ensandecidas
Onde as tuas coxas fossem lápis e o teu poço o segredo
Das rimas dos maiores poetas
Ser a eternidade contigo sem imposições de sintaxe
Nem gatafunhos de vida
E ao mesmo tempo no limiar do êxtase
hei-de fazer de ti um poema excessivo
mais íntimo
desfalecidos os corpos brindarão cada recomeço de palavras amigas
hei-de escrever um poema degrau a degrau
de tanto e tanto querer
enquanto houver um caminho e um abismo de entrega
quando me olhas
enquanto houver um caminho e um abismo que ainda queime
enquanto a tua voz se escute em bocados de silêncio ofegante
o que procuram as tuas mãos quando me tocam suaves e quentes
o que fazer de nós neste desejo tamanho
e prazer desesperado
porque há sempre um tempo de espera
um tempo dramático e ansioso onde sejam tremendas as marés
espera comigo por um novo sopro
onde juntos gritaremos novos louvores e ais
por vezes sou ilha
ou talvez uma fogueira de festa e areia
diz-se que as estrelas brilham
serei uma estrela quando navego no teu corpo contra a noite
ou serei a noite que te dou
dentro de mim passeia-se deus e o diabo e também tu
na santa trindade de todo o meu desejo
amo-te
talvez por isso
onde te ergues mulher se não te satisfaz o silêncio mais extremo
enquanto te mostras abertamente na embriaguez já próxima do corpo
os teus apelos ecoam dilacerados na boca que me ofereces
e rápidas são as asas que me lanças
nos teus olhos a cegueira do sabor mais denso
enquanto esperas o prazer do leite e da rosa por florir
até que desfrute do teu favo e do perfume
por abrir
não sei se és manhã mas não serás renúncia
enquanto o teu coração sorrir e o teu corpo amadurecer
serás o melhor vinho e a cama desfeita
a âncora onde me prendo e abraço
na mulher inteira serás a amante desabrida
e eu serei teu e tanto
estás nua e eu sei que és doce
sei que és lugar onde irei deitar-me
estás nua e és rosa
e és poço e tempo ameaçado
estás nua e eu sou espanto
sou nervo mas nunca impaciente
estás nua sem que o saibas e és vontade
de receber-me
afirmo que deus nasceu
na tua barriga
sem ameaças de vingança
estéril
que o amor é puro
e dá-se
sem medos
nem exigências
zanguem-se as igrejas
e todos os cultos
porque a paixão é entrega
sem perdão
onde apenas os beijos
ressuscitam
a carne
nunca me amarei sozinho
porque serás sempre a virgem
daquele dia
que nem as pedras
nem a terra compreenderão
amo-te na pressa da vida
e frescas serão as margens do grande lago
farta é a luz e o delírio da carne
meu amor
de onde vem esta água
onde a fonte e o silêncio
são cúmplices
onde o fogo e o vento serão véus
de bocas ávidas
na sombra de cultivo
será o tempo do sagrado terreno
a rosa escurecida
sangrando vida
acredito nas letras que desenhas no leito
e na fome que elas sustentam
nos gestos marinhos
quando desaguas
que a tua voz seja o sétimo dia
estupenda e quase selvagem
estendida nos meus campos
porque és o brado
de todas as mulheres nuas
vem e regressa
enquanto me habites
profundamente
reconheço nos teus lábios já húmidos
os mistérios que prometes
e atiçam a descoberta
há sempre palavras
de silêncio
e um golfar enlouquecido e branco
enquanto houver um caminho
e um abismo
que ainda queime
enquanto a tua voz se escute
em bocados de silêncio
ofegante
desfalecidos os corpos
brindarão cada recomeço
de palavras amigas
hei-de escrever um poema
breve
de querer-te tanto
seremos pastores do tempo
e a primeira letra que nos sobrevive
para que a obra terminada
seja ouro intenso
e livres as noites no segredo
de corpos que se tocam
em sílabas húmidas de gritos abafados
ou numa enxurrada convulsa
levemente exausta
para que saibas a nuvens virgens
e as tuas bagas
sejam doces e brandas
onde haja lume
que escute e nos alimente
são os momentos em que me basta o teu cheiro
ou que apenas te imagine a meu lado
quando espero o vinho da melhor uva
e a espera seja rua deserta e fresca
até que a inundes
de bagas ardentes
fascina-me a funda serenidade
dos vales
onde se guardam beijos
debaixo de folhas vivas e breves
é quando me invades
veloz e quente
na carne delicada
dentro de mim é o deus
e o pensamento infantil abraçado e grande
em íntimo espanto
os teus lábios
cheiram a terra
e são doces a luz e a mãe
de todas as vezes
procuro um poema que fale
da terra e do mar
que fale da lama
e do sémen
um poema inacabado
que sorria às mulheres
e as saiba abraçar
procuro um poema
que procure no sexo a cumplicidade
dos gestos
e dos sentires
um poema que venha lento
e que vindo lento
agrade à vida
e ao amor
gosto da pele que cheira a terra e a trabalho duro
de sentir o seu cheiro a vácuo
que me recordam a vida e atingem
gostava de construir em mim
esse rosto queimado de sol onde os olhos se fixassem
para além do riso e do tempo
gostava de amar como essa gente
e sentir a sua beleza
nas margens do cansaço
e deitar-me contigo entre lágrimas
no desejo que deus nos sentisse
e fizesse tudo de novo e tão diferente
quando as nossas bocas se tocam
anunciam oferendas de fogo
os beijos são assim
até que a palavra e a terra
se abracem cúmplices
por vezes não sei que outras palavras diga
para falar-te da terra e do arado que te remexe
de como abraçamos os nossos sulcos
e a vida fica grande
de como nos construímos leves
um dia saberei dizer do cheiro dos olhos
quando sorris e me dás a mão
e do que nos dizemos em todos os silêncios
da fome mais crua
gosto de amar-te em ritmos distraídos
e olhos quase ausentes
enquanto te afogas no quanto te quero
palavras de sobressalto dilaceradas e esplêndidas
no seu brilho mais violento
ninguém sabe se é a voz dos homens
ou uma ameaça divina
benditos sejam os lábios na sua loucura
que se agitam
na história dos amantes
são palavras dramáticas quase estéreis
se não provam o sémen
na sua brancura divina
fartas são as penumbras e as pálpebras arrebatadas
no espanto da vergonha e do medo
onde são o gesto amável na entrega da carne
e onde o fruto seja pecado
por isso as palavras são dramáticas
no que sobressaltam os deuses
e estéreis nos dias mais apaixonados
fulgurante é a luz das coisas do corpo
quando me esperas e desejas
o espanto
não sei se és ribeira
se és âncora
ainda no sossego das águas
quando existem paisagens nos teus gritos
há um novo mistério por descobrir
que nos cena e inebria
a luz entra e sai dentro de nós
e longo é o tempo final
amado e amante
eu quero mexer na terra
ainda seca
sujar-me nela
devagar
como quem espera
pelo gozo da mulher
desfazer os seus grãos
ou beijar-lhe os seios
os sulcos
onde as sementes irão florir
os melhores frutos
eu quero mexer na terra
e encontrar nela o teu sabor
virgem
maduro
envelhecido
o poema nasce por uma palavra
onde te instalas
ausente da pressa
do tempo
desconheço onde desaguas
se no íntimo do poema
ou ao seu redor
ou se desaguas
no seu leito
onde te alimentas
e acreditas
és diferente todas as manhãs
assim o poema
na palavra
espero o teu incêndio que transborde no meu corpo
e o inunde de forma arrebatada
e muito branca
enquanto te moves por dentro de nós
que a abertura seja lenta mas fulgurante
que transpire nas palavras dos poemas que se escrevam
e de cada vez os livros e os gestos de paixão
sejam livres e cheirem a espuma e a resina
nos campos
os charcos são a escultura
do nosso amor
sou
o que atento de mim
a forma justa de negar
e nego-me
no que acredito
renunciar
sou
o que seja sombra
e persiga a luz
ou seja perseguido
nunca perdoado
sou
quem vou sendo
não sujeito
não passivo
nem isto ou aquilo
e não entendo
um dia estarei em casa
azul
sem dor e sem lama
de terrível alegria
no fundo dos olhos
uma casa cheia de vazios
dos teus vazios
de tradições e receios
e vazia
de escuridão
uma casa sem defesas
e sem tramas
onde andarás nua
enquanto esperas
que eu abra
a tua porta
conheço todos os caminhos
todas as vielas
e os pátios antigos
do meu tempo de menino
e não te conhecia
ainda
conheço todas as tascas
todas as putas
e as guitarras de grito
do meu tempo de destino
e não te conhecia
ainda
conheço todos os charros
todos os grifos
e os sons da noite
do meu tempo sem regras
e não te conhecia
ainda
é um atinar
que desatina
o amor
e tanto
é um incêndio
que mói
e espreita
que beija
e navega
és tu
e também sou
na boca
e na língua
e são elas
que mais navegam
por dentro de nós
é amor
e amor ainda
se estando perto
te julgo tão longe
e quero mais
de tanto que tenho
se nos teus olhos
não vejo limites
e no teu corpo
eu sinto desejo
se a tua roupa
vai desistindo
e forte te mostras
no quanto me queres
será chama
serão gritos
seremos amantes
e tanto
o sonho não morre nas marcas do corpo
nem o amor desiste de quem se dá
não me esperem nos cânticos sonolentos
porque o céu é castanho
e é terra
é beijo
e é agora
dentro de ti
um poema
e a voz do mar
em ti
crescem raízes
e as crianças mais belas
por ti
edifico sonhos
e nuvens transparentes
serei papel e caneta
e um poema
enquanto me agarrares
nos teus olhos
e as nossas bocas
desvendarem mistérios
esse desassossego
do teu olhar
quando te deitas
e no meu corpo
procuras tesouros
escondidos
águia
que vai pairando
até que se despenha
do céu
no sítio
a descoberto
saciada
ainda olhas
e talvez sorrias
no fundo de ti mesma
até depois
um pouco mais tarde
a noite ainda dormia quando acordei nas palavras que também sentiam
essa vontade irresistível de olhar-te até que os olhos desistissem de
tamanha alegria
por dentro de mim existem vozes que anseiam um toque e um beijo
que te percorra secretamente e que invada o rosa e o negro
por dentro de mim já cresce o desejo de um poema inteiro e alto que perturbe o corpo
um poema que seja leve e saiba acordar a chama fulgurante
da rosa quente e negra e entreaberta e gota a gota
espere o teu grito e se transforme em espanto e desejo satisfeito
onde te deitas
quando te deitas
no meu corpo
no chão
na cama
no meu corpo
dentro de mim
onde te deitas
quando te deitas
no meu corpo
no vento
no vulcão
nas ondas
dentro de mim
onde te deitas
quando te deitas
no meu corpo
tão dentro de mim
nem as nuvens
nem o fogo no céu
nem em nós
não fosses tu
não seria eu
nem o que nos molha
nem o que nos queima
nem o que nos une
não fosses tu
não seria eu
o que seria eu
senão fosses tu
de onde vem o vento
e a chuva
e o fogo
de onde vens
porque não seria eu
se não fosses tu
banho-me na tua sombra
no teu abismo
no teu mar
e por lá fico
até que a luz se cumpra
e venha sem pressa
deito-me no teu lago
na sua água
no que não me é secreto
e por lá fico
sem pressa
até que a luz se cumpra
e repita
lentamente
deixa que escorregue
até ao fundo de ti
onde a paixão é tão grande
olhas
e eu sei para onde
e para onde
me chamas
e deito-me
na tua cama
no teu corpo
e toda a água
é estranha
leve
e saborosa
enquanto escorrego
beijo-te os gritos
e na tua fome
deposito a minha boca
depressa
antes que a noite
nos sufoque
dá-me
o que entenderes
dar-me
deixa um poema
e um abraço lento
uma palavra que seja divina
Inexplicavelmente
não existem mistérios
nem se contam os espasmos
o fogo apenas espera
o seu momento de liberdade
e gritos mudos
S E L E T A
D
I
V E R S O S
Antonio Cabral Filho
Letras Taquarenses Edições
2014
*
NOTÍCIAS DE MIM
Nasci em 13 de agosto de 1953, no município de Frei Inocêncio - MG. Em 1964, após o golpe militar, fui para a escola, por decreto do generalíssimo Castelo Branco, aos onze anos de idade. Em 1968 concluí a quarta série, com média 7. Nessa época eu fazia teatro, na escola e na igreja, e, com a ajuda da única pessoa que eu considero Professora neste mundo, a Dona Adir, como eu ainda a chamo, montamos a peça O FILHO PRÓDIGO, com a intenção de realçar a auto-destruição em que se encontrava a juventude naquele momento.
Durante as férias escolares de junho de 1968, dei uma chegada ao Rio de Janeiro para fazer uns biscates e comprar roupa nova, mas ao chegar no Catumbi, meu primo Sadi levou-me para conhecer a cidade. Era 26 de junho, dia da PASSEATA DOS CEM MIL. Passeei na passeata.
Em junho de 1969, meu Tio paterno Sebastião Cabral, mestre de obras no Rio de Janeiro, foi buscar peão para suas obras e eu me alistei. Falei com ele da necessidade de eu sair da roça, escapar das garras do meu pai, deixar de ser mão-de-obra gratuita. Tinha quinze anos e era escravo do meu próprio pai.
Ele compreendeu e arrancou-me da casa paterna, não sem antes anunciar-me as agruras da cidade. Ao chegar em seu barraco, na Favela da Mineira, meu romantismo com a cidade grande foi pelo valão abaixo. Vi cair aos meus pés um menino fuzilado pela polícia, que segundo foi dito, era traficante. Durante muito tempo eu tive pesadelos por causa disso.
Morei na casa do meu querido tio até ir para o quartel. Matriculei-me na Escola Geny Gomes, no Rio Comprido e cursei o ginásio. Era um tempo turbulento, com muitos professores fazendo "inquéritos" com os alunos. Logo a seguir, entrei no Colégio Martin Luther King, fiz a sétima e a oitava séries e fui para o profissionalizante, no Curso Santa Rosa, Largo de São Francisco, em frente ao IFCS-UFRJ. Era 1974, fui promovido a cabo do exército, mas de olho no curso de sargento. Fiz o curso e passei, fiquei até 77 aguardando a promoção que não veio e pedi baixa; passei no vestibular e fui cursar direito na UFF. Abandonei por desilusão com a filosofia do direito após o quarto período; fui para comunicação social, mas a psicologia da notícia acabou comigo. Caí na vida e estou pegando touro à mão.
1 -
1 - ECCE HOMO - POESIA, Edições Curupira, 1997;
2 - DUELO DE SOMBRAS, POESIA, Edições Curupira, 1999;
3 - VER...SO CURTO&GROSSO - POEMAS PIADAS, Edições Letras Taquarenses, 2006;
4 - CINZA DOS OSSOS, POESIA, Edições Letras Taquarenses, 2008;
5 - MEUS HAICAIS PREFERIDOS, COLETÂNEA DE 20 AUTORES, Org Antonio Cabral Filho, Edições Letras Taquarenses, 2010
6 - TROVAS DE TORCEDOR, TEMA FUTEBOL, E-BOOK, 2010;
7 - TROVADOR DE FÉ, RELIGIÃO, E-BOOK, 2011;
8 - TROVAS DE AMIGO, HOMENAGENS, CRÍTICAS, IRONIAS, E-BOOK,2011;
9 - AUTOBIOGRAFIA EM TROVAS & VERSOS FAMILIARES, E-BOOK, 2012;
10 - CADERNO DE HAICAIS, E-BOOK, 2013.
11 - SELETA DI VERSOS 2014
2 - PARTICIPAÇÕES
1 - POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, ANE -
Associação Niteroiense de Escritores, 1992;
2 - POETAS 10ENGAVETADOS, Coletânea
, Org. Antonio Cabral Filho, Edição dos Autores, 1995;
3 - ANTOLOGIA POÉTICA VOL2, UFF/EDUFF 1996;
4 - INTERVALO, Ano II Nº10,
Edição Francisco Filardi, 2006;
5 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2007,
Org Ivone Vebber, 2007;
6 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2007,
Org Padre MossenPere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2007;
7 - CD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
8 - DVD DE POESIA 2008,
Org Carmem Borges 2008;
9 - ANTOLOGIA BRASIL LITERÁRIO 2009,
Org Ivone Vebber 2009;
10 - QVADERNS DE POESÍA SETEMBRO 2010,
Org Padre Mossen Pere Grau i Andreu,
Edição Le Club de Difusion Cultural,
Barcelona-Espanha 2010;
11 - FANTASIAS COLETÂNEA,
Org Rozelia Scheifler Rasia et all,
Edição Alpas21/Ed Alternativa 2011;
12 - ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE,
oRG Araci Barreto, Edição Postal Clube, 2011;
13 - POETAS EN / CENA 6 - BELÔ POÉTICO,
Org Rogério Salgado e Virgilene Araújo, BELÔ POÉTICO 2012;
14 - VERSOS DE OUTONO ANTOLOGIA
Org Delmo Fonseca, Edição Confraria de Autores 2013;
15 - ANTOLOGIA 15 POSTAL CLUBE,
Org Araci Barreto, Edição Postal Clube 2013;
16 - ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS
Org Elenilson Nascimento, Editora Pimenta Malagueta, 2013;
17 - DIÁRIO DO ESCRITOR - Livro Agenda, Litteris Editora, 2013.
18 - APANHADOR DE SONHOS ANTOLOGIA - Editor Marcio M. do N. Sena - Beco dos Poetas 2014.
*
DEDICATÓRIA
A TODOS,
TANTOS,
QUE SABEM
A SUA IMPORTÂNCIA
NA MINHA VIDA.
***
ÍNDICE ( Lista de Poemas )
1 - Florão da América
2 - Poeta de Periferia
3 - Brecht Sob o Céu de Berlim
4 - Ladeira Saint Romain
5 - Me Disserem
6 - Lições de Tempo
7 - Solilóquio
8 - Cogitação
9 - Instinto Primitivo
10 - Política Anti - Literária
11 - Do Pobre Arlequim
12 - Lira dos Quinze Anos
13 - Cinza Wim Wenders
14 - Canção do Preto Inácio
15 - Canto a Ilu-ayê
16 - Delírios de prometeu
17 - Canção dos Guetos
18 - Tempo Fértil
19 - Lotação Esgotada
20 - Faluja
21 - Canções do Filho
22 - Rimbaudices
23 - Dezoito Brumário de Artur Rimbaud
24 - Deslumbramentos
25 - Neoliberal Postudo
26 - Poema Para Moacy Cirne
27 - Viver Sem Receita
28 - Shakespearíaco
29 - deuses do Gueto
30 - Cantiga Para Cassiano Nunes
31 - Quintana
32 - Quintana
33 - Quintana
34 - Quintana
31 - Ode ao Verso Livre
...
Apresentação
Mário de Andrade é uma fonte de inspiração à qual eu gosto muito de recorrer. Ele diz num determinado trecho do Prefácio Interessantíssimo que apresentação, prefácio, notas introdutórias, enfim, essas coisas de dar satisfações a que veio, são inúteis para quem nos despreza e desnecessárias para quem nos ama, ou algo assim.
Meu objetivo aqui não vai nessas direções. Não dou satisfações a quem despreza as diferenças nem preciso fazer preleções a quem as quer bem. Digo isto porque sempre marchei sozinho, sempre sem medo de aonde vai dar e no quê.
Minhas experiências com a escrita vêm desde a adolescência, quando da realização das festas juninas de 1967 em que meu pai pegou meu "Livro de Versos", apenas um caderno do MEC doado nas campanhas de alfabetização daquele período, e, acendendo o isqueiro do Vovó fumar, transformou-o numa tocha para pôr fogo na fogueira, não me lembro se de São João ou São Pedro, aos berros de " poesia é coisa de marica! " Lembro-me que no dia seguinte eu fui revirar as cinzas acreditando encontrar algum fragmento de poema que me ajudasse a reescrever alguma coisa. Inútil! Desde então trago comigo a noção de " estar só " naquilo que faço. Isso poderia ser um ponto de fraqueza para quase todos, mas aprendi a fazer disso a minha força: Não sei contar com ninguém, na hora do " pega-pra-capar ". Por isso, esta seleta de poemas eu a faço sem buscar apoio de ombros amigos, seja na escolha, seja na ordem dos poemas. E tudo que desejo registrar é que constitui-se de poemas bem divulgados, bem aceitos na nossa imprensa literária, a imprensa alternativa, hoje fortalecida pela internet, com seu mundo fantástico de sites, páginas e blogs.
Espero que quem os leia veja um pouco do meu trabalho, aqui representado por versos livres, sem nenhum poema minimalista, nem poemas-piadas, nem haicais, Nem trovas, nenhum soneto, sequer um poetrix. Apenas versos livres na sua expressão mais prosaica, mais solta, distante das formas fixas, modalidade na qual eu creio me mexer bem. Afinal, ser incluído em livros pela UFF - Universidade Federal Fluminense, ser editado em sites como o Jornal de Poesia, criado e dirigido pelo distinto Soares Feitosa, ou no Momento Litero Cultural, hoje tornado site pelo ilustríssimo Selmo Vasconcellos ou ainda figurar na ESCRITABLOG, do caríssimo Wladir Nader, não creio ser algo pouco significativo. E, com o devido respeito a quem gosta de tapinha nos ombros, eu não bajulei ninguém, não troquei favores, até porque não possuo nada trocável. Já cheguei a quinto lugar em diversos concursos, mas não me ressinto em injustiças e dou-me por satisfeito com os resultados até aqui. Mas de agora em diante, tudo muda.
***
FLORÃO DA AMÉRICA
O menino era pivete
E se chamava Joãozinho
Vivia como engraxate
Ganhando a vida por aí
Sem deus e sem diabo pra atentar
Foi estuprado por um maníaco
E encontrado morto na Lapa
Dentro de um latão de lixo
Não foi homenageado
Com honrarias militares
Nem imortalizado
Num samba de carnaval
Morreu e está morto
Morto, bem morto mesmo
Morto até na memória
O menino que era pivete
E se chamava Joãozinho
Que vivia como engraxate
Ganhando a vida por aí
Sem voz sem vez
E sem lugar na HISTÓRIA
*
POETA DE PERIFERIA
Nunca tirei um sarro
Nos bancos do Central Park
Nem aos pés da Estátua da Liberdade
Sequer algum dia
Imitei Hugh Grant
Trocando boquete
Com alguma Divine
Nos arredores de Los Angeles
Jamais mijei no Rio Hudson
Do vão central da Ponte do Brooklin
E nunca achei graça nenhuma
Em comer pipoca com bacon
No trem fantasma da Disney World
Tampouco nunca peguei um breack-fest
Em alguma lanchonete da Wall Street
Mas ninguém se assuste
Com o meu desdém debochado
Pelas coisas suntuosas
Desse mundo consumista
É que eu me sinto muito bem
Junto aos pés-de-cana
Dos butiquins pés sujos
Desses guetos suburbanos
Onde levo minha vida
De poeta proletário.
*
BRECHT SOB O CÉU DE BERLIM
Olhem para mim, vejam bem!
Eu estou aflito.
Não concebo ficar quieto
Diante da situação.
Se o tempo estiver bom,
Eu saio à rua a passear.
Se não estiver eu saio também.
Não dá pra ficar neutro.
Olhem para o tempo.
Como estão as nuvens?
Claras ou turvas?
Ou não há nuvens?
Chove e faz frio
Ou o calor é intenso?
Não importa!
Conforme a temperatura
Eu respondo à altura.
Não quero saber
Se são nuvens de tnt
Ou se neve suave de amanhecer.
Meus pés caminham...
*
LADEIRA SAINT ROMAIN
A Ladeira Saint Romain
Tem muita história a contar,
Mas a Ladeira Saint Romain
Não quer censura em sua história.
A Ladeira Saint Romain
Precisa de alguém que diga
Sua história com o Pasquim,
Mas que seja enquanto viva.
Pois a Ladeira Saint Romain
Não quer deixar sua história
Pra depois que ela morrer.
A Ladeira Saint Romain
Viu muita gente subir,
Mas não viu tanta gente descer.
*
ME DISSERAM
Eu menino me disseram
Que eu era HOMEM
Com todas as letras maiúsculas
Que eu teria uma mulher
Com a qual me casaria
E seríamos felizes para sempre
Porém eu descobri o AMOR e a LIBERDADE
E percebi que o amor é solteiro
E a liberdade não se casa com ninguém
Em seguida me disseram
Que todos tinham religião
E me venderam um deus
Que eu seguiria para sempre
Porém eu percebi
Que havia muitos templos
Tantas tendas onde comprar-se um deus
Que eu desisti
E fui tachado de ateu
Depois me disseram
Que todos tinham ideologia
E me venderam um partido
No qual eu ingressaria
E S P O N TA N E A M E N T E
E a ele serviria enquanto eu quisesse
Tornei-me então violento ativista
Mas constatei que todos tinham que ser iguais
E que o ser a si próprio era impossível
Até que um dia me avisaram
Que eu estava fora do partido
E que eu não era comunista
Desde então venho notando
Que todas as coisas têm um preço
E eu não posso comprar nada
Do que me querem vender
E ainda assim
o SHOW BUSSINESS
não quer deixar-me em paz
por onde quer que eu passo.
Como é possível
Numa mesma praça
De um lado um religioso
Fantasiado de cristo
Nos oferecendo a paz celestial
E do outro
Um comício eleitoral
Nos oferecendo um Strip-tease
Em troca de voto?
Agora restou-me a pecha:
Disseram que eu sou
ANARQUISTA.
*
LIÇÕES DE TEMPO
Houve um tempo
Não muito remoto
Em que me preocupei
Com a velhice
E até me programei
Pra fazê-la agradável,
Como lutei fiz planos
Formei vasta biblioteca
Pra passar o resto
Dos meus dias
Cercado de livros,
Planejei viagens
Pra conhecer a Ásia
A Europa a África
E da América
Visitar pelo menos
Machu Pichu.
Eu queria ser um
devorador de distâncias
guloso qual um marujo
pirata dos mares revoltos,
mas eu não sabia que o tempo passa
e que alguns copos de vinho
deixam a gente assim serelepe.
*
SOLILÓQUIO DE INVERNO
TUDO ANDA TURVO
Cigarras silentes
Arbustos estáticos
Há muito não noto
Formigas nervosas no seu ir e vir
Nem os grilos silvam mais
TUDO ANDA TURVO
Sapos aposentando pilões
Não sei mais dos agouros da côa
E o Bentivi não mais
Dedura ninguém
Os cães nem ladram mais
Nas noites frias
Não mais há bêbados
Cambaleando as calçadas
Rumo ao incerto caminho de casa
TUDO ANDA TURVO
Não mais se ouvem amigos
Falando alto na esquina
Contando histórias de amores furtivos
E mijando a saideira
Tomada agora há pouco
TUDO ANDA TURVO
E não basta dizer
Que tudo anda turvo
A manhã vem irrompendo
E Netuno acaba de soltar os ventos
E Vênus balança os cachos
Rindo-se de mim
Com seu sorriso de ninfa.
*
COGITAÇÃO
(Ao Poeta e Amigo Pedro Giusti)
Pense
Pense
&
Escreve
Se não puder sussurrar
Pense
Pense
&
Sussurre
Se não puder falar
Pense
Pense
&
Fale
Se não puder gritar.
*
INSTINTO PRIMITIVO
Foi assim
Sem mais
Nem menos
Me aproximei dela
E senti um odor diferente
Odor de terra molhada
Algo natural mesmo
Lhe cumprimentei
E senti todo meu corpo crispar-se
Ela notou e disse
Vem cá
E fomos de mãos dadas
Olhos nos olhos
Assim
Sem mais
nem menos
*
POLÍTICA ANTI - LITERÁRIA
O poeta ingênuo sai no pau com o crítico literário
Pra ver qual deles é capaz de regenerar
O poeta oportunista
Enquanto isso o poeta revolucionário
Panfleta nas favelas
O seu sonho visionário
E o poeta maior
O poeta menor
E o dito marginal
Fazem bolotinhas
Com meleca do nariz...
*
DO POBRRE ARLEQUIM
Nasci no sopé das montanhas
Lá onde terminam os bosques
E as florestas se adensam.
Bem cedo aprendi a brincar
Com os habitantes desse mundo
Onde reinam Sacis e Iaras.
Ainda menino fui pras cidades
Sem seio de mãe nem ombro de pai
Órfão de noite e de dia.
Segui sempre o sem-fim dos caminhos
E a poeira das estradas
Tingiu de vermelho os meus sonhos.
E o ronco do motor dos caminhões
É que ninou a soneca do menino
À sombra dos arbustos solidários.
Meu prato requentado e rápido
Eu soube sempre o seu sabor de sal
Temperado de relento e sol.
Na cidade sou um peixe fora d'água
E vez por outra ponho-me frente aos bares
Perscrutando por que essa gente bebe tanto.
O meu amor não sabe o pranto
Tão fartas comigo foram as mulheres francas
Em darem-se inteiras e detalhes tantos.
Não prometo ser algum dia um gentleman
Mas eu não mijo calçada a fora
Após uns chopes com steinhägen.
*
LIRA DOS QUIZE ANOS
Oh que alívio que eu tenho
Daqueles colegas de infância
Com seus mundos cor-de-rosa,
Heróis de história em quadrinho,
Coca-cola, chiclete, carmanguia,
Lencinhos perfumados, documentos,
Sem sombra de movimentos
Que os anos não trazem mais.
Como eram frios os versos
Profundamente românticos!
Mas contra os versos
Profundamente românticos
A alma dos versos meus
É francamente livre
E cospe na cara do eu-lírico
Que caça borboletas azuis.
Oh que alegrias que eu trago
Das minhas gazetas da infância,
Daquelas tardes jongueiras
À sombra dos oitiseiros
Entre o Largo da Carioca
E o tabuleiro da Baiana
Com tudo quanto é quitute,
Cuscuz, cocada, quindins
E os chamegos da mulata.
Oh que saudades que eu tenho
Da minha Avenida Central,
Avenida dos meus sonhos
Colhidos na Cinelândia
E comidos nos Arcos da Lapa
Por alguma linda Brigite
Com beijo gosto de menta
E seios de Marilyn Monroe.
Pobre do espírito pudico
Que nunca esbarrou com Cupido!
Jamais se esbaldou
Nas tabernas da Praça Mauá
Degustando cuba-libre
Com as nossas Bardots,
Nem trocou beijos calientes
Entre senha e contrassenha
Com alguma companheira
Aos cicios " pela revolução!"
Nas esquinas da Rio Branco.
Livre filho suburbano
Desfilava desafeto
Por meu boulevard sem Paris
Da minha Avenida Central,
Que só virou Rio Branco
Para agradar ditos-cujos,
E ria com meus olhos leigos
Da anarquia arquitetônica
Daquele casario sem eiras,
Que o Pereira "passo" extinguiu
Com um só "bota-baixo".
Naqueles tempos ruidosos
De ardente adolescência,
Papai montava a cavalo
E saía pra campear,
Mamãe brandia o chicote
E o leite fervia
No fogão a lenha,
Eu era pingente de trem
E ofice-boy da Light
E Che Guevara era bandeira
Nas barricadas de Paris.
Ai que saudades que eu tenho
Da Avenida Rio Branco
Como um palco a céu aberto
P'rum côro de cem mil vozes
Cantando Geraldo Vandré:
"Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer."
Mas "saudades" que eu sinto,
"Saudades" que me doem fundo mesmo
São da Avenida Rio Branco
Na Passeata dos Cem Mil
No auge dos meus quinze anos,
Daquela gente bronzeada
Mostrando tanto valor
Só pra mudar o Brasil,
Dos " bailes" que eu dei nos "ome"
Na Biblioteca Nacional
Com o saco de bola-de-gude,
Do Wladimir trepado no poste
Gritando "Abaixo a Ditadura!"
Alheio ao gás lacrimogênio,
Das balas com endereço certo
E o sangue correndo solto.....
................................................
São "saudades" que a palavra
Lhes recusa a assinatura,
Coisas muito duras para esquecer
Como diz o Rei Roberto,
Mas me fazem muito bem
Que os anos não tragam mais.
Por isso eu sigo cantando
"Caminhando" com Vandré:
" Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer."
*
CINZA WIM WENDERS
O céu turvo de Berlim
Lembra lona de circo velho,
Onde nossos avós nos levavam
Para vermos aquele palhaço
De há muito nosso conhecido.
Seus prédios cinzas,
De um cinza há muito conhecido,
Soltam o reboco feito animais
Que de tempos em tempos
Mudam de pele.
Suas árvores, em eterno outono,
Sem folhas pelo chão...
Suas cores, não sei como, jazem
Sob esse cinza perene
À espera da plena primavera...
*
CANÇÃO DO PRETO INÁCIO
Nasci nos caminhos de dentro,
Que ligam Minas Gerais à Bahia,
Ali pelas imediações do Suassuí,
Lugar de muita casa grande
E senzala mais ainda.
De início éramos todos lavradores,
Gente de lida que os senhores arrebanham
Com ajuda dos bate-paus,
Ora pegos em quilombos
Ora arrematados em leilões
Feitos pelos negreiros à beira dos cais.
Mas de tempos em tempos
Alguém saía de trouxa nas costas
Pendurada no pau de dois bicos,
Como fez o Preto Inácio
Que nunca mais deu sinal.
Quando fugia, dizia-se
Que fez poeira;
Quando saía por conta própria
Dizia-se que foi pra vida;
E, quando era posto pra fora,
Buchichava-se à boca miúda:
Foi vender puáia,
Que era como tratavam
esses pretos velhos
vendedores de raízes
nas feiras da cidade.
Entre uma e outra leva
Dessa gente que partia
Fui aprendendo com a vida
Lição por lição de partida
E assim que peguei tope
Aprontei meu pau de dois bicos
E fiz poeira,
Fui pra vida
Vender puaia.
*
CANTO A ILU-AYÊ
Negro é raiz da liberdade
Mais forte que qualquer outra
E faz nosso povo se unir
Hoje muito mais que outrora.
Porém, os chacais que o rondam
Ainda encontram lacaios
Contra o nosso porvir,
Pois quem nasceu para Judas
Não se cansa de trair.
Ilu-ayê tem o sorriso negro
Pra fortalecer meus irmãos
E regar a flor da resistência
Desde a grimpa dos morros
Até à vereda mais úmida
Em prontidão na tocaia
Para emboscar bate-estradas
E avisar aos capatazes
Que quem brinca com corda
acaba dependurado.
Ilu-ayê tem o abraço negro
Pra fortificar os quilombos
E multidões de Zumbis
Com suas bandeiras erguidas
Pra celebrar nosso Rei,
Que deu seu sangue por nós
E merece glória eterna.
Ao cismar sozinho relembro
Que todo instante da vida
É sempre vinte de novembro
Com a dignidade iluminada
E o espírito pleno de axé.
Pois nossa pele tem mais sol,
Nosso céu tem mais luar,
Nosso povo tem mais força
Quanto mais doar amor.
Não permita Deus que eu morra
Sem que ainda faça um poema
Digno da beleza negra,
Com maior engenho e arte,
Que exalte Rainha Dandara,
Zumbi e Solano Trindade
Com uma imensa quizomba
Para alegrar nossa raça
E cantar pra Ilu-ayê!
*
DELÍRIOS DE PROMETEU
Acossado por despautérios,
As Tróias do presente
E as Cartagos do futuro
Obrigam-me a transpor muros
Da epopéia de quimeras
E prever que qualquer dia
Serei mito de ficção.
Algo ímpar na literatura universal,
Maior que Sherazad,
Maior que Dom Quixote,
Mais forte que os Três Mosqueteiros,
Mais valente que Robin Hood,
Mais sortudo que Robinson Cruzoé
Com Segunda Feira e tudo.
Desses que viram objeto de estudo,
Mais que Joyce e Ezra Pound
E dão pesadelo em curiosos,
São temas de teses acadêmicas
E motivo de congressos mundiais
Com reunião de exegetas renomados,
Cada qual com seu aporte
Sobre o pobrezinho aqui.
E o maior frisson
É o momento culminante
Em que todos vão à práxis
Acomodados em mesa redonda
Para provarem seus enfoques,
Quando enfim sou dissecado
Letrinha por letrinha
Até à exaustão,
Inclusive com preleção
De Leonardo da Vinci
E sua aula de anatomia.
Depois, todos partem felizes,
Com ares de dever cumprido,
Enquanto eu pairo sobre tudo
Alheio ao suor derramado,
À adrenalina gasta
E ao fosfato queimado,
Todo senhor de mim,
Dono do meu ser ficcional
Infinitamente inexaurível,
Como bem apraz à obra prima!
*
CANÇÃO DOS GUETOS
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos de Roma
Hanói, Formosa
Pequi, ou de la Habana Vieja
Y sus "desintegrados"
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos londrinos
Bem à margem do Buckingham
Guetos germânicos
De Bonn ou Berlim
Divididos em "Òssis e Véssis"
Cada um velando
em seu umbigo
o ovo da serpente
MADE IN GERMANY
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD.
Guetos da Bolívia
E seus índios "cocaleros"
Da tribo Quéchua,
Guetos do Peru
E seus guerrilheiros
Sem sendeiros luminosos
Para TUPAC AMARU,
Guetos da Venezuela
E seus caracazos bolivarianos
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos dos guetos amarelos
Brasilverdesifilíticos
Gonorrêicos que não lhes quero
Assim do Oiapoque ao Chuí
Das palafitas ribeirinhas de Manaus
Cheias de prostitutazinhas meninas
Vendida por seus próprios pais
A caftens made in europe
Às margens das trans...amaz
Ônicas de meninos e meninas ao relento
Nas praças da república
De suas megacapitais
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos de São Paulo
Dos casarios miseráveis
De tábua e zinco
Das zonas norte
Desnorteadas pro
Sul leste oeste
Que apesar dos pontos cardeais
Que os atritam
Nenhum cardeal
Nos deixam em paz
Nos seus sermões dominicais
YO LOS HABLO HERMANOS
ACÁ TAMBIEN HAY APARTHEYD
Guetos do Rio de Janeiro
De tontas maravilhas
De janeiro a janeiro
E cariocas brejeiras
De cartão postal
De Chapéu Mangueira
E Pavão Pavãozinho
Vidigais e Vigários Gerais
Onde a palavra FAVELA
Fala a língua do "bigode grosso"
Pela graça da mordaça
De tantos COMANDOS
Há que buscar uma linha
Mesmo que seja vermelha
Mesmo que seja amarela
Ainda que seja anêmica
Para juntar tantas
Rocinhas Morros das Viúvas
Ladeiras dos Adeuses
Baixadas e Jardins Catarinas
Contra tantos opressores.
Pero hermanos
Hablar no me basta
Como no me basta
Llorar los hermanos caídos
Pois para poner fin
A tanto apartheyd
HAY QUE ENSUCIARSE LAS MANOS!
*
TEMPO FÉRTIL
Não sei se Homero foi à guerra,
Mas exaltou seus heróis
Que foram fazer fortuna.
Camões eu sei que foi
E cantou em verso e pólvora
Os crimes que cometeu.
Tem bardos compondo hinos
Por honra de seus irmãos
Mortos em alheio chão.
Não sei o que sentiriam
Se tivessem os seus lares
Invadidos por estranhos,
Mas eu digo a todos eles:
Não hastearei minha bandeira
Sobre os restos de ninguém,
Como apraz aos cães de guerra;
Não entoarei cantos de gesta
Pelas desgraças alheias,
Tão caras aos pais da usura;
Não gastarei tinta e papel
Só para matar o tempo
Ou agradar ociosos
Com coisas tão caras.
Nunca joguei porrinha
Valendo escalpe de índio
Nem minas de Vila Rica.
LOTAÇÃO ESGOTADA
Brasil cheio
De raças
De classes
De castas
Brasil rico
De prosas
De histórias
De causos
Brasil farto
De seitas
De facções
De máfias
Até o dia em que
Veremos ruir
Isso tudo
E o caos
Entorne a taça
E eu possa rir
O riso largado
Da sangria desatada
Com o potro solto no pasto
E o nosso povo altivo
Com a bandeira na mão.
FALUJA
Vou-me embora pra Faluja,
Aqui eu não sou feliz,
E vou sem Manoel Bandeira,
Pois na hora da partida
Virou porquinho da Índia.
Vou-me embora pra Faluja
E já disse porque vou.
Faluja é uma terra livre
Onde o povo não tem rei.
Vou-me embora pra Faluja,
Aqui eu não volto mais.
Faluja é terra de luz
Onde o povo faz a lei.
Vou-me embora pra Faluja,
Viver lá é uma aventura
De tal modo comovente
Que churrasco de yankee
É servido ainda quente.
Vou-me embora pra Faluja,
Vou juntar-me àquela gente
E fazer que um mundo surja
Sem choro e ranger de dente.
Vou-me embora pra Faluja,
E encerrar a ladainha
Senão eu não chego lá
Nem saio desta terrinha...
Vou-me embora pra Faluja,
Lá sou inimigo do rei
E minha maior diversão
É combater a opressão.
*
CANÇÕES DO FILHO
Parte I
Na minha genealogia
Tem um Pataxó destribalizado
E uma negra Haussa evadida,
Restolhos das "Entradas
E Bandeiras," por parte de mãe.
Ambos foram caçados
Por um bandeirante
E seus bate-paus,
Por parte de pai.
Nesta terra de Caminha
Que em se plantando tudo dá,
A escravidão sexual
Vira miscigenação
E ganha status em canção
De muito filho bastardo.
Muitos se ufanam
De serem mestiços
E até receitam isso
Com certidões de mulatos.
Mas eu não tenho dúvida,
Não cometo suicídio de raça
Nem viro escravo de sangue.
Parte II
Chamam-te AMÉRICA
E após tomarem teu corpo
E devassá-lo milhões de loucos,
Esquartejaram-no com mil cavalos
E aonde acharam manchas do teu sangue
Batizaram com nomes eurobestiais,
Mas pra conferirem ares santos
Providenciaram as bênçãos
De certa santa madre igreja
E em cada parte violada
Cravaram aí uma espada
Simbolizando a nova fé,
À qual chamaram cruz de cristo.
Santa Mãe Terra,
Tão divina, tão ultrajada,
Teu nome são teus filhos
E tu vives em todos nós
Desde a mais antiga Era
Ao mais distante Futuro.
Como eu vivo em meus avós
E o rio na montanha,
Somos todos um só,
Santa Mãe Terra.
*
Menos teus inimigos,
Que perecerão ao relento
Sem chão sob seus pés
Nem céu sobre seus rostos,
Como os ratos, sem berço
De Mãe nem Pátria.
Parte III
Este é um país de poetas
Em sua maioria crioulos,
Que derramam no papel
Transatlânticas nostalgias
Pelas pátrias de seus pais.
Desde Bento Teixeira e Manoel Botelho
Que lançam seus tentáculos
Aos confins de suas itálias,
Ricas em leonardos dantes;
Às suas lisboas fartas
De lusidíacas iguarias das índias
E bacalhau norueguês;
Às suas Londres opacas
Túmidas de piratas da rainha;
D'espanhas e franças e holandas
De germânicas reminiscências.
Felizmente não vivo aqui
Com o umbigo além-mar,
Não sofro a mácula
Do pecado original,
Não trago em meus ombros
Pesadas montanhas
De negros e índios
Dizimados por meus pais,
Para que eu vivesse em paz.
Não canto, não toco nem faço coro
Com o coral da escravidão,
Pois eu estou em minha terra,
Terra natal eterna
Dos meus antepassados longínquos,
Dela broto e a ela volto
E me deito sem colchão
E me desfaço em seu corpo de mãe.
Parte IV
Minha terra não é "minha"
Nem é de quem diz ser dono,
Mas tem impostor assim, oh,
Que a chamam de minha terra.
Muitos dizem minha terra,
Mas com os pés em chão alheio;
Só que esses "terratenientes"
Passam o dia no formol
Pra vampirá-la de noite
Com seus versinhos biáfricos
Por uma caneca de vinho.
Mas o fazem ser saber
Que só vinho não dá verve
Pra suas poéticas esquálidas
Tirá-los de cena à francesa,
Como se fossem nababos.
E tornam careta o Brasil,
Chinfrinizam os seus milagres
E deixam os marajás tupiniquins
Morrerem comendo acarajé
Na aba do sabiá.
*
RIMBAUDICES
Não confie em ninguém
Que xingue deus e o diabo,
E, como um litle bad boy,
Queira estuprar os anjos,
Mesmo que perca a perna esquerda
E a direita perca também
E ainda morra em Marselha,
Bem à porta do oriente
Carcomido pelo câncer.
Não acredite em ninguém
Com mais de trinta dinheiros,
Com mais de trinta invernos,
Que acredite em demônios,
Que fuja para a Abissínia
E contrabandeie armas
E ainda trafique escravos
E em sua hora final
Chame por seu Djami.*¹
Não confie em ninguém
Que levou tiro de Verlaine
E o colocou atrás das grades
E ainda fugiu para Roche
E, após uma Une Saisson em Enfern,
Mandou a Paul Demany
A Lettre Du Voyant,
Escreveu Iluminations
Sem dúvida bem além
Dos Paradises artificiales
De Monsieur Baudelaire,
Regado a muito haschisch.
Não confie em ninguém
Que nasceu gênio precoce,
Seja filho de gendarme,
Freqüente o CABARET VERT
E zombe de pátria e família
E vague noite a dentro no váquo
Como o Spleen de Paris.
Não confie em ninguém
Que sofra de rimbaudite
E viva pagando mico
Em algum coufeé maudit.
- *1 : Djami é o nome do mordomo de Rimbaud.
*
DEZOITO BRUMÁRIO DE ARHUR RIMBAUD
Tenho apenas vinte anos
A mais que Artur Rimbaud
E nem um segundo no inferno.
Nunca provei a taça da amargura
Nem quebrei a cara na Abissínia
Ou cheguei em casa perneta.
Jamais reneguei meus pais
Nem minha querida Jampruca
Por suas vidas pacatas.
E o fato de mochilar por aí
Não tornou-me um andarilho
Nem me fará urbanóide.
Sair da casa paterna, pra mim,
É o mesmo que ir ao trabalho
Ou à horta colher alfaces.
Não quero fazer do mundo
Um monte das minhas cinzas,
Porque me odeio e não tenho causa.
Não sofro de " cazuzismo ",
Acusando a burguesia
Por falta de ideologia.
*
DESLUMBRAMENTO
Meu primeiro amor
Foi como beijo roubado:
Sem liberdade de escolha.
Meu primeiro amor
Começou com a chupeta
Quando Ritinha ameaçou-me
"Só te namolo se laigá pepeta!"
Meu primeiro amor
Trocou bala boca-a boca
Na Igreja de Frei Inocêncio
Bem no meio da missa
E o Padre Daniel
Mandou-me rezar três Pai-Nossos
E eu rezei até mais
Para ficar bem perdoado
O pecadinho tão doce.
Meu primeiro amor
Bateu muita gazeta
Na pracinha da igreja
Só pra comer cocada
E dar beijinhos na boca
Das filhinhas-de-papai...
Meu primeiro amor
Passou nas provas
De educação sexual
Com notas de louvor,
Mas se o Grupo Escolar falasse...
Meu primeiro amor
Chupou muito ingá
Na galhada dos ingaseiros
Sobre as margens do Suassuí
Com a Dasdô do Mané Cachorro.
Meu primeiro amor
Tinha gosto de pé-de-moleque
Devorado com a gula
Do menino assustado
Com o presente da namorada
Que levantou a saia de chita
E lhe disse " mete aqui!"
Meu primeiro amor
Ficou de coração na mão
Com o bicho cabeludo
Da Maria Serafina
Nuinha na minha cama
Pra comer minha inocência,
Apesar dos avisos da mamãe
De que ela era rapariga.
*
Meu primeiro amor
Era como filme de Speelberg:
O tempo todo de suspense
E no fim sobra surpresa.
Meu primeiro amor
Nunca encontrou seu fim
Porque a poeira vermelha
Das estradas mineiras
Nos cobriu na encruzilhada
Entre o passado e o futuro
E o destino nos levou
Para distintos presentes.
*
NEOLIBERAL POSTUDO
Após a abertura
Lenta e gradual
Do General Geisel
Nos idos de 74,
Aceitei a receita
Do General Figueiredo
E empanturrei-me de democracia
Com eleição após eleição
E overdose de votos hoje
Pra curar o porre de ontem,
Nem sempre de votos.
Desde então aposentei
Meus apetrechos de guerrilha
Contra a ditadura militar,
Entre eles meu quixute
Mais veloz que bala de INA
E os arapongas do SNI
Com seus óculos Ray Ban
E cabelos James Dean,
Meus comprimidos de Redoxon
Contra gás lacrimogênio,
Minha lista de jornais
E ONGs de DH,
Minha coleção de calças jeans,
Meu Livro Vermelho de Mao Tsetung
E o trezoitão solidário
Que nunca "moscou" na hora
Quando fez-se necessário
Falar o idioma inimigo,
Além da inexorável certeza
De poder mudar o mundo
Nem que fosse a bala,
Mas a três décadas disso tudo
Não sou mais assim não,
Já não sei quem são meus inimigos,
Já não vislumbro as classes
Em que se antagonizam as pessoas
No seio da sociedade,
Não identifico mais ninguém
Como direita ou esquerda
E qualquer discurso ideologizado
Soa-me como algo anacrônico...
Enfim, tornei-me um reles
Neoliberal pós-tudo,
Sem os mínimos valores humanos
De respeito aos oprimidos
E à luta contra a opressão,
De solidariedade militante
Às minorias sociais
E aos despossuídos em geral.
Hoje, se o Tio Sam me pedisse,
Eu venderia minha própria mãe
E entregaria a alma ao diabo
Sem nenhum motivo aparente,
Porque tornei-me um neoliberal pós-tudo.
*
POEMA PARA MOACY CIRNE
Faz tanto tempo
Que não encontro alguém
Que há muito
Eu não encontrava
Alguém que me deixe assim
Alvissareiro
Como as flores e o sol
Às nove da manhã
Com o peito cheio de alegria
Pronto a dar vida às novas emoções,
Como aconteceu com o Cirne
E sua fada amante
Certo dia em Ceridó,
Que se sentiram crianças no parque
Com as façanhas que viveram
Tamanha a felicidade da dupla
Algo assim tão radiante
Que faz mister compartilhar
Fazer com que irradie
Em todo ambiente
Onde haja corações
Que buscam alguém
Digno de ser encontrado
Pelo puro prazer um do outro,
Como o vinho e os lábios
Da mulher amada.
*
VIVER SEM RECEITA
E assim foram-se vinte anos,
Vinte anos de namoro,
Após longas operações secretas
Nos hotéis da Frei Caneca
E seus corredores sinistros,
De arrepiar Hichtcock,
Com tantas fugas fantásticas
Pela Avenida Mem de Sá,
De congelar Mon Sieur Poirot
Depois de longas estadas
Nos cortiços da Gomes Freire
Durante tantos carnavais
Regados a frango assado
E muito vinho de buteco,
Muita lasanha com Black Prince
Nos bares da Cinelândia,
Filmes pornôs no Cine Íris
Só pra criar o clima,
*
Depois de muitos natais
Curtidos a dois nos quartinhos de favela
Regados a risoto de frango e Malzebeer,
Depois de muita briga besta,
Muita salada completa,
Muita "volta" recíproca,
Muita paz de beijo e abraço
Nos bancos da Cruz Vermelha,
Depois de Ana e de Edson,
Passaram-se vinte anos
Além dos cinco pregressos,
Almejo ainda mais vinte
Mas isto não é receita
Para mal sem cura...
*
SHAKESPEARÍACO
Ao tocar a sirene da fábrica
João não viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
Às dezessete e trinta.
Às dezoito horas
João não viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
Às dezoito e trinta
João soube pelo vigia
Que Maria fazia serão.
Às dezenove horas
João viu Maria sair
E bater o cartão de ponto
E despedir-se do amante
Com um longo beijo na boca.
João perdeu a linha,
Bebeu a noite inteira,
Chegou em casa de manhã
E matou Maria
Com um tiro na cabeça,
Depois saiu dançando rua afora
Tocando Carinhoso
Em sua flauta de bambu
E nunca mais foi visto.
*
DEUSES DO GUETO
Na topografia do caos
Veias são avenidas
E ninguém viu
Cruzar esta via
Um calango de pedreira
Mais veloz que um tisio
Ou um guri de patins
Nas vielas da favela,
Que ostenta o status
De "aviãozinho da boca"
Mais querido no pedaço
E finda abatido em pleno vôo
Nos becos do mundaréu...
O "patrão" paga o enterro,
O jornal gera emprego,
A família sabe o troco.
*
CANTIGA PARA CASSIANO NUNES
Recebi poemas durante anos
Do Mestre Cassiano Nunes
E saía com eles pra rua,
Levava para os eventos
E lia para os amigos,
Nas rodas e recitais
E quando soube da sua morte
Fiquei desconsolado, e agora (?),
Pensei, mas certo de não ter resposta,
Segui de boca seca.
Senti por não fazer acervo
De tantos poemas que recebi,
Mas me desfiz deles após
Lê-los para o meu público
E publicá-los em meus fanzines.
E a falta que sinto agora
Seja dos poemas ou do poeta
É a satisfação que vai comigo
Pelos destinos que lhes dei
Enquanto eles se foram
Para outras vidas e outras formas.
Mas quando alguém perguntava
Após a leitura de um poema
Quem é Cassiano Nunes,
Eu respondia todo enrolado:
É um paulista de São Vicente,
foi a Brasília fazer carreira
E nunca mais saiu de lá.
*
QUATO POEMAS A MÁRIO QUINTANA
1 - PARAISO QUINTANA
Dizem os abduzidos
Que ao chegar no Paraíso,
Tão bestunta quanto sempre,
Mário Quintana estacou,
Pregou na nuvenzinha
Que lhe servia de tapete
E ficou abestalhado
Com tanta beleza,
Tanta alegria, tanta paz,
Que até esqueceu de sair do lugar,
Sem dar um Passo sequer
E que um anjo louro,
Louro louro muito louro,
Aterrissou a seu lado
Pegando-o pela mão,
E saíram voando, voando,
De início a meia altura
Para logo em seguida,
Seguros de vôos mais altos,
Estenderem as asas
E ganharem outros ventos...
*
Coisas de abduzidos...
E dizem que Mário Quintana
Pensou em perguntar ao anjo
Que parque era aquele,
Lá embaixo, bem ao centro
De todo aquele Paraíso,
Mas como fosse um anjo
Leitor de pensamentos,
Foi logo explicando
Que era o Parque Mário Quintana,
Onde crianças e poetas
Se exercitam nos versos
Bem aos olhos das musas,
Que as suas lhe aguardavam ansiosas
Para ouvirem os versos seus.
*
E ao notar insegurança
Nos olhos tímidos do poeta
Pensando em Bruna Lombardi,
O anjo se adiantou dizendo
Que ela enviara todas suas semelhantes
Enquanto se desvencilhava
De seus encantos terrenos.
Segundo os abduzidos,
Quintana vive cercado
De musas e discípulos,
Exercitando seus encantos
Lá nos palcos do Paraíso,
Bem alheios à realidade.
Mas
Quem
Diz
São os
Abduzidos!
*
2 - QUINTAN'ESSÊNCIAS
Não consigo imaginar
Quintana chorando,
Cortando soluços sentidos
A não ser lágrimas
De extrema alegria
Para lavarem as faces
Queimadas pelo arco-íris,
Pois a palavra Quintana
Sugere criança brincando,
Alheia a tudo,
Imune a qualquer risco
Longe desta vida,
De direitos e deveres,
De ordens e obediências,
Reduzidas a números e papéis,
Aliás, como Quintana sempre quis.
*
3 - GRAVATA DE QUINTANA
Quintana empaca meu verso,
Mas eu puxo-lhe a gravata
E ele ri seu risinho besta
Cheio de desdém
Pelas coisas deste mundo,
E sem largar a desgraça do cigarro.
Intimo-o a não rir de mim,
Mas sem dar-me nenhuma atenção
Mantem-se concentrado em seu vinho
Sem descuidar com o olhar
Atento para surpresas
Que eu possa aprontar-lhe,
Até que desata a rir mais ainda
E desfaz-se o nosso entrevero,
Como se defraudasse
A bandeira colorida
Dos seus sonhos infantis.
*
Mas novamente puxo-lhe a gravata
E não mais encontro Quintana,
Só o vaquo da mesa vazia,
O salão da adega em silencia
E o jornal à minha frente
Com a notícia repentina...
Quintana decola
Do aeroporto moinho de ventos
Rumo ao seu mundo de estrelas,
Onde pretende esquecer de tudo
E passar o resto da eternidade
Puxando perna de grilo
E beijando brunas lombardes.
*
4 - QUINTANA
Mário Quintana
Partiu
De Porto Alegre
Para Porto Feliz
E foi-se
Sem dizer adeus
Rumo ao Reino de Deus
Esquecido de nós
De vez
Sem mandar notícias
Jamais
Ou seria um deus-nos-acuda
Com tantas Babis, Babys
E Brunas Lombardes
Em êxtase.
*
ODE AO VERSO LIVRE
No princípio a poesia era uma canção regada a vinho
Ao som de harpas tocadas com carinhos e beijos de mulher amada
À sombra de uma palmeira frondosa
Onde o poeta-filósofo se deleitava com a vida sem fronteiras
E ela brincava solta pelos bosques entre duendes
Indiferente ao tempo acariciando a sua nudez
Coberta de inocência,
Depois, veio a escrita e de palavra em palavra
Foi vergando-a sob o rigor do verso
Moldando-a à disciplina da métrica
E aprisionando-a à liberdade
Que lhe permite esta margem de papel,
E agora ela atravessa as grades das gramáticas
Sobrevoa o muro das linguagens
E vem sondar-me
No ondular dos cabelos desta mulher que passa...
*
Nestes quarenta anos nunca te escrevi. A senhora sabe como é: correria, muito trabalho, compromissos diversos e afinal, ninguém é de ferro né mãe.
Mas hoje, parei de encontrar desculpas e resolvi te escrever. Talvez eu tenha algumas novidades pra te contar.
Saiba a senhora que já não sou mais aquele menino que tinha vergonha de te beijar, de te abraçar, que não sabia o quanto é maravilhoso dizer e ouvir um “eu te amo”. Cresci mãe, passei e passo meus momentos de dificuldades. Não só eu, os irmãos também.
Pena que não te abracei mais, que não te beijei mais, que não demonstrei mais o meu amor por você. Eu não sabia que você partiria tão rápido. Talvez se soubesse teria feito diferente ou morreria antes para não sofrer esta perda.
Mas estou sobrevivendo, lutando, buscando sempre acertar. Você sabe o quanto é difícil tocar em frente. Eu tento facilitar, pode acreditar, mas ás vezes desabo. Não vou negar que tenho minhas fraquezas e culpas, mas também vivo momentos ótimos, inesquecíveis e lindos.
Puxa!
Estou escrevendo e me dou conta que até meus cabelos estão parcialmente brancos.
Lembro como se fosse hoje o dia que você teve que ir. Nossa. Tanto tempo, mas a memória não se esquece de nada. Todos me deram uma especial atenção, tentaram me distrair. Eu era tão menino, tão inocente, mas sabia o que significava aquele momento.
Eu sabia que meu melhor pedaço de doce ficava ali. Por muitos anos não consegui falar em você sem chorar. Agora também estou em lágrimas. De saudades, de vontade de te ver, de saber que se você estivesse comigo poderia ser mais fácil. De saber que no caminho, por vezes, encontramos mais espinhos do que flores.
Naquele inicio de ano de setenta e dois, nos afastamos para nunca mais eu ver teu rosto. Não sei se, em algum momento, viste o meu.
Estou diferente agora. Perdi aquele sorriso, perdi parte do brilho dos olhos desde aquele dia e agora ainda mais.
Acho que pra aliviar um pouco comecei a escrever. Assim, despretensiosamente. Nos anos 80 fiz algumas crônicas para jornais. Depois fui escrevendo algumas poesias. Em 87 participei da primeira antologia. Hoje são várias participações.
Participo de um site literário, tenho recebido até elogios. Acredita mãe? Verdade. Pena que você não pode ver.
Este ano tenho um projeto mais ousado, conto com teu apoio materno para que dê tudo certo.
Confio no teu amor. Confio na tua intercessão.
A parte triste é que não poderei te enviar, sequer, esta cata.
Você promete me ajudar mesmo assim?
Saiba que eu escrevo com o coração, com a sensibilidade e a saudade de um filho que não te esquecerá jamais. Quem sabe você, com teus poderes de mãe consiga ler. Tomara. Tomara mesmo.
Se não for possível me deixa, ao menos, sonhar que lerá.
Por hoje era isso mãezinha. Beijos.
Ainda amo você muito mais do que a mim mesmo.
Feliz ano novo pra você.
Feliz ano novo para todos.

Escrever é uma das coisas belas da vida, faço-o fluente e excelentemente, com a exagerada consciência tópica, própria de um cego e também a de um louco utópico, moderadamente creio, tenho uma razão sensível encastrada na ponta dos dedos, na língua, nos dentes e outra, dentro das orelhas, nos típicos ouvidos, falo discretamente com a alma a linguagem primitiva e divina dos templos acrósticos, escrevo nas paredes o idioma académico dos corrimãos "grafitados" para que todos entendam e será breve o que digo, pois sou órfão dos olhos e tenho de ser rápido a dizer, já que a sensação é forte e cheia de fé nos sentidos quando escrevo o que penso e digo, também porque escrever "a fio" é bom, faz bem à alma, porque não o fazer assim é banal e vazio, sem tino, só tem inconvenientes, por isso eu dito da consciência o que vale a pena ser tido em conta e apenas digo, se valer a pena ser contado, é o meu modo existencial e excepcional, refiro-me a braços e pernas, todas essas coisas que me não pertencem para sempre, assim é a escrita, a última dimensão sentida da alma, a melhor divisão da casa, onde me reúno comigo, renuncio à vida e pronuncio expressões invulgares, que já não me pertencem, o caso destas agora e de todos os nomes que lhes dou, de que lhes dei, poesia é a mais provável alcunha de todas as coisas, desde as mais simples e leves que a vida, embora nem tão belas nem tão ocultas, quanto a luz devassa contaminada com o escuro breu e o ouro puro, quando mutuamente se cobiçam e se culpam pela cupidez mundana nos olhos fracos dos humanos seres, qualquer semelhança com os deuses é comédia e farsa, desonra é pintura, poesia de poetas, alcunhas para os que se confessam decorativos servos da luz do dia e das trevas da noite, esguios anjos, caídos da guerra no pó da Terra, na lama simples, mas que dá vida, poesia é o apelido de tudo isto e do que ainda não foi dito apenas vislumbrado pela miopia humana, cegueira, amargura e a fome e a sede.
Defino-me como a excepção, não entendo os outros nem pretendo ser entendido por todos, não ajo nem ando como a maioria das pessoas que nem me sentem culpadas, por não me fazerem entender, é uma questão de consciência, não uma tragédia. A fome e a sede são insignificâncias perante a existência de cada um, mas concorrem e especializaram-se, assim como a hipoxia, cada uma à sua maneira e forma para o triunfo da mente humana e para que as palavras falem às vezes connosco e as entendamos.
A noção simples de existência é esmagada pelo desconforto da sede e da fome sobretudo, mais que pela miséria insana, embora sejam uma trindade. Já o que me costuma manter vivo é um desejo de comer e beber, absurdo para alguns e para outros, compreensível, regra “Sine qua non”. Defino-me como a excepção não pela inteligência ou habilidade, mas pela simplicidade, como água de uma fonte ou um pedaço de pão na mão de um miserável esfomeado, mas autentico, não pseudónimo de fraco, assim sou eu e sempre, prefiro o desconforto, pois é este que me faz pensar naquilo em que creio, conquanto produz em mim um sentimento de libertação, pois acredito na constituição de uma sociedade indivisível.
A Propósito de dizível, no seu teorema mais básico e como fiel de balança, é missão da escrita mais pura a confissão da loucura e esta consiste na exponencial capacidade de cada um em incestar termos, palavras/verbos, inventar temas, escrever novas frases, fundir em poemas inovadores ferro e magma, signos tão finos que brilhem no conteúdo e no escuro, que treinem os nossos corações atletas e os mais profundos medos, emoções, metas na condição de amanhecerem na lua, do lado magro e a sermos exímios maestros, mestres magos, gregos tanoeiros, não só mas também, nos nossos humilhantes fracassos e crassos erros. Insistamos, incestemos almas, matérias-primas e espíritos! Não há caminhar outro, suave e louco, embora o caminho não seja curto, crio (criamos) um longo e magno paradigma, não importa que nos indiciem de loucos e ansiosos; a minha, a tua ambição é amanhecer na Lua, do lado magro, nós outros longos, largos de ombro a ombro, o espaço infinito e vasto, debaixo de um só braço e o comando noutro.
Brinquei tanto ao homem legível e dizível, com iminentes faixas brilhando em tule de catedral, joguei com as palavras enquanto era "bem-visto" por todos os números menores que eu e divisível por dois, como se fosse eu protagonista do que conto, pois que agora, vista o que vista não me encontro mais no "Grand Palace" de cristal, nem na vitrina da “Cartier", desisto do outrora brilhante fato de caxemira branco e preto, sou invisível na plateia até por um mero espectador sentado quer na coxia, como na plateia, a orquestra pode continuar a tocar, monótona e igual, apagada como todos os dias, nada me salvará da morte permanente, assim fui eu sempre, a propósito de indizível, eu hei-de um dia descobrir o que digo quando escrevo, meus olhos nasceram em greve, meu entendimento é breve e leve, quanto um cometa inédito, segue e some, some e segue, assoma-me a loucura quando escrevo, assola-me o que escrevo e quando o faço assemelho-me a um louco, sendo ele, eu próprio noutro ...noutros. Acredito no silêncio e no amor quando posso, Pois que na posse não há amor nem silencio, impor é pro amor como o azeite para a água ou o vinho na comunhão das almas puras, falso e vicioso o som que faz um padre se o vaso é apenas vaso e a água apenas água e fraude.
Trago em mim dentro um mundo de inteiras frases, a poesia expõe-me e todavia explica-me pelas sensações e grafias mais profundas e subliminares, não se aplica o mero entendimento nela, ele é aparente podendo ser falso, ilógico, xeno frásico, bem melhor seria e é imitar-me a mim, eu próprio, elevando a dois, multiplicado pelo melhor exponencial, o conhecimento que tenho a menos, pois os poemas são como as tabelas periódicas, que nunca estão completas, há sempre um elemento em falta e uma órbita que o complementa, um planeta, uma lembrança assim como "valência literária" pode ser alcunha, quando a leitura não é assim tão pura, nem tão bela, a minha não é, sofro numa mistura de desapego e querer, faço na minha vida o que a ciência ainda não provou possível, reduzo os tolos sorrisos doutros, nas silabas e os modos com que cobrirão mil dos meus livros e às cinzas os mortos.
É difícil explicar a um demónio a dor da chama e o que pensa e sente um santo em forma da mula dos infernos ou a um “Semper Fidélis” des crente, perante a morte eminente, a pira do santo ofício e a orgia de sentimentos que o poeta sente, quando escreve e sabe que se está condenado ao purgatório, pelo que diz sem que importe, ele escreve com a expressão no rosto do demónio, qual tem dentro e que dói, numa dor de noite permanente, do desterro de ser gente, tão difícil de explicar por números primos e embora as opiniões nunca fizessem florir uma amendoeira, mas na minha cabeça, o centro fica em flor como que por encanto, quando penso, da própria dor parecer não tenho, nem tento dar opinião, nem tento, sorrio por outros motivos além de não gostar de estar sério, não ter inimigo nem senhorio nem presídio (mesmo que esotérico), aliás a nossa semelhança com os deuses é real, tão natural e antiga que às vezes me parece mentira e doutras parece que o beijo é sério, não é fé nem mistério. Nunca soube julgar tão bem como fui julgado por jogar mal com as palavra " melhor e bem", bem melhor é imitar-me a mim, eu próprio, elevando a dois, multiplicado pelo melhor exponencial, o conhecimento que tenho a menos e vejo crescer mais alto em mim o que digo, do que o que penso, o coração faz peso pra um lado, embora procure o equilíbrio, desabo na sátira de mim próprio, será a poesia o caminho errado, a alegoria não é um sentimento, sonhar não é uma anátema nem uma oferenda, é sonhador quem sonha por si, não por ver sonhar outro, com a alegria passa-se o mesmo, é como no luto, no opróbrio, no desalento.
Embora as vaidades nunca fizessem desabrochar uma figueira mas na minha cabeça invadem-me de aptidões em forma de raiz, o centro fica em nata de figo, como que por encanto quando penso, da dor opinião não tenho nem tento dar opinião, nem tento, sorrio por outros motivos além de não gostar de estar sério, não ter inimigo nem senhorio nem presídio (mesmo que esotérico).
Somente à esterilidade de interesse e inutilidade do meu entusiasmo se pode dever a falência como filósofo, sábio e/ou pensador, não tenho falácias que atravessem vedos, redes, muros e sejam a salvação dos espíritos mais endurecidos e obscuros, nem gozo intimo seguramente de pragmáticos sofismas que aumentem a minha credibilidade como ser consciente, é vital haver, possuir-se e despertar um sentimento de valência e entusiasmo em torno do trigo, para que agite ao vento as espigas, o valimento ou invalidade epistemológica é uma variável indefinível, imaterial e etérea, efémera, como silencioso e solene é o trigo sem vento que o abane, a textura é secundaria como o azedume no vinagre que não se quer num bom vinho, assim é o meu sentimento perante a vida, a sensação interminável e inefável que me arranca da realidade demasiadas vezes quando uso da inteligente doença da qual tenho de fugir que é o pensar sem vitoria nem renuncia simbólica, devo abster – me ou protagonizar expressões teoréticas plásticas de qualidade superior ou apenas apostar na prosaica criação menos dolorosa e desprovida de sentimentos e de esforço com que cada um cada qual pode sentir-se talentoso e reclamar percepção artista da mais solida estrutura possível gerada num universo geracional e bi-dimensual como este onde me encerro escrevendo, no azedume do vinagre , no cafelo da parede, na ignorância quase orgânica destas quatro paredes de cela em nau difusa ou carruagem "Wagon-lit" do "Lusitânia Express", não sou um solitário geriátrico, solitário é ter sangue novo, como um Simbad, ter talento de marinheiro de verdade, sangue azul cobalto de um místico asceta, título monástico de Conde varão de Monte Cristo ou ser apenas solidão, parecida a peste, marca comercial reles, rótulo de Sonasol gasto, decadente, detergente industrial, inferior a preço de sabão macaco em azul desalento, limão verde, amarelo e velho, suco gástrico e mijo, serventia de mata-borrão, azulejos de crematório em bege, solidão de velho, descrente !
Escrever é uma das coisas belas da vida, esquecer é outra coisa, embora possa ser uma lição de vida, quando nos relembramos do mal que nos fez aquilo ou isto, este ou aquele outro, pois do bem basta lembrar um bocadinho para apreciarmos o que sobra do resto do dia e o que somos, não o que fomos, esquecido, pois bem, escrever está certo e não é peso morto, recordar com a memória que nos emprestam não é, nem fará todavia do longe, o aqui perto, nem é realmente pouco, excepto pra quem viveu e morre, espiritual e estritamente cego na sua relação consigo próprio e comigo mesmo, e é relativo a "todos os nomes que te dou", por serem meus e estarem imponderadamente certos.
(Excerto de "Do que era certo")
Joel Matos 03/2019
Http://joel-matos.blogspot.com
continuo no meu entardecer,
trago as palavras caladas
por não as saber dizer
apenas murmuro as mágoas em tom
plangente, mas nem do coração ouço
qualquer som...também ele nada sente
melancolia de quem vai acenando à vida
deixando para trás páginas cheias
de viver e sonhar amor
que esvoaça incerto, não tendo por perto
das suas mãos o calor...
e hoje é como se o tempo se soltasse
esquecesse a minha já marcada face
e eu viesse ao mundo outra vez
só por fruir e amar a vida...talvez!
já toda me embaraço
reinventando memórias loucas
lembrando passo a passo
as carícias, os beijos das nossas bocas
fosse a nossa vida nada, sem amor e entendimento
não faria a saudade no meu coração assento
essa saudade que me escreve
e me lembra o que deve e o que não deve
faz dançar o coração, uma valsa lenta
e, a sonhar sempre me tenta.
natália nuno
rosafogo
Diones Batista
PS.: Pensamentos que me consomem numa manhã de segunda... Lá estava eu na secretaria tentando escrever alguns relatórios e como todos os dias a Dona Saudade insiste em me fazer passear pelo corredores da memória e me deixar angustiado por não poder beijar a única mulher que amo! Os sentimentos afloram em lágrimas que correm pelo meu rosto caindo no papel em forma de palavras compondo-se em um acróstico. Onde estiveres recebas meus beijos em pensamentos querida RAQUEL!
05 de Novembro de 2018
E quando chegar aquele trilho, o dos lábios afastados da minha boca da tua, será que ainda teremos harpas suficientes para musicalizar as memórias?
Diário do dia 1 (do depois de outros uns),
Em verdade hoje recordo a primeira vez que te beijei. Não os lábios, mas a alma. A força do impulso da minha boca que saltou dos meus olhos, invadindo os teus olhos, entrando neles, como a garça invade o riacho, e despe todo o corpo numa religiosodade plena de noites ancestrais. Nossas mãos, agulhas sobre a pele, rezam em silêncios as invocações dos nossos corpos, em transe, sob uma escadaria que entre o longe e o infinito nos torna tão próximos. Há uma música a acompanhar este beijar de almas... A nossa respiração, proibida, ofegantemente proibida, e os pássaros da noite, lábios, que se aproximam e se afastam,sem se tocarem, braços que se ligam em formas de eras, trepando o corpo nu de sombras, e o evangelho segundo nossas mãos se escrevem, se reescrevem, se pergaminham em torno de nós.
Diário do dia 2( depois tantos dois).
Invocamos hoje o nosso silencio. A noite está íngreme. Uma vertigem de silêncios infernais toma conta do nosso sono. Adormeces em casa da floresta onde dormes os olhos fechados. Deste lado, o sonambulismo das lágrimas toma conta dos meus olhos. Adormecido perante o abismo do amanha sinto as minhas mãos algemadas em torno da noite... Corro para a janela e grito o teu nome... O eco circunda-me a garganta numa voz invisível... Sinto chuva do teu perfume desaguar sobre mim... E uma paz sussurra no meu ouvido... Há um leve acordar dos meus lábios sentindo tuas mãos acariciando a minha voz.
Diário do dia 3 ( depois de tantos três)
O acordar do sono, resonhando na noite desperta, abrir a porta do corpo e numa valsa vestimos o universo de mil cores, falamos aos deuses no ambão e no altar do corpo... E os diários, os evangelhos que escrevemos nas noites de mágoa e de dor, de magia e sofrimento, ficam secretos em nós. Amanha haverá de novo realidade. Tu serás de novo horizonte, eu serei de novo passado. E as lágrimas serão divinas, eternamente eternas
Assim como o quase nada dos sonhos... Existe um pedaço de cinza, não de cor cinzenta, mas cinza de um lume que fica ali adormecido entre a realidade e o ocultez da realidade... Ficamos a arfar os sonhos, numa correria alcançável de se os tornar alcançáveis, palpáveis, saboreados com um toque místico.Diário do dia 4 (depois de tantos outros 4).
Sinto a espuma do mar me lavar o corpo. Sinto que as mãos que se me caravelam, adormeceram agora nas longas noites no alto do farol dos olhos. Cantamos os beijos e adormecemos a carne numa cinza incurável dos momentos explosivos... Sentir ainda uma viagem além mar e sobre as conchas guardarmos segredos, pérolas do nosso intimo, a nossa viagem secreta entre a dança e a palavra, entre o olhar e a boca.,,
Acreditar que toda esta viagem me faz despir os olhos, da intemporalidade mortal de todo o ontem. Sinto vestir-me de gladíolos, os sorrisos que saem da tua alma, invadindo a minha alma, e ficando-me sob o espelho das tuas mãos que vulcanizam o novo corpo
Eis o teu nome murmúrio em meus lábios,
Que tantas vezes tocaram os teus,
Sorrindo com os olhos,
Tão cintilante tesouro guardado,
Ao primeiro encontro notado,
Feito estrela de primeira grandeza.
O silêncio deste poema declama teu nome,
Versos da saudade que a rima do tempo,
Ornado de inspiração celeste carnal,
Recriou o desejo a nós concebido,
Tocando o infinito dos nossos corpos,
Interpretando o amor em sutilezas,
Inocência perdida da timidez vertente.
Ardendo em nossos beijos ávidos,
O pensamento grato deleite da memória,
Escreveu o livro plácido romance,
Cuja pena ímpeto alento,
Grafou no coração páginas confessas,
Audaciosa Loucura vivida.
natalia nuno
continuo no meu entardecer,
trago as palavras caladas
por não as saber dizer
apenas murmuro as mágoas em tom
plangente, mas nem do coração ouço
qualquer som...também ele nada sente
melancolia de quem vai acenando à vida
deixando para trás páginas cheias
de viver e sonhar amor
que esvoaça incerto, não tendo por perto
das suas mãos o calor...
e hoje é como se o tempo se soltasse
esquecesse a minha já marcada face
e eu viesse ao mundo outra vez
só por fruir e amar a vida...talvez!
já toda me embaraço
reinventando memórias loucas
lembrando passo a passo
as carícias, os beijos das nossas bocas
fosse a nossa vida nada, sem amor e entendimento
não faria a saudade no meu coração assento
essa saudade que me escreve
e me lembra o que deve e o que não deve
faz dançar o coração, uma valsa lenta
e, a sonhar sempre me tenta.
natália nuno
Tu me olhavas no fundo da alma com os olhos de um lago imerso em infinita dor. E nos teus olhos eu sonhei a luz púrpura do desejo, fogo que em si só consome e cria – o teu olhar eram taças de absinto que me inebriavam a alma e me assomavam memórias antigas, coreografias esquálidas de uma valsa que jamais dancei.
No limbo da minha poesia colho palavras inauditas que sobreviveram a ti, meu amor – e elas me falam de um tempo de trêmulas gotas de volúpia, como pássaros atordoados que caíssem às seis horas de todas as tardes no passeio público. São restos de naufrágio, coisas destruídas, lembranças de amigos mortos, ferimentos que ainda sangram na memória.
E no meu sonho eu me fiz bálsamo para a memória, prazer para o corpo e silêncio para a alma. E no sono da noite sonhei teus seios – momento entre dois desejos, onde após amar-te depositaria mil beijos, esperanças e anseios. Eram teus seios dunas solitárias que apaziguavam minha vontade, minha sede de prazer.
No instante que nunca houve, eu te apanhei nos braços e sonhei loucuras e calmas de pétalas e oceanos distantes, repletos de viagens e amores desfeitos - e tua pele, dourada pétala de crepom, hoje me soa apenas como salitre triste que renega o mar.
Talvez por nunca tê-la, querida, nunca me saciei e tantas vezes ainda sonho teu colo como um poema, o mesmo poema que um dia vi nascer desesperado em meus lábios, sangrando de dor e prazer, e que nunca consumou-se – tal qual nunca pude acarinhar o latifúndio vazio de tuas costas nuas.
O teu sexo, amada minha, o teu sexo também sonhei. E era ele, de início, doce fruto de pêlos umedecidos suspenso no cio da noite e, depois, gruta incendiada prenhe de manhãs ensolaradas. Ah, teu sexo que jamais tive e tanto desejei – imaginava-o leito de rios que cortam aldeias distantes onde os poetas costumam ir colher rimas e romãs para poemas que nunca escreverão.
Teus próprios sonhos, minha querida, eu sonhei um dia, e no meu vão delírio os vi reais em mim se recriando – ora como filhos correndo pela sala, ora vagas promessas como traças devorando minha triste alma.
Tuas pernas, ah, tuas pernas, tão lindas, como não sonhá-las?
Torres morenas de desejo, meneando sisudas e austeras na rua dos meus vinte anos, como se me dissessem meio sim, meio não – como quem deseja, mas não sabe como. Eram lindas e longas utopias – nasciam fartas nas ancas e quase inconscientes escorriam aos joelhos e se precipitavam delirantes aos pés que, eu sonhava, as trariam a mim. Quanta ingenuidade!
Oh, amada que não tive e jamais terei, vendo-te hoje assim tão longe, e no entanto tão perto, ainda sinto como se uma sombra calma me acalentasse o sono e me enfeitiçasse a alma, como se de repente todas as estrelas acendessem e tu finalmente se me oferecesses o amor que jamais tive.
Mas, qual nada, querida, teu amor é hoje apenas poesia. E se no silêncio da rua te imagino nua, Lady Godiva cavalgando a lua, e grito teu nome na solidão do quarto, meu grito soa como clarim barroco de um querubim, vazio e oco – eco silencioso de mim.
Hoje acordo só, sem ti, sem mim, sem ninguém, poeta febril, exausto como um fauno nu – e, lentamente, enxugo as lágrimas em meu leito vazio, recolho o que de ti em mim ainda é fome e novamente adormeço, sem sequer saber-lhe o nome.
Sim, triste, permita-me explicar. Todos os bolos que aquela jovem condessa preparava, tinha em sua receita, muito dos teus sentimentos que carregava contigo ao longo do dia, desde o primeiro sentimento que tinha ao acordar pela manhã com o sol adentrando pela janela do teu quarto e beijando seu delicado rosto como um desejo de bom dia e boa sorte, até o que sentia ao fazer a mistura para os seus bolos, com a água gelada, o leite morno e os ovos em temperatura ambiente.
Se acordasse triste, seus bolos eram recheados de sentimentos pesados e delicados, como a calda de ameixas que ela usava junto de um suave creme de merengue, nem muito doce nem muito neutro, exatamente na medida para que os corações de quem provasse pudesse de deleitar com a sensação de um beijo da pessoa amada depois de muito separados pelo tempo e espaço, e enfim se reencontrando. Ou quando acordava alegre e radiante como o sol em um dia de verão, tinha em mente alguns ingredientes diferentes para passar o frescos e o perfume desses dias alegres, algo como raspas de laranja por cima do bolo, a sua massa regada em água de coco, chocolate branco e preto com uma cobertura no meio contendo o frescor dos morangos mais vermelhos e suculentos que os olhos humanos poderiam presenciar.
O fato é, o último bolo que eu provei, estava excessivamente triste, fazia meu coração pesar e os olhos se derramar em rios de lágrimas. A minha queria e amada confeiteira, no dia em questão, estava de partida sem data de retorno prevista. Era aterrorizante pensar que, não saberia a data em que meus olhos poderiam se aconchegar nos dela, em um abraço de almas pelas janelas de suas gaiola. Mas fiz uma promessa em silêncio para ela, que mesmo sem que uma palavra fosse pronunciada ao menos, ela entendeu e concordou com o que foi prometido.
Havia te prometido, jamais em hipótese alguma, provar outro bolo que não o dela levasse o tempo que fosse. E assim se foram os longos sete anos, passando como os pássaros em migração, como as estações em transição. Neste meio tempo, vaguei pelas confeitarias da cidadezinha de Nautilus, apenas vendo o que tinham de melhor no quesito bolos, sem que provasse qualquer um deles, apenas degustava com os olhos e olfato. Em cada uma das confeitarias que passava certo tempo do meu dia, eu dedicava além dos meus sentidos e tempo de vida, as minhas palavras descritivas e imaginativas do que seria e qual sabor teriam aqueles belos bolos enfeitados cheios de requinte e sofisticação. Muito embora, alguns dos mais belos e perfumados bolos que vi e degustei com os olhos, me chamassem a atenção e me tentassem a quebrar a promessa e cair na tentação do desejo em prová-los, eu me mantive firme e forte como meu amor pela dama dos meus sonhos.
Levou cerca de seis anos e nove meses para que "o livro dos sabores" ficasse pronto, foi assim que o chamei. O livro dos sabores. E mesmo que não tivesse de fato provado nem um dos bolos, a descrição imaginativa era quase fiel ao sabor, segundo alguns dos leitores que adquiriram o livro, fazendo o sucesso de vendas exponencial por servirá muito bem como um guia de sabores da cidade de Nutilus, garantindo certa riqueza e calmaria de serviços pesados para este que vos escreve.
Comprei então, uma bela casa não muito grande não muito pequena, apenas na medida, com um vasto terreno plano repleto das mais belas árvores frutíferas mais saborosas e perfumadas de toda a pequena ilha onde a cidade se localizava. Tinha ao fundo da casa, um jardim de vidro para fins de tarde em relaxamento com a companhia de xícaras de chá. A casa em si, era rustica, de madeira, com cheiro de saudade e aconchego misturados com calmaria e amor, por todas as paredes que se olhava, via-se livros de receitas de bolos, doces e outras guloseimas e também alguns de histórias de reinos encantados e contos de fadas para que a mente pudesse viajar na companhia do chá e dos doces.
Meus afazeres diários, consistiam em ver o sol nascer, ouvir o canto dos pássaros e senti o perfume do pomar em passeios matutinos, sentar-me em uma namoradeira para ver o sol se por, e dar boa noite e boas vindas a chegada da lua. Entre um passa-tempo e outro, me pegava pesando nela, contando as horas sem saber quando poderia vê-la novamente. Minha casa se localizava no topo da colina alta, onde poderia ver o sol e a luz, as ondas do mar e as estrelas refletidas no espelho oceânico, onde eu podia ver toda a cidade, prever a chega dos barcos com suas mercadorias e especiarias, e pessoas do grande continente do outro lado do oceano que vinham em busca de aventuras gustativas e palatáveis. Motivo? O livro dos sabores.
Não querendo me gabar, mas o reconhecimento como cidade turística, se deve ao livro qual eu escrevi. Mas voltando ao foco central. Era 23 de setembro, o primeiro dia de primavera e também o mais perfumado do ano. Como de costume, naquele dia já pela manhã me levanto e dou bom dia ao sol e ao vasto oceano azul que reluzia o dourado dos raios do sol, servi de uma xícara de chá e fui para a varanda sentar-me na namoradeira como sempre, ouvindo o canto dos pássaros e sentindo o vento perfumado e salgado.
Me aprontei para descer a cidade, comprar um pouco de açúcar e outras coisas que estavam por acabar em meu estoque alimentício. Então, ia eu descendo a nem tão íngreme colina floridas, quando avisto ao horizonte, o mesmo barco que a sete anos atrás havia levado o meu grande amor para longe de meu coração. Era inconfundível, "Princesa Helena II" era o nome da embarcação, e pude ter pela certeza, assim que o mesmo atracou ao porto.
Rapidamente, meu pobre coração sofredor, deu-se em pulos de alegria e esperança de que ela estivesse voltando para casa. No mesmo segundo, meus passos aceleraram o compasso, me levando ao pé da colina e início da cidade. Me dirigi rapidamente ao porto afim de logo encontrar a outra metade do meu coração que havia partido.
Com toda a esperança e saudade que transbordava em meus olhos, sequer prestei atenção no tempo que fazia na ilha. Embora houvesse sol e fizesse calor, vinha do outro lado da ilha algumas nuvens negras e tempestuosas.
Chegando ao porto, me deparo com a cena mais bela que poderia ver com meus olhos alegres e apaixonados, era ela realmente. Linda como sempre, com teus cabelos negros e encaracolados, os lábios grossos e carnudos como me lembrava, a pele tão branca quanto a neve que caia nos meses de inverno, e um sorriso radiante capaz de ofuscar até mesmo o sol, sem esquecer aqueles olhos cor de mel esverdeado com leves manchas negras pintando toda a íris.
Enfim, meus olhos e braços com saudade e cansados de esperar, puderam novamente se entrelaçar ao corpo delicado e frágil de minha amada, Taísa.
Corri em direção a ela, com todo o amor que havia guardado para dar-lhe, e toda a saudade estampada em minha face, corri e ao chegar bem diante dela, disse.
- Obrigado, grande e vasto oceano, obrigado por trazer de volta o meu grande amor.
Sem que pudesse conter a saudade, ambos desabam em lágrimas juntos, colados um ao outro. Então tomei ar aos pulmões e disse olhando aos olhos dela, segurando suas mãos quentes e macias.
- Vamos, sem demora, vamos até minha casa e lá, te sirvo um chá e então tu me conta dos longos anos fora, como foram e como era a tua vida longe de Nautilus e do seu amado e fiel freguês.
E sem demora, fomos juntos em meio a conversas, troca de olhares e sorrisos posteriormente, fomos até o cume da colina onde residia toda minha vida.
Chegamos, e fui mostrar a casa para ela, mostrei os muitos livros de culinária e confeitaria, mostrei o pomar, mostrei também o jardim de vidro, e sem esquecer, mostrei também a bela cozinha que havia construído pensando nela.
Faltou-lhe palavras para expressar tudo que sentia, mas não me importava tanto assim, apenas desejava de coração saber como tinha sido todos estes anos longe, queria saber de tudo que havia feito até o dia de sua volta para a ilha. Então, ficamos horas sentados na namoradeira conversando sobre os anos, sobre as mudanças e aprendizados, ficamos horas até perder a noção do tempo, e quando nos demos conta a lua já estava aparecendo no horizonte.
Eu e ela, adentramos de mãos dadas a casa, e nos dirigimos até a cozinha onde fiz-te um pedido.
- Oh Taísa, meu grande e esplêndido amor, desejas tua vida comigo dividir, nesta casa que te pertence mais que a mim mesmo?
Pudesse eu, prever o tempo e suas árduas intempéries. Taísa disse-me que já havia se casado com um grande e rico conde do outro lado do oceano, o qual possuía grandes fábricas de confeitaria. Falta de atenção a minha, pois como não pude ver o grande anel de brilhantes em seu dedo. Tolo, como pude ser tão tolo.
Enfim, depois de me explicar toda a situação enquanto preparava um bolo para acompanhar o chá, em meio a tempestade de começava a cair. Pasmo com o fim da história, só pude compreender e aceitar, aquele amor, jamais me pertenceu. Ela ela dormiu em minha cama, e eu sem sono, continuei no comodo de baixo, olhando aquele bolo quase tão triste e ao mesmo tempo alegre, quanto eu.
No outro dia, bem cedo, ela partiu sem se despedir.
de reinventar um novo coração
uma perene historia de amor. . .
de escrever sobre ardente paixão.
Ou a embriagante tensão do desejo
escrever um verso como fosse um beijo
dado no canto da boca, na boca todinha
um beijo de língua, escancarado no verso
linha a linha.
Não deixe que me tirem o pranto
a tristeza que evoca a minha alma
a dor da perda, do desencanto
dos amores perdidos de outrora
Sei que vou morrer a morte dos esquecidos
sem ninguém. . . parentes ou amigos
sou ave errante e sem ninho
e neste mundo indiferente e cruel
resta-me apenas, memórias, um lápis e um pedaço de papel.
Queridos amigos com esta poesia eu fiz um vídeo que postei no youtube fiz com mto carinho se puder faça-me uma visita vou ficar mto feliz,
http://www.youtube.com/user/processolento
Inerente sem dizer palavras
Talvez espere de mim que eu diga quem somos
Uma alma mexida demais, cingida como as cascas e conchas espalhadas numa praia infinita
Para lá das brisas nômades, das noites insones
Dos amores que não fizemos,
Quem sabe se encolha em meus medos e nos caminhos vazios
Onde as copas frondosas das arvoes gigantes me escondem os céus
Ou nas memorias que eu invoco e não me veem
Em meus dedos feridos de trabalhas nas pedras,
Do tempo que me escreve nas mãos as orações esquecidas
Venha sussurrar ao meu ouvido alguma antiga lembrança de ti e de mim
Alguma sonora melodia onde eu possa vê-lo
Ainda que sejas a imensidão que me engula inteiro, me digira e me vomite como um feto, um verme ou a saliva bendita de um beijo
Charles Burck
"Escrever-te sem que tu saibas" - É o conceito unificador de um diário de bordo escrito pelo mar báltico, durante oito dias, um texto por dia. As fotos foram feitas durante a mesma viagem e estão associadas aos textos.
#1
Sempre tu
À noite, que ali e nestes dias pouco tem de escuro, sentei-me no deck panorâmico.
Ainda estacionados para receber passageiros, as gaivotas saudavam os novos e subiam para me beijar os pés.
Até nem foi bem assim. Elas beijavam o reflexo no vidro a ‘pensar’ que me beijavam os pés.
Depois, as gaivotas subiram ao coração e sacudiram os fios da minha memória.
Queria que estivesses aqui.
Ficaste do outro lado.
Nem sei se algum dia vais poder estar no lado em que eu estiver. Ao meu lado.
Queria que viesses.
Não posso pedir. Não devo pedir.
O não dever pedir é mais forte do que o não poder fazê-lo.
Agarrei neste caderno, o das folhas antigas e que diz “Dreams come true”, e escrevi-te. Mas tu não sabes.

2
A eterna preguiça que há no mar
O mar espalmou as horas e distendeu-as.
O mar juntou trinta minutos a cada hora da terra para ter tempo de preguiçar.
O mar armou-se em engraçado e fabricou um relógio só para ele.
O mar enfiou no relógio as horas espalmadas e distendidas.
O mar engoliu o relógio e ficou com uma barriga muito grande.
O mar às vezes tem a barriga tão grande que lhe crescem dobras onduladas.
O mar deixa que eu, e talvez tu se lhe pedires, acrescentemos mais dez minutos a cada hora. Por causa dos batimentos da alma.
O mar não deixa afogar mágoas. Tem boias de salvação.
O mar não engole as mágoas. O relógio deixou-lhe a barriga a abarrotar e não a dar horas.
O mar deixa lavar as mágoas. Até podem ficar a boiar.
O mar devolve-nos as mágoas bem escovadas para as amanharmos melhor.
O mar chateou-se com as minhas mágoas e enfiou-as no meu caderno dos sonhos.
Escrevi-te. Mas tu não sabes.
#3
Tubos
O céu é o que se assemelha mais ao mar.
O céu e o mar são irmãos gémeos. Gémeos falsos.
Nada que tenha a ver com o sexo.
Muito embora o céu tenha anjos.
E tanto se discute acerca do sexo dos anjos.
Já descobriste? Vá, vá, diz-me.
A única diferença entre o céu e o mar é o estado do lençol.
No mar, o lençol está sempre encharcado.
No céu, o lençol só deita gotas quando é lavado.
Ao longe, pensei-te piano. Os meus olhos até foram buscar um banquinho em que sentei um pianista a interpretar uma peça.
Juro que ouvi o nocturno em modo diurno.
Na aproximação, vi-te um conjunto de trombetas a apontar para o céu.
Convoquei os anjos para te usarem a preceito.
Meti-me debaixo de ti para averiguar o estado do lençol.
A cada canudo correspondia um retalho.
Acolchoado de algodão, pedaços de linho, tiras de seda.
Acrescentei comprimento aos braços.
Para compensar a dificuldade em pintar-te sorrisos, escrevi frases em cada retalho.
Saí debaixo de ti, alinhei os pedaços no caderno e escrevi-te. Mas tu não sabes.

#4
Do fim
Pensas na morte?
Perguntei-te junto aos túmulos de alabastro.
Não respondeste.
A morte não se diz.
Dizem para aí.
E tu és desses? Vá diz, diz, diz…
O meu eco abanou os cordões de ouro.
Mortos pintados a ouro… Valem mais, é?
Qual é a cotação do morto em relação ao vivo?
Também não sabes?
Os teus olhos quiseram calar-me com o fogo roubado aos santos.
E calaram.
Voltei costas e escrevi-te sobre a morte.
Tu não sabes que te escrevi?
Ou finges?
Eu digo a morte, sim.
Penso nela todos os dias.
Ou quase.
Penso na minha morte, não na dos outros.
Sempre pela possibilidade de ela estar mais certa para mim.
A imortalidade não deixou sobrar uma nesga para mim.
Foi a noite do mármore.
A pedra fria, branca, muito branca… Conspurcada pelo animal danado.
Estar no fio da navalha muda o referencial da vida para sempre.
É um pressentir estar aqui pela última vez, mesmo sem motivo para descartar a repetição.
O mais seguro é não estar.
É um viver em despedida, sem vislumbre de retorno.
É um sentir vazio de futuro.
É um perceber constante da vida com sofrimento. Porque a vida tem-no sempre. Mais, muito mais, quando não há amor.
E tu não estás, meu amor.
Medo de morrer?
Interroguei-me junto às bochechas rosadas dos anjos.
Não, perdi-o todo de repente.
Ou parece.
Era de noite, estava frio e arrancaram-me tudo.

#5
Ao pôr-do-sol
Desceste enrolado nas gotas de suor que deslizavam sobre a minha pele.
Percebi-te
nos arrepios bons
nas picadas ligeiras
nas borboletas na barriga (– Essa é de adolescente?! Tens cá uma graça!)
no mareio da competição com a laranja orgulhosa.
Uma laranja inchada, gorda, redonda,
bola que rebola no negrume ondulado.
Irrequietos, profundos, com pinceladas breves de tristeza,
assim são os teus olhos bonitos.
Ainda mais na noite do fogo,
reflectidos nas águas doces do mar.
Sorrimos em modo gigante.
A primeira vez!
E a laranja rabugenta a querer dormir.
Que maçada!
Rabisquei à pressa o nosso desenho,
para juntar à missiva da garrafa cristalina lançada ao mar.
Já chegaram os traços que grafei?
Tu não sabes que te escrevi, pois não?
#6
Da química
O trabalho e o amor implicam sempre sofrimento.
Foi o que disse a rapariga dos olhos azuis e pele muito branca, enquanto nos guiava pelo bosque.
Nós aprendemos a lidar com o sofrimento e por isso dissimulamos as emoções. Os homens ainda falam menos sobre o que sentem e por isso sofrem mais.
Continuou a menina-mulher de semblante triste.
Estanquei o coração e quis agarrar-me com força à razão.
Para tentar encontrar algum fio condutor.
Porque, para mim, as mulheres à minha volta pareciam estar dessincronizadas.
Na véspera, a matrona, ao explicar um quadro, dissera sem ponta de hesitação que o pintor foi um homem muito feliz. Ela nunca falou com o pintor, nem trocou correspondência… Ela nem sequer viveu na mesma época do homem.
[E sem que tu visses, rabisquei à pressa estas notas para ti. Não fazias ideia da minha missiva, pois não?]
Os palpites sobre a in|felicidade alheia parecem-me abjectos, por muito frio e cru que tal seja interpretado.
No outro dia, o rapaz de trinta e picos e que de longe alinha palavras cuidadosas e doces, dissera-me que o melhor é evitar-se a paixão por causa do sofrimento que vem a seguir. Julgo que ele não acredita no amor. Tão novo, já viste?
Como se evita a paixão?
E é preferível evitá-la, caso seja possível?
As vezes penso que seria mais fácil não te desejar com esta força avassaladora... Mas não, fazes-me falta.
A rapariga de olhos azuis e pele muito branca encontrou um rapaz. Cumprimentaram-se de forma cúmplice e sorriram.
A pele dela avermelhou-se.

#7
Apeteces-me
Abri a janela e deixei-te o bilhete que escrevi às escondidas.
Encontraste-o?
Corre, corre!
Vem para a barca.
Deslizaste as mãos pelo meu vestido branco.
Cintaste-me.
Peguei na tua pele e juntei-a à minha pele.
Dão-se bem!
A minha pele com a tua pele.
Deixámo-las brincar às escondidas - tudo às escondidas? - debaixo das pontes.
Tão baixinhas!
Olha a cabeça! - avisavas-me a cada novo buraco.
Sabes que gosto muito de ti?
Sorriste-me com os olhos brilhantes.
Atiro-te para trás.

#8
Nas nuvens
Tudo me parecia muito distante.
Não eram as coisas. Não era um desligar dos procedimentos necessários.
A distância, que eu queria que fosse cada vez maior, era do ruído infindável do caudal de reclamações.
Nada esteve bem. Nada estava bem. Diziam.
Sem que vissem, recolhi-me nos meus pensamentos.
Ou o meu grau de exigência andava pelas ruas da amargura ou aquela mole humana mostrava sinais de ter passado um punhado de dias num campo de concentração. Não para se concentrar, está bom de ver. Naqueles campos à antiga.
Apeteceu-me gritar. Não. Já havia demasiado ruído.
Puxei pelo caderno dos sonhos, aquele em que peguei ao calhas antes de sair de casa, e continuei a registar palavras para ti. Não as viste, eu sei. Um dia... Talvez.
Ali do alto respiro fundo.
Vou para perto de ti. Mais perto, talvez.
Continuo a querer que venhas para o lado em que eu estiver. Para o meu lado.
Sabes que tenho esse sonho muito bem guardado naquela caixinha de que te falei?
De vez em quando vou lá espreitar. Levanto o papel de seda e atiro-te beijos. De volta, sempre os teus olhos bonitos. Irrequietos, profundos, com breves pinceladas de tristeza.
O que fazemos para estar acima do bem e do mal?
Será que o amor é responsável por toda a nossa alegria?
Os antigos filósofos apaixonados por conhecimento ou até mesmo pelas estrelas sempre deixaram para traz um grande amor.
Será que nós somos os filósofos que ainda vivem entre o tempo?
A chama que queima dentro do nosso peito arde a cada nova manhã
Fazendo-nos olhar para o nada e imaginar as milhões de oportunidades que teremos para amar
Será um fato? Será uma mentira ou o destino?
Os livros derramados de memorias são as provas que ainda existe amor.
Os poetas, ah os poetas. Seres que respiram amor, deleitam-se em um momento acontecido ou até mesmo um pôr do sol.
Escrevem linhas e mais linhas de sentimentos, carregado com o peso de cada coração que virá a lê-los
Iram repassa-los para alguém que ama ou apenas guarda-los para quando esse momento chegar.
Lindos são os amores dos poetas.
Nós somos os filósofos de ontem e os poetas de amanhã
Escrevemos nossa história em um olhar, em um gesto e até em um beijo
Deixamos na história nossa marca de amantes, amigos e amores
Que nada dure e ao mesmo tempo que viva para sempre esses são os votos de um Poeta.
Jefferson.
quando você quiser me dar um beijo na boca
por favor não me diga nada
sou um astronauta das madrugadas
sob a influência de aquário eu nasci
tenho os mais diferentes conceitos
sei que a terra gira que o vento faz curva
e que as estrelas são psicólogas
dos bêbados e das galinhas
por isso quando você quiser me procurar
me achará dentro de um livro
de rimbaud ou de artes plásticas
ou ainda ouvindo schummann
os meus conceitos as minhas poesias
os meus retratos são fúnebres concertos
de vanguarda e de guarda-chuvas
aliás eu adoro a metafísica de um pé de mamão
sonhos tenho aos milhares de milhões
nas esquinas os meus passos têm o esboço
da via-láctea e a minha poesia dorme de costas
tentando conversar com o futuro
RECÉM-FORMADO EM BOTÂNICA
arrumei cinco folhas era madrugada
na mesa um macarrão fora de moda
agora não posso desistir
os meus óculos passeiam pelo chão
o dia inteiro não foi como uma sinfonia
por ironia não foi como uma de mahler
rasguei a primeira e joguei ao destino
as minhas pupilas declamavam rilke
estava ensaiada toda a obra da minha vida
tudo fantasia do meu retrato que sorria
sem parar gáudios de safo
o pensamento platônico me fazia brincar
com uma borboleta
o tempo não depende das asas de uma borboleta
a segunda tinha um tom meio balzaquiano
rimei em versos dodecassílabos
antes de opugná-la ao lixo
a noite navega como um argonauta apaixonado
o sono toca sua harpa indolentemente
o tempo aterrissa para confidenciar ao crepúsculo
a terceira veio impulsionada pelo concerto de brahms
desta vez o inverno não chegou aos meus ombros
com ela o sincretismo de descartes
sófocles ao piano passa pelo meu subconsciente
estava eu em delírios gregos
a lua começa a bocejar
tudo é sombra e abandono
no meu quarto a vida é insatisfação
de quem nunca viajou por si mesmo
a quarta completa os estágios de mallarmé
não consigo esquecer os versos do sobrinho
neste momento tudo é pausa
o universo é monótono átomos em prosa
o poema flui como galáxias
a madrugada brilha uma vez mais
a quinta está completa
pelos passos prostituídos das outras
o tempo não depende das asas de uma borboleta
COTIDIANO DE UM POETA
acordo às nove e meia da manhã
com os olhos no sol que dormiu
comigo pego um copo com água
olho-me no espelho escovo os dentes
sento-me em uma mesa
como um pão com chocolate frio
aos poucos vou me sentindo no mundo
minuciosamente vou em direção ao quarto
observo a velha máquina de escrever
arrumo algumas folhas e começo a trabalhar
a mesma cor metafísica de sempre
a névoa começa a dançar em meus neurônios
sinto-me como se estivesse com ressaca
tento estralar os dedos como forma de abstração
uma pessoa me telefona está tudo bem
volto para o vazio não sei me convencer
estou perdido nem o noticiário é interessante
a tarde namora meu telhado
estou confuso sai a primeira linha
muito inocente desenho a chuva no campo
a lua para atrás da minha janela
é tão estranho que a noite não me sorria
ouço prelúdios de brisas
aprendo a conviver com a verdade já é tarde
minha cama é o caminho da eternidade
amanhã quem sabe
eu me ouça menos
e a poesia fale
VIOLETAS DANÇAM NO PLAYGROUND
sete e meia da manhã
um menino busca o pão
a família o espera
oito e vinte e cinco
um carro o atropela
doze e quinze
a família fica sabendo
dezesseis e trinta e sete
o seu corpo é sepultado
sete e meia da manhã
do dia seguinte
o pão aumenta
uma família diminui
A PENÚLTIMA CASA
1. eu não lerei o último
poema meu
talvez seja anacrônico
ou até mesmo contrabandista
2. terá por certo a perfeita alusão
de mim
sem me desvendar
3. cicatrizes no peito
olhos bem espantados
2,20 m de curiosidade
4. suave como borboletas
no cio
metade eterno por todo tempo
metade orgasmo por insatisfeito
ETERNIDADE MÍNIMA
estou cego
e a coleção completa dos filmes
de lars von trier ainda não assisti
o gato que antes passeava pela minha
imaginação agora só dorme no tapete
entre todos estes combalidos anos
não encontrei o lado b da vida
que consiga me causar espantos
ou a mulher de beijos estonteantes
que me faça negar meus pedros
estou cego
e a felicidade é só mais um lúdico cartaz
os fantasmas que nunca ousei encarar
riem das minhas fotos de casamento
amigos me culpam pelo crasso silêncio
mesmo a guerra não declarada
do meu comportamento antissocial
é capaz de compreender
os carinhos extremos dos amantes
da ponte neuf
estou cego
e cada vez mais os sorrisos recuam
os amores não mais se reconhecem
o absurdo sepulta em mim seu engano
na incerteza cambaleante de continuar
A DOMÉSTICA CASA DAS INVENÇÕES PARTICULARES
o tempo elege sempre uma vida para levar
mas aprendi que não existe certeza
antes corria dos trilhos incendiados
para compreender a perda que imaginamos
nem todo dia é para comemorarmos
existe uma parada ela estava lá silenciosa
há uma música que sempre ouço pela manhã
faça chuva ou quando lembro de meu pai
estão disfarçados os amantes que mandam flores
sem meus valores não julgo ninguém
meu filho acha engraçado eu dormir de pijama
a vida é uma série de confusos movimentos
escolhi o vazio dos lugares sem nomes
para mutilar lembranças que nunca existiram
RODOPIO
não esperarei mais
que teus beijos encontrem
meus sapatos trocados
nunca ninguém me disse
que eu deveria correr tanto
amar foi para mim
uma estranha maneira
de se comparar amanhãs
sempre segui na contramão
do que eu sentia sem saber
não sei te amar mais
do que uma imagem
desfocada no espelho
OS PÁSSAROS
a cada dia extinto uma dívida
imagens que rangem no espelho
ouso sentir mais que quase tudo
talvez bispo do rosário tivesse olhos
para os infalíveis caos que me perseguem
às vezes desamarro
meus girassóis
cada foda que dermos uma serpente
tigres famintos rodeiam minha solidão
enquanto escuto o sussurrar das coxas
teus olhos parecem se perder em mim
nem mesmo os poemas de hilda hilst possuem
a báquica carne
de tuas ancas
possuídas
MÃOS
as mãos sobre o papel
como se fora um barco
o papel
mas na verdade um branco
que dói
as mãos sobre o papel
como se esperassem um sonho
nascer
mas na verdade é um sino
que nasce
as mãos sobre o papel
como que derrotadas
por hoje
mas na verdade a derrota
não houve
as mãos sobre o papel
como se não tivessem nada
a fazer a vida inteira
mas na verdade o tempo
não importa
ESTUÁRIO
poesia
uma insatisfação
pausa que pulsa por detrás
do mundo lâmina de alta precisão
contraventora de palavras
fuga da minha imaginação
destino que me alucina
rupestre inscrição
incêndio controlado
em minhas mãos
HABITAÇÕES
I)
vague entre estrelas e sóis imaturos pregue a doutrina do beijo
compreenda a dor enamorando-se beba o belo e o feio que são
eternos vista o sonho de realidade ressuscite retratos amarelecidos
com o mesmo ontem solitário experimente novidades sem naufragar
em mares de nunca cruze a saudade velejada nos ombros
II)
fale de ventos e tempestades íntimas dance com ternura a valsa dos
peixes deposite o azul dos céus nos olhos mudos toque em notas nuas
as pausas da solidão cicatrize feridas com um leve silêncio de luas
faça versos em sereno utópico à procura do momento exato anuncie
em prosa amiga a grandeza das trevas brancas
III)
cante para as noites as suítes úmidas do vento busque no horizonte
um sonho de mãos descalças trace o ridículo em carinhos incomuns
acene em gestos simples sem reduzir rostos de papel ultrapasse
mundos vazios sem flagelos de um soprar castanho escute histórias
de atalhos com urgência de nuvens
IV)
suavize as madrugadas num deleite de estrelas trilhe pelos muros do
tempo sem um único sinal de beijo póstumo envolva dores de mães
em dédalos de linho olhe para os homens como palavras rudes resista
calado às dores das cicatrizes amanheça em brumas com sonhos de
distâncias viva à sombra da foice sem massa de cadáveres
V)
pinte de aurora a tela do infinito pacifique cóleras com doações
de simplicidade respire corpos perfeitos sem cansaço de bandeiras
tenha mãos pacíficas e seja poeta até no desalento sorria sem perder
a identidade sonhe transparências sem nitidez de suspiros lute contra
os medos são apenas pensamentos
VI)
reviva a rosa noturna sem cotidianos de sangue dispa destinos
incertos na nua profundeza dos sonhos decifre províncias sem reter
liberdades pese pecados enrolando confissões sopre o perfume
das fêmeas acariciando orgasmos tenha segredos sem se tornar
prisioneiro conforme o pranto com travesseiros de nunca
VII)
abrace o covarde para que ele saiba o que é amar beije a face de
modo elétrico saúde cada momento com exatidão beltrana ore com
olhos sinceros para os de pés cansados procure na dúvida o futuro
embaçado absorva fábulas sem desperdiçar uma borboleta sequer
reduza incertezas em cemitério de comas
VIII)
garanta aos humildes um necessário lugar alegre a mesmice em
infernos de flores roucas dissolva o hálito da ruína percebendo o
silêncio mármore dos girassóis retire do lodo as pessoas puras
procurando a essência dos beijos conviva lúcido em um mundo de
hashtags whatsapps & selfies torne público o que de público não há
IX)
pregue um mundo de perdões de franciscos protestando contra as
mazelas seculares fuja dos intolerantes dos preconceituosos dos
moderadores e se arrependa das amantes que nunca amou acorde
e olhe para o céu para o sol e o mar para as estrelas como símbolos
contínuos do nosso existir sede vós a essência dos mundos
SERENDIPIDADE
quase observo
uma velhinha passear pela rua
do sol com os calcanhares duros
pelas tantas do meio-dia
quase cai e o vento passa
de longe apreensivo
pergunto se não quer ajuda
abre a sombrinha e me dá a mão
lembro do meu avô que morreu
em uma queda de um muro
ou melhor meses depois
de banhar por horas na chuva
abruptamente ela para me olha
até aqui está bom vá com deus
o caminhar impreciso e frágil
flutuava pelos paralelepípedos
como guiados por uma razão maior
LEITO QUATRO
se vai mais um dia entre muitos que pensei viver melhor olhares como
se esperança fosse um entulho de lamentações acelera meus pulmões
ginsberg tece comentários entre a luva indesejada e o prato de comida
que chega como hospitalidade aquele antro de desespero e chagas
destila em meu caos inconformidades com o divino que insiste em me
reter sem qualquer motivo na verdade queria estar em um aeroplano
sobrevoando as praias de humberto de campos ou conversando com
uns amigos na porta do bar do Adalberto
às vezes yeats faz me lembrar da samsara que é um copo de leite gelado
após a bebedeira flanando pela avenida melo e povoas agarrado nas
arrepiadas ancas de uma morena observo o marasmo da calcinha
da mulher que ri ao lado naquele bar entre estrelas descontinuadas
todos os meus provérbios de existir me negam tropeço mais uma vez
na mesmice de acreditar em corações complacentes hainoã quando
me chama de pai caem meus hemisférios sobre a baía de são marcos
há felicidade entre o roer de unhas e a dor da cutícula
na rua do giz minha vertebral luz minha jerusalém estoica meu
gozo sobre o colo de prostitutas noites que como beatnik caminhava
desolado em busca de algo mais que pudesse estancar as interferências
prejudiciais dos versos inacessíveis anti-herói soprava a dualidade
dos anos oitenta/noventa com barba rala & jaqueta desbotada
transpirando revoluta paixão um ser barroco à procura dos
espelhos perdidos com a obscura missão de continuar em precipícios
acreditando que há um verão orgástico no caminho do poeta
a verdade da vida era para ser escrita em forma de poesia pouparia
do desgaste secular de acreditar em são tomás de aquino o amor
só vale a pena se não exigir tíquetes de estacionamento bandeira
da mastercard crediário nas lojas de departamento da magalhães
de almeida agora recluso entre gotas interestelares seringas peidos
fortuitos e azedos o deserto de barreirinhas é o arpoador das minhas
abstrações bundinhas tesas adornadas de branco tangenciam minha
libido meu cacete endurece entre uma e outra troca de antibióticos
o céu mais azul que já havia visto se instala em meu coração do olho
d’água à ponta do farol iemanjá me guia com suas ondas caudalosas
o espírito de meu avô parece dançar entre as pedras de arrebentação
da ponta da areia batuques inebriantes cadenciam aquela noite
enquanto os trinta e nove e meio graus me jogam de um lado para
outro iniciado em rotinas e fast-foods inconformismos parecem me
tragar para o boqueirão se pudesse acenderia velas para os ancestrais
bashô está comigo é o que me deixa calmo pelo menos dessa vez
reviro-me para tentar apaziguar o cansaço do trópico de capricórnio
que há em minhas costas as mulheres da antiga sunset rasgam meus
olhos pela madrugada naquele equinócio de desesperança onde líamos
camus pessoa gullar chopes ecoavam no saloon pronto a explodir a
nudez de uma amistosa moça nem todos se sentiam na primeira fila
do carnegie hall o cobertor florido aquece meus ossos embargados
por um dia quase todo de febre e delírios ao lado da cama minha
mulher ronca baixinho como um poema arisco de alice ruiz
rabolú encontrou as engrenagens simbióticas de jesus maomé
quetzacoaltl pelas ruas desfilou em seu fleetmaster conversível muito
embora a discoteca fosse o religare preterido chove sobre os telhados
do turu e não sinto nada estou vazio como um biscoito ensopado
de café frio aproveito para conferir intempéries não aguento mais
ficar imóvel sobre a esquálida cama apesar de muitos livros ao meu
redor nenhum tem a atmosfera lúdica de peshkov se eu fosse líquido
precipitaria sobre os túmulos carcomidos do cemitério do gavião
queria caminhar pela rua portugal destilar imoralidades com sotero
vital ou ouvir o guriatã cantar que a coroa está no maracanã meu
alento são alguns metros quadrados e a memória profícua e desolada
a contemplar a kalevala entre uvas tangerinas e sorrisos de minha
mãe a conversar há uma catarse de choros e ainda não é sexta-feira
nos corações das pessoas nem mesmo o extremismo fático dos grupos
muçulmanos a cortar gargantas pelo iêmen calará os preciosos traços
dos redatores da charlie hebdo
meus cabelos parecem a décima quinta de shostakovich a antissepsia é
tão complexa quanto as linhas de nazca mamãe me dá uma ajudazinha
e me enche de sândalo barato ouço no rádio que o país não é mais o
mesmo crise à vista salários minguados violência se instalando dentro
das casas a oligarquia baixando a guarda no maranhão o mundo é
uma sobra de falências múltiplas enquanto uma criança vietnamita
chora a perda de seu cão assado em um mercado público a standard
& poor’s rebaixa a nota de investimentos no brasil
RELIGARE
o tempo todo guardou segredo
na noite de núpcias baixou a luz
pediu que eu viesse com calma
abriu o zíper virou-se de costas
beijei-lhe o pescoço as nádegas
a virei de frente desci a calcinha
suguei os seios a batata da perna
quando estava lá pediu que eu
parasse que seguiria ao closet
fechou a porta apagou as luzes
de repente surgiu todinha nua
maluquice da minha mulher
tatuar um buda em sua xoxota
MÍNIMO MÁQUINA
uma pessoa que escreve poesia
não é nenhum pouco diferente
de uma costureira de franzidos
de um instalador de antenas
não difere em nada
de um ostreiro de um pirata
que rouba barcos fundeados
na baía de são marcos
não é nada distante
de copeiros de fast-foods
de acionistas de fundos
de investimentos
pelo contrário
um sujeito como os outros
que desliza seus olhos
pelas cidades de si mesmo
uma pessoa que escreve poesia
de maneira alguma é diferente
a não ser por levar humanidades
dentro do seu hábito de caminhar
TERMOS E CONDIÇÕES
A velhice é a crítica da mocidade
José de Ribamar Brito
sempre quis o futuro todos querem o futuro
mesmo com suas ameaças seus mísseis e guerras
açoitado pela rotina não desnorteio o carinho
por quem um dia foi o meu amor
nunca seremos ideais ou seja lá o que for
nem admitiremos que a morte nos espreita
pelos corredores e filas ou no orgasmo
com sua manta pungente cheia de significados
vivo como se o respirar fosse sempre festa
não minto que já passei por momentos difíceis
me preservo ouço a chuva e preparo o espírito
ninguém nunca duvidará do futuro
nem as tais tecnologias serão capazes
de automatizar o que de humano já fomos
tudo se alinha com o que é certo
todos os contratempos são antíteses
ou então deus ainda insiste em estrelas
ninguém é muito diferente das ruas à noite
não existe futuro o que existe é agonia
lamentável que os sinais da existência
sejam reticentes ou maneiras de otimismo
já deixei você antes agora só quero voar
vou sair
procurar alguém para escolher minhas árvores
ouvir boa música ou mesmo sentar em uma pracinha
de um lugar sem ninguém por perto
pessoas passarão por mim
verão meu carimbado rosto
meu livro de cabeceira
a eternidade há muito deixou de estar
em meu cabide de roupas prediletas
sempre se constrói algo quando se tenta acreditar
vivências me fazem lembrar que pouco mudei
não havia cordas pesadas em meu pescoço
beiramos a estupidez ao pensar em inovações
tudo é complexo para parecer que estamos bem
não ria de mim eu também já me apaixonei
talvez reescreva meu destino na tua porta
ou quem sabe me desespere em fugir de ti
PASTO
quando fernando pessoa
ensaiava o livro do desassossego
minha avó debulhava juçara
nos brejos do interior
quando manuel bandeira
modernizava as cinzas das horas
meu avô galopava cavalos
pelas manhãs infinitas
quando jorge luis borges
ilustrava a história universal da infâmia
meu pai ainda caminhava
dentro da voz do meu avô
quando carlos drummond de andrade
apresentava a rosa do povo
o mundo se diluía entre guerras
meu pai carregava água nos ombros
quando pablo neruda
apaixonava com cem sonetos de amor
minha mãe descascava coco babaçu
para ajudar a renda da família
quando bandeira tribuzi
se mostrava em pele e osso
meus pais se encontravam
nos clubes de dança de são luís
quando cecília meireles
despetalava flor de poemas
eu nascia na benedito leite
com muita gritaria
quando luís augusto cassas
concatenava rosebud
eu nos primeiros versos
tomava um espanto
quando hagamenon de jesus
emplacava the problem
minha poesia começava a trilhar
entre as transições do mundo
quando ricardo leão
palpitava em primeira lição de física
meu combustível se expandia
em anticópias de paixão
quando antonio aílton
fulgurava com cerzir
há tempos já acreditava
na desordem das coisas
poesia essa ponte de significados
que trisca os olhos necessários
como se o tempo fosse incrustado
no penso parâmetro do porvir
A ESPOSA
i)
foi necessário perder a costela
para entender toda sua ontologia
mesmo no desfiladeiro não desisti
aprontei as malas retornei ao círculo
nesta turbulência pude entender
os romances de virginia woolf
ii)
apesar dos filhos da casa mobiliada
só restou o que não me desgastava
esqueci de tudo voltei para casa
abrigo de minha mãe um paraíso
não era para ser este destino
vivíamos em rota estrangeira
iii)
estranho ter que cruzar
com a alma em precipício
desconstruir incertezas
apostar o que não podia
desprender das perdas
estender cálidas feridas
iv)
apaguei os rastros
o caos se equilibrou
fui criando apego
pela paz interior
tudo se cadenciou
o amor revigorado
v)
a vida é o entrelaçar
de aparentes dúvidas
não crio mais expectativas
só com o que me satisfaz
meus olhos agora brincam
como sempre quis
INTERVALOS BURLESCOS
1
ele brinca atirando pedras no rio
enquanto o pai se distrai
com uma mossberg 500
caçando patos selvagens
2
a irmã sem o que fazer
ouve imagine dragons
entre gibis baratos
pede proteção a belzebu
3
a mãe com a boca
entupida de cannabis
descarta bitucas
no vaso sanitário
4
o namorado da irmã
bate na janela do quarto
entre uma transa e outra
faz boquetes inesquecíveis
5
o pai chega com o filho
coloca a arma sobre a mesa
bate na porta do quarto
da filha sem dizer nada
6
o namorado não espera
pula do terceiro andar
a mãe morre
de rir com a cena
CISÃO AMÉM!
aos 50 anos de Antonio Aílton
1.
era uma época de beleza de ignorância lamber os seios de uma mulher um feito merecedor de uma chuva de meteoros quando tocava meu pênis detrás daquele jardim luzes inebriantes solapavam os olhos vermelhos dela que se dizia relâmpago entre meus colhões a verdade é que todo aquele tempo vivíamos uma sinfonia de medos não seguíamos mais os beatles e o que se queria ser era só vanguarda ou rebeldia para agradar um bando de gente com suas interrogações doenças bombardeios ônibus espaciais se desintegrando na hora da sessão da tarde mas sobrevivemos a todos os meandros circunscritos nas calças jeans de nossos pais
2.
há muito estive cansado meus cachorros se jogaram de dentro dos meus olhos e escaparam da comida ruim dos fast-foods baratos é certo e não existe coisa mais desagradável que um punhado de caos no final de uma sexta-feira naquela cidade naqueles degraus da matriz de são josé de ribamar vi os olhos de deus caminhando nos cabelos crespos de uma senhora que vendia potes de barro meus pecados talvez não durem mais que o olhar do bêbado dormindo na porta daquela casa em ruínas a fila é grande para os que desistem de amar durante muito tempo desisti de me contentar com um pouco de sexo vinho e discos de pink floyd
3.
às vezes necessito que teus olhos larguem meus destinos nunca disse que amanhãs estão escritos na parede do quarto na incerteza encontraremos nosso refúgio necessário há um calendário de perdas no desnorteado sentimento tudo conspira e sopra a nosso favor mesmo desiludido encontro suas pegadas na minha sala de estar é a hora que me inflamo e beijo tuas mãos como reverência aquela fogueira não alcança mais minhas dúvidas divide meus vazios as coisas mudaram não são mais como sempre imaginei quando menino sentando em um banco de praça na avenida jerônimo de albuquerque conferia carros e admirava estrelas
4.
hoje passam por um menino na calçada profissionais liberais advogados pessoas comuns casais de namorados desviam do inoperante destino mudam os olhares talvez só o apreciem o sol a chuva ou um amontoado de latinhas descartadas os sentidos de todos estão vidrados mesmo é com o aumento dos seios da filhinha do papai são silêncios que nos perseguem que quebram as asas dos anjos se eu permitir você com suas conchas estarei contribuindo para o eterno marasmo que nos persegue uma esquina é sempre um bom lugar para chorar calma que deus até hoje não desabrigou nenhum filho seu por isso esperemos
5.
em horizontal perspectiva se esconde entre a neblina sugando a metafísica sem estralos da porta que o conduz ao precipício o faro de satã faz habitat na planície da noite é mais belo que o compulsivo sexo da amante amo a noite não me ouve às vezes ninguém me espera há uma chance para abrir a porta me sinto no precipício dentro dos meus olhos a vida basta as pessoas nunca se escutam espio o exercício de cada dia na espiral das escolhas todas as manhãs não tomo café meu vizinho ouve baixinho as notícias dos jornais nem mesmo chuva é ritual nesta existência talvez felicidade seja mais que todas essas coisas juntas
6.
ela desce as escadas do corredor risca as paredes sem motivo inventa caos é estupidez o retrato do que poderia ser estepe diário filosofia esperança e minha debandada ela que retrai sorrisos é luta íntima o olhar nervoso as estrelas o piano e as cordas vocais as rinhas os reinados a bússola a poesia e tudo que inverna e supera a maresia a santidade e a descrença é iemanjá a pausa a alegria dos casais por ela que tudo se acalma tudo se destrói com um gesto põe tudo a ganhar ou a perder é o destino a que todos esperam é o amor é a que se adianta porque nenhum inverno a espera nem a jose cuervo ou o cabaço da mocinha tremendo
7.
naquele tempo tudo era muito impreciso nem imaginávamos como seria nossa atualidade quantos filhos só intentávamos em comer um monte de besteiras já passaram tantas tempestades meio século e ainda corremos para a felicidade a vida anda chata demais nem mesmo jogar futebol ou empinar papagaios nos distraem a vida é um acúmulo de cabelos brancos aos poucos vamos brilhando cada vez menos rugas até nas fotos de infância desesperança e angústia nossos companheiros do andar de cima e saber que um dia não mais estaremos por aqui o mal existe deuses e raparigas lindas sorrindo no sofá de um clube de adultos
bioquemesito@gmail.com
há gestos que são só silêncios
e te olham
como as memórias olham o passado
e as noites, então, demoram-se
percorrendo as sombras sobre as flores
fazendo escuros os mundos
nos quais vivo sem ti
por que a poesia que tenho
é feita das palavras que não posso te dizer
escondidas em mim
desmedidas
te desejando
e sonhando nos amores todos
como seria te amar
em tanto amor pousado na tua chegada
em segredos
em ausências
na espera
respirando o teu perfume
escrevo
escrevo
escrevo
como se escrevendo cada vez mais
pudesse, enfim,
dizer-te coisas de amar
e, então,
a tua boca pousasse na minha
e todos os verbos diriam versos
e todos os versos diriam amor
nas noites insones fecho meus olhos
dou nome a ti
e canto e escuto o nome que te dei
e tremo dentro da solidão
sedenta da tua doçura
tudo é recordação
que os teus olhos põem no meu coração
às vezes me pego pensando
o que para ti eu diria
se eu pudesse
às vezes me pego pensando
o que para ti eu faria
se eu soubesse
e entrego à noite que habita em teus olhos
o nome que para ti eu sonhei
e que enche os silêncios do meu mundo
com uma canção de uma antiga voz branca e quieta
e um sol mirando o outono
a rosa entreaberta no vermelho dos teus lábios
lembrança do beijo
que não te dei
e que é o inominável das palavras
pra sempre nesta poesia
para sempre inacabada
Olho o teu contorno entre uma luz colorida,
Alguns cabelos à frente,
Os meus óculos a filtrar a tua memória,
Vivida, ausente.
Sorrio como parvo,
Um tolo feliz,
Por poder estar ao teu lado aqui.
Não sou teu escravo,
(como quem diz).
Enquanto a música toca e vais mexendo os lábios,
O tempo pára.
UAU, devo estar apaixonado.
O que dirão os sábios?
O meu coração sarara?
Feliz ouvi a música a olhar para ti.
A embriagar-me com a felicidade que emanavas.
Estou onde quero estar,
Aqui.
Tu onde estavas?
Quando me olhaste de soslaio
E me perguntaste se estava a gostar
Já estava a escrever na minha cabeça
Se isto é o ensaio,
Mal posso esperar.
Dou-te a mão e tu um beijo em mim.
O artista que todos gostam não é o que venero
Mas sobre o frio na espinha e o calor na nuca.
E as borboletas na barriga,
Assim sim,
É como eu quero!
Vai rapazinho toca,
Não é para ti que estou a olhar.
A pele da vizinha é a minha coca
Vou-me viciar.
Aquela nossa alegria
Passeando no Parque Municipal
De mãos dadas, fora sensacional
Isso sim foi um encontro de casal
Apaixonados, fomos ver um filme, que tal?
Divertimos tanto que não vimos o tempo passar
Abraçados ficamos na fila, esperando o filme começar
Sentamos nas últimas cadeiras
Acalmem-se, não pensem besteiras
Lembro que havia comprado doces para ela
Para mim já bastava o sorriso dela
Mesmo na sala escura, conseguia ver
Queria novamente aquela cena reviver
Mas quero apenas escrever versos com sentido belo
Então mais uma vez, a caneta pego
Escrever sobre aquele tempo eu quero
No começo do filme perguntei qual era a história
Não conhecia ele, mas quem escolheu foi ela, oh glória
Disse para mim que se tratava de uma batalha
Imaginei que seria como escudo e espada
Acabou que minha mente, pela imaginação, fora enganada
Se tratava de uma luta, por uma causa
Imaginação minha era falsa
Me perdi muitas vezes
Provavelmente mais que treze
Já ela, interagia com o telão
Em alguns momentos, apertava minha mão
Ela participava da ação
Disso ela não podia dizer que não.
O filme, para mim, tinha uma extensa duração
Para ser sincero, não entendi o objetivo, a razão
Inicio ao fim foi, na minha mente, uma grande confusão
Sua luxúria me chamou nos créditos finais
Não fizemos nada demais
Haviam, na sala, outros casais
As cadeiras estavam "atrapalhando" os abraços
Aqueles famosos "amassos"
Chamem do que quiserem, mas dessa memória não me desfaço
Os créditos estavam repletos de cenas à repetir
Apenas seus beijos, naquele momento, queria sentir
Eu nem mesmo tentei resistir
Eu apenas sorri
Aproveitando o amor que ela sentia por mim
"Também amo à ti"
E o filme chegou ao seu fim
Acabei por não entender nada
Partimos então da sala
Estranhamente, dizia ela, estava cansada
Claro, foi a sessão de cinema mais animada
Onde certas garotas, ao filme, participavam
Animavam, encantavam e festejavam
Ela não fora a única
Antes que apareça uma dúvida
Eu estava satisfeito com aquilo
Não queria me desgrudar daquilo
Ela era minha noz, e eu um esquilo
Ao lado dela, caminhava tranquilo
A solidão não pesava nem um quilo.
Retornamos ao imenso Parque
Eu mesmo me perguntei, "Para quê?"
Ela dizia gostar dali, era relaxante
Porém ela disse isso de forma interessante
Ela começou, comigo, a procurar
Um cantinho para nos sentar
E também para ela descansar
Aquele lugar era ótimo para encontros
Haviam casais nos quatro cantos
Foi bom, não havia ninguém em prantos
De frente para o lago, encontramos o lugar
Uma relação não gira em torno de "beijar"
Ela queria contar, mas estava calada
Desejaria ser abraçada?
"Daria uma facilitada", pensei
"Gosto muito de você", "eu sei"
"Sinto o mesmo", disse para ela, "minha pequena"
Tudo ficou calmo, ela parecia serena
Me abraçou e no meu ouvido, baixo, falou
"Obrigada por me fazer feliz"
E a cabeça, em meu peito, encostou
Deixo agora uma nota do autor
Que no caso sou eu, o escritor
"Sinto tua falta, e não saberás
Espero um dia poder te avistar
Não poder mais te abraçar
Não poder, pelas ruas lotadas, te carregar
Deixando-te envergonhada
Pequena enciumada
Agora és a ex-namorada".
estou sendo 1% de mim desde o início do ano. não avanço, mesmo sentando e tentando ler, estou secando. isso não é tentar. isso é se perder no tempo mesmo sem tempo contando os numeros do relogio na tela do celular como se o tempo fosse me matar, como os livros e as palavras não lidas e não expressas. eu tenho uma semana para envelhecer e ainda não lancei um livro de poemas, não construi uma casa na árvore e nem entreguei a minha última carta, ainda não joguei com meu companheiro de vida bexigas cheias de água e tampouco subi a árvore para compor uma canção nem mesmo dedilhei um violão e não pulei na água mesmo estando abaixo do pescoço eu sorri apenas e depois fiquei séria. é só isso que sei fazer: ser séria e fingir ser feliz em meio a tanta desorganização de vida sem tostão e sem rota concreta de beijo, amor e suor, de sonho e estabilidade de mente e de alma. está tudo empoeirado, livros espalhados, retratos dentro das páginas perdidas no tempo contendo magia de anos atrás quando fui criança e feliz quando tinha nada e ao mesmo tempo tinha tudo e hoje nada tenho só tenho um nada enorme desenhado na minha memória, nas paredes, na mão de uma corda. há tempos não escrevo uma história senão poemas livres de doenças sentimentais e resquícios de tanta gente que desgraçou meu eu e de tantos eus malfeitos e mal escritos dentro do meu coração discreto incoerente e poroso. poroso feito corpo de ator prestes a enraizar os pés no solo e erguer os braços na inquietude e desejo de alcançar o céu e a presença mística quase impossível de um intérprete bicho corpo não doido mas todo, ser todo no espaço tempo em outro mundo, outro mundo tão desejado e distante. reparo em mim e nos outros de corpo e tenho visto tudo embaçado manchado preto porque minha visão não serve mais para mim quanto menos pra você é por isso que sem poder enxergar o mundo me apaixono desfocado e assim prosseguem essas doenças malditas quase raras de se acontecer e me desfoco e vejo o outro desfocado mas tudo em meu peito é tão nítido, calado, forte e gripado, rouco e exausto. parado e sem teto sem vez uma mão única e estupidamente gelada sem graça só fervura de teclados e jogos antigos de jogo dramático do pierre encostando no meu garfo e nos teclados de uma semana quente quente e infernal de dores e de sangue sangue sangue sou estudante com útero dilacerante e de sinal fechado para eu mesma e para quem não obedece minhas regras dentro de um carro dando marcha e acelerando até chegar na esquina de uma rua para comprar todos os ingressos de uma peça de um escritor defunto aclamado e imortal de um roteiro estupidamente horrível de romântico com amor e morte e ode é uma confusão ostentar amor na arte sem ter visto e sentido um de perto mas atriz ator é ser isso e tudo um tico de jogador e mal jogador sem ter aprendido as regras e ainda assim ter se jogado no calor de uma cena de ser um piloto uma máquina e um objeto. de se misturar e escrever tudo sem ver sem pensar e ser rápido como vento de corrida no rosto as quintas eu não sei você mas isso não é viver, viver é ser pintura emoldurada na parede para todos ver e ali, nunca nunca nunca tu vais morrer pelo contrário vai eternamente viver dentro de um outubro no quarto enquanto pessoas te rodeiam e te observam feitos moscas famintas a procura de qualquer coisa para saborear e viver mesmo sendo péssimo ainda vao te rodear e falar e falar ou se tocar por tudo o que foi dentro daquele quadro velho e eterno restaurado centenário quadrado e intocável
intocável.
Encontrei uma forma de me controlar para não falar com você: sempre que eu sentir que preciso falar, vou fingir que você está recebendo todas essas palavras que escrevo. Para que eu não me arrependa de escrever, vou imaginar que você as recebe muito mais com ternura do que com temor.
Me atormenta pensar que tudo o que eu quisesse falar soaria como algo destrutivo, para mim e para você. E não acredito em amor assim.
Não se violenta voluntariamente aquilo que se ama.
De fato, às vezes é necessário que se destrua uma coisa ou outra, mas porque é nas ruínas que se acende o desejo da reconstrução.
Temo que você leia o que eu escrevo e pense - sinta - que minha intenção é te desmontar e deixar com que você lide com os destroços, sozinha.
Talvez por eu ter agido assim no passado
Mas, juro, eu não sabia.
Quando eu soube, quando eu finalmente entendi, eu quis falar demais.
As vezes pode parecer que é pelos cotovelos e que, de tanto falar, as palavras se esvaziam de sentido.
Mas eu gosto de falar daquilo que sinto, porque, caso contrário, sufoco.
Quando te vi, sinto que falei demais daquilo que, por anos, era segredo.
Violei uma regra fundamental de nós e profanei nosso sagrado.
Com isso, uma linha foi cruzada e não tem mais volta, porque não consigo me desvenciliar do impulso de falar com você e esperar você deigitar.
Lutando pela manutenção dessa conexão, com palavras sem importância, gracinhas sem sentido, palavras disléxicas que ocultavam o verdadeiro sentido da minha procura por você. O uso da linguagem sem sentido com a finalidade de receber a sua atenção, o seu carinho.
E eu briguei com minha memória para congelar cada vez que você veio, pedindo de volta.
Que eu tivesse o poder de fotografar aquele sonho da noite passada; nele você vinha ainda tímida, sem erotismo. Apenas um beijo.
Depois dele um abraço sem medo e a água do mar dançando entre nossos pés.
Pela primeira vez não foi errado tocar você, estava livre de toda angústia .
E a maior de todas as alegrias: era recíproco
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